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UMA REVOLUCAO BURGUESA?'_ Christopher Hill (The Open University, Londres) “Deus néo dirige este tipo de governo (da Igreja) de acordo com a sabedoria € pensamentos de seu proprio povo, mas totalmente de acordo com sua propria vontade € os pensamentos de seu prdprio coragio, fazen- do coisas que eles nao podem saber por enquanto, mas tém que saber depois. Sim, tais coisas no presente parecem absurdas ¢ absolutamente destrutivas.” William Dell, The Way of True Peace and Unity in the True Church of Christ (1651), in Several Sermons and Discourses (7709), p. 225 “Os fins das ages sto intencionais, mas os resultados que delas de- correm, de fato, nao o séo... “O resultado final sempre decorre dos conflitos entre vérias vontades individuais, das quais cada uma torna-se 0 que. ¢ devido a um grande mimero de condicées particulares de vida. Assim, hé forcas inumerdveis interagindo e dando emergéncia a um resultado:’ 0 fato histérico.” F. Engels, Ludwig Feuerbach, in Karl Marx, Selected Works (Moscou, 1935), 1, 457; Selected Correspondence of Marx and Engels (ed. Dona Torr, 1934), p. 476. “As conseqiiéncias culturais da Reforma foram, em grande medida. resultados ndo previstos e até nao desejados das tides dos Reformadores. 1. Sou profundemente grato a Eric Hobsbewm ¢ Edward Thompson por terem ido um rascunho deste artigo terem felto eriticas € comentirios proveitosos. Eles hilo sio responsiveis pelo que. resultov, dele, Nes notas seguintes, caso no esteje indicado diferentemente, © local de publicagio € Londses. Revista Brasileira de Histéria 7 Estavam, fregiientemente, muito atastadas ou em contradicdo com tudo aguilo que eles préprios pensaram em atingir.” Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (London, 1930), p. 90. impossivel discutic este assunto sem primeiro nos livrarmos de alguns esteredtipos. Muitos nfo marxistas, ou mesmo estudiosos néo-marxis- ‘as, atribuem aos marxistas posigées fixas do tipo daquela “todos os cre- tenses so mentirosos”, que, por principio, no podem ser postas em di- vida. Aprendi, através de longa ¢ dolorosa experiéncia, que se me pergun- tarem “Voct € marxista?, devo responder (por mais que isto v4 cont as minhas inclinagdes) “Isto depende do que voc8 entende por marxista”, pois se respondo “Sim”, mesmo com muitas qualificagdes académices, a proxima pergunta fatalmente seré “O que vocé faz quando se depara com uum fato que no se enquadra em seus pressupostos?” Ser tarde demais, entdo, para alegar que nao tenho nem mais nem menos pressupostos do que qualquer outro historiador, ou que, como eles, mudo constantemente minhas idéias com informagées novas, Meu interlocutor sabe tanto que os marxistas tm pressupostos dogméticos como também que todos os creten- ses so mentirosos. Nada que eu diga iri abalé-lo. Ele apenas se tornard mais ¢ mais convencido de minha desonestidade & medida em que cu tentar negar 0 que cle sube ser verdadeiro, Para se discutir, portanto, se a Revolugio Inglesa foi ou nfo uma revolugo burguesa, devemos comecar definindo os termos. Como afirmei mais demoradamente em outra ocasifo, a expresso, no seu uso marxista, do significa uma revolugio feita ou conscientemente desejada pela bur- guesia. (2) Ainda assim, quando argumentei nesse sentido, até mesmo um critico relativamente amével supés que cu estava reconhecendo “uma difi- culdade... na concepcio marxista de uma revolugao burguesa” ¢ que eu esperava “resolvé-la adotando uma interpretagdo desses termos que Isaac Deutscher jf havia colocado antes... contréria a visio tradicional de que @ burguesia... teve nela o papel principa’”.(3) Apenas ndo marxistas mal informados podem tomar esta como a “visdo tradicional” sustentada por marxistas. Citei Deutscher como um marxista respeitado e represen- tativo e nao como um inovador. Lénin, a quem talvez possa ser atribuido algum conhecimento respeito do assunto, argumentou, em certo perfodo, 2. Veja o meu Change and Continuity in SeventeenthCentury England (1974), pp. 27882. 3. Reyisto por R. H. Nidditch em Isis, 68 (1977), 153-54. 8 Revista Brasileira de Histéria a favor de provocar-se uma revoluco burguesa contra os desejos da bur- guesia russa. (4) A Revolugio Inglesa, como todas as revolucées, foi causada pela rup- tura da velha sociedade ¢ no pelos desejos da burguesia cu pelos lideres do Longo Parlamento. Seu resultado, no entanto, foi 0 estabelecimento de condig6es muito mais favoraveis a0 desenvolvimento do capitalismo do que aquelas que prevaleceram até 1640. A hipétese é a de que este resultado bem como a prépria revolugao tenham se tornado possiveis porque jé tinha havido um desenvolvimento considerdvel das relagdes capitalistas na Ingla- terra, Foram as estruturas, as fraturas ¢ as pressdes da sociedade ¢ nao os desejos dos lideres, que ocasionaram a eclosio da revolucio moldando o Estado que dela emergiu. Em nossa sociedade, homens de negécio € polf- ticos no desejam uma recessfio embora quando ela ocorra possamos con- cluir que seus esforgos para evité-la tenbam ajudado a provocé-la. Na dé- cada de 1640, camponeses se revoltaram contra os cercamentos, tecelées contra a miséria resultante da depressio € os crentes contra 0 Anti-Cristo a fim de instalar 0 reino de Cristo na terra. Como resumiu um partidario do Parlamento, da Nova Inglaterra, em 1648: “Disse alguém que lutei ¢ me engajei para afastar maus conselheiros do Rei; ... outro disse que me engajei para estabelecer a pregacio; ... um terceiro disse ainda que lutei contra o Rei, concebendo-o mais como agente ativo que como agente passivo subordinado a qualquer mau conselheiro; outro teria Iutado contra a opresso em geral.” Gerrard Winstanley pensou que todos, isto é, gentry, clero © comuns, Iutaram por terra (5). Na verdade, poucos das fileiras do Novo Modelo de Exército lutaram para criar um mundo seguro para fazendeiros capitalistas comerciantes Iucrarem. Protestaram, alids, vigo- rosamente, quando o General do Servigo de Intendéncia, Ireton, levantou tal possibilidade. A medida que a revolugfo se desenvolveu, homens com idgias do que seria desejével politicamente tentaram controlé-la, mas ne- nhum deles obteve sucesso. O resultado da Revolucio nfo foi algo dese- jado por quaisquer dos participantes. Uma vez rompidas as velhas amarras, a forma que a nova ordem assumin foi, a longo prazo, determinada pelas 4. Para os pontos de vista de Lénin vejase V. I. Lénin, Selected Works (1934 1938), 1, 490-92, TIT, 135-37. 5. “George Downing to John Winthrop”, 8 de margo de: 1647.48, in Collections of the Massachusetts Historical Soc., V1, 541; ed. G. H.-Sabine, The Works of Ger- rard Winstailey (Ithaca, N. ¥.. 1941), 373-74; of, ed. J. T. Rutt, The Parliamentary Diary of Thomas Burton (1828), 11, 145, 186-88. Revista Brasileira de Histéria * necessidades de uma sociedade na qual um grande niimero de homens, sem ideologia, cuidava apenas de seus prdprios interesses. (6) Na Inglaterra, por volta de 1640, @ monarquia dos Stuart era incapaz de continuar governando de maneira tradicional, Sua politica externa era deploravelmente fraca, em parte pela falta de dinheiro; as medidas econd- micas, as quais foi obrigada a recorrer, alienaram tanto seus aliados poten- ciais como seus inimigos. Afirmar que esta situagio foi conseqliéncia, em liltima instancia, das presses ¢ tensdes produzidas pelo modo de produgao capitalistas nao € 0 mesmo que dizer que o governo de Carlos I foi der. subado por um bando de capitalistas pois nio o foi. Também néo é 0 mesmo que afirmar que uma politica mais adequada no teria protongado Sua duragio pois esta, de fato, teria. Por volta de 1640, porém, as forcas socials que acompanharam o capitalismo ou foram liberadas pela sua ascenso, especialmente na agricultura, niio podiam mais ser contidas no velko quadro politico a no ser por meio de repressio violenta, de que o govemo de Carlos 1 se mostrou incapez, Entre “as forcas sociais que acor. Panharam a ascensio do capitalismo” devemos incluir nfo apenas o ind vidualismo daqueles que queriam obter dinheiro, fazendo 0 que podiam com seus meios, como também o individualismo dos que quiseram seguir suas Proprias consciéncias adorando a Deus, 0 que os levou a desafiar as insti- twigdes de uma sociedade hierarquicamente estratificada, Presses ¢ tensdes Similares produziram conflites andlogos em outros paises europeus (7), ¢ gstavam ligadas, sem dtivida, tanto a0 crescimento da populago. quento A ascensio do capitalismo. O resultado na Inglaterra foi diferente, todavia, dio de todos os demais pafses da Europa, com excecio dos Paises Baixos, Na Espanha, Franca e outros lugares, a monarquia absoluta sobreviven 3 crise dos meados do século. Na Inglaterra, esta crise pds fim as aspiracdes da monarquia de edificer um absolutism baseado num exército regular © numa burocracia, Como Marx frisou, uma das diferencas essenciais entre a Revoluctio Inglesa ¢ a Revolugdo Francesa de 1789 foi a “continua alianga que (na 6. © Ikitor interessedo no que Marx ¢ Engels realmnte disseeam sobre estas quesides deve procurar Marx, Selected Works (Moscou, 1955), I. 210-11, 241, 45658, Il, 175, 315, 54445, Marx, Selected Essays (N. York, 1936)' pp. 6970. 201-208, Marx-Engels, Gesamtausgabe (Moscow, 1927), Abt. 1, VIL. 493; Engels, Socialien, Vropian and Scientific (1936), pp. xixxxit; AntiDuhring (1354), pp, 22629; Selected Correspondance of Marx and Engels, pp. 310-11, 475.71, S718. "© qus se pode a Sontrar aqui, pode surpreender os que sustentam "a visto tradicional”, 1. |B, B. Merrimen, Six Contemporancous Revolutions (Oxford. 1958), passim; Exic J. Hobsbewm, “The Crisis of the Seventeenth Century", Past and Present, 3 ¢ 11854); H. R. TrevorRoper, “The General Crisis of the Seveniecath Century”, Past sand Present, 16 (1959), e uma discussiio no n? 18 (1960). 0 Revista Brasileira de: Histdria Inglaterra) uniu a classe média, com a maior parte dos grandes proprie rios de terra”. Ele associou esta alianca com a eriagdo de carneiros, da- tando-a a partir do século XVI (8) A natureza rural do capitalismo na Inglaterra o diferencia do da maioria dos paises continentais ¢ cria difi- culdades para os puristas que tomam “burguesia rural” como termos con- traditérios. Ponda de lado discusses lingliisticas, é dificil negar que um segmento da gentry e da yeomanry inglesas, especialmente no Sul ¢ no Leste, tomou parte da produgéo para o mercado, a partir do século XVI, notavelmente através da indistria extrativa e lanifera, sendo esta a pri cipal diferenca entre a Inglaterra aqueles paises continentais onde a mo- narquia absoluta sobreviveu. (9) Na Inglaterra do século XVI, a classe dominante de proprietarios de terras era restrita e estava segura apenas enquanto estivesse unida, Nas duas geragdes anteriores 2 1640, esta jA ndo estava mais unida pelo medo, seja da Espanha, de uma guerra civil dinstiea ou de uma revolta camponesa; estava dividida por questées econdmicas, principalmente pelos monopélios, ¢ por questies religiosas. A partir de 1618 dividiu-se em relagdo a politica externa, tio intimamente ligada a religifo. A depressio do setor téxtil na década de 1620 ¢ a batalha pelas florestas isolaram © povo e um scior da gentry da Coroa ¢ dos grandes aristocratas que estavam cercando flo- estas © terras comunais. (10) Desde os anos apés 1620, pelo menos, conflitos ‘nos burgos revelaram uma ruptura entre as tendéncias oligérquicas da Coroa e de alguns da gentry além da disposicao de senhores, menos intimamente associados & Corte, de apoiar um suftégio amplo nos bur- 208, (11) A gentry desprovida de cargos ¢ aqueles que controlavam, ha muito tempo, o poder local se ressentiram da tentativa de se estabelecer uma burocracia e um poder central mais fortes. A politica de Laud na Igreja isolou tradicionalistas moderados, quase tanto quanto enfureceu puri- tanos; também causou desastre na Escécia. O sucesso de Strafford, na Ir- landa, foi tio desastraso quanto a derrota escacesa de Laud, pois a Irlanda 8. Marx, Selected Essays, pp. 204-6; Marx, Capital, I (ed. Done Torr, 1946), 430. TIL (ed. B. Engels, Chicago, 1909), 928-46. 9. Sobre # “dependéncia miitua” do Estado absolutista ¢ a “propriedade cam- ponesa forte”, na Franca, veja R. Brenner, “Agrarian Class Structure and Economic Development in prelndustrial Europe”, Past and Present, 70 (1976), pp. 6873. 30, Brian Manning, The English People and the English Revolution (1976) caps. 1 © 7. Para as florestas, veja n*. 18 abeixo, 11. Derok Hirst. The Representative of the People? (Cambridge, 1975) especial- mente caps. 3, 4 € 10; P. Clark e P. Slack, English Towns in Transition (Oxtord, 1976), pp. 15440. Revista Brasileira de Histéria n era vista como base para 2 construcdo de um exército — outro componente necessfrio para qualquer tentativa de se criar um governo absolutista. A Guerra Escocesa de 1639-40 revelou a inabilidade governamental de comandar, de arrecadar impostos ou organizar um exército que lutasse, pemmitindo que alguns conspiradores entre a genéry visualizassem um re- forno 20 poder por meio de apoio popular. Assim, quando o Parlamento se reuniu afinal, alguns de seus lideres estavam prontos a usar ou accitar press6es da multidéo de Londres para forcar concessGes por parte do go- verno. Estavam prontos a serem eoniventes com a tolerdncia religiosa, como prego a pagar pelo apoio popular contra os bispos, a serem coniventes com 5 motins contra os cercamentos, dirigidos especialmente contra a Coroa © grandes senhores de terra, © a serem coniventes com os motins contra 8 papistas. As multiddes de Londres tomaram possiveis a execug&o de Strafford, a exclusao dos bispos do Parlamento e a seguranca dos Cinco ‘Membros quando Carlos I tentou prendé-los em janeiro de 1642; yeomen de vétios condados vizinhos de Londres marcharam para a capital numa demonstragio de apoio. (12) Doravante, como mostrou o Sr. Manning, o partido popular na Ci- mata estava de certa forma encurralado e ndo mais controlando os acon- tecimentos. A publicaggo do “Grand Remonstrance” € corretamente vista como a encruzifhada entre aqueles, como Hyde e Falkland, cuja oposicso @ Coroa nfo admitia uma confianga continua no apoio popular e aqueles que no tinham receio de pressionar continuamente, como Oliver Cromwell (com sua experiéncia como lider dos fenmen — “homens do charco” — em 1630) ou Bulstrode Whitelocke (candidato popular numa elei¢fo eiva- da por diferengas de classe em 1640). A tolerdncia religiosa eta uma ques- {Go igualmente polarizadora. A quebra da autoridade eclesisstica em 1640 testemunhou a emergéncia do submunda dos grupos heréticos das classes baixas que estavam, hé muito, além dos timites do protestantismo respei- tavel. Se: havia ou nao um submundo continuo dos Lollards, via Anaba- tistas © Familistas, até 0s sectérios dos anos de 1640 (13), a emergéncia estes tltimos serviu em parte para afugentar reformadores aristocraticos como Sir Edward Dering. De fato, poucos foram aqueles que, como Milton, tiveram palavras amistosas para com os Familistas em 1642. (14) Toda via, sob a presstio da necessidade militar ¢ do radicalismo londrino, lideres 12. Manning, The English People, caps. 1, 4, p. 104. 13. Veja o meu “From Lollards to Levellers” in Rebels and their Causes; Essays in English History published in Honour of A. L. Morton. (cd. M. Cornforth, 1578). Lido na Conferéncia de Folger. es 14, Veja o meu Milton and the English Revolution (1977) pp. 9597. R Revista Brasileira de Histéria como Oliver Cromwell optaram pela liberdade religiosa © pela promogdo por mérito ao invés daquela por nascimento (a Self-Denying Ordenance), Quando a Guerra Civil estourou, ndo foi a gentry e sim os teceldes do West Riding que forgaram a marcha em Yorkshire tendo Fairfax acom- panhado. Em Lancashire foi 0 povo que insistiu na luta, enquanto a gentry hesitou até que Brereton se colocasse & sua frente, © neutralismo era popu- lar entre a gentry de muitos condados. Quaisquer que fossem as intengbes originais do Parlamento, outras vontades dominaram entre 1642-43, (15) As oscilacdes do Partido da Paz (Peace Party) e do Grupo do Meio (Middle Group) entre os membros do Parlamento foram superadas por pressGes exteriores a este — primeiro presses por parte da malta londrina, depois, por parte do exército escocés ¢, finalmente, por parte do exércita inglés. A guerra foi ganha pela artitharia (que s6 0 dinheiro poderia com- prar) e pela moral disciplinada da cavalaria yeomen de Cromwell. A crise real veio quanda a futa estava acabada, quando 2 organizacdo democratica dos Levellers deu uma significagio politica perigosa aquilo que havia sido, até entdo, atividades espontineas como aquelas das multiddes de Londres, de amotinados antipapistas ¢ anticercamento, assim como os sectirios mais extremistas tornavam perigosas as idéias religiosas radicais, algumas das quais — como as dos Ranters, dos Diggers e dos primeiros Quackers — tinham significado politico, assim como teolégico, & pareciam aos con servadores como simplesmente irreligiosas. (16) No fim, as ansiedades so- ciais, que os Levellers ¢ as seitas radicais despertaram, acabaram por reunir as classes proprietérias. Gracas, em grande parte, a pericia com a qual, em 1649, Carlos T jogou sua diltima cartada possivel, atuando no papel de mér- tir real, © ao grande sucesso da propagands de Eikon Basilike, essa unido privilegion a monarquia. Entretanto, a unio estava assentada sobre fortes ligagies materiais entre os dois setores das classes proprietérias, assim como sobre a magia da monarquia. Por volta de 1660, ocorreram transformagdes na politica inglesa © no cenério social que — quaisquer que fossem as intencGes daqueles que a causaram — tiveram como conseqiiéncia facilitar o desenvolvimento do ca- pitalismo, A abolicso de posses feudais ¢ da Court of Wards (1646, 1656, confirmada em 1661), “transformaram o senhorio numa propriedade abso- luta”, como o professor Perkin aponton, Senhores de terra foram liberados da incidéncia de impostos arbitrérios sobre herangas ¢ suas (erras torna- ram-se uma mercadoria que poderia ser comprada, vendida ¢ hipotecada, 15, Manning, The English People, cep. 7. 16. Ibid., caps. 9 © 10; ef. mew Irreligion in the “Purlian” Revolution (Bars nett Shine Foundation Lecture, 1974), passim. Revista Brasileira de Histéria 1B Desta forma investimentos de capital a longo prazo na agricultura torna~ ram-se possiveis. Esta foi “a mudanga decisiva na histéria da Inglaterra que a diferenciou do continente”. “A partir desta, originaram-se todas as outras diferengas.” (17) A. aboligfo das posses feudais também remo- veu uma forte alavanca da financa & do controle real e assim enfraqueceu gravemente a posicao independente da monarquia. No final dos anos quarenta ¢ cingiienta a demanda radical por segu- tanga de direito equivalente pelos foreiros foi derrotada, O Ato Confirma- torio de 1661, a primeira questo que o Parlamento examinou apés 0 res- tabelecimento do Rei, excluiu especificamente os foreiros (copyholders) das vantagens que seus superiores estavam votande para si mesmios. Assim, 20 invés de os foreitos ganharem seguranea de posse, um ato de 1677 esten~ deu sua inseguranga aos pequenos possuidores livres de terras alodiais, ex- eto na possibilidade remota de que os titimos fossem capazes de mostrar titulos escritos de suas terras. Assim, a maioria dos obsticulos aos cerca- mentos foi removida. Isto preparou o palco para a répida expansio da agricultura capitalista, empregando as novas técnicas popularizadas pelos teformadores agrérios do Interregnum, Estabilizaram-se 0s precos dos ali- mentos € néo houve mais periodos de fome na Inglaterra, embora tenham persistido na Franca. O Parlamento positivamente encorajou os cercamen- tos © 0 cultivo das terras devolutas, protegeu os fazendeiros das importa- g6es, autorizou o armazenamento de cereais ¢ estabilizou o subsidio nas exportagées. A Iuta pelas florestas ¢ terras comunais de antes de 1640. a qual o Sr: Manning corretamente atribui tanta importincia (18), tinha como finalidade tornar seu cultivo mais lucrativo. O Rei © os grandes se- ahores de terra tentaram usar seu poder politico para aumentar sua parte no excedente. A pressio para se cultivar os charcos e as terras devolutas veio da expansio do mercado — para alimentos e tecidos, pata uma po- pulagio crescente — e para a exportagio de tecidos. Por volta de 1660, essa batalha havia sido perdida tanto pelo Rei como pelas pessoas que ti- nham o dircito de usar as terras comunais. Oliver Cromwell, como ““Senhor dos Charcos”, liderou a aposicao A drenagem do Great Level e foi respon- sével pela derrota dos Levelters, que tornou possivel a retomada da dre- nagem sob sua tutela, em fermos mais vantajosos para os drenadores do que para 0 resto da populacdo destas freas. (19) Para citarmos © profes- 17, H, J, Perkin, “The Social Causes of the British Induetrial Revolution” ‘Trans. Royal Historical Soc, (1968), p. 138; ef. Deniel Defoe, The Compleat English: Gentleman (1980), pp. 60455 (escrito em 172829), 18. Manning, The English People, cop. 6. i 19. H.C. Darby, The Draining of The Fens (Cambridge, 1956), p. 80. “ Revista Brasileira de Histéria sor Perkin novamente: “'a provisio de terras para melhoramentos.agricolas, mineragdo, transportes, fabricas e cidades foi um problema to insignifican- te na Revolugio Industrial Britinica, que fregiientemente se esquece 0 obstéculo que a posse de terra feudal, tribal ou camponesa pode representar em paises subdesenvolvidos.” Esta foi outra grande diferenca entre a In- glaterra e 0 continente (20). Apés 1688, o Parlamento estimulou o desen- volvimento de recursos minerais ¢ uma série de pronunciamentos judiciais contrérios as restrigdes completaram 0 modelo. Os Atos de Navegaco (1650, 1651, confirmados em 1660, 1661) tornaram poss(vel o sistema colonial fechado, que poderia, dali em diante, ser reforcado gracas & grande marinha herdada pelo governo do Common- wealth © ao novo sistema de impostos implantado para o pagamento da Iuta da guerra civil. A Guerra Holandesa de 1652-54 foi a primeira aven- tura imperialista apoiada pelo Estado na historia da Inglaterra; a cla se- guiu-se a Guerra Espanhola de Cromwell, a primeira investida inglesa sus- tentada pelo Estado para obtengdo de colénias no Novo Mundo. Os novos impostos que financiaram estes gastos governamentais foram duplamente vantajosos para os homens de negécio, uma vez que as taxas sobre 0 con- sumo caiam especialmente sobre os gastos exuberantes dos muitos ricos ¢ sobre as necessidades dos pobres, (21) O imposto sobre a terra foi baseado numa nova determinacio que atingiu os grandes senhores de terra, muito mais duramente do que o imposto (subsidio destinado 8 Corea) o fez antes de 1640. ‘A confirmagio da legislagao contra os monopélios de 1660 ¢ contra a tributagdo nfo parlamentar, juntamente com a aboligio das prerogative courts (Cortes de Prerrogativas), tornaram qualquer controle governa- mental sobre a vida econémica invidvel, a no ser em comum acordo com © Parlamento, Nao haveria mais projetos Cokayne, nem interferéncia eco- némica do Privy Council. No final do século XVI e inicios do século XVII, assim como-a agricultyra estava sendo comercislizada, o direito consuetu- dindrio estava sendo adaptado as necessidades da sociedade capitalista © & protegio da propriedade, Apés 1640 a interferéncia governamental arbi- traria no procedimento juridico devido tomou-se impossivel; 0 procedimen- to devido agora significava o direito como havia sido desenvolvido por Sir Edward Coke, As partes II, ITT e IV dos seus Institutes néo puderam ser impressas antes de 1640; em 1641 o Parlamento ardenou stia publicacko 20. Perkin, The Social Causes, pp. 137-38. 21. Como Marx escreveu em 1847 (The Poverty-of Philosophy, 1941, p. 129): Carlos 11 recebeu compensagio pela perda das posses feudeis através das'taxas co: bradas sobre a fabricapio © comercializago de produtos Revista Brasileira de Histéria ee € dai em diante os trabalhos de Coke, na frase suave de Blackstone, tinham “uma autoridade intrinseca nos tribunais de justica e nio dependiam intei- ramente da forga de suas citagdes pelas autoridades mais antigas”. (22) O monop6tio terminou na indistria mas no no comércio externo, onde a organizagao e o apoio da marinha estatal cram ainda requeridas. A derrota do movimento democritico liderado pelos Levellers nas guildas ¢ a quebra dos regulamentos de aprendizagem, no perfodo de guerra, minaram, seria- mente, a seguranga dos pequenos mestres na industria. O perfodo apds 1660 testemunhou tanto a quebra de méquinas como o inicio da organizacio sin- dical. A liberdade ¢ a mobilidade das décades revoluciondrias também facilitaram a expanséo da classe de intermediérios, comerciantes viajantes, cujas atividades foram tio incentivadas pela legislagio posterior & Restau- ragio, como haviam sido fustigadas pelos governos anteriores a 1640. Em 1663, Papys observou que era mais barato para um homem humilde com- rar produtos agricolas do que tentar produzi-los, Sessenta anos mais tarde Defoe afirmava que havin “dificiimente uma pardquia entre todas as dez mil onde no houvesse alguns desses varejistas, e nio poucas delas tinham varias centenas deles”. (23) Ja estavam, entio, a caminho da nacio de lojistas de Adam Smith. As décadas revolucionérias também testemunbaram @ expansio das categorias profissionais urbanas suprind no mercado aberto as necessidades daqueles com dinheiro, mais do que confiando no patro- cinio atistocratica, Apés 1660, como antes, a gentry dominou a sociedade inglesa e 0 Es- tado, mas 0 contexto social era diferente. Os confiscos © vendas de terras da Revolucdo, apesar de tempordrios, a redistribuigzo de riquezas pelos impostos, juntamente com a derrota dos radicais, facilitaram a ruptura das telagdes patriarcais tradicionais entre os senhores de terra e os arrendaté- tios. Senhores de terra realistas foram forcados a melhorar a administracio de seus bens pelas pressées econdmicas da Revolugio e pela austncia da corte enquanto fonte de renda eventual. Estes hébitos sobreviveram apds @ Restauracdo, Quando Sir Edward Dering perdeu seu cargo na Corte, 22. Citedo no meu Intellectual Origins of the English Revolution (1965), pp. 255536: yeja também p. 227 ¢ cap. 5 passim, 25. Ed. H. T. Heath, The letters of Samuel Pepys and his Family Circle (Ox. ford, 1956), p. 3; D. Defoe, The Complete English Tradesman (1861), 11, 209; cf. 1, 241-55 (primeira publicagao em 1727); A. Everitt, Social Mobility in Exvly Modern England, Past and Present, 33 (1966); Change in the Provinces (Dept. of English Locel History, Leicester University, Occasional Papers, 2nd. Sevies. Ni, 1969}, pp. 43-45; D. Davis, A History of Shopping (1968), especialmente cap. 6 p. 181; G. W. Chalklin, Seventeenth Century Kent (1975) p, 160; ef. 0 meu, Change and Continuity in SeventeenthContury England, cap. 7. 16 Revista Brasileira de Mistéria em 1673, executon planos minuciosos para reorganizar a administracio de suas propriedades a fim de aumentar a producdo para o mercado. (24) s cercamentos, que haviam sido oficialmente denunciados pelo Arcebispo Laud ainda nos anos trinta, foram defendidos na guerra de panfletos da década de 1650, e tornaram-se um dever patriético. Diz-nos o bidgrafo do General Monek a seu respeito: “sabia muito bem... quéo inébil ¢ a nobreza para manter seu préptio respeito © ordem, ou para assistir a Coroa, enquanto se fazem os nobres despreziveis ¢ fracos pelo mimero ¢ peso de suas dividas e pela continua decadéncia de suas propriedades. Se a riqueza da nagéo centralize-se em sua maior parte entre as cama- das mais baixas do povo e entre comerciantes, cedo ou tarde estaré a0 seu alcance e, provavelmente, em seus desejos, tomar © governo. Estas © outras consideragies semelhantes levaram o Duque de Albermarie a se tomar um dos maiores exemplos de administragdo honrada para a nobreza, assim como fora, anteriot- mente, exemplo de lealdade e de obediéncia.” (25) Quem seria melhor? A Royal Society, onde todos os pares cram bem-vindos enquanto membros, se empenhava ativamente na divulgagéo € propaganda de uma melhor produgio agricola. A revolugéo agriria dos fins do século XVI ¢ século XVIII contribuiu para s acumulagdo de ca pital, que tornou possivel a Revolucdo Industrial, e para um significative aumento de seus produtos no mercado interno, Uma forga de trabalho me- nor produzia alimentos suficientes para manter uma classe sem terras & me- dida em que a forca de trabalho excedente deixava 0 campo pela indiis- tria. (26) Apés 1660, a politica externa republicana ¢ Cromwelliana de apoio a0 comércio © & navegagio da Inglaterra teve continuidade. Carlos It pode ter tido interesses anti-republicanos ao levar a Inglaterra as segunda e ter- ceira Guerras Holandesas, mas, para 2 maioria dos proprietérios ingleses, es holandeses cram os principais rivais comerciais. Uma vez quebrado ¢ poder de competicio dos holandeses, seu protestantismo era relembrado 24. Ed. M. F. Bond, The Diaries and Papers of Sir Edward Dering, Second Raronet, 1644 10 1684 (H. M.S. O., 1976), p, 14; of. A Royalist’s Notebook (ed. F. Bemford, 1956), p. 251; The Moore Rental (ed. T. Heywood, Chetham Scc., 1874), p. 119, 25. T. Skinner, Life of Monck (segunda edigio, 1724) p. 384, 26. Cf. Brenner, “Agrarian Class Structure”, pp. 67-71. Revista Brasileira de Historia v ¢ eles cram bem recebidos como aliados contra a Franca de Luts XIV. A marinha © 0 sistema de impostos tornaram possiveis o Ato de Navegagéo © a primeira Guerra Holandesa, sendo assumidos pelos governos posterio= res a Restauragao; a segunda ¢ a terceira guerras teriam sido impossiveis sem eles. (27) Em 1694, 0 Banco da Inglaterra se estabelecia, Anterior ‘mente, um banco no poderia ter-se edificado na Inglaterra, nem na Fran- a de Luis XIV pois “os comerciantes temiam... que o Rei pudesse me- ter as maos nos depésitos”. (28) Sem dtivida, apés. 1660, Carlos II (de tempos em tempos) ¢ Jaime IL (inais seriamente) sonharam em construir a monarquia absoluta que seu pai ndo havia conseguido, Entretanto, gracas & Revolugdo, nunca houve qualquer possibiidade de obterem sucesso. Sem wm exército ¢ sem uma burocracia independente, o absolutismo era impossfvel, (29) O Estado pas- terior a Restauracdo, ¢, especialmente, 0 posterior a 1688, eram fortes nas relagdes externas mas fracos internamente. A maneira menos dispendiosa de se governar, mantendo as ordens inferiores sob controle, era fazer uso dos servigos desejosos, porém nfo remunerados, dos governantes naturais do pais: a geniry e as oligarquias mercantis. Esta maneira apresentava a vantagem adicional de se manter habitos de deferéncia e de facilitar a acei- tagio de uma politica externa dispendiosa por parte dos proprietérios de terra, Assim, 1660 testemunhou uma uniéo dos Roundbeads ¢ dos Ca- valiers contra 0 radicalismo. religioso, politico ¢ social, Embora formal- mente nenhuma legislacéo nfo aceita por Carlos I fosse vélida apés 1660, um miimero suficiente de concessdes havia sido retirada da monarquia entre 1640-1641 para que isto ndo importasse. Havia “um rei plenamente ungi- do” mas nenhum risco de absolutismo. Havia bispos mas néo “High Com- mission”, de maneira que os tribunais da Igreja podiam ser efetivos somente contra aqueles considerados socialmente perigosos dissidentes ¢ contra as classes baixas. Com a aboligiio das prerogative courts, com o triunfo do direito consuetudinério de Coke ¢ com a posterior independéncia do judi- ciftio do executivo, removeram-se as restrigdes institucionais ao desenvolvi- mento do capitalismo, Querendo ou nfo, pares ¢ gentry tinham que che- gar a um acordo em relagio a isto. Nao se podia recolocar a sociedade na camisa-de-forca hierérquica dos anos trinta; a corte do Earl Marshal, que costumava cobrar fiangas ¢ prender comuns. por falarem desrespeitosa- 27. Vein adionte pégina 24, 28. F. Brsudal, Civilisation Moterielle et Capitalisme (Paris, 1967), 1, 396. 29. Devo este ponto a um paper inédito do professor J. R. Jones. 18 Revista Brasileira de Histéria mente de seus superiores, ndo foi restaurada. (30) Doravante, prestava-se deferéncia ao dinheiro néo apenas. as terras. Pares @ outros grandes proprietérios de terra tinham ainda enormes Tecursos que podiam ser aplicados num desenvolvimento capitalista: terra, Brestigio © acesso aos cargos da Corte. Marx antecipou-se ao professor Stone ao ressaltar “a maravilhosa vitalidade da classe dos grandes senhores de tetra", na Inglaterra. “Nenhuma outra classe empilha divida sobre di- vida to despreocupadamente como esta, E mesmo assim, sempre se saindo bem.” (31) O strict settlement (acordo restrito), que impedia a divisio de propriedades pelos herdeiros, garantiu a acumulacdo de capital num mo- mento em que a expanstio do comércio externo, a marinha e a burocracia (ob controle parlamentar) ofereciam empregos aos filhos mais jovens ¢ quando 0 boom agricola fez da carreira eclesidstica uma profisséo acei- tavel uma vez mais ¢ tornou disponiveis dotes mais ricos para as filhas. Tudo se combinou para acomodar a aristocracia vitéria da nova ordem social, na qual tinha uma posi¢ao segura. Por volta do final do século, par- ticipando ou beneficiando-se da maior indistria capitalista da: Inglaterra, inyestindo seu dinheiro no Benco da Inglaterra, o pariato era, sociologica- mente, uma classe muito diferente da dos parasitas da corte de Jaime T. Marx ¢ Engels foram ambos cautelosos ao datar a “supremacia politica da burguesia inglesa e sua aceitacio pela aristocracia, de 1688 cm. dian- te. (32) O Sr. Thompson fala da gentry do século XVII como uma “clas- se capitalista esplendidamente bem sucedida ¢ autoconfiante.” (33) Entre 1660 © 1688 houve um equilibrio instavel. Como 0 professor ‘Trevor-Roper observou, néo havia problemas, antes da Guerra Civil, que nao pudessem ser solucionados por homens sensatos sentados ao redor de uma mesa, Entretanto, antes que 0 acorda fosse conseguido, reis e arce- bispos tiveram que aprender que tinham uma junta em seus pescocos, que a merinha ¢ 0 novo sistema de impostos tinham que ser construfdos ¢ que © pais tinha uma experiéncia de vinte anos de um governo muito bem sucedido de comités parlamentares. Nao se poderiam atingir esses resultados sem antes se desatrelar do radicalismo religioso, social e politico, Nos anos 40, a censura € 0 controle das cortes eclesidsticas haviam sido rompidos 30. The Life of Edward Earl of Clarendon (Oxford, 1753), 1, 72:73, 767. 31. Marx, Capital, 111, 841. 32. Marx, Germany, Revolution and Counter-Revolution, in Selected Works, U1, 44; Marx, Capital, T, 74647; Engels, Socialism, Utopian and. Scientific, pp. 33. E. P. Thompson, “The Peculiarities of the English”, The Socialist Register, 2 (1965), 347-18. Revista: Brasileira de Historia # ¢ uma semente selvagem ¢ revoluciondria havia se infiltrado em cada uma das heresias que se pregava © imprimia debaixo do sol. A mecinica eo mulherio encontraram-se livremente e negaram, publicamente, a existéncia do paraiso € do inferno, do diabo, de um Cristo histérico e da vida no além. ‘Trataram a Biblia como uma colecdo de mitos para ser usada para os pro- pésitos politicos do momento. Rejeitaram a Igreja oficial, seu clero e seus dizimos. Proclamaram que toda a humanidade seria salva € que todos os homens deveriam votar, Alguns rejeitaram os Dez Mandamentos e a mo- nogamia, outros procuraram a aboligéo do senhorialismo das terras e da propricdade privada. Formaram-se grupos para se atingir alguns desses propésitos. As deferéncias e as decéncies de toda a ordem social pareciam desintegrar-se, (34) Este radicalismo sem precedentes foi lenta ¢ dolorosamente sup: do nos anos 50, mas deixou uma dura meméria, Em 1660, membros do Parlamento estavam tio temerosos de seu reflorescimento, to ansiosos por dispersar, to rapidamente quanto possivel, 0 perigoso exército © por resta- belecer 0 controle sobre os sectdrios das classes mais baixas, que deixaram de impor termos definidos 4 monarquia. Quando os acontecimentos de 1678-81 relembraram memérias dos anos 40, Carlos II pide prosseguir, Por curto espaco de tempo, com um govern néo-parlamentarista, em alian- ca com a gentry Tory © a Igreja Anglicana, Ele pode remancjar fraudulen- tamente as corporacées — 0 eleitorado parlamentar — ¢ Jaime IT luerou muito com isto em 1685. Todavia, Carlos conhecia 0s limites sociais. nos quais podia operar com seguranga. Quando Jnime II, apés aniquilar os radicals Monmouthite em 1685, tentou realmente voltar atrés 0 rel6gio, © particularmente, quando sbandonon a alianga Toty-Anglicana © tentou usar as forcas sociais que parlamentares haviam empregado contra seu pai vinte anos antes, as fileiras se cerraram contra ele ¢ contra 0s radicais. A falha em se impor termos precisos & monarquia foi corrigida entre 1688-89. O medo obsessive do radicalismo, que levou ao exagero de 1660, teve conseqiiéncias sociais e politicas lamentéveis. Apés a vit6ria do dircito consuetudindrio liberalizado, as demandas posteriores por reformas ¢ codi- ficagdes juridicas vieram especialmente dos radicais, No pinico pés-revolu- cionério elas foram abandonadas ao mar. Com exceeio do Ato de Habeas Corpus de 1679, 0 estabslecimento da independéncia dos jurados em re- Jaco as ordens dos juizes e, apés 1701, 0 da independéncia do judiciétio em relacdo a0 executivo (tudo isto beneficiando as classes. proprietérias) foram esquecidos pelos politicos “responsiveis” até o século XIX, bem incu estes problemas no The World Turned Upside Down, como a reforma juridica ¢ a reforma do suirégio, Os modestos avancos educacionais das décadas revoluciondrias também foram abandonados. O fim dos planos por oportunidade educacional mais igualitéria significou que os talentos dos trés quartos mais pobres da populagao foram inadequada- mente mobilizados para a Revolucéo Industrial, da qual a Inglaterra foi pioneira. A exclusio dos dissidentes das universidades assim como da vida Politica causou no sistema educacional inglés uma ruptura desastrosa entre amadores classicamente educados, que governam, ¢ cientistas © tecndlogos, socialmente inferiores, que trabalham (as conseqiiéncias desta ruptura per- duram até hoje). (35) A mobilidade das classes mais baixas foi restringida pelo Act of Settlement de 1662 © os pobres foram aceitos como uma parte permanente da populacdo. A maquina a vapor foi inventada mas néo de- senvolvida, A Monarquia, a nobreza e a Igreja Oficial sobrevivem na In- alaterra até hoje. © conceito marxista de Revolugio Burguesa nio é refutado, portanto, 40 se demonstrar que a Casa dos Comuns do Longo Parlamento, como seus predecessores, continha uma amostra dos governantes naturais do inte- rior do pais. Tampouco 0 conceito estaria definido se pudéssemos demons- tar que todo membro do Parlamento era um industrial. Dizer que havia uma divisio entre a Corte ¢ 0 pafs, mesmo que verdadeira, nfo nos adian- taria muito mais do que dizer que a Revolucéo Francesa iniciou-se com uma revolta da nobreza. (36) O que sobressaiu na Revoluc&o Inglesa foi © fato de que a classe dominante estava profundamente dividida num mo- mento em que havia muita matéria combustivel entre as classes mais bai xas, normalmente excluidas da politica. “Os parlamentares do comeco do século XVII estavam, as vezes, perfeitamente cientes das forcas. politicas gue operavam fora de Westminster.” Como o Dr. Hirst demonstrou, “e ‘em varias ocasides tentaram apresentar as aspiragdes dessas forgas”. Para conseguir apoio contra a Corte, esses parlamentares estavam dispostos a aumentar o eleitorado. Todavia aqui, como o Dr, Manning assinalou, “esse eleitorado maior era mais dificilmente controlavel pela gentry ¢ mais ca- pacitado a defender suas proprias opinides.” (37) 35. Veja C. Webster, “Science and the challenge to tho scholastic curriculum, 1640-1660" in The Changing Curriculum (History of Education Soc., 1971), pp. 32:34; ©0 meu The World Turned Upside Down (Penguin, 1975), p. 305 56. Pata a visio convencional, veja P. Zagorin, The Court and the Country: The Beginning of the English Revolution (1963). 37. Mirst, The Representative, p. 158; Manning, The English People, p. 2. No seu The Debate on the English Revolution (1977), Dr. R, C. Richardson astutemente mostrou que, apesar de no muito fortuitamente, @ argdmento do The English People ‘and the English Revolution do Dr. Manning “partiu de onde o livro de Hirst parow” p. 143), Revista Brasileira de Histéria at Apesar de normal em sua composicéo, o Longo Parlamento foi eleito em condicSes anormais de excitagdo politica. Nao 6 suficiente dizer que um membro do partamento era um cavalhieiro ou um advogado. Devemos nos perguntar como foi eleito. Alguns deles representavam seus condados e dis- tritos controlados por um individuo ou familia; outros ainda haviam sido eleitos em fungio de conflitos em eleitorados urbanos, nos quais um can- didato eleito era o representante de um grupo particular. Por exemplo, em Great Marlow, os cidadiios mais ricos queriam © senhor de terras local, que era também um membro da Corte. “Fomens bateleiros da cidade” e “o tipo simples de homem das cidades” queriam Bulstrode Whitelocke. Numa atmosfera de conflito ardente Whitelocke elegeu-se. Nés o classificamos como um cavalheiro e um advogado, mas seu adversario também era um cavalheiro, gonro do Procuradot Geral Bankes ¢ havia sido educado no Inner Temple. (38) Uma andlise sociolégica que no consiga diferencié- los nao oferece muita ajuda, Quando a Guerra Civil foi impingida aos re- lutantes membros do Parlamento, cada um tomou decisées a luz de suas crengas religiosas, da localizagio de suas propriedades e de esperancas, medos, ambigSes, ddios, lealdades ¢ temperamentos individuais, A conta- gem ea classificagdo dos membros do parlamento: nunca explicard as origens da Guerra Civil, assim como a contagem e a classificago dos mem- bros da Royal Society nfo explicaré a revolugo cientifica, embora cada atividade possa ser util em si mesma, Em todos os condados existiam rivalidades de longa data na gentry dominante, que, freqiientemente, significavam que se uma familia apoiasse © Parlamento, outra, quase que dutomaticamente, apoiaria 0 Rei, Se res- tringissemos nosso olhar para um tinico condado, ter-se-ia a impresséio de que a Guerra Civil ou foi algo externo, forcando possiveis neutralistas a tomar partido contra suas vontades, ou um conflito acidental, no quat as rivalidades locais se enfrentaram. No entanto, o alinhamento nacional na Guerra Civil foi a somatéria de alinhamentos em cada condado; isto por- que as estruturas tradicionais eo consenso tradicional se quebraram nas localidades onde a Guerra Civil nfo poderia ser evitada. O Longo Parlamento nfo fez a Revolugdo. Os membros do Parlamento suportaram o melhor que puderam o colapso do velho sistema de governo. ‘Tiveram que equilibrar as presses das forcas populares, cuja hostilidade era dirigida (ou veio a dirigir-se) contra a aristocracia, @ gentry ¢ 08 ricos 38. M. R. Frear, “The Election at Great Marlow in 1640" Journal of Modern Hinton, we (ISH), «3048; MF Renee, The Long Patiamont, 1401641, (Amn can Philosophical Soc,,. Philadelphia, 1954), p. 111. 39. Calendar of Satte Papers, Venetian, 1647-1652, p. 188. 2 Revista Brasileira de Histéria em geral © contra 0 seu medo destas forcas. Ganhar a luta impds agdes aos Iideres do Parlamento, que os deixaram tudo, menos felizes, Se a vité- tia tinha que ser consolidada, 0 exército néo podia ser dispersado. O exér~ cito tornou-se, no entanto, um perigo maior para uma ordem social basea- da na propriedade privada do que havia sido a monarquia Stuart. Crom- well luton com estes problemas. Em tiltima anilise foi o medo — medo do radicalismo social, do radicalismo religioso, do radicalismo politico que conduziam a “anarquia” — que permitiu a reemergéncia dos sucessores do “partido da ordem” dos anos 40. Primeiramente eles voltaram a eleger 0 governo local e finalmente derrubaram o governo da Repiblica da mesma maneira que derrubaram © governo de Carlos I — uma greve por impos- tos resguardada por uma invasio da Esedcia. © conceito marxista de revolugéo burguesa nio exige, no meu enten- der, pensar que os governantes da Inglaterra em 1649 (ou 1646 ou 1658) devessem ter politicas especificas de livre comércio, imperialismo colo- nial ou coisas do género. Houve pressio para obtengao de um Ato de Na- vegacio desde a década de 20; a ldgica da situacio econémica assim 0 exigia. Este tornou-se politicamente possivel porque a Guerra Civil forcou a reconstrugdo do. sistema tributario do pais e a criagéo de uma grande armada, Sem diivida como o embaixador veneziano em Madri observou, era verdade que os governantes da Inglaterra republicana eram mais sensiveis as presses mercantis do que seus predecessores nos anos vinte ¢ trinta. A Guerra Holandesa de 1652-54 vingou o massacre de Amboyna de 1623, contra © qual Jaime I nfo havia logrado reagir. Houve uma diferenca entre suas tentativas de equilibrar comerciantes ingleses ¢ holandeses, am- bos desagradiveis para ele (40), ¢ a atitude truculenta do governo do ‘Commonwealth, Similarmente, a exportagio de New Draperies, mais leves, para a rea mediterranea, sugeriu a conveniéneia de uma presenga naval no local Em 1620, Jaime enviou uma expedigao contra os piratas de Tangier, mas nao foi antes dos anos 50 que a frota de Blake dominou as ondas do Me- diterrfneo. Carlos I desejou construir uma armada, mas sua tentativa de reorganizagéo financeira para tal propésito (Ship Money) levou & Guerra Civil, que foi, em parte, uma revolta contra a ineficaz politica externa de um governo que no podia proteger os comerciantes dos piratas, mesmo ‘em fguas britiinicas. Em 1588, a Armada Espanola havia sido destruida tanto pela empresa privada quanto pelos esforcos do governo; por volta da 40. G.N. Clark e W. J. M. Eysinga, The Colo and the Netherlands'in 1615 and 1613 (Bibl, Vi 1940). Conferences between England ana, tomos “15 © 17, Lugd. Bat,, Revista Brasileira de Histéria cd década de 1650, somente o Estado poderia erguer frotas adeq:iadas as exi- zéncias dos comerciantes ingleses. Houve continuidade entre a estrutura de poder ¢ a estrutura financeira da Inglaterra em 1649-53 ¢ na década de 1660; houve muito menos continuidade entre a Inglaterra pré € pos-revo- lucionéria. Entretanto, nas consciéncias dos dirigentes do Commonwealth, sonhos de uma coalizdo protestante poderosa, na qual os holandeses pu- dessem ser persuadidos, quando néo forcados, a participarem e que poderia, entiio, ser usada pata uma cruzada anticatdlica, podem ter parecide tio grandes quanto as consideracdes meramente econdmicas. As coisas se tor- nam, entretanto, muito mais complicadas quando lembramos que os parti- dérios mais entusiastas tanto da Primeira Guerra Holandesa como da cru- zada internacional, os Fifth Monarchisis, obtiveram. seu principal apoio dos tecelées € de seus empregados. (41) A conquista da Irlanda por Cromwell aconteceu porque era estratégica © financeiramente imprescindivel para a jovem repiblica. Por trés disso, no entanto, estava a presséo dos investidores, que especularam com os ti- tulos de entrega futura de terras irlandesas. ‘Também estavam as lembran- gas dos comerciantes da City, que o govemno de Carlos I havia enge- nado a respeito da plantation de Londonderry. Sem divida tais homens apreciatam o significado da colonizagéo da Irlanda para o desenvolvimento do capitalismo inglés; assim agiram William Petty ou Benjamin Worsley. Entretento nao ha nenhuma evidéncia de que as consideragdes econdmicas tenham feito parte dos célculos dos governantes da Inglaterra em 1649. Nao obstante, na década de 1660, 0 acordo Cromwelliano estava em essén- tia afirmado as custas dos irlandeses e dos Cavaliers ingleses, permanecendo a Irlanda como uma colénia a ser explorada pela Inglaterra, A importagio de ovelhas, gado, manteiga ¢ queijo foi proibida para a Inglaterra. Apés @ segunda supressio da Irlanda, em 1689-91, 0 Parlamento deu grande peso As consideragSes econémicas ao impor restriedes a0 comércio irlandés, apoiado no eédigo penal. A indistria de tecidos irlandesa foi destruida, Consideragdes semethantes se aplicam & Guerra contra a Espanha de 1655, Cromwell alegou como razdes: (a) que existia uma frota e que era menos dispendioso e mais seguro usé-la ao invés de pagé-la ¢ despedi-la; (b) que os espanhéis eram idélatras € ndo permitiam o livre comércio com 0s protestantes; (c) que o Senhor havia conduzido 0 povo inglés até este ponto a fim de atingir algo grandioso “tanto no mundo quanto em sua propria patria” — provavelmente uma insinuagio para uma cruzada anti- catdlica. (42) Acredito nele, Entretanto, havia pensadores econdmicos, de 41. B.S. Capp, The Fifth Monarchy Men (1972), pp. 82-89, 15254, 42. Ed. C. H. Firth, The Clarke Papers, I11 (Royal Historical Soe., 1299), 203-8 a Revista Brasileira de Histéria John Dee ¢ Richard Hakiuyt em diante, que sonharam com um Império Britinico através do Atlantico, que traria beneficios para a mae-pitria, Entre eles situavam-se os pragmaticos ¢ os imperialistas que colocaram a base para a Revolucdo Comercial, que 0 professor Davis viu como condi- G0 necesséria do pioneirismo inglés na Revolugdo Industrial. (43) A con- firmagio das conquistas de Cromwell na Jamaica e Dunkirk, em 1661, “obteve, mais que qualquer outra lei, 0 mais universal consentimento € aprovacéo da nacéé inteira”. Sir Josiah Child pensou, em 1672, que 0 Ato de Navegagio havia triplicado “a construgéio ¢ 0 emprego... de na- vios e marinheiros”. (44) Nem 6 0 conceito de Revolugio Burguesa, nesta interpretagio, refu- tado pela observacdo de que os ricos homens de negécio se esforgaram para conseguir privilégios e monopélios sob o regime anterior a 1640, © que alguns dos comerciantes mais ricos apoiaram Carlos I durante a Guerra Civil. Homens de negécio querem sempre, naturalmente, os maiores lucros possiveis; tais Iucros eram melhor obtidos, na Inglaterra de Carlos I, esta- belecendo-se ligagdes intimas com o governo em troca dos privilégios de monopélio. O professor Ashton descreveu a simbiose entre a Coroa € os arrendatétios de direitos alfandegérios em Londres, que propiciou grandes vantagens pera ambas as partes, até que o colapso viesse om 1640. (45) As oligarquias das grandes companhias mercantes foram alternadamente “oneradas € protegidas” pela Coroa, mas, levando tudo em consideracao, a protegio de seus privilégios contra intrusos foi mais importante que 0 ressentimento perante as espoliagies. Era o preco a pagar para o funcio- namento de um sistema insatisfatério. Pelos mesmos indicios, comerciantes ¢ industriais, excluidos dos privilégios de monopélio, sempre foram inimi- {208 potenciais da Coraa, que concedia privilégios a seus rivais, embora pu- dessem estar abertos a propostas. A novidade, no inicio dos anos 40, con- sistiu em que © governo real no mais podia proteger os privilégios de seus favoritos; que arrendatérios de tarifas alfandegérias e monopolistas estavam isolados do resto da comunidade de negécios e vulneraveis ao ataque dos cidados londrinos que protegeram 0s Cinco Membros da tentativa de gol- pe de Carlos 1. Apesar disso, esta era uma situacdo revolucionéria. R. Davis, A Commercial Revolution (Historical Association Pampllet, 1957), assim. 44. ©, M. Andrews, The Colonial Period of American History (New Haven, 1960), IMl, 32; R. Davis, The Rise of the English Shipping Industry (1962), cap. 18; Sir Josiah Child, New Discourses on Trade (1751), pp. 87, xxi (primeira publicagio 1672). ‘> 45. R, Ashton, The Crown and the Money Market (Oxford, 1960), passim. Revista Brasileira de Hist6ria Py Isto ocorreu, de maneira semelhante, nos governos locais, onde as oligarquias vieram a dominar crescentemente, nas décadas anteriores & Re- volugdo, Essas oligarquias estavam prantas a cooperar com © governo, des- de que este apoiasse seus monopélios do poder local ¢, portanto, de seus emolumentos locais. A Coroa preferiu sempre ter 0 governo local nas maos de pequenos grupos, com os quais era facil lidar uma vez que dependiam da protegtio da Corea apoiando, portanto, provavelmente, suas politicas. Artesiios comuns € camerciantes, excluidos das oligarquias, freqiientemente Se opuseram aos que dominavam as suas cidades; a politica local associava- se cada vez mais & politica nacional, devido ao apoio da Coroa & oligarquia, A Camara dos Comuns yeio a favorecer um eleitorado mais amplo na maioria dos burgos; adversamente, os “que néo tinham cargos” (os outs) aproyeitaram as eleicées para o Parlamento como parte de sua luta contra seus rivais locais, Assim, alguns cavalheiros tenderam a se colocar & frente dos outs contra os ins para se elegerem ao Parlamento. (47) Os dois conflitos fundiram-se e, embora haja excegdes ocasionais, o resultado natu- ral foi, para as oligarquias, apoiarem e serem apoiadas pela Coroa (ou quando néo apoiassem satisfatoriamente a Coroa, serem purgadas ¢ recons- tituidas pela Coroa). © resultado normal, para o tipo padréo de comer- Glantes ¢ artesios fora dos burgos, foi confiar no Parlamento. (48) Con= tudo, nfo devemos pensar na burguesia como uma classe autoconsciente. Qualquer comerciante ou industrial estava, individualmente, naturalmente disposto, a qualquer momento, a aceitar privilégios da Coroa ¢ deixar de apoiar os ouis. Entretanto, na Inglaterra de antes de 1640, 0 niimero desses pequenos mestres e comerciantes, que formavam os outs, aumen- tow constantemente, de maneira que desergdes/defeccdes individuais pou- ca diferenca fizeram para os alinhamentos de classe, ainda que elas real- mente confundam aqueles historiadores que supdem que uma classe deva necessariamente ser consciente de si propria enquanto classe, Penso numa classe que possa ser definida pela posi¢ao objetiva de seus membros em relagGo a0 processo produtivo € em relacio as outras classes. Os homens se tomam conscientes de interesses compartilhados no proceso de luta 46. Veja a inteligente andlise do Embaixador veneziano em 1622 (Calendar of ‘State Papers, Venetian, 1621-1623, pp. 434-35). 47. Hirst, The Representative, especialmente cap. 5; Paul Slack, “Poverty and Politics in Salisbury 1597-1656", in Crisis and Order in English Towns, 15001700 (ed. P. Clark e P. Slack, 1972). 48. Qualquer governo, incluindo aqueles do Commonwealth ¢ do Protetorado, preferia oligarquias no. governo local por serem mais facilmente controlaveis. A Cast dos Comuns petdew scu entusiasmo por amplos eleitorados apés 1660, uma vez que © apoio popular contra © governo no era mais necesséxo. 26 Revista Brasileira de Histdria contra inimigos comuns, Todavia essa tuta pode ser longa até que emerja algo que possamos chamar de “consciéncia de classe”. De outra forma, a atividade de Marx, Lénin ¢ outros marsistas de tentar estimular uma “cons- cigncia de classe” no proletariado se torna inexplicdvel. Classificar as RevolugGes Inglesa e Francesa e a Revolugdo Russa de 1905 como revolugdes burguesas, nao significa que devam ser encaixadas em um modelo. Parece-me que hé analogias interessantes entre clas, mas @ geritry © 03 comerctantes ingleses do século XVII cram muito diferentes dos Kidetes do Tiers Etat francés, enfrentando uma noblesse altamente pri- vilegiada © uma méquina estatal impregnada pela compra ¢ venda de car- gos. Além do mais, ambas foram muito diferentes da dos timidos comer- ciantes € manufatureiros russos, dependentes tanto das idéias quanto do capital estrangeiros. Como Marx reconheceu, a gentry ingles tormou-se uma burguesia & sua propria e particular maneira. (49) Continuou a ex- plorar seus arrendatdrios através da justiga senhorial, a usar o dinheiro co- mo fonte de poder politico assim como de capital, Reconhecer sua depen- déocia em relacdo As relagdes capitalistas de produc&o nao implica em negar a maneira especifica pela qual adaptou as instituigdes da vellia so- ciedade, o Parlamento, o direito consuetudindrio e assim sucessivamente, as suas préprias mecessidades. Maurice Dobb, bd muito tempo, decifrou as razdes pelas quais, na Inglaterra pré-1640, muitos capitalistas apoiaram o antigo regime. Ele ana- Jisou a diferenca entre as “duas vias” para a revolugio burguesa. Uma, a “verdadeiramente revolucionéria”, na qual grupos radicais, representando o tipo padréo, impulsionaram a revolugéo para além do que os moderados desejariam, limpando assim os quadros para um desenvolvimento capita- lista mais radical, ¢, a outra, a “via prussiana”, na qual tais “excessos” populares sto evitados. (50) No seu resultado final a Revolucio Inglesa esteve mais préxima do modelo prussiano do que do francés; embora na década de 40 os radicais desempenhassem um papel que se assemelhou 20 dos jacobinos franceses. © ponto de estabilizagdo, sob 0 bonapartismo de Cromwell, foi menos radical qué o ponto de estabilizagio sob o bona- partismo de Bonaparte. Em nenhum Estado capitalista no mundo de hoje, pelo menos que cu saiba, 0 poder de Estado € exercido diretamente por grandes homens © 49, Mars, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844 (ed. D. Struik, iio), pp. 100-104. 19526. Devo esta referéncia e parte do que se segue 9 genre sidade Ue Edward’ Thompeon 50. M. H. Dobb, Studies in the Development of Capitalism (1946), expecial rente ap. 4. Revista Brasileira de Histéria Py de negicio, HA ligagdes estreitas entre governo © negécios mas um Henry Ford ou J. D. Rockefeller tém coisas melhores a fazer do que cuider de detalhes de administragdo, Assim era nos anos apés 1649. Muitos observa dores notaram que os comerciantes tinham mais influéncia politica do que anteriormente, que os membros do governo provinham de uma classe social ligeiramente mais baixa que a de seus antecessores, mas que nio houve qualquer tomada direta do poder pela “burguesia”, Espefo ter negado, em todos os momentos, a imputagio de vontade consciente atribuida & idéia de revolucdo burguesa, nfo pelos seus propo- nentes mas por seus adversérios. A revolucio burguesa nfo 6 poss{vel num pais onde as relagdes capitalistas no tenham se desenvolvido; ela entra na ordem do dia apenas quando © governo tradicional nio pode pros- seguir dominando no seu velho estilo. Esta incapacidade &, em si mesma, conseqiiéncia indireta de desenvolvimentos sociais, como James Harringion percebeu ser o caso da Inglaterra na década de 1650. “Revolugdo Burguesa” ¢ uma expresso infeliz se sugere uma revo- lucio desejada pela burguesia, como “Revolugio Puritana” sugere uma revolugdo feita por puritanos para alcancar fins puritanos, Talvez uma analogia methor seja a revolugao cientifica, para a qual contribuiram mui- tos considerados “néo-cientificos” pelos padrdes de ciéncia que emergiram da revolucéo. Boyle e Newton levaram a alquimia a sério e Locke e New- ton foram milenaristas, Neste texto minha énfase recaiu sobretudo nas transformardes eco- nomicas causadas pela Revolueao, porque este um ponto que criticos tra- dicionais da interpretagéo marxista geraimente enfatizam. Uma revolugio, entretanto, abarca todos 0s aspectos da atividade e vida social. Cromwell acreditava que a religiio “ndo era a primeira coisa a ser disputada, mas que Deus a havia trazido para isso afinal”, O controle da Igreja, principal corpo formador de opiniéo no pais, era tao importante politicamente como © controle do radio e da televisio hoje em dia. Na Inglaterra, o Puritanismo Horesceu no sul e no leste, adiantados economicamente, ¢ nas areas indus- triais e portos do norte e do oeste. © professor Collinson mastrou que as reivindicagdes dos puritanos na época de Elizabeth levantaram tanto ques- tes sociais quanto religiosas, Um acordo Puritano teria entio significado uma subordinagao prévia da Igreja aos governantes naturais, vissem ou nfo, sob esta {nz, seus contemporéneos. (51) Na década de 1640 todas as idéias ¢ instituigdes foram questionadas ¢ embora a Igreja Anglicana votasse com amonarquia e a Casa dos Lordes e as seitas decidissem, afinal, que 51. P. Collinson, The Elizabethan Puritan Movement (1967), passitt. 28 Revista Brasiteira de Histéria ‘© Reino de Cristo nao era deste mundo, a continuidade aparente era ilusé- ria. A Igreja Anglicana nunea poderia ser usada novamente como uma agéncia de propaganda, fora do controle parlamentar, Os bispos tisham sido os instrumentos mais confidveis de Carlos I; foram eles que primeiro recusaram obediéncia a Jaime II, Hostilidade radical & Igreja havia sido motivada, entre outras coisas, pelo ddio aos dizimos, cuja pressio econdmi- ca, notoriamente pesada para as camadas médias e pobres, fora causada também polas atividades dos tribunais da Igreja contra o sabbatarianism (observancia rigorosa do descanso dominical) ¢ 0 trabalho nos dias santos, para mencionar apenas as ligacdes econdmicas mais Sbvias, (52) Os lati- tudinaristas trouxeram A Igreja do perfodo posterior & Restaurago, atitudes puritanas em relacao a0 sabbatarianism, & pregago, a cigncia ¢ A ética profissional. Apés 1660 nao havia mais clamores contra o direito divino dos bispos ou de dizimos. Por volta de 1680 os tribunais da Igreja nfo tinham mais importéncia: pastores ajudavam proprietérios a manter o con= trofe de suas aldeias, mas a dissenstio se estabelecera nas cidades. Um teste de uma revolugdio é que aqueles que a vivam a vivenciem como uma guinada singular. O milenarismo difundido na década de 1640 © © comeco dos anos de 1650 € um exemplo disto. Contudo, observadores distantes como Aubrey e Hobbes e outros relativamente distantes, como Marvell e Harrington, bem como participantes ativos, como Levellers, Dig- gers, Quakers, pregadores dos Fast Sermons, acreditavam todos passando por uma crise sem precedentes. Milton descrevew as re da Revolucdo Inglesa como “as mais herdicas ¢ exemplares desde a criagio do mundo” — sem excluir, aparentemente, a vida e a morte de Cristo. Alguns julgardo que enfatizei demasiadamente a importincia dos radi- ais derrotados as custas do curso principal dos resultados da Revolugio Inglesa. Porém, sem a pressio dos radicais, a Guerra Civil poderia nfo ter sido transformada numa revolucio: alguns acordos puderam ser remenda- dos entre a gentry nos dois tados — uma “via prussiana”. Regicidio e re- piiblica no faziam parte das intencfies dos lideres originals do Longo Par- lamento; foram impostos aos homens de 1649 pela légica da revoluc que tentavam controlar. fermento da discussiio que Milton acolheu na Aeropagitica, partes dela altamente sofisticadas © outras no, borbulhou por oitenta anos ou quase, antes que os conservadores conseguissem tampar a panela de novo. A meméria disto esvaiu-se mais fentamente e menos completamente, tal- 52. Veja meu Society and Puritanism in Pre-Revolutionary England (Panther od}, especiaimente ceptiioa 4 6 3. Revista Brasileira de Histéria 2 vez, que’os livros normalmente sugerem. Blake a lembrava, ¢ também a lembraram Catherine Macaulay e os “Wilkesistas”, Paine © os rebeldes americanos, Thomas Spence, William Godwin, a Corresponding Society ‘© 08 Cartistas, O jovem Wordsworth lembrava Milton, o libertério, Shelley lembrava Milton, 0 defensor do regicidio. A revolugdo mostrara que a vetha orem néo era eterna: a possibilidade do estabelecimento do reino de Deus na terra havia sido especialmente vislumbrada por aqueles nor- malmente~excluidos da politica. O préprio Longo Parlamento afirmara que: “a Razo néo tem precedentes, pois a razio € a fonte de todos os pre~ cedentes justos.” Os Levellers, Hobbes, Locke e muitos outros, desenvol- veram sistemas de politica racional ¢ utilitéria. Por volta de 1742, David Hume-podia supor que ninguém aceitava assergdes de direito divino seria- mente. E dificil para nés avaliarmos quio grande foi a revolugio intelectual © nos colocarmos num universo hierdrquico, dominado por precedentes ¢ autoridades, onde Deus ¢ 0 € claro, nenhun corte abrupto na aceitacdo popular da magia. Muitos dos primeiros membros da Royal Society consideravam a crenga em feitigaria como necesséria para que a crenca em Deus sobrevivesse. Entretanto, apés 1685, nenhuma velha foi queimada como feiticeira. Aubrey, entre muitos ‘outros, enfocou o periodo revoluciondria como 0 periodo no qual as. su- perstigGes tradicionais cederam a liberdade de discussio e pesquisa, A so- berania parlamentar e a soberania da lei fizeram da Inglaterra, do final do século XVIT, um pais mais livre que qualquer outro na Europa, com exceedo, talvez, dos Paises Baixos burgueses. © pais “livrou-se do jugo im- pertinente da pretatura, sob cuja estupidez inquisitéria ¢ tirdnica; inteliggn- cia alguma livre ¢ espléndida podia florescer”. Nao tio completamente, como Milton teria desejado, mas o suficiente para permitir que Petty, New- ton e Locke especulassem livremente, A partir de 1695, a censure podia set suspensa, nao em virtude dos interesses da liberdade de pensamento, mas em fun¢So dos interesses’ do direito de comprare vender. A esta al- tura o consenso entre os homens de propriedade havia se estabelecido; podiam confiar na sua autocensura ¢ 0 ntimero daqueles que niio se con- formavam era insignificante, A Revolugio Inglesa, portanto, ndo foi feita ao talante de ninguém: aconteceu. Mas se olharmos seus resultados, quando os idealistas, homens de vontade consciente de ambos os lados, foram derrotados, o que emergiu foi um Estado onde 0s érgios administrativos que mais impediam 0 de- senvolvimento do capitalismo haviam sido abolidos: Star Chamber, High Commission, Court of Wards © as posses feudais; um Estado no qual o executivo estava subordinado aos homens de propriedade, desprovido de 30 Reviste Brasileira de Histéria controle sobre o judiciério mas ainda fortalecido nas relagdes externas por uma poderosa Armada © 0 Ato de Navegacio; no qual o govemno local estava, de maneira segura e pouco dispendiosa, nas méos dos governantes naturais, © onde a disciplina fora imposta as camadas inferiores por uma Igreja firmemente subordinada a0 Parlamento, Esta Igreja era tio dife- rente daquela que o arcebispo Laud teria desejado quanto 0 Estado de Guilherme LI era diferente do Estado de Carlos 1 ¢ Strafford, como a cultura de Pope, Defoe e Hogarth era diversa da cultura de Beaumont e Fletcher, Lancelot Andrews ¢ Vandyke. Dois modos de vida haviam es tado em conflito € o resultado decorrente havia transformado os estilos de vida e as suposig6es intelectuais em todos os niveis da sociedade, Com Hume e Adam Smith estamos no mundo moderno. Até 1640 a classe do- minante inglesa imitou as modas ¢ as idéias da Espanha, Franga e Ieélia; apés 1688, a Inglaterra lideraria a Europa. © romance, forma literéria burguesa por exceléncia, desenvolveu-se a partir das autobiografias espi- rituais dos sectérios ¢ dos épicos sobre os pobres de Bunyan; Defoe, Ri- chardson e Fielding nao poderiam ter escrito como escreveram sem a he- tanga da Revolugéo do século XVII. Entretanto, eles produziram uma nova forma de arte para toda a Europa. Se a Revolugiio de 1640 no foi feita ao talante de ninguém, 0 golpe de estado de 1688-89 ¢ a sucesso Hanoveriana pacifica o foram e muito. A classe proprietéria de terra, autoconfiante, tinha agora tomado conscien- temente seu destino em suas préprias mos. Assim, como escreveu George Wither, em 1653: “Aquele que queria ¢ também aquele que no Ajudaré a realizar o que Deus pretende fazer ‘Sim, aqueles que derrubam e aqueles que erguem Concorrerao no final para um mesmo efeito”. (53) Andrew Marvell deu a esta conclusio teolégica um toque Harringto- niano quando ironicamente escreveu: “Os homens podem poupar suas dores quando a natureza esté a trabathar pois. 0 mundo nfo iré mais répido por causa do nosso esforgo.” O sibio. “faré de seu destino sua escolha”, Mas © destino, as forgas histéricas trabalharam através do “valor industrioso” 53. G. Wither, The Dark Lantern (1653), pp. 10-11. Revista Brasileira de Histéria Fy de Oliver Cromwell seus semelhantes, que arruinaram o grande traba- Tho do tempo: E loucura resistir on culpar A forga da furiosa chama do céu. (54) A Revoluco foi um trabalho de Deus, porque nfo foi feita pela vontade &os homens ¢ porque foi um momento de virada na histéria humana. Este artigo fol publicado originalmente em Three British Revolutions: 1641, 1688, 1776, org. J. G. A. Pocock, Princeton University Press, 1980. ‘Tradugiio de Luiz Antonio de Almeida. 54. A. Marvell, The Rehearsal Transpros'd (ed. D. 1. B. Smith, Oxford, 1971) p. 155; Upon Appleton House, verso 744; cf. On Blake's Victory over the Spaniards, versos 141-42; An Horatian Ode, versos 25-26, 35-54. 2 Revista Brasileira de Histéria

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