Você está na página 1de 15
A TRADIGAO CERAMICA TUPIGUARANI NA AMERICA DO SUL José Proenza Brochado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul No leste da América do Sul — principalmente na chamada faixa costeira, entre a desembocadura do rio da Prata e o Nordeste do Brasil e nas bacias dos rios Parana e Uruguai — foram identificados mais de mil sitios arqueolégicos com uma ceramica que proponho teria pertencido aos antepassados dos Tupi-Guarani histéricos, um modelo interpretativo de cujas migracdes pré-histéricas 6 apresentado, i, SINTESE DA ARQUEOLOGIA DA TRADIGAO CERAMICA TUPIGUARANI A. Introdugao Mais de 100 autores ja trataram do problema da ceramica que vamos sucintamen- te descrever. As primeiras noticias foram dadas pelos cronistas dos séculos XVI e XVII. Comegou a ser cientificamente estudada a partir do final do século XIX, mas a caracte- rizagéo atual da tradigéo cerémica se baseia principalmente nas descrigdes e sinteses de A. Métraux, A. Serrano, M. Schmidt, S. K Lothrop, V. D. Watson, H. Baldus, F. Alten- felder Silva, O. Blasi, J. A: Pereira Jr-, P- I. Schmitz, ©. F, A. Menghin, B. Susnik, A. Laming e J. Emperaire, |. Chmyz, C. Evans e B. J, Meggers, J. P. Brochado, V- Calderén AT O. F. Dias S. Maranca, E. Th, Miller, N. A. S. Nasser, C- Perota, W- F: Piazza, |. |. B Becker, G- Naune, P- A. Mentz Ribeiro, A. Beck, L. Pallestrini, M- C. M. C. Beltrao, I. Wist, E. Fensterseifer, M. Albuquerque, E- M. Cigliano, V. A. Mifiez Regueiro, R. Boretto G,. RR: Bernal e J: Baeza M Para ampliar e melhor compreender a presente sintese, consultar as publicagées do Programa Nacional de Pesquisas Arqueolégicas (PRONAPA) de 1967 a 1974, assim como: Semindrio, 1966; id, 1969; Brochado et al., 1969; PRONAPA, 1970; e Brochado, 1973. a; id., 1973. b. Para a bibliografia completa, consultar: Pereira Jr., 1967; Simdes, 1972 Brochado, 1973, a; id., 1973, b. B. Material arqueolégico Pela propria imposicéo da conservacéo diferencial do material arqueoldgico, os critérios usados para caracterizar os elementos ou técnicas da tradi¢&éo ceramica Tupi- guarani que apresentam suficiente persisténcia temporal, séo basicamente industriais Foram usados como atributos texonémicos caracteristicos do contexto, unicamente as vasilhas de cerdmica ou seus fragmentos e alguns poucos artefatos liticos. 1. Desericao: a. Ceramica Toda a ceramica da tradicaéo foi confeccionada pela técnica do enrolamento em espiral de cordées de barro; isto 6, acordelada © apresenta cozimento incompleto (1) Pasta: A presenga de graos de ceramicas moida, parece ser a caracteristica mais impor: tante da pasta da ceramica da tradig¢éo que pode ser atribuida a fatores culturais, e este tempero esté quase sempre acompanhado de graos de areia de dimensées varidveis. A tipologia da ceramica da tradigéo se baseia principalmente nas (2) técnicas de tratamento da superficie e na (3) mortologia das vasilhas (2) Tratamento da superficie: A superficie externa das vasilhas pode ter sido mantida (a) sem decoracdo; isto 6, ter sido simplesmente alisada; ou apresentar (b) decoracdo plastica ou (c) pin- tada. {b) Decoragao plastica. A decoragao plastica mais popular 6 quase sempre a (i) corrugada, feita com os dedos ou com uma espatula, com variagdes na intensidade e disposicao ritmica, produ. zindo subtipos como 0 corrugado complicado, o corrugado espatulado, o corrugado-un. gulado, 0 corrugado imbricado e 0 corrugado simples. Bem menos popular 6 a decoragao (ii), ungulada, feita com as unhas, (Iii) escovada, alisada com um objeto cheio de pon. tase (iv) entalhada na borda. Menos populares ainda, na maior parte dos casos, sao: © (v) ponteado, (v) serrungulado, (vii) inciso. Ainda mais raros séo: (vii) acanalado, (ix) canelado, (x) estampado, (xi) digitado, (xii) digitungulado, (xiii) marcado com corda, xiv] estampado com rede, (xv) marcado com tecido, (xvi), nodulado, (xvii) pin- gado ou beliscado e (xviii roletado. (c) Decoracgao pintada: A decoragao pntada inclui diversos padrées. O mais popular consiste em (i) ti- nhas finas e faixas mais largas em vermelho e/ou castanho, desenhadas sobre um. fun- do pintado de branco ou creme, As linhas finas so as vezes acompanhadas por linhas 48 de pontos e desenham padrées geométricos, como. paralelas, ziguezagues, quadricula dos, circulos, retangulos e cruzes concéntricas e gregas. Mais raramente as linhas sao livres. As faixas mais largas sao paralelas entre si e se situam quase sempre nas in- flexdes da parede das vasilhas. Menos populares séo (i) linhas brancas e/ou pretas, sempre mais largas que as (i) desenhadas sobre um fundo pintado de vermelho. Rela- tivamente raras so (iii) a pintura monécroma, vermelha ou mais raramente preta, as (iv) faixas vermelhas aplicadas diretamente sobre a superficie sem pintar e (v) as faixas vermelhas e/ou pretas, mais largas que as (i) pintadas provavelmente com os dedos, diretamente sobre a superficie ou sobre um fundo previamente pintado. A pintura pode ter sido aplicada tanto na superficie externa como interna das vasilhas, mas se observa que a pintura 6 mais comum externamente nas formas fecha- das e internamente nas formas abertas. \ Ocorre frequentemente a combinagao de diferentes técnicas de tratamento da superficie na mesma vasilha, assim como a alternancia de éreas decoradas e nao-de- coradas. A alternancia da decoragéo pode criar um efeito de faixas, a chamada decora- go zonal ou zonéria, Raramente se combina e decoracdo plastica com a pintura, mesmo em superficies opostas da mesma vasilha. ‘As técnicas basicas mais populares sfo: o alisamento da superficie, o corrugado e 0 escovade. Estas técnicas de tratamento da superficie apresentam uma persisténcia temporal muito grande, durando praticamente tanto quanto durou a tradicéo. As téc- nicas menos usadas ou mais raras de tratamento da superficie sao, as vezes, encontra- das somente em uma regido e época determinada. O entalhado na borda e o acanelado ‘86 apresentam alguma popularidade relativa no Nordeste e o serrungulado e o escovado no Sul. Os marcados com corda, rede ou tecido somente aparecem no alto Iguacu. Em geral se encontram, num mesmo sitio, fragmentos de ceramica apresentando todas as técnicas de tratamento da superficie que so mais populares na érea, raramen- te falta alguma, mas as proporgées variam de sitio para sitio e de época para época. (3) Morfologa: 1 As tnicas formas caracteristicas comuns a tradigao praticamente em todo o tem- po e lugar, sfo as tijelas em forma de calota de esfera.e os vasos esferdides com bor- das extrovertidas. Sao também caractcristicas 2s bordas de perfil cambado e reforcadas externamente e a auséncia de elementos de preenséo, como algas ou asas. As restan- fes formas e as correspondentes dimensdes das vasilhas, variam bastante e apre- sentam, como veremos, distribuigdes regionals diferentes. b. Material litico O material litico que acompanha a ceramica nos sitios arqueolégicos consiste, principalmente, em (1) laminas de machado trapezoldais polidos de pequenas dimen- des e (2) adornos labialis em forma de T (tembeta). Ocorrem também (3) lascas reto- cadas como facas ou raspadores, (4) pequenas lascas naturalmente cortantes ou pon- teagudas, (5) choppers, (6) chopping-tools, (7) polidores em canaleta; coincidentes com a distribuigao areal e temporal dos tembeté; (8) polidores planos, (9) pendentes poli- dos perfurados e (10) mineral corante vermelho. 2. Diviséo em subtradigées: Durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueoldgicas foi proposta e estabele- cida a divisdo da tradiggo em trés subtradicdes. Pintada, Corrugada e Escovada, que te- riam também conotagdes evolutivas pois, no seu inicio, teriam se sucedido uma a outra no tempo. Na subtradicao Pintada, que seria a mais antiga, a maior parte da ceramica nfo ‘tem decoragao, mas na ceramica decorada predomina a pintura policrémica. Na subtradiedo Corrugada, que. teria seguido a Pintada, predomina a decoracdo corrugada. 49 de pontos e desenham padrdes geométricos, como. paralelas, ziguezagues, quadricul: dos, circulos, retangulos e cruzes concéntricas e gregas. Mais raramente as linhas si livres. As faixas mais largas sao paralelas entre si e se situam quase sempre nas in- flexdes da parede das vasilhas. Menos populares séo (i) linhas brancas e/ou pretas, sempre mais largas que as (i) desenhadas sobre um fundo pintado de vermelho. Rela- tivamente raras sdo (iii) a pintura monécroma, vermelha ou mais raramente preta, as (iv) faixas vermelhas aplicadas diretamente sobre a superficie sem pintar e (v) as faixas vermelhas ¢/ou pretas, mais largas que as (i) pintadas provavelmente com os dedos, diretamente sobre a superficie ou sobre um fundo previamente pintado. A pintura pode ter sido aplicada tanto na superficie externa como interna das vasilhas, mas se observa que a pintura 6 mais comum externamente nas formas fecha- das e internamente nas formas abertas. ‘ Ocorre frequentemente a combinagéo de diferentes técnicas de tratamento da superficie na mesma vasilha, assim como a alternancia de éreas decoradas e néo-de- coradas. A alternancia da decoragao pode criar um efeito de faixas, a chamada decora- go zonal ou zonéria, Raramente se combina e decoracéo plastica com a pintura, mesmo em superficies opostas da mesma vasilha. As técnicas basicas mais populares so: 0 alisamento da superficie, 0 corrugado e 0 escovado, Estas técnicas de tratamento da superficie apresentam uma persisténcia temporal muito grande, durando praticamente tanto quanto durou a tradic¢éo. As téc- nicas menos usadas ou mais raras de tratamento da superficie séo, as vezes, encontra- das somente em uma regio e época determinada. O entalhado na borda e o acanelado 36 apresentam alguma popularidade relativa no Nordeste e 0 serrungulado e o escovado no Sul. Os marcados com corda, rede ou tecido somente aparecem no alto Iguacu. Em geral se encontram, num mesmo sitio, fragmentos de cermica apresentando todas as técnicas de tratamento da superficie que s4o mais populares na érea, raramen- te falta alguma, mas as proporgées variam de sitio para sitio e de época para época. (3) Morfologa: As tnicas formas caracteristicas comuns a tradi¢éo praticamente em todo o tem- po e lugar, sao as tijelas em forma de calota de esfera.e os vasos esferdides com bor- das extrovertidas. Sdo também caracteristicas os bordas de perfil cambado e reforcadas externamente e a auséncia de elementos de preensdo, como alas ou asas. As restan- tes formas e as correspondentes dimensées das vasilhas, variam bastante e apre- sentam, como veremos, distribuigées regionais diferentes. b. Material litico O material litico que acompanha a ceramica nos sitios arqueolégicos consiste, principalmente, em (1) laminas de machado trapezoidais polidos de pequenas dimen- sées e (2) adornos labiais em forma de T (tembeta). Ocorrem também (3) lascas reto- cadas como facas ou raspadores, (4) pequenas lascas naturalmente cortantes ou pon- teagudas, (5) choppers, (6) chopping-tools, (7) polidores em canaleta; coincidentes com a distribuigéo areal e temporal dos tembeta; (8) polidores planos, (9) pendentes poli- dos perfurados e (10) mineral corante vermelho. 2.. Divisio em subtradigées: Durante 0 Programa Nacional de Pesquisas Arqueolégicas foi proposta e estabele- cida a diviséo da tradigo em trés subtradices. Pintada, Corrugada e Escovada, que te- riam também conotagées evolutivas pois, no seu inicio, teriam se sucedido uma a outra no. tempo. Ne subtradicéo Pintada, que seria a mais antiga, a maior parte da ceramica no tem decoracéo, mas .na ceramica decorada predomina a pintura policrémica. Na subtradigéo Corrugada, que teria seguido a Pintada, predomina a decoragao corrugada. 49 Na subtradiggo Escovada, muito tardia, predominaria esta técnica de tratamento da su- perficie. A esta ultima subtradigao poderia ainda suceder, a partir do século XVI, a tr digéo Tupiguarani através de um processo de aculturagéo com a ceramica européla e talvez africana. Como atualmente existem datagdes radiocarbénicas (C14) tdo antigas para a subtradicdo Corrugada como para a Pintada, desaparece o seu valor temporal e as dife- rengas na popularidade relativa dos tipos de decoracao podem ser interpretadas como resultando de causas diferentes nas diversas regides. Na regido Sul, a subtradicao Pinta- da € assim chamada simplesmente porque a cerdmica apresenta um pouco mais de po pularidade da decoracao pintada policrémica do que da plastica corrugada, mas as va- silhas tém uma morfologia inteiramente diferente das da subtradicdo Pintada na regido Leste e Nordeste. Por sua vez, na regiéo Leste e Nordeste a assim chamada subtradi¢éo Corrugada, poderia ter resultado simplesmente do empobrecimento geral da decoragao, maior no caso da pintura do que no do corrugado. Portanto, estou propondo uma diviséo em subtradigdes baseada na distribuigdo re- gional da popularidade relativa das técnicas de tratamento da superficie e das formas das vasilhas. a. Subtradigaéo da regio Leste e Nordeste (1) Tratamento da superficie: A maior parte da superficie das vasilhas 6 decorada, predominandol a decoragéo decorada predomina a pintura policrémica, o ungulado, o entalhado na borda e o canela- do. A decoragao 6 pouco frequente. (2) Morfologia: As formas caracteristicas mais populares séo os pratos rasos e os alguidares ou tigelas de base plana ou aplanada, usualmente com o perimetro da boca, oval ou quadranguldide, que podem atingir até 55cm de diametro maior. As vasilhas care- nadas e com ombros séo muito raras. b. Subtradigo da regido Sul (1) Tratamento da superficie: A maior parte da superficie das vasilhas 6 decorada, predominando a decorac3o plastica corrugada, com suas variantes, principalmente 0 corrugado-ungulado, e a pintura policrémica. (2) Morfologia: As formas caracteristicas mais populares séo as vasilhas de contdrno composto, carenadas, com pescogo e ombro bem marcados, perimetro da boca circular, bordas cam- badas reforgadas externamente e bases arredondadas ou cOnicas, que podem atingir até 1m de altura e de diémetro méximo. Sao menos frequentes as formas com sulco mediano no bojo ou em dupla esfera. c. Qutras subtradigées Um numero menor de sitios espalhados nas regides Leste, Nordeste, Centro-Oes- te (Goids) e Norte (Pard), nao podem ser faci!mente classificados em uma ou outra destas duas subtradig6es e ao mesmo tempo, nao possuem caracteristicas suficiente- mente homogéneas para conformar uma terceira subtradigéo, Na forma e no tratamento da superficie, as vasilhas se parecem em geral mais com as da subtradi¢4o da regiéo Sul do que com as da subtradigao da regido Leste e Nordeste. A decorago pode ser rela- tivamente pouca e as formas carenadas podem existir ou néo, mas também néo se ob- servam as formas tipicas das vasilhas da subtradicéo da regio Leste e Nordeste. 50 C.. Sitios arqueolégicos Os sitios que se acredita sejam os locais onde estiveram as aldeias, acampamen- tos e cemitérios dos indigenas portadores desta tradic¢éo ceramica, estéo em geral in- dicados unicamente pelos fragmentos de ceramica espalhados sobre o solo. Estas éreas podem variar desde menos de 100ms2 (isto é mais ou menos 10x10m) até méximos de 20 000ms2 @ 50 000ms2 [isto 6, mais ou menos 2000x100m a 5000x100). A espessura da camada arqueolégica raramente ultrapassa os 30 ou 40cm e em geral ndo 6 maior do que 15 ou 30cm, de maneira que, na maior parte dos casos, somente 6 possivel executar coletas superficiais dos fragmentos ceramicos e liticos espalhados na area destes siti- 0s; mas em alguns casos existe, subjacente, uma estrutura resultante da ocupacao, carac- terizada pela mudanga de coloragao do terreno. Na maior parte dos sitios se observa claramente uma distribuicdo diferencial dos fragmentos de ceramica que se concentram nos locais onde, se acredita, ficavam situa- das as habitagdes. Enterramentos humanos em vasilhas de dimensdes varidveis, se en- contram muitas vezes também relacionados aos sitios. 1. Distribuigio dos sitios © numero total de sitios onde se encontrou a ceramica da tradic&o fo! calculado ‘em 1 063, dos quais 1 000 apresentam ceramica puramente indigena e 63 representam J4 0 primeiro momento da aculturagao da tradigéo ceramica Tupiguarani com a européia, nas Redugées dos séculos XVI a XVIII. Dos 1 000 sitios indigenas, 826 podem ser classi- ficados na subtradigdo da regiéo Sul, 100 na subtradicéo da regiéo Leste e Nordeste, 55 nao podem ser clasificados exatamente em nenhuma destes duas subtradigdes, 19 nao apresentam dados suficientes para a sua identificagao. Do total de 1 063 sitios, 994 se encontram no territério brasileiro e 69 se distri- buem no Uruguai, Argentina e Paragual. A 4rea que ja foi arqueologicamente pesquisada na América do Sul, em conexéo com o problema da tradi¢ao, constitui uma faixa de mais de 4 000km de extenséo, variando de 500 a 1 000km de largura, situada ao longo do litoral atlantico, desde a desembocadura dod rio da Prata até o Nordeste do Brasil. Os sitios da tradi¢éo nao se distribuem portanto igualmente sobre toda esta drea, mas se concentram nas bacias dos rios Parané e Uruguai e no litoral atlantico. A maior concentracao de sitios (83%) se acha nas bacias dos rios Parana e Urugual, entre o Paranapanema e a laguna dos Patos — sendo mais numerosos nos vales dos rios Para- napanema, Ivai, Iguacu, alto Uruguai e Jacui, na escarpa do planalto meridional do Bra- sil voltada para o vale'do Jacui e na costa da laguna dos Patos. Os restantes 17% se concentram no litoral atlantico, desde a baia da Guanabara até o Rio Grande do Norte ‘ou se espalham no vale do Sao Francisco, nas bacias do Nordeste e em Golds, no di- visor Parané-Araguala. A Grea total ocupada pela maior concentragéo de sitios pode ser calculada entre 1 200 000 e 1 600 000km2. 2. Ecologia A tradigao nao ocupou indisctiminadamente todo ¢ qualquer ambiente existente dentro da imensa érea da sua disperséo; pelo contrério, a aproximacéo ecolégica do es- tudo das determinantes dos padrées de ocupacao, indica que a tradic&o apresentou corre- lacbes positivas e negativas com determinadas caracteristicas dos diferentes ambien- tes & sua disposicdo. As correlagdes foram positivas com respeito (a) a temperatura média anual, (b) & quantidade de chuva anual, (c) as formagées florestals, principal- mente & mata pluvial tropical ¢ as matas subtropicais e (d) & proximidade dos gran- des rios, das lagunas e do oceano. As correlacdes foram negativas com (e) a extensio da estagao séca ou o ntimero de dias biologicamente sécos do ano, (f) a altitude, que 51 se relaciona, é claro, com a diminuigéo da temperatura média anual e (g) as forma des ndo-florestais: campos, cerrado e caatinga. Com o passar do tempo parece que se observa alguma forma de adaptacao, isto 6, a diminuigao dos coeficientes negativos de correlacao; esta adaptacao terla sido imposta pelo sentido das migracées, levando a tradic&o para ambientes diferentes. —m resumo, 6 possivel reconstituir da seguinte maneira as caracteristicas do habitat preferencial dos portadores desta tradic4o ceramica, contrastando-o com os am- bientes diferentes, ocupados apenas esporadicamente. a. Clima. Do total de 1 000 sitios da tradigao, entre 910 e 980, isto 6 de 91% a 98%, se con centram em regides com as seguintes caracteristicas climaticas (médias anuais): Tempe- ratura média entre 16° e 24°C, temperatura maxima entre 22° e 30°, temperatura minima entre 11° e 21°C, ou entre 11° e 15°C (77.7%), amplitude térmica entre 5° e 13°C, frequéncia média de geadas até 5 dias por ano. O més mais quente é janeiro ou fevereiro © 0 mais frio, julho. Pluviosidade entre 1000 e 2000mm, caindo entre 70 e 200 dias por ano e igualmente distribuida durante todo o ano ou mais no semestre do verdo. Umidade relativa entre 70% e mais de 80%. (1) Tipo de clima segundo Képpen: Dos 1000 sitios indigenas, entre 970 e 960, isto 6 de 96% a 97%, ocupam forma- regiées de clima chuvoso todo o ano, sem estag4o séca, principalmente (73%) do tipo Cia — umido mesotérmico subtropical com verdes quentes. Os restantes 18% se en- contram em regides de clima do tipo Cwa e Aw — com curta estago séca no inverno. (2) Tipo de clima segundo Gaussen: Oitocentos e sete sitios se concentram em regides bioclimaticas axéricas — sem nenhum dia biolégicamente séco durante o ano, indice xerotérmico 0 (80.7%), princi- palmente na 7a — eumesaxérica (temperada quente) ou subtropical (64,7) e@ na 6b — hipotermaxérica (subequatorial) ou peritropical (13%) e 6a — eutermaxérica ou equatorial (3%). Os restantes 193 sitios se acham em regides bioclimdticas xérk cas, com 1 a 11 meses biologicamente sécos durante 0 ano, indice xerotérmico de 0-40 a 40-250 (19,3%), principalmente nas 4.a,b,¢,d e d’ — xeroquiménica (tropical) com séca de inverno ou tropical quente de séca acentuada, média ou atenuada ou sub-séca, prin- cipalmente o iltimo, tropical sub-quente e sub-séco (16,9%). b. Topografia. ‘A maioria dos sitios se encontram até 300m das margens dos grandes rios, de lagunas ou do oceano, em altitudes abaixo de 400m s.n.m, e se acham sobre as zonas planas ou pediplanadas dos derrames basdlticos da bacia do Parané e dos sedimentos antigos ou recentes que os recobrem, ou das rochas cristalinas pré-cambrianas das bacias do leste e nordeste ou dos sedimentos recentes que as recobrem. c. Vegetacio. Dos 1000 sitios indigenas, entre 970 e 960, isto 6 de 96% a 97%, ocupam forma g6es florestais Gmidas, principalmente se concentrando nas estacionais subcaducifdlias, como a mata Gmida subtropical, a mata de restinga, a mata meséfila e o cerradao (81%) ou nas perenifdlias latifoliadas, como a hiléia bahiana e a mata atlantica (13%). Devido a sua prépria situacdo geogréfica, se observa que enquanto a maioria dos 826 s{tios classificados na subtradicao da regiéo Sul, ocupam um extremo das variacdes climaticas descritas acima, os 174 sitios restantes, clasificados na subtradicéo da re gio Leste e Nordeste ou ainda nao classificados, ocupam 0 outro extremo. 52 D. Cronologia da tradicio A posigao cronolégica dos sitios com cerdmica desta tradicao foi fixada por meio de datagdes absolutas e de sequéncias cronolégicas seriadas. 1. Datagées absolutes: Foram efetuadas até agora mais de 60 datacdes pelo método do radiocarbono (C14) e 7 pelo da termoluminiscéncia (TL), nem todas aceitas porém como correspondendo @ realidade. Também se obtiveram varias outras pela ocupacao conjunta por indigenas e europeus de sitios que podem ser historicamente datados, como Reducées e Povos das miss6es religiosas, fortes, feitorias e aldeias. A manutengao de contatos com os colo- nizadores europeus também serviu como meio de obter datagées de diversos sitios préximos dos acima descritos. 2. Estabelecimento de sequéncias cronolégicas seriadas: Usando como armagéo cronolégica as datagdes absolutas acima referidas, fo- ram estabelecidas sequéncias seriadas baseadas no cdlculo da frequéncia relativa dos atributos da ceramica: tipos e modos — e sua variacao de nivel para nivel nas escava- g6es estratigréficas e de sitio para sitio nas colegdes superficiais, na suposicéo de que, pelo menos dentro de determinadas éreas limitadas, todos os niveis ou sitios que apresentarem as mesmas frequéncias relativas seréo contempordneos. 3. Estabelecimento de fases arqueolégicas: Segundo estas datagdes absolutas e relativas, a tradicao cerdmica Tupiguarani teria se estendido desde ca. A.D. 400 ou talvez A.D. 150, até o fim do século XVIII & em alguns casos até mesmo o final do século XIX. apresentando portanto uma profuns didade temporal de 1 400 a 1 700 anos. A duragdo total da tradigao foi dividida, durante 0 Programa Nacional de Pesquisas Arqueolégicas, em grande nimero de fases, sendo estas entendidas como comunidades arqueoldgicas identificadas através de uma sequéncia seriada, o que quer dizer simples- mente que cada fase contém todos os sitios cuja ceramica fez parte da mesma se quéncia seriada. Foram estabelecidas até agora 71 fases, das quais 20 pertencem a subtradicéo Pintada, 5 & transi¢do entre as subtradicdes Pintada e Corrugada, 36 per- tencem & subtradico Corrugada, 1 @ transi¢o entre a Corrugada e a Escovada, 6 @ 3 séo dificeis de classificar. As fases estabelecidas desta maneira raramente se sucedem umas as outras, formando sequéncias regionais, como seria de esperar; na maior parte dos casos duram muito tempo, as vezes quase tanto quanto toda a duracéo da prépria tradi¢éo e séo temporalmente sincrénicas com outras da mesma area ou de reas diferentes, de ma- neira que na maioria das vezes ndo tém valor cronolégico, Assim como estdo, pensamos que representam mais diferencas regionais ou mesmo locais do que propriamente tem- porais, ‘ i 4. Variagdes temporais da cerdmica: Foram bem poucas as variagdes apresentadas pela ceramica durante os 1 500 anos de duragao média da tradicéo. a. Pasta: O tempéro de graos de cerfmica moida, apesar de apresentar muitas flutuagdes quantitativas, se mantém durante praticamente toda a duracio da tradicao, mas a pro- Porcdo do tempéro de graos de areia que o acompanha, varia bastante. Em resumo se pode dizer que a pasta é geralmente mais argilosa nas épocas mais antigas e vai se 53 tornando mais arenosa a medida que se aproxima o final da tradigéo, mas o tempéro de ceramica moida somente desaparece na ceramica atribuida aos grupos indigenas pré- ceramicos que teriam adotado a ceramica da tradigéo Tupiguarani, como por exemplo, os Tape do Rio Grande do Sul. b. Tratamento da superficie. ‘As mesmas técnicas de tratamento das superficies se mantém durante pratica- mente toda a duragéo da tradigao, apenas variando a sua popularidade relativa. No ini- cio, parece que dreas relativamente equivalentes da superficie externa das vasilhas eram decoradas, com decoragao plastica ou pintada, ou deixadas sem decorar; mas com o passar do tempo, na regiéo Sul — em especial no Rio Grande do Sul, Unico caso que conhecemos com detalhes devido as sequéncias cronolégicas que estabelecemos — 30 observa o crescimento da popularidade da decoracao plastica corrugada, até alcancar 80% no periodo proto-histdrico (século XVII). No entanto, as corrugages tém cada vez menos relévo, até 0 ponto do tipo cerdmico corrugado se confundir com o simples- mente alisado. Por outro lado, aumenta a popularidade das ungulagées que em geral se sobrepdem as corrugagées, formando o subtipo corrugado-ungulado. Na subtradigao do Leste e Nordeste, parece que, ao contrario, cresce a popula- ridade da ceramica sem decoragao, desde cerca de 60% na Guanabara, até quase 90% no Rio Grande do Norte, enquanto no interior do Nordeste chega a faltar completamente tanto a decoragéo plastica como a pintada. As corrugagdes também diminuem de relévo até desaparecerem e sao substituidas por outras técnicas, como o_ungulado, o enta- lhado na borda e 0 acanalado. Devido ao pequeno ntimero de datacées absolutas para os sitios da subtradicéo do Leste e Nordeste, ainda é dificil estabelecer o sentido real da tendéncia. Na cerdmica nao incluida nas duas subtradigdes acima, parece ter ocorrido algo semelhante ao que teria acontecido na regiéo Leste e Nordeste, diminuindo a popula- ridade da decoracéo plastica e pintada, mas a decorago plastica néo chega a desapa- recer completamente e a pintura somente falta no curso médio do Sao Francisco. Nos limites da regido amoz6nica, a pintura pré-cocgdo € substituida pela pintura pos-co c¢éo e aparecem adornos modelados, caracteristicos. E, Contatos e aculturagio Muitas vezes se observam fragmentos de cerémica pertencentes a outras tra digdes regionais, nos sitios da tradi¢éo Tupiguarani ou, mais raramente, fragmentos da ceramica desta tradi¢éo sao encontrados em sitios de outras tradicées. Estes achados sao interpretados como indicando contatos entre os indigenas portadores das distintas tradiges. Os contatos inter-étnicos teriam se dado com as seguintes tradigées regionais, aproximadamente na seguinte ordem: Casa de Pedra, a partir de ca. A.D. 600; ' Itararé, a partir de ca. A.D. 800; .Taquara, desde ca. A.D. 700; Una, desde ca. A.D. 1 00 Vieira, desde ca. A.D. 1 000; Aratu, desde ca. A.D. 1 300; Fases Yeguada e Vizcaino, desde ca. A.D. 1 300 — 1 500; Uru, talvez desde ca. 1 200. SNOMPoRs Em alguns casos, quase sempre depois dos contatos terem se prolongado por muito tempo, se observam fendmenos de aculturagéo. A aculturago por influéncia de cerdmicas estranhas, foi bem menor que a influéncia exercida sobre as outras tradigdes cerdmicas. Os poucos tipos de decoracdo pléstica que parecem ter sido adotados na 54 tradi¢ao Tupiguarani, nunca chegaram a ser populares. Parece também que a tradicéo Tupiguarani fol influenciada em geral por ceramicas com decoragdo plastica mais elabo- rada e influiu sobre outras muito pouco decoradas. Os contatos parecem ter se dado quase sempre quando os portadores da tradi- ¢&0 Tupiguarani penetraram nos ambientes diferentes ocupados pelas tradicées regio- nais, como a mata de araucéria do planalto meridional e o litoral lagunar no Sul, e 0 cerrado, no Centro-Oeste. F. Resumo: A tradi¢o ceramica Tupiguarani 6 caracterizada pela cerimica simplesmente all- sada (simples) ou com decoragao plastica corrugada, corrugadaungulada e ungulada, e pela pintura policrémica em linhas finas vermelhas e/ou pretas sobre fundo branco. As formas caracteristicas das vasilhas séo os pratos e as tigelas de base plana, com o perimetro da boca oval ou quadranguldide, na regido Leste e Nordeste; ¢ as jarras e tigelas carenadas com base redonda ou cOnica, na regiéo Sul; as quais, combinadas com a variacdo da popularidade das técnicas de tratamento da superficie, identificam duas subtradig6es, a do Leste e Nordeste e a do Sul. Ja foram prospeccionados mais de mil sitios, na maioria superficiais, variando de 1 000m2 a 20 000m2 de 4rea, os quais se concentram nas bacias do alto Parané e do alto Uruguai e no litoral atlantico desde a laguna dos Patos até o Rio Grande do Norte. Estes sitios se concentram em regides de clima Gmido subtropical sem estacéo séca, ou Umido tropical com curta estacéo séca no inverno, e se relacionam com a mata timida subtropical, a mata de restinga, a hiléia bahiana 6 a mata atlantica. A tradigéo se estendeu desde ao menos o século V da nossa Era até, em alguns lugares, o final do século XIX, portanto por uns 1 500 anos, Durante o PRONAPA a tradigo foi dividida em cerca de 71 fases arqueoldgicas que representam provavelmente mais diferengas regionais do que temporais. As variagées temporais mais importantes observadas na cerAmica foram: Na pasta, © aumento quantitative do tempéro arenoso. No tratamento da superficie, na regio Sul, cresce a popularidade da decoracdo corrugada-ungulada, cujo relévo porém diminul; en- quanto na regio Leste e Nordeste diminui a popularidade da decoracao plastica ou pin- tada, que, no interior, chega a faltar completamente. Quando a tradi¢éo Tupiguarani penetrou em ambientes ocupados por outras tra- digdes ceramicas: Casa de Pedra, Itararé, Taquara, Una, Vieira, Aratu e Uru, ocorreram contatos inter-étnicos, dos quais, em alguns casos, resultaram fendmenos aculturativos. ll. CORRESPONDENCIA DOS DADOS ARQUEOLOGICOS COM AS INFORMACOES ETNO-HISTORICAS A RESPEITO DOS TUPI-GUARANI A. Introdugao ‘Quem produziu a cerémica da tradicfo Tupiguarani? A identificagio que propomos aqui se baseia na chamada aproximagao histérica direta, a qual, usando 0 método dedu- tivo, conjuga os dados arqueolégicos com as informacées etnochistéricas a respeito dos indigenas que habitaram as dreas onde se observa a maior concentragéo dos sitios desta tradigao. A existéncia de algum relacionamento entre a tradigéo ceramica Tupiguarani e a ceramica produzida pelos Tupi-Guarani, se acha implicita no préprio nome que foi dado & tradigéo pelos arquedlogos do Programa Nacional de Pesquisas Arqueoldgicas, mas até agora este relacionamento nao foi claramente justificado. 55 Partindo do ponto de vista de que existe, se no equivaléncia, pelo menos corres- pondéncia, entre os seguintes fenémenos culturais: (1) tradigéo ceramica — cultura arqueolégica; (2) subtradi¢éo ceramica — subcultura ou facie arqueolégica regional; e dado que, segundo os dados etnogréficos, 2 cultura dos Tupiguarani poderia ser divi- dida em pelo menos duas subculturas, a dos Tupi e a dos Guarani; propomos que a 4rea de dispersao da tradigéo ceramica Tupiguarani, corresponderia, pelo menos parcialmen- te, @ drea cultural Tupi-Guarani, a subtradicao da regido Leste e Nordeste corresponde- ria a subcultura Tupi e a subtradicao da regifio Sul, & Guarani, Quanto & cerémica néo classificada em nenhuma das duas subtradigdes, poderia corresponder: (a) a uma for- ma mais antiga, ainda nao diferenciada, da tradicéo; (b) a uma terceira subtradigao inde- pendente menos difundida; (c) ao resultado da interpenetracéo especial das duas subtra- digdes ou (d) a um aspecto da prépria subcultura Guarani. A seguir resumimos as correspondéncias que encontramos entre os dados ar- queolégicos da tradigdo cerémica Tupiguarani e as informagées etnogréficas a respeito dos Tupi-Guarani. A etnografia dos Tupi e Guarani antigos esté bascada nas descrigées dos cronistas dos séculos XVI a XVill. Para os Tupi: Pero Vaz de Caminha, 1500; José de Anchieta, 1584; Gabriel Soares de Souza, 1530-2; Hans Staden, 1557; Jean de Léry, 45..;. Thévet, 1575; Pero de Magalhdes Gandavo, 1576; Claude D’Abbéville, 1614; Yves d'Evreux, 1613-4; Cristdbal de Acufia, 1639; Fernéo Cardim, 16..; e Simao de Vasconce- los, 1663, Para os Guarani: Alvar Nufiez Cabeza de Vaca, 15..; Ulrich Schmidel, 1534-54; Antonio Ruiz de Montoya, 1640; Nicolau del Techo, 1673; Félix de Azara, 1809, ¢ Pedro Lozano, 1873-5. Estas descrigdes foram sintetizadas por A. Métraux, 1948, a. —94; 1948. b: 95— 133; F. Fernandes, 19.. e B. Susnik, 1975, os quais também devem ser consultados para as bibliografias completas. B. Distribuigdo Etnografia. Os Tupi-Guarani hist6ricos eram aqueles indigenas que falavam a lin- gua Tupi-Guarani, da mesma familia e sub-familia linguistica, pertencente ao tronco Tupi (Rodrigues, 1964). Ocupavam, no leste da América do Sul, uma imensa drea que se es- tendia desde 0 norte da Amaz6nia até o rio da Prata e desde a costa atlantica até a bacia do Paraguai e além disso ainda apresentavam algumas extensdes fora dessa 4rea, pois alcangaram alguns pontos nas Guianas e na encosta oriental dos Andes (Mojos e Chaco). Arqueologia: Os sitios com ceramica da tradigéo Tupiguarani se encontram todos dentro das fronteiras etnogréficas da dispersdo dos falantes Tupi-Guarani, a pesar de ndo ocuparem toda a sua imensa area. A ceramica desta tradicéo foi observada apenas ‘em alguns pontos da Amazénia (Para), mas nas bacias dos rios Parana, Paraguai e Uru, guai, na bacia do rio Jaoui ¢ da laguna dos Patos, na costa atlantica, desde a desemboca- dura do rio da Prata até 0 Maranhio, no vale do Sao Francisco e nas bacias do Nordeste, a sua distribuicao coincide muito bem com a distribuicéo dos Tupi-Guarani. Etnografia: Segundo as descricdes dos cronistas dos séculos XVI a XVIII, a maioria dos Tupi e Guarani histéricos possuiam ceramica. No entanto, os Tupi amaz6nicos nao possuiriam ceramica ou a descric&o desta diferia da dos restantes Tupi. Arqueologia: A ceramica descrita e ilustrada pelos cronistas como sendo produ- zida pelos Tupi costeiros dos séculos XVI e XVII, apresenta muitas semelhangas com a da subtradicao da regiéo Leste e Nordeste, enquanto a ceramica que era produzida pelos Guarani até o século XIX, apresenta muitas semelhangas com a da subtradicao 56 da regido Sul. Por outro lado, a cerdmica da tradi¢éo Tupiguarani encontrada na érea antes ocupada pelos Tup! amazOnicos (Para) estd visivelmente influenciada por tradi- gées ceramicas extranhas, amaz6nicas, andinas ou circumcaribias. Etnogr.: Segundo os cronistas, os Tupi costeiros, no século XVI ocupavam o Iito- ral e 0 interior imediato, desde aproximadamente 0 trépico de Capricérnio ou Cananéla, ‘So Paulo, para o norte, até o Maranhao. Enquanto os Guarani ocupariam o litoral daf para o sul, até o rio da Prata, incluindo no interior as bacias dos rios Parand, Peragual, Urugual e Jacul. Arqueol.: A distribuicao dos sitios com cerdmica da subtradicao da regido Leste e Nordeste coincide com a distribui¢ao dos Tupi histéricos, exceptuando-se os Tupi ama- z6nicos; enquanto que a distribuicao dos sitios com ceramica da subtradi¢o da regiéo sul, coincide exatamente com a dos Guarani histéricos. C. Subsisténcia Etnogr.: Os Tupi-Guarani possuiam uma cultura do tipo de floresta tropical e ba- scavam a sua subsisténcia numa horticultura itinerante, tecnicamente simples mas efi- ciente e conservacionista, a coivara, que consiste na derrubada da vegetacdo nativa e ‘sua queima, o plantio no solo fertilizado pelas cinzas e no abandono da roca cepois de algumas colheitas em geral decrecentemente produtivas. Arqueol.: Os sitios com cerémica da tradigao Tupiguarani ocupam quase que ex- clusivamente ambientes onde 6 possivel este tipo de horticultura, como a hileia baiana, a mata, atldntica, a mata mida subtropical, a mata de restinga, a mata mesé fila e 0 cerradao, Etnogr.: Os Tupi-Guarani cultivavam principalmente mandioca, milho, batata doce, card, feijées, abéboras, amendoim e pimenta, além do fumo, algoddo, cabagas, cuias, co- rantes (urucu, genipapo) e no caso dos Guarani, o mate. Os Tupi baseavam’ sua alimen- taco principalmente nas variedades t6xicas da mandioca (mandioca amarga, brava ou ve- nenosa) consumindo-as como farinha, beiju e bebides fermentadas alcodlicas (Métraux, 1948. a: 95-133) Arqueol.. Na ceramica da subtradicéo do Leste e Nordeste predominam os pratos rasos e as tigelas de base plana ou aplanada e borda cambada, reforcada externamente, que podem tingir até 55cm de diémetro; vasilhas claramente relacionadas & tecnologia da preparacao das variedades téxicas da mandioca (Brochado, 1977 in lit). Etnogr.: Os Guarani baseavam sua alimentacao principalmente no milho, abdbo- ras, feijoes e nas variedades néo-téxicas da mandioca (mandioca doce, mansa ou aipim), as variedades téxicas da mandioca tinham importancia secundéria e a farinha, o beiju os aoe alcodlicas da mandioca eram raramente consumidas (Métraux, 1948. : 69-94). Arqueol.: Na cerémica da subtradicdo do Sul nao existem ou so raras as vasi- \has mais caracteristicas da subtradicaéo do Leste e Nordeste, como estéo acima des- critas. Predominavam as vasilhas de morfologia diferente — panelas, vasos ou jarros do forma esferdide ou periforme, contérno compésto, carenadas, com pescogo e ombro bem marcados — as quais foram claramente usadas néo para secar ou assar os al- mentos, mas para fervé-los em dgua. (Brochado, in lit). Etnogr.: Os Tupi-Guarani, como todos os grupos indigenas que vivem num nivel de cultura de floresta tropical, obtinham todo o amido de que necessitavam basicamen- te através da hortioultura, mas para obter proteinas deviam recorrer a caca e pesca de manelra que precisavam alternar continuamente as duas atividades. Estes indigenas navegavam extensamente pelos rios e pela costa do mar em canoas de tronco ou casca de rvore, movidas por remos cu por varas. 57 Arqueol.: Os sitios com ceramicas da tradigao Tupiguarani efetivamente se con- centram ao longo das margens dos rios maiores, de lagunas ou do oceano, com a pos- sibilidade portanto dos seus portadores indigenas explorarem ao mesmo tempo os re: cursos fluviais e marinhos da pesca e coleta de moluscos ¢ da caca na floresta, e pra- ticar a horticultura de coivara na floresta. Nos sitios afastados dos rics e do mar, se observa o empobrecimento da cul- tura material, devido a dificuldade do acesso as fontes potencialmente mais ricas de proteinas. Etnogr.: As armas usadas pelos Tupi-Guarani tanto Para cagar e pescar, como Para guerrear, eram todas confeccionadas de madeira: arco e flecha, tacape, dardos e Jangas; mas os machados para a derrubada da mata na coivara possuiam lami- nas de pedra polida. Arqueol.. Efetivamente, n&o se encontram pontas-de-flecha, dardo ou langa, con- feccionadas de pedra, nos sitios da tradico Tupiguarani, mas so caracteristicas as ld minas de machado trapezoidais de pedra polida. Etnogr.: As familias extensas dos Tupi-Guarani viviam em casas de vigamento de madeira, cobertas de palha, que cram muitas vezes comunais, tinham grandes dimer sdes e abrigavam uma linhagem inteira, As aldcias, construidas no centro de clareiras eram bastante méveis © constituidas de uma ou mais linhagens. O nimero de habi- tantes podia variar desde menos de uma centena até dois ou tres mil, conforme os recursos disponiveis nas proximidades. No Sul, em épocas tardias, as casas eram muito Pequenas e as aldeias reuniam apenas algumas dezenas de Indios. Arqueol.: Nos sitios, o local das habitagdes est indicado pela concentragao su- perficial dos fragmentos de ceramica da tradigao Tupiguarani, portanto suas dimensées podem ser calculadas © tanto as dimensdes das casas como das aldeias conferem muitas vezes com as descritas para as habitagdes e aldelas dos Tupi e Guarani. A pou- ca profundidade da camada arqueolégica © 0 nimero nao muito grande de fragmentos acumulados indica que efetivamente a ocupagéo indigena teria tido curta duragao. No sul, vestigios de antigas aldeias dos Tupi Guarani missionarizados no século XVII, correspondem as descricdes etnogréficas de como eram antes da missionariza- ¢0 (Brochado, 1970,) Etnogr.: A pesar que a forma de disposigao dos mortos variava bastante, alguns grupos Tupi e Guarani costumavam enterrar os mortos direta ou indiretamente em va- silha de ceramica de dimens6es variaveis .Costumavam também se reunir em grandes bebedeiras cerimoniais de alcool produzido pela fermentagéo, por meio da saliva, da mandioca, milho, batata doce ou frutas; bebedelras muitas vezes relacionadas ao com- plexo da guerra e antropofagia ritual. Arqueol.: Na subtradigio do Sul, as grandes vasilhas de forma periforme, con- torno composto, carenadas, com pescogo e ombros bem marcados, proprias para fermen- tar bebidas, sé frequentemente encontradas enterradas, contendo restos humanos, em evidente conexdo com os locais das antigas aldeias. Na subtradigéo do Leste e Nordeste as grandes tigelas de base plana ou aplanada, usualmente com o perimetro da boca oval ou quadranguldide, 6 que sdo usadas como urnas funerdrias. D._ Disperséo dos Tupi-Guarani Etnogr.: Os Tupi e Guarani eram guerreiros eficientes, conquistadores que esta- vam constantemente expandindo a sua area vital por meio de extensas migragées, co- megadas muito antes das Descobertas, Possivelmente o fato de poderem acumular exce- dente de alimento na forma da farinha de mandioca (Tupi) ou de milho (Guarani) Ihes deu um precioso apoio logistico, permitindo desenvolverem verdadeiras campanhas mili- tares de alguns meses de duracdo, o suflciente para vencerem a resisténcia dos antigos 58 habitantes dos territérios ocupados, que por serem cacadores e coletores ou pratica- rem uma horticultura menos produtiva, nao podiam fazer 0 mesmo. Quando em campanha, a antropofagia dos vencidos poderiam fornecer proteina, sem necessidade de cacar e pescar. Em muitos casos iniciaram-se processos de aculturag&o intertribal com os anti- gos habitantes que, quando resultaram na sua absorgdo, foram chamados “tupinizagdo” ou “guaranizagéo" pelos cronistas. Arqueol.: A presenca de datagbes absolutas e relativas cada vez mais recentes, em sitios cada vez mais afastados de um centro comum, indica a expansdo da cer& mica da tradigao Tupiguarani sobre uma imensa rea, a partir de um centro relativamente pequeno. Em muitos sitios se observam fragmentos de cerdmicas extranhas @ mais tarde se advertem fendmenos de aculturaggo, principalmente a adocao de tracos da ce- ramica da tradigéo Tupiguarani por ceramicas de outras tradigées, regionais, mais rara- mente ocorrendo o inverso. Etnogr.: Os Tupi e Guarani nao mantinham integracdo politica sobre grandes 4reas, apesar de possuirem uma grande integracdo cultural que mantinha a lingua Tupi- Guarani unificada sobre toda a imensa Area da sua dispersio. Provavelmente nao tinham uma viséo de conjunto de toda a 4rea que ocupavam, mas recordavam suas migracdes desde uma terra longinqua. Os mecanismos de difuséo da lingua Tupi-Guarani incluiram (1) extensas migra goes dos falantes Tupi-Guarani, (2) a imposico da cultura aos vencidos, e (3) a ado- go voluntéria da cultura dos vencedores por grupos periféricos. A manutengao da uni- dade da lingua deve ser atribuida a frequentes contetos por meio de viagens e a In- ter-casamentos entre grupos locais mesmo muito distantes. Arqueol.: A intogracio da cultura e a unidade da lingua Tupi-Guarani sobre imensas dreas, corresponde a imensa difusio de diversos tracos caracteristicos da ce- ramica da tradicio Tupiguarani como (1) 0 tempero de gréos de cerdmica moida, (2) a confecodo das vasilhas pela técnica do enrolamento em espiral (acordelada), (3) a decoragdo plastica corrugada, corrugada-ungulada e ungulada, (4) a pintura policrd- mica composta de linhas finas e faixas mais largas em vermelho e/ou preto e/ou cas- tanho, desenhadas sobre um fundo pintado de branco ou creme e (5) as bordas de perfil cambado e reforcadas externamente. A homogeneidade das caracteristicas da ceramica é ainda maior dentro da drea de cada uma das duas subtradigdes mais bem definidas; a_da subtradicéo da regido Leste e Nordeste, coincidindo com a 4rea de disperséo dos Tupi costeiros, e a da sub- tradigaéo da regiao Sul, coincidindo com a 4rea de disperséio dos Guarani. Alem disso, as etapas do processo de evolugao ca ceramica da tradi¢éo Tupigua- rani, diacronizadas pelas datagdes absolutas radiocarbénicas (14) e pelas sequéncias seriadas baseadas no calculo da frequéncia relativa dos atributos da cerfmica; pare- cem ter sido incrivelmente sincrdnicas também dentro da drea de cada subtradicao. © mecanismo de transmissio dos padrdes vigentes na ceramica, capaz de manter a sincrénia da mudanga, deve em determinado momento, ter sido, como no caso da ma- nutencao da unidade da lingua, as frequentes viagens e inter-casamentos entre grupos locais mesmo muito distante. A ceramica da tradicéo Tupiguarani deve ter-se difundido do mesmo modo que a lingua Tupi-Guarani, apesar de que a dispersio daquela_néo é inteiramente coincidente com a desta, como, por exemplo, ocorre na Amazénia. Os mecanismos de dispersdo da tradi¢do ceramica devem ter sido os mesmos de difuséo da lingua, sendo que as si- tuagdes (2) e (3) sao Indicadas pelas evidénclas de aculturacéo ‘na ceramica. 59 ‘A evolugdo da ceramica da tradicéo Tupiguarani pode ser acompanhada desde pelo menos 0 século V da nossa Era, até a ceramica dos sitios historicos ocupados pelos Tupi e Guarani nos séculos XVI e XVII, desta forma minimizando as dividas, muitas vezes levantadas, a respeito de se uma cultura arqueolégica de data muito an- ‘tiga, pode ser identificada com uma cultura etnogréfica, Além do mais também ndo existe em toda a drea ocupada outrora pelos Tupi costeiros e pelos Guarani, outra tradigao cerémica que possa ser identificada como sendo a ceramica produzida por estes grupos indigenas. Nenhuma das tradigées cera micas regionais: Vieira, Itararé, Aratu, Una, Uru etc.: apresenta as condicées minimas necessérias e suficientes para isso. Faltam, em primeiro lugar, correspondéncias entre caracteristicas tais como, 0 tratamento da superficie e a morfologia das vasilhas, con- forme foram descritas pelos cronistas. Por exemplo, a ceramica dos Tupi costeiros foi descrita como pintada em vermelho e/ou preto sobre fundo branco, e nao existe ne- nhuma outra ceramica arqueolégica policrémica na 4rea antes ocupada por eles. Em segundo lugar, também ndo existe coincidéncia entre a distribui¢éo espacial ecolé- gica da ceramica e o dos Tupi-Guarani nem existe qualquer relacionamento destas com 0s sitios histéricos ocupados pelos Tupi costeiros ou pelos Guarani. 60

Você também pode gostar