Você está na página 1de 21
RELIGIOUS CEREMONIALS AND IMAGES Power and Social Meaning (1400-1750) [Jodo Pedro Paiva (org.), Religious Ceremonials and Images: Power and Social Meaning (1400-1750), Coimbra, Centro de Hist6ria da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra / European Science Foundation / Palimage Editores, 2002, 425pp. + 24 figuras] David Felismino Oexame dos rituais e dos cerimoniais ocupa um lugar cada vez mais central na his- toriografia internacional, tanto europeia como americana, atenta em estudar a construc&o do Estado e da Monarquia no periodo moderno. Esta érea de estudo tem sido objecto de uma nitida renovacdo por via da introdugao de novas perspec- tivas analiticas, de investigacées mais precisas e de premissas tedricas renovadas. Assim, 6 j consideravel a bibliografia respeitante aos rituais da realeza — estrutu- rantes, funcionais, ocasionais ou até quotidianos — e seu significado antropolégi- €0, ideolégico e hist6rico. Hoje, é sabido que varias destas ceriménias reflectem modelos religiosos, e revestem-se, no caso de determinados rituais politicos, de uma dimensio sagrada. Noentanto, ainda permanece reduzido o ntimero de estudos relativos aos ce- rimoniais do mundo eclesidstico, que em tantos casos influenciam e estruturam os rituais do mundo secular, como o mostraram Michel Foucault ou Paolo Prodi, no II Soverano Pontifice. Un Corpo e Due Anime (Bolonha, 1982). O Coléquio Religious Cere- monials and Images: Power and Social Meaning, organizado na Universidade de Co- imbra (25a 27 de Maio de 2001), como patrocinio do programa Cultural Exchange in Europe 1400-1700, dirigido por Robert Muchembeld, teve por objectivo essa anélise e comparacdo das diversas ceriménias religiosas na Europa. O titulo, aqui tratado, reproduz 0 conjunto das comunicacées, entéo apresentadas, que, sem diivida, constituem um contributo essencial para o entendimento da importancia dos ri- tuais religiosos, de varias confissdes (catélica, protestante, ortodoxa, budista), no Antigo Regime. ‘Um empreendimento desta natureza (a organizacao de um coléquio e a pu- blicagao das suas actas) implica um esforco de coeréncia interna e de homogeneiza- a0 dos objectos /casos estudados, dos quadros espacial e temporal escolhidos, e das metodologias usadas, que nem sempre, infelizmente, é conseguido. Todavia, o encontro que aqui nos interessa, ganha por ter logrado cumprir estes critérios es- senciais para o entendimento das questdes que se propés estudar: primeiro, evi- denciar pontos de convergéncia entre os cerimoniais eclesidsticos e os desenvolvi- dos no seio das monarquias e cidades modernas; segundo, salientar como os ri- tuais, enquanto instrumentos de comunicagao politica e de propaganda dos pode- res seculares, eram objectos de manipulagao pela Igreja e pelo oficialato clerical. O principal objectivo foi, portanto, apresentar uma visao abrangente e, quase totali- zante, da pluralidade dos cerimoniais pablicos promovidos na esfera eclesidstica. Para tal, os organizadores recorreram a um quadro temitico, espacio-temporal plural e extenso. PENELOPE, N.°27, 2002, pp. 161-181 162 David Felismino E vistvel em termos da economia da obra na qual é nitido o desejo de cobrir, com vinte estudos, um leque variado de ceriménias da esfera eclesiastica, salien- tando-se, deste modo, semelhangas e diferencas. Contam-se colaboragées diferen- tes relacionadas, por um lado, com a administragao episcopal e diocesana (Adrian Blaquez, Daniela Rando, Martin Elbel, Maria Lufsa Candau e Joao Pedro Paiva), coma missionacao jesuitica na Asia (Ronnie Po-Chia Hsia) ou na Europa (Federico Palomo); por outro, com o Papado (Istvan Gyorgy Toth, Maria Antonietta Vis- ceglia, Martine Boiteux), com os rituais da realeza portuguesa e seus significados religiosos (Ana Cristina Aratijo, Pedro Cardim); ou, por fim, com as manifestagdes de piedade popular (Aleksandr Lavrov, Judith Pollman, Mark Greengrass, Maria Graciun), ou com a pr6pria ritualizacao dos espacos sagrados do mundo urbano (Heinz Shilling). ‘Todavia, olhando apenas para a lista de nomes aqui referida, a supremacia numérica de trabalhos relativos 4 Europa Central é evidente, ainda que 0 conjunto revelea intengao de abranger a mais vasta 4rea geografica possfvel, desde a Chinae a Ruissia até a Espanha e Portugal. O reparo ¢ idéntico quanto A extensao cronolégi- ca escolhida e que cobre o perfodo entre os séculos XV e XVIII, evidenciando uma gradual complexificacao e valorizacao destes cerimoniais ao longo do perfodo mo- derno, ultrapassando-se as caracteristicas adquiridas nos tempos medievais no sentido de uma metamorfose cultural assente na formalizagao e uniformizagao da vivéncia do catolicismo, numa concepgao de verdade pautada por fortes estruturas de enquadramento, proprias de novas sensibilidades e representagées religiosas. Estes dados apontam para um mesmo sentido. Antes mais, a certeza que, paraa historia cultural nacional, muito est ainda por fazer quanto ao conhecimen- to das ceriménias eclesidsticas no perfiodo moderno, tanto pela escassa representa- 40 numérica no conjunto da obra, como pela prépria natureza das comunicagées escolhidas. No entanto, so varios os casos de cerim6nias, promovidas na esfera clerical, relativamente ao caso portugués que foram e esto a ser estudados, mas que ndo encontraram lugar neste certame, ao qual nao retiramos qualquer mérito por essa raz4o. Pelo contrario, a maior atencao dada a outras dreas geograficas pro- porciona uma visao de conjunto bastante sugestiva; patenteando-se, assim, simili tudes e diferencas, continuidades e rupturas existentes entre gestos, simbolos, e es- truturas dos rituais. Dos varios casos analisados emerge, assim, um intercambio cultural e religioso intenso que, obviamente, nos obriga a repensar e rever posigdes e ideias feitas sobre o Antigo Regime europeu. Por outro lado, a leitura deste conjunto torna cada vez mais evidente a postu- ra de uma Igreja Catélica pés-tridentina militante e desejosa de conseguir uma consciéncia catélica universal através de uma uniformizagao dos seus rituais, para j4ndo falar de uma completa ritualizagao da vida religiosa e politica. Esboca-se, en- tao, progressivamente a criacao de uma cultura barroca europeia. No entanto, este coléquio permite-nos, também, clarificar alguns aspectos aplicados a religiosidade protestante, coms contribuigdes de Mark Greengrass, que compara as concepc6es de “milagre” dos protestantes e catdlicos franceses (pp. 389-415), ou de Judith Poll- mann que revisita os espacos sagrados das igrejas dos Pafses-Baixos (pp. 177-191). Todavia, é notério que o peso e visibilidade dos rituais cat6licos pés-tridentino RELIGIOUS CEREMONIALS AND IMAGES 163 ofusca os desenvolvidos no seio das comunidades protestante, ortodoxa, ou/e até budista. Nesta perspectiva, Heinz Schilling analisa o modo como cidades calvinistas e protestantes conheceram, numa propor¢ao diferente das catélicas, um desenvolvi- mento da sua 4rea, da sua arquitectura religiosa e secular, e modificagdes topogr- ficas significativas mediante a rejeicdo teolégica e abandono legal das imunidades reservadas as instituicdes eclesidsticas, a teologia da sola gratia, a desvalorizacio e redugao dréstica do corpo clerical, e a nova iconoclastia reformista defendida. Nes- te tiltimo caso, materializou-se numa reformulagao dos padrées estéticos estrutu- rantes dos interiores dos espacos de culto, valorizando-se a simplicidade, tida como simbolo de pureza, e a concentragao das representagdes em torno das cenas bfblicas (pp. 7-25). Do mesmo modo, a ereccao de novas igrejas obedecia a necessi- dades praticas de ordem demogrifica, isto é, com a finalidade a albergar os novos fiéis que iam enchendo as cidades. Paralelamente, instituigdes de caridade, hospi- tais, e orfanatos, tal como a maioria das escolas, bibliotecas e universidades passa- rama ter um funcionamento e uma organizacao desvinculados da Igreja. No con- texto destes espacos urbanos renovados, decorriam, a similitude do conhecido para as cidades catélicas, rituais puiblicos ou semi-publicos da responsabilidade dos Consistérios. Judith Pollmann (p. 171-191), ao estudar o reaproveitamento de ediffcios ca- t6licos pelos protestantes holandeses, evidencia, igualmente como a estreita rela- 40 existente, no mundo cristo, entre a civitas terrestre e civitas celeste estava subja- cente nas cidades reformadas. Em que medida as caracteristicas peculiares desta li- gacéono mundo protestante influenciaram a formacdo das préprias sociedades ur- banas, suas mentalidades e actividades? Os contributos, avancados neste coldquio, proporcionam, sem diivida, mais elementos para repensar a divisio weberiana en- tre cidades catélicas semi-feudais e cidades protestantes burguesas. Sao muitas mais as conclusdes possivelmente suscitadas pela leitura destes estudos de caso. Vejamos algumas, retomando propostas de andlise tracadas pelo editor, Jodo Pedro Paiva, na Introdugdo (pp. 1-6). O cerimonial eclesidstico, tal como naesfera secular, é sempre um instrumento de comunicagao e de poder, associadoa mensagens de propaganda. E notério nos estudos, entre outros, de Daniela Rando sobre entradas dos bispos italianos nas sedes diocesanas de Florenga, Padua, Vero- na e Trento durante o século XV (pp. 27-46), ou/e no de Martin Elbel, relativo & mesma ceriménia no caso dos bispos de Olomouc, jana segunda metade do século XVIII (pp. 47-60). Tanto num caso como no outro, ram acontecimentos piblicos, envolvendo a comunidade secular no seu todo, suas autoridades hierarquicamen- te representadas de acordo com um apertado e tipificado protocolo de precedén- cias, nos quais a imagem e a palavra ocupavam um lugar central. A magnificéncia do aparato envolvente, as posturas adoptadas pelos participantes, a elevacéo do novo investido montado num cavalo, os discursos proferidos, tudo devia glorificar e afirmar, aos olhos de todos, o poder espiritual, a pietas, misericordia e dignitas do novo bispo que assumia feic6es proximas do triunfador romano. As semelhangas com as entradas régias e as procissdes confraternais sdo notérias. O cerimonjal constituia, por isso, um momento privilegiado de afirmagio e 164 David Felismino, comunicagao /confrontac&o dos poderes da esfera espiritual e temporal, sendoori- tual uma transposicao simbélica e fisica de estatutos e limitagées. Adrian Blazquez, através do caso especifico da diocese e senhorio de Siguenza, em Castela, mos- tra-nos claramente os conflitos jurisdicionais subjacentes as entradas e tomadas de posse dos bispos nesta diocese (pp. 61-85). Enquanto bispo e senhor de Siguenza, 0 novo eleito apenas podia sentar-se na cadeira episcopal, depois de ter sido reco- nhecido, proclamado, e investido pelos membros do Cabido (com os quais, alis, partilha o senhorio) na Catedral e, posteriormente, ao juramento de fidelidade prestado pelas autoridades municipais, em nome da populacdo, reconhecendo-o ‘como seu senhor. Do mesmo modo, a entrada prévia decorria em dois tempos: apés a entrega das chaves da cidade, acompanhada de um juramento de fidelidade aos. privilégios, usos e costumes desta, seguia-se uma ceriménia diante das portas da Catedral. Esta formulagdo bicéfala dos cerimoniais, com significados simbélicos e poli- ticos, regia, igualmente, os rituais do Papado, tanto da sua investidura, vacatura e de suas exéquias, estudados aqui por Maria Antonietta Visceglia (pp. 87-102) e Martine Boiteux (pp. 103-153). Todavia, ambas demonstram como a contradigao estrutural (por um lado, a mortalidade do homem, a imortalidade da sua alma ver- sus a perenidade institucional do poder vago, imprescindfvel para a sobrevivéncia do Estado espiritual e temporal) que ditava esta dualidade se foi esbatendo, ao lon- go do perfodo moderno, no sentido de uma celebracdo que visava santificar e sa- cralizar o falecido Papa enquanto directo sucessor de So Pedro e primeiro Minis- tro de Deus. Como se vé,o cerimonial, quaisquer que sejam as suas dimensées, pro- cura dar corpoa uma instituicdo, levando a que os rituais participantes transmitam uma ideia de permanéncia e estabilidade do poder em jogo, capaz de neutralizar o tempo e espago. Aqui colocamo-nos num nfvel simbélico importante para o enten- dimento dos cerimoniais, que s6 € possivel conseguir, como 0 demonstram o con- junto dos estudos apresentados neste coléquio, quando se contextualizam cada ce- rimonial no seu espaco e no seu tempo, ultrapassando-se 0 seu significado primério. O cerimonial reveste-se sempre de uma dimensao teatral, propria da cultura de Antigo Regime oral, gestual e visual, articuladora de diversos modos de comu- nicagao: imagem /palavra, gesto/escrita. Verdadeiras encenagées sao, nitidamen- te, os rituais paralitirgicos da religido ortodoxa russa dos séculos XVIe XVII, anali- sados por Aleksandr Lavrov (pp. 369-387). Sdo estes, entre outros apresentados, dois cerimoniais, respectivamente da quadra natalicia e do ciclo pascal: “les adoles- cents dans la fournaise” e “a procissao do burro” .O primeiro, realizado no dia 17 de De- zembro, encenava, nas igrejas russas, 0 episédio do auto-de-fé de trés adolescentes por Nabucodonosor e, de seguida, salvos pelo Anjo da Guarda. O segundo, organi- zado no dia de Ramos, comemorava a entrada de Cristo em Jerusalém. Durante este evento, o Czar segurava as rédeas de um cavalo, disfarcado de burro, no qual iao Patriarca, ao longo de uma longa procissdo que atravessava a cidade. A cultura popular nao participava destas ceriménias, permanecendo estas no dominio da cultura das elites, isto 6, do Patriarca, do Czar, do Alto Clero, e dos Boyards; ao con- trario das ceriménias paralitirgicas cat6licas, onde os laicos ocupavam um lugar CCASTILLA Y PORTUGAL EN ASIA (1580-1680) 165 activo central. Teatralizacdo semelhante é patente na andlise, desenvolvida por Mark Greengrass, sobre as peregrinacdes em Franca, no perfodo das Guerras de Religiao (pp. 389-414). Religious Ceremonials atravessa uma pluralidade de cerimoniais, desenvolvi- dos no mundo clerical da época moderna. A diversidade e riqueza da informacao, patenteada ao longo dos varios estudos, dao uma visio de conjunto valiosa, pela qual se chega a um entendimento nuancé do ritualismo religioso: suas caracteristi- cas, diferengas e evolucées ao longo do Antigo Regime. Um melhor conhecimento das entradas episcopais, das visitas pastorais, das investiduras papais leva-nos, forgosamente, a uma comparacdo com as ceriménias da esfera secular, nomeada- mente do poder politico. S40 evidentes as semelhangas e a influéncia, exercida pela esfera religiosa e eclesidstica, na estruturagdo ideolégica e formal dos rituais e da linguagem politica das monarquias modernas. Estes fundamentos do Estado Mo- derno europeu ocupam o seu devido lugar neste coléquio mediante o estudo, pro- posto por Pedro Cardim, sobre a natureza das rafzes ideolégicas e teol6gicas das ceriménias de coroago dos monarcas portugueses do século XVII (pp. 351-368), e outro de Ana Cristina Aratijo, sobre os rituaisna Corte de D. Jodo V (pp. 323-349). De todo este conjunto ressaltam duas conclusées importantes. Por um lado, ‘uma entrada episcopal, uma visita pastoral, uma procissao, s40, como Mauss 0 de- finiu, factos sociais e festivos totais, simultaneamente jurfdicos, econémicos, polfti- cos, religiosos e estéticos, envolvendo, em muitos dos casos, a quase totalidade da sociedade que participa directamente no s6 como espectadora mas, também, como actriz. Por outro, o ritual, a etiqueta, o cerimonial foram, sem dtivida, adopta- dos pelo mundo eclesidstico, como cédigos e estratégias de uma linguagem pollti- ca de afirmago. Por todas estas razées, a leitura destes estudos ultrapassa a sim- ples histéria eclesidstica que assume, assim, dimens6es de histéria social, econémi- a, cultural e das mentalidades; o ritual ganha uma densidade nova, quando recu- perado ndo sé no seu significado como também na sua pratica social; revelando, entre outros aspectos, subjectividades individuais, formas de relacionamento com o sagrado, modelos de exercicio do poder e variadas configuragées sociais. E toda uma sociedade e cultura de Antigo Regime que se recria, assim, sob 0s nossos olhos. CASTILLA Y PORTUGAL EN ASIA (1580-1680) Declive Imperial y Adaptacién [Rafael Valladares, Castilla y Portugal en Asia (1580-1680). Declive imperial y adaptacién, Lovaina, Leuven, University Press, 2001] André Murteira Como o seu titulo indica, este livro de Rafael Valladares tem por tema a hist6ria da presenga ibérica no Oriente durante o perfodo filipino da histéria de Portugal (1580-1640) e as décadas subsequentes. Cremos que € poss{vel, no entanto, dizer 166 ‘André Murteira que se trata essencialmente de uma histéria do Estado da india filipino e pés-filipi- no vista & luz das relacdes luso-castelhanas, Isto, por si 86, seria ja suficiente para garantir o interesse da obra, pois nao é uma perspectiva muito comum. Que um historiador como Valladares — especialista no perfodo filipino ena Restauragao— se haja interessado e escrito sobre o tema nao pode ser, por isso, sendo motivo de satisfagao. Aépoca estudada por Valladares é claramente vista como um tempo de deca- déncia— uma decadéncia suscitada sobretudo pela chegada ao Oriente de ingleses e holandeses em finais de Quinhentos, chegada essa que teria confrontado o Estado da india com um desafio que ele nao esteve A altura de enfrentar. Para consegui-lo, teria sido preciso empreender reformas radicais, o que até ao fim ninguém foi ca- paz de fazer. Este imobilismo explica-se, para Rafael Valladares, pela permanente submissao do interesse ptiblico aos interesses privados na india portuguesa. Na sua opinido, o Estado da India, ao gozar de uma elevada autonomia efectiva relati- vamente a metrépole, habituara-se a ser gerido menos de acordo com as conve- niéncias da Coroa do que com as dos servidores e stibditos dela no Oriente. A con- corréncia agressiva dos ingleses e, sobretudo, dos holandeses, colocou irremedia- velmente em causa a viabilidade deste arranjo. Para lhe fazer frente, impunha-se racionalizar e disciplinar o governo do Estado da India, tarefa a que os diversos in- teresses instalados se opuseram sempre com invencivel tenacidade. Ainda segun- do Valladares, os mesmos interesses terdo contribufdo também para impedir uma cooperacao sélida entre portugueses e castelhanos na defesa do Oriente ibérico, ameagado por um inimigo comum contra o quala utilidade de unir forcas era 6bvia (sobretudoa leste de Malaca, onde os holandeses concentraram os seus ataques ini- ciais eas pracas lusas estavam mais perto de Manila do que de Goa). Como os caste- Thanos nao estavam dispostos a ajudar a troco de nada, uma “uniao de armas” asid- tica teria —implicita, mas fatalmente — de lhes garantir um acesso mais livre as re- gides orientais que os portugueses insistiam em Ihes vedar, invocando os termos do tratado de Tordesilhas. Tal bastou para que as instituigdes e grupos de interesse com influéncia na india portuguesa bloqueassem sistematicamente as tentativas de juntar forcas lusas e castelhanas no Oriente. Assim, para Valladares foram os préprios portugueses da {india quem provocou 0 colapso do império oriental lusi- tano, ao nao quererem nem reformé-lo, nem coligar-se com os castelhanos para 0 defender. Oautor identifica trés periodos distintos na hist6ria da politica filipina para o Estado da India desde que esses territ6rios comegaram a ser atacados por holande- ses e ingleses. No primeiro, que se estende até cerca de 1620, a reacgao aos ataques foi convencional: no essencial, Madrid limitou-se a enviar auxflio militar ao Orien- te lusitano na forma de varias mal-sucedidas armadas. No comeso da década de 1620, porém, dois acontecimentos abriram caminho a algumas veleidades refor- mistas. Um deles foi a perda de Ormuz as mos de uma alianga anglo-persa em 1622. Segundo Valladares, a queda desta praca teria constitufdo um forte abalo psi- colégico para os portugueses, fortalecendo a causa de quem vinha alertando paraa necessidade de reformar o Estado da india, Por outro lado, em 1621 subiu ao trono Filipe IV de Espanha, III de Portugal, o que acarretou a ascensdo na corte de uma CASTILLA Y PORTUGAL EN ASIA (1580-1680) 167 corrente politica agressivamente reformista. Esta tendéncia iria culminar em pou- co tempo na promoco do célebre ministro Olivares a posicéo de homem forte do novo regime. Assim, no ambiente politico renovado de Madrid, o estimulo da per- da traumdtica de Ormuz teria incitado finalmente a Coroa a tentar algo para travar 0 declinio da india portuguesa. Reformar o Estado da india implicava reduzir a sua tradicional autonomia, bem como os privilégios das elites portuguesas locais que a mesma autonomia ajudava a perpetuar, Isto nao era tarefa facil. S6 em 1628 Olivares ousou avancar com uma refor- ma substancial, criando uma companhia de comércio moldada nas companhias con- géneres holandesa e inglesa com o fim de revitalizar o empobrecido comércio da Car- reira da india. O autor atribui também importancia a nomeacio, em 1629, do conde de Linhares para vice-tei, pois o seu governo de seis anos ter-se-ia caracterizado quase até ao fim por um vigor e um rigor disciplinadores pouco comuns, Nenhuma das duas medidas acabou por surtir, contudo, os efeitos desejados. A companhia, encerrada em 1633, nao teve éxito algum, em parte devido a frieza com que foi recebida pelos portu- gueses da india (das camaras do Estado da india, por exemplo, s6 Chaul contribuiu para o capital da empresa, quando se havia previsto que todas o fizessem). Quanto a Linhares, quando assinou, no fim da sua governacdo, uma trégua com os ingleses no Oriente, parece ter claudicado frente Aqueles que comegara por combater, Valladares defende que, ao fazer-se a paz com os ingleses, se voltou a ceder diante dos grupos de pressdo dominantes na {ndia portuguesa. Imposta por Goa a metrépole, a trégua nao teria passado de mais uma maneira de inviabilizar a sempre adiada “uniao de armas” entre portugueses e castelhanos na Asia, pela qual Olivares vinha lutando hé muito. Ao invés de se recorrer & ajuda dos vizinhos ibéricos para combater os inimigos, opta- va-se antes por fazer a paz.com parte destes, tornando menos premente a uniao eas in- tromissdes castelhanas que ela implicava. Com a trégua luso-inglesa, completou-se, na opiniao do autor, a derrota da politica “unionista” e reformista de Olivares e encerrou-se o segundo perfodo da hist6ria da politica filipina para o Estado da fndia. O terceiro e ultimo momento dessa hist6ria comegou em 1635, e estende-se até 1640, caracterizando-se por uma atitude essencialmente passiva, que buscou apenas travar o declinio na medida do possivel. Aos Filipes seguiu-se a Restauracao, e para Valladares é importante de- monstrar a continuidade entre as politicas para a {ndia portuguesa duas dinastias. Em relacéo A manutengdo das hostilidades com os holandeses na Asia, Lisboa, como Madrid antes dela, tentou reformar o Estado da India, ciente de que sé assim poderia defendé-lo com alguma eficdcia. As “forcas vivas” do dito Estado, porém, resistiram a mudanga com a mesma inultrapass4vel obstinacdo com que haviam ja resistido aos intentos reformistas de Olivares. Em 1653, a deposicaoa gue procede- ram de um vice-rei inconvenientemente “centralizador”, o conde de Obidos, pro- vou bema sua determinagao. Com este tipo de atitude, conseguiram garantir com facilidade a continuagio dos sucessos holandeses, que chegaram ao cume com a expulsao definitiva dos portugueses de Ceilao em 1658 e a conquista de todas as suas pragas no Malabar, jé na década de 1660. De acordo com 0 autor, a continuacdo da tensao entre o Estado da India ea metropole depois da Restauragao prova como as fricgées de Goa com Madrid antes 168 ‘André Murteira de 1640 foram tudo menos uma demonstragao de patriotismo por parte dos portu- gueses da india. Do quese tratavaera, sim, do conflito entre um poder central desejo- so de aumentar a sua autoridade e uma periferia sem vontade nenhuma deo satisfa- zer. Que a motivacao patriética era irrelevante para 0 caso, mostra-o a manutengao do conflito depois de o poder central passar de Madrid para Lisboa. Valladares argu- menta também que o desmantelamento final do Estado da india as maos dos holan- deses s6 tera sido considerado verdadeiramente desastroso pela Coroa. Para muitos dos seus stibditos no Oriente, pelo contrario, deverd ter constituido, até, uma liberta- a0. Reduzido a insignificancia, o império oriental portugués deixava em definitivo de ser uma preocupacao para a metrépole. Esta, assim, abdicava finalmente de se imiscuir na vida das suas possesses asidticas, cumprindo dessa maneira aquilo que elas, no fundo, sempre haviam desejado: ser deixadas em paz. Com cento e dezasseis paginas de texto, 0 livro de Valladares nao 6, natural- mente, exaustivo. Um tema tao vasto e ambicioso pediria um estudo de maior féle- g0,mas os méritos deste sao j4 dignos de louvor, apesar de ndoaspirar claramentea ser mais que um ensaio escrito por alguém que nao 6, como ele préprio admite, um especialista em matérias orientais. Comecemos, porém, pelos problemas. £ sabido que, na historia da expansao, é cada vez mais reconhecido e estuda- do o papel dos interesses privados na histéria do Estado da {ndia, bem como os muitos entraves que colocavam a autoridade régia. Como é facil de ver pela sintese que acabaémos de apresentar, o autor também concede uma grande importancia a este aspecto, sublinhando eloquentemente a fraqueza da Coroa perante os grupos de interesse influentes na india Portuguesa. Nao se pode, porém, dizer que a sua maneira de ver o fenémeno esteja muito em sintonia com as tendéncias mais recen- tes da historiografia da 4rea. Dando como adquirido que um poder central fraco implica um império fraco, Valladares apresenta uma visao bastante negativa dos elevados graus de autonomia predominantes no Estado da {ndia. Ora, a tendéncia, hoje, 6, precisamente, para sublinhar a vitalidade muito particular que essa carac- teristica terd conferido ao mesmo Estado, questionando as tradicionais interpreta- Ges “decadentistas” da “soltura” af prevalecente. Diga-se ainda que, na andlise de uma histéria marcada por um conflito de fundo entre poder central e periferias, por vezes o autor dé mostras de uma antipatia em relagao as periferias que—com algu- ma maldade —se poderia dizer tipicamente castelhana. fi verdade que a exaspera- Go de Madrid com Goa até parece, em certos momentos, compreensivel. Menos compreensivel é, no entanto, que atravesse os séculos e continue, tanto tempo de- pois, a viver na pena de um historiador tao dotado, maculando 0 seu trabalho com acessos de irritacao estranhos e dispensdveis. Outro aspecto importante em que Valladares parece um tanto desactualizado €no tratamento, muito sumério, do contexto asidtico, campo em que as tendéncias historiogr4ficas mais recentes recomendam, pelo contrario, o aprofundamento. O percurso de Valladares enquanto historiador da unido ibérica e da Restau- rag&o permite-lhe, logo a partida, enquadrar a histéria do Estado da india filipino nocontexto dos outros dom{nios dos Austrias, com resultados muito interessantes e elucidativos. Veja-se, a titulo de exemplo, como deixa claro que os intentos refor- mistas de Olivares para a india portuguesa na década de vinte de seiscentos formam REBELDES E INSUBMISSOS 169 parte de uma ofensiva reformadora que esse ministro, uma vez chegado ao poder, lan- ou em toda a Monarquia Hispanica. Este tipo de contextualizagao fica muitas vezes por fazer quando se escreve sobre o Estado da india no perfodo filipino. Pode dizer-se ainda que, se o autor nem sempre esté a vontade na realidade ultramarina propria- mente dita, compensa-o através de uma reconstituigo esclarecedora do modo como os problemas ultramarinos eram percebidos e tratados na metropole ibérica. Quer 0 background metropolitano do Estado da india, quer o império global que o mesmo Estado integrava, foram, durante a dominagao dos Austrias, realidades ibéricas endo exclusivamente lusitanas e, enquanto tal, bastante diferentes do que haviam sido com os Avis e voltariam a ser com os Bragancas. Trata-se de realidades que nem sempre sio bem conhecidas dos historiadores portugueses que estudam a Expansio, e este estudo pode ser um bom contributo para preencher essa lacuna. ‘Também é de enaltecer, no livro, a desmistificagao de algumas ideias feitas nacio- nalistas sobre os perfodos filipino e pés-filipino. Aqui, mais uma vez, 0 curriculo de Valladares joga a seu favor. Seguindo o exemplo do que tem sido feito na historiografia da unio ibérica e da Restauracao mais recente — entre outros, por ele préprio— nao tem problemas em relativizar radicalmente o peso politico das identidades nacionais na época. Isto permite-lhe defender ideias tdo interessantes como a de que os proble- mas dos Filipes com a India portuguesa nao se deveram em nada ao facto de eles se- rem mal queridos enquanto “espanhéis”, mas apenas as suas veleidades “centraliza- doras”, o que seria provado pelo facto de os mesmos problemas persistirem, idénticos, com os restauradores; ou a de que as motivacdes da Restauragao foram exclusivamen- te metropolitanas, como o atestaria o relativo menosprezo dos interesses do Estado da india evidenciado pelos governos que dela safram. Talvez o autor, por vezes, subesti- me demasiado o factor nacional, e o seu indisfargAvel “castelhanismo”, a que jé fize- mos mengao, obriga a tratar parte do que diz com cautela. Mas a historiografia da ex- Pans4o portuguesa foi muito marcada pelo nacionalismo, e o contacto comeste tipo de ideias — representativas de uma maneira de pensar hoje dominante na historiografia consagrada a monarquia dual — s6 pode ser salutar. Diga-se, por tiltimo, que Valladares escreve bem, o que, no panorama historio- &rAfico actual, é sempre uma virtude digna do maior louvor. Nao temos, por tudo isto, duvidas em considerar este estudo de Rafael Valladares como um contributo positivo paraa hist6ria da expansao portuguesa em geral, e do Estado da india em particular. REBELDES E INSUBMISSOS Resisténcias populares ao liberalismo (1834-1844) [Maria de Fatima S4 e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resisténcias populares ao liberalismo (1834-1844), Porto, Edigdes Afrontamento, 2002] Nuno Gongalo Monteiro Para melhor se situar este livro, é indispensdvel destacar alguns aspectos da histo- riografia contemporanea sobre o século XIX, em cuja trajectéria ele se insere. 170 ‘Nuno Gongalo Monteiro De facto, quase esquecido nos tempos do Estado Novo, 0 interesse pelo século XIX ressurgiu a partir do final dos anos 50 do século XX, em larga medida, como um tema de oposicao e, por vezes, de exilio. Esse impulso, que se prolongou até ao inicio dos anos 80, estava por isso associado a uma certa identificagao com 0 liberalismo citocentista ou, pelo menos, com alguns dos seus momentos e alguns dos seus prota- gonistas. A atengio dada ao miguelismo e As resistencias ao liberalismo (na qual se inscrevem este e outros trabalhos anteriores de Fatima $4, bem como os de outros au- tores), surgiu s6 nessa conjuntura do principio dos anos 80. Apareceu, assim, como uma chamada de atencio critica para aspectos essenciais que pareciam postos de lado ou desvalorizados pelas perspectivas historiogréficas entdo prevalecentes. Entretanto, deu-se uma imensa viragem nos objectos preferenciais da investi- aco hist6rica ena atencio do publico em geral. Apesar do muito e bom que se es- creveu sobre o perfodo (e a hist6ria politica e a cultura politica do liberalismo por- tugués conheceram um novo e relevante impulso na tiltima década) e da imensa atengao suscitada pelas rafzes do pensamento liberal europeu, a qual conduziu muitas vezes a leituras de autores fora dos seus contextos, o século XIX portugués perdeu claramente interesse do ptiblico leitor. O sucesso recente dos livros de Ma- ria Filomena Ménica e de Vasco Pulido Valente sobre personagens e ocorréncias do século XIX nao contraria o diagnéstico que antes apresentado, embora possa aju- dar a modificé-lo. Como se referiu antes, o livro de Fatima Sé, escrito nos anos oitenta e inicios de 90, faz parte, de algum modo, de outro contexto intelectual. Centrando-se sobre © perfodo imediatamente subsequente a vitéria liberal de 1834, estende-se pelos dez anos seguintes, até a conjuntura da Maria da Fonte (em 1846), ou seja, no iato temporal entre duas conjunturas de turbuléncia mais conhecidas. Procura efectuar ao longo de cerca de 600 paginas um levantamento, descrigao e caracterizacao da- quilo que denomina as resisténcias populares ao liberalismo. Oresultado é, certamente, um mundo tumultuoso e, para a maioria dos leito- res, inusitado. Ao invés dos registos e das narrativas construidas a partir do centro politico, o que emerge da sua narrativa so as convulsdes dos espacos periféricos, atravessados por uma grande diversidade de formas de conflitualidade e de ten- sdes dispares. Ficamos a conhecer, assim, sucessivamente, os motins miguelistas nas pro- vincias nos anos do imediato pés-guerra, o bando (de um salteador com conexdes politicas) do Toms Quingostas a actuar no Alto Minho, a auténtica guerra do Sul, mais conhecida pela guerrilha do Remexido (j4 estudada num estudo anterior de ‘A.C. Machadoe A.M. Cardoso, e que foi aquela que mobilizou maiores meios mili- tares para a sua repressao, designadamente, alguns milhares de soldados da tropa liberal de primeira linha), as varias guerrilhas da Beira, que respondiam em parte a actuacao dos bandos armados da vinganca liberal (de que os BrandGes sao os mais conhecidos), a relevancia da questdo religiosa eo impacto local daquilo que alguns impropriamente chamaramo “cisma da Igreja portuguesa” subsequente ao triunfo do liberalismo, a luta contra os cemitérios publicos muito antes da Maria da Fonte, os motins anti-fiscais, os motins de subsisténcias e, ainda, alguns movimentos anti-senhoriais. REBELDES E INSUBMISSOS ii No conjunto, o que emerge so imagens novas e pouco conhecidas do proces- so de implantacdo do liberalismo. De facto, a grande virtualidade e originalidade deste livro reside, como jé antes se sugeriu, no facto de nos oferecer uma con- tra-imagem do centro, uma narrativa (ou um conjunto de narrativas) dos primeiros anos do liberalismo vistos das periferias (sociais e também geograficas) e a partir do olhar dos vencidos, na qual ecoam de algum modo as inspiracées da historia vista de baixo, tal como foi teorizada hd alguns anos. Um mundo de uma inusitada violéncia, onde hé fuzilamentos e casas incendiadas, e onde se apreende a deses- truturagao das instituicées tradicionais. Ontcleo central do livro consiste, assim, na descrigao detalhada desses movi- mentos miiltiplos e diversificados (tumultos no Norte, guerrilhas no Sul e em zo- nas de montanha da Beira e do alto Minho), escassamente conectados entre si, mas que foram parte essencial da histéria portuguesa do século XIX. No entanto, se 0 conjunto reunido nos configura um esboco daquilo que escapa a ldgica politica do centro, a verdade é que a autora sugere que as mudangas no centro acabam por con- dicionar de forma decisiva a evolucao das dissengoes periféricas. O ano de 1841e 0 advento do cabralismo representam uma efectiva viragem, nao s6 pela evolucdoda . questao religiosa e pela nova capacidade de intervencao do cento, mas também porque os setembristas (ou seja, uma das correntes do liberalismo) comecam a ser capazes de absorver e enquadrar as formas de oposico a nova situacdo (passando tal processo, como se sabe, pela sua coligacaio com parte do que restava da corrente miguelista). Naturalmente, sdo miltiplas as reflexdes e até as reservas que se podem colo- car a um trabalho deste tipo. Destaque-se que as fontes utilizadas (fundamentalmente recolhidas no Arquivo Histérico Militar) permitiram, certamente, fazer um levantamento da ti- pologia e da geografia das principais ocorréncias, mas esto longe de esgotar os re- gistos possiveis para o efeito (imprensa, Ministério do Reino, etc.). Além disso, nao 86 parece dificil estabelecer uma fronteira clara entre aquilo que a autora identifica como resisténcias ao liberalismo e os conflitos no interior do campo liberal, como 0 conjunto parece ser relativamente escasso. Claramente, os registos efectuados pa- recem pouco numerosos (pouco mais de 100 motins em 10 anos) se os comparar- mos, por exemplo, com os da década anterior, com os anos vinte. Essa constatagao, de resto, permitiria 4 autora aprofundar as enormes diferengas que existiram, por exemplo, entre o miguelismo (claramente em reflux) e 0 carlismo, que conseguiu enraizar-se em certas regiées. Finalmente, o que sobressai, em larga medida, 6a cri- se da autoridade do centro politico e dos mecanismos locais de integragao social e institucional. Resultado natural daquela que foi, do meu ponto de vista, a maior ruptura politica e institucional da histéria portuguesa: 0 triunfo liberal de 1834e a legislacao que lhe esteve imediatamente associada (1832-36), a qual afectou, no s6 as institui¢des do centro, mas de forma notavel as instituicdes locais como as paré- quias e as camaras (a maioria foi suprimida nestes anos e isso também suscitou resisténcias). Entreas conclusées finais do trabalho, entretanto, ndo deixa de ser relevantea constatacao de que “comandada de cima e difundida por uma intensa propaganda 172 Manuel Baiga a partir de 1823 e/ou experimentada a quente durante a Guerra Civil, a politizagio pelo campo miguelista foi episddica e superficial, nao resistindo muito tempo & mudanga de contexto hist6rico” (p. 565), “aquilo que foi designado de “miguelis- mo popular” (...) manifestou(-se) afinal como um fenémeno pouco profundo e pouco duradouro que no resistiu a Regeneragao e quase nao ultrapassou os mea- dos do século” (p. 21). Dito isto, a obra comentada constitui um bom roteiro para uma das dimen- s6es relevantes, e frequentemente esquecidas, do processo de implantagdo do liberalismo. UNIAO SAGRADA E SIDONISMO Portugal em Guerra (1916-18) [Filipe Ribeiro de Meneses, Unifio Sagrada e Sidonismo. Portugal em Guerra (1916-18), Lisboa, Edigdes Cosmos, 333 pp., 2000] Manuel Baiéa Olivro que aqui se apresenta é uma adaptacao de uma tese de doutoramento (The failure of the Portugueses First Republic: An analysis of wartime political mobilization) apresentada no Trinity College de Dublin em 1996. AI Guerra Mundial é um acontecimento de capital importancia na histéria europeia ena histéria portuguesa. Enquanto guerra total, a Grande Guerra, j4 me- receu em Portugal estudos de histéria militar, de politica externa e estudos que re- lacionam a polftica externa com a politica interna. Filipe de Meneses pretendeu com esta investigacao preencher uma importante lacuna na historiografia portu- guesa ao estudar o conceito de “mobilizaco politica”, “partindo de uma perspecti- va comparada com outras experiéncias nacionais na Europa” (Nuno Severiano Tei- xeira, Prefécio, p. 12). Os Estados tiveram de esclarecer os cidadaos porque esta- vam em guerra e quem era 0 inimigo, ao mesmo tempo que se viram obrigados a li- mitar 0 acesso a informacio. Por outro lado, como a guerra foi prolongada tiveram de criar campanhas mais sofisticadas para manter o desejo de triunfo, usando di- versas técnicas e materiais de propaganda e envolvendo varias instituigdes da so- ciedade civil e religiosa (Introdugao, pp. 21-38). O profundo conhecimento que 0 autor demonstra sobre a politica interna dos pafses que participaram na I Guerra Mundial permite-lhe uma mais facil comparagao com o caso portugués, realcando a sua especificidade. Esta mais valia da sua tese é, certamente, fruto das inegaveis qualidades do autor e da sua inserc4o na comunidade académica internacional (ac- tualmente lecciona na National University of Ireland, Maynooth) e da orientacao que pode receber, dado que o seu orientador, John Horne, é um destacado académico europeu com trabalhos publicados sobre a politica interna durante a I Guerra Mun- dial (Cfr., John Horne (6d), State, Society, and Mobilization in Europe during the First World War, Cambridge, Cambridge University Press, 1997). Filipe Meneses demostra neste livro que “o estudo da politica interna dos UNIAO SAGRADA E SIDONISMO- 173, paises beligerantes é essencial para o entendimento da determinagao demonstrada pelas populagées civis durante a Primeira Guerra Mundial”. De facto, a mobiliza- do “permitiu aos beligerantes capturar e canalizar as energias nacionais para o cumprimento dos respectivos objectivos bélicos” (p. 21). O autor concentra-se principalmente no “estudo da campanha de mobilizacio politica dos governos da Unido Sagrada [e dos organismos que os apoiaram], explorando as justificagdes da intervengao portuguesa no conflito apresentadas perante a nacdo por esses Gover- nos, a maneira como foram tornadas ptiblicas, o debate gerado por essas justifica- Ges, e as consequéncias desse debate, incluindo esse todo no contexto de uma Eu- ropa em guerra” (p. 23). Por outro lado, procura ainda estudar a “campanha de contra mobilizacao travada por todo as os inimigos da Reptiblica — e do partido Demoeratico — de forma a melhor entender as causas do colapso da Reptblicaem Dezembro de 1917 e a natureza do regime sidonista que lhe seguiu” (p. 38). As principais fontes utilizadas nesta investigacao foram os testemunhos e as. memérias de combatentes e observadores da vida politica portuguesa, imprensa da época, e as fontes depositadas no Arquivo da Assembleia da Reptiblica, no Arquivo Histérico Militar, no Arquivo do Ministério dos Negécios Estrangeiros, no Arquivo Nacional Torre do Tombo e no Arquivo do Ministére des Affaires Etran- geres em Paris. De particular relevancia sao os documentos inéditos revelados des- te ultimo arquivo que trazem interessantes andlises sobre a sociedade portuguesa elaboradas pelos diplomatas franceses. Merecem destaque também os debates das sessdes secretas da Camara dos Deputados em Julho de 1917 que demonstram as clivagens existentes nas forcas politicas portuguesas relativamente a guerra, bem como as informacées recolhidas no Arquivo Histérico Militar eno Arquivo do Mi- nistério do Interior. No primeiro, sao de destacar alguns documentos reveladores do “estado de espirito” das forcas armadas na Flandres e no segundo tém particu- Jar importancia as informacées recolhidas pelas autoridades locais sobre as activi- dades subversivas de contra-mobilizacdo, de pilhagem e de desercao. No capitulo introdutério sao analisadas as diversas formas de mobilizagao politica utilizadas pelos Estados beligerantes como meio de preparar as popula- Ses para a Grande Guerra. Portugal entrou tardiamente na guerra, o que poderia ter representado uma oportunidade para o governo preparar melhor a campanha de mobilizacao para 0 conflito, dado o conhecimento que possufa sobre as condi- g6es nas trincheiras e sobre as campanhas de propaganda que estavam a decorrer na Europa. No entanto, Portugal entrou debilitado na contenda. Vivia uma situa- cdo interna pés-revolucionéria, fruto da instauragao de um regime republicano re- cente, com uma violéncia politica interna e uma instabilidade politica enorme que nao tinham permitido consolidar a democracia. Por outro lado, o governo portu- gués ao forcar a intervencao no conflito quebrou o jé dificil consenso politico inter- No, que veio a acentuar as profundas clivagens /fracturas existentes dentro da so- ciedade portuguesa. No primeiro capitulo Filipe de Meneses analisa as dificuldades inerentes a mobi- lizagao politica em Portugal. Estas dificuldades passavam pela lentidao do alarga- mento da cidadania em Portugal, pelas dificuldades econémicas, pelas diffceis re- lages com 0 mundo sindical, pelo atraso militar, pela impossibilidade de criar 174 ‘Manuel Baida consensos entre republicanos, pela ameaga monérquica e por tiltimo, pela posicéo dubia da nossa aliada, a Gra-Bretanha, relativamente 4 nossa intervengdo no conflito. No capitulo seguinte, finalmente em guerra, o autor examina as circunstancias “pouco mobilizadoras” que levaram Portugal para o conflito. No terceiro capitulo, a propaganda de guerra em Portugal, 1916-17, sao descritos 0s meios que 0 governo e os particulares utilizaram para promoverem a mobiliza- 40 politica em torno da participacao na Grande Guerra. Filipe Meneses concluiu que a participagdo do governo no esforco de propaganda foi insuficiente e fracas- sou, dado que a guerra na Europa nao se transformou “numa causa genuinamente nacional e popular” (p. 124). As técnicas e os materiais produzidos (essencialmente discursos e literatura) eram incompreensiveis para a maioria da populagao, nao fo- ram utilizados os meios de comunicagéo modernos, como o cinema, e nem os carta- zes foram explorados. A rede escolar foi negligenciada e nao se procurou a colabo- racdo com a Igreja. Embora, algumas organizacoes tenham tido um papel assinal4- vel, como a Cruzada das Mulheres Portuguesas, a Junta Nacional de Propaganda e aJunta Patriética do Norte, a sua ac¢ao foi limitada e muito conotadacomo Partido Democratico. Esta incapacidade do governo mobilizar e unir o pats para a intervencao na Europa levou 0 executivo da (dita) Unido Sagrada a ter de suportar sérias dificul- dades na sua politica belicista (capitulos IV a VI). A contra-mobilizagao cresceu tanto a esquerda com a direita, de sindicalistas a monarquicos passando por repu- blicanos adversdrios dos democriaticos, todos se uniram tacticamente contra a guerra e contra a Reptiblica de Afonso Costa (capitulo VI). Aincapacidade de promovera politica intervencionista deixou o governonas mos da contra-revolugao, que com o alastramento da crise econémica tinha cam- po aberto para canalizar o descontentamento das populagées contra os democriti- cos e contra a guerra na Europa. Portanto, o golpe sidonista s6 pode ser entendido “no duplo contexto da guerra e da oposicao aos democraticos, que impunha uma reformulacao completa do princfpio da legitimidade politica de forma a que esta nose fundasse na simples expresso numérica do eleitorado” (p. 220). ANova Re- publica representa a tentativa de institucionalizar um regime com caracteristicas novas relativamente a Reptblica Velha, com a introducao do corporativismo, do culto do chefe em torno de Sidénio Pais e da tentativa de formar um partido tinico (Partido Nacional Republicano) que pudesse reconciliar novamente a “famflia por- tuguesa” (capitulo VIII). No entanto, a unido que tinha levado Sidénio ao poder acabaria por se quebrar “a esquerda, com a greve geral de Novembro e A direita com a formagao das juntas militares” (p. 245). Filipe de Meneses conclui a andlise do Sidonismo argumentando que embora se possa inserir no contexto da crise do liberalismo faz mais sentido compara-lo com 0 “28 de Maio” ecoma Ditadura Sala- zarista do que com os regimes de Primo de Rivera e Mussolini. Oautor termina a sua obra analisando o grau de mobilizagao e coesao do Cor- po Expediciondrio Portugués em Franca e conclui que esta, aquando da batalha de La Lys, ja “tinha desaparecido ha muito tempo, se é que alguma vez tivesse existido” (p. 268). UNIAOSAGRADA ESIDONISMO 175 Este tiltimo pequeno capitulo deixou-nos ansiosos por um retorno a historia militar. De facto, depois do aparecimento de novos estudos sobre a politica externa ea politica interna durante a Grande Guerra, falta regressar novamente ao campo de batalha publicando uma histéria militar sobre a participacdo de Portugal na I Guerra Mundial. Nao sé abareando os temas da hist6ria militar cléssica mas os te- mas da nova hist6ria militar, como a psicologia do combatente, a violéncia e a dor na Guerra. Uma das ligdes essenciais que este livro nos traz ao analisar a participaco portuguesa na I Guerra Mundial é realcar o facto de num conflito prolongando para além de uma estrutura militar e econémica consistente é necessdrio um forte sentimento de identificagao da populacao com o Estado para garantir um esforco militar duradouro, eficiente e fiel. Nos paises onde esse sentimento existia, casos da Gra-Bretanha e Franca, e em parte na Alemanha, os cidadaos aceitaram com abne- gacao 0 sacrificio que a guerra Ihes impunha. Nos paises onde esse sentimento nao existia (Austria-Hungria, Russia, Itélia e Portugal) os governos que forcaram a in- tervengao na guerra encontraram forte resisténcia por parte da sociedade que nao se identificava com aquela guerra e com aquele Estado. Por outro lado, os paises (Gra-Bretanha e Franca) que souberam utilizar meios de mobilizacéo modernos para a guerra sem recorrer sistematicamente a métodos coercivos (Austria-Hun- gria, Rtissia e Alemanha) tiveram também maiores éxitos. Olivro de Filipe de Meneses parece transparecer um balango negativo sobre a participagao portuguesa no primeiro conflito mundial. De facto, o principal objec- tivo de politica interna que presidiu a participagao de Portugal na I Guerra Mun- dial falhou: nao foi possivel transformar os cidadaos nacionais em republicanos leais e convictos através da manipulacao dos sentimentos patridticos devido aos problemas internos do préprio regime republicano e a acgao da contra-mobiliza- Go. Jé 0s objectivos externos, embora nao fossem suficientemente alcancados, fo- ram parcialmente atingidos, permitindo uma maior afirmagao internacional da jo- vem Republica, o que entusiasma hoje alguns historiadores ao ponto de afirmarem que “o empenhamento militar de cerca de cinquenta e cinco mil homens nos cam- pos da Flandres, entre Janeiro de 1917 e Novembro de 1918, valeu a pena” (Manuel Alves da Fraga, O Fim da ambiguidade. A estratégia Nacional Portuguesa de 1914-1916, Lisboa, Universitaria Editora, 2001). Doravante este livro ir tornar-se uma referéncia incontorn4vel na historio- grafia sobre a participagao de Portugal na I Guerra Mundial e sobre a hist6ria poli- tica da I Reptiblica devido a s6lida base documental (parcialmente inédita), a meto- dologia que utilizou e aos principios tedricos inovadores articulados em torno do conceito de mobilizagao politica numa perspectiva comparada. O autor talvez pu- desse ter explorado um pouco melhor a escassa bibliografia portuguesa disponi- vel, utilizando por exemplo, alguns trabalhos de Vasco Pulido Valente e Manuel Villaverde Cabral na sua tese. 176 Fernando Martins SALAZAR-KENNEDY A Crise de uma Alianga [Luis Nuno Rodrigues, Salazar-Kennedy: A Crise de Uma Alianga, . e., s. 1, Editorial Noticias, 2002, 343 pp., Fontes & Bibliografia, indice Onoméstico] Fernando Martins Henrique Galvao, que nos tempos 4ureos do salazarismo tinha pendurado numa parede do escritério de sua casa um par de grandes retratos de Adolfo Hitler e Beni- to Mussolini, consumou, em Fevereiro de 1961, aquela que foi uma das mais estra- nhas, pouco conhecida nos seus meandros e, como agora se diz, mais mediaticas e recordadas iniciativas da oposicao na luta contra o regime chefiado por Oliveira Salazar. O assalto ao paquete Santa Maria — é disso que se trata —,na sequéncia do qual acabou assassinado um dos seus tripulantes, e cujo efeito mais evidente no do- minio interno foi ter contribufdo para reforcar as posiges do regime aos olhos da opiniao publica, teve ainda o condao de antecipadamente mostrar como, no plano externo, o salazarismo se iria defrontar com novas e singulares dificuldades. Embora nas vésperas do acontecimento nada fosse inevitavel, ou até previstvel, verdade foi que 0 caso do Santa Maria tomou enormes proporgdes na histéria da oposigao ao salazarismo, e do proprio Estado Novo, fundamentalmente por duas razées, Por um lado, porque denunciou pela primeira vez, e mais cedo do que até os melhor informados poderiam conjecturar — tanto em Lisboa como em Was- hington—, a forma hostil como a neéfita Administragao Kennedy iria passar a pa- utar as suas relagdes com o Governo de Lisboa. Em segundo lugar, porque o in- cidente do Santa Maria, além de ter permanecido indelevelmente ligado aos feitos heréicos da historia da oposicdo, ficou intima e directamente associado ao infcio da guerra colonial. Este facto é tanto mais curioso e irénico, além de nunca ter sido mi- nimamente explicado, por se saber que Henrique Galvao foi ao longo de toda a sua vida politica, mesmo na oposicao, um firme defensor da cardcter perene e indiscu- tivel do império portugués.! De qualquer modo, e independentemente da leitura que possa ser feita de uma qualquer relaco, real ou virtual, entre o assalto ao Santa Maria e 0 inicio dos ataques terroristas em Angola, revelar-se-ia emblemética a forma comoa Adminis- tragao norte-americana (nao) tratou o duplo pedido feito pelo Governo portugués de auxilio militar e juridico-politico. A auséncia de uma condenag&o sem ambigui- dades do acto tornou-se, além de uma espécie de prélogo as sérias disputas que tendo a questo colonial portuguesa como ponto de partida, atormentariam as re- lagGes luso-americanas entre, pelo menos, 1961 e 1963, num testemunho da evidén- cia, confirmada nao muito mais tarde, de que em Washington se conspirava ampla- mente, com oposicionistas ao regime e dirigentes de forcas nacionalistas, com 0 objectivo de alcangar uma solucdo politica que amputasse os territérios ultramari- nos portugueses da metrépole, fosse através do derrube do governo e do regime salazarista e/ou da pura e simples expulsao dos portugueses dos seus territ6rios ultramarinos pelo recurso a iniciativa militar. A sucessao de acontecimentos que foram tendo lugar em Portugal, no ‘SALAZAR-KENNEDY 7 “metropolitano” eno “ultramarino”, sobretudo ao longo de 1961, ea forma vo- luntariosa como a administragaéo Kennedy nelas decidiu intervir, mesmo quando isso sucedeu por omissao, tem sido alvo de varios trabalhos historio- grAficos publicados tanto em Portugal como nos EUA.? Foram ainda dados a estampa sobre este perfodo e esta tematica, diversos textos de natureza memo- rialista, como varios outros que oscilam entre o testemunhal e o historiogréfi- co. Como se deve calcular, e sobretudo no caso do género memorialista, muita coisa permanece inédita, da mesma forma que é possfvel que em papéis pes- soais dispersos e ainda desconhecidos se possa vir a encontrar informacao que contribua nao apenas para melhorar o conhecimento deste perfodo conturba- do das relagdes luso-americanas, por um lado, e da vida politica interna portu- guesa, por outro, mas inclusivamente possibilitar todo um novo entendimen- to deste perfodo de charneira da histéria portuguesa e das referidas relagdes bilaterais. Em termos gerais, e sobretudo naquilo que A produgio portuguesa diz respei- to, a leitura que permanece destes acontecimentos tem contribuido para a afirma- 40 e perpetuacdo de dois mitos. Uma leitura, com origem nas varias correntes de oposigao politica e ideolégica ao salazarismo, pretende que o advento da adminis- tragao Kennedy, o infcio das iniciativas militares da UPA em Angola, por tiltimo,a invasao do Estado portugués da India por tropas da Unido Indiana, a que se junta- riam os apertos sentidos pela diplomacia portuguesa na ONU e na OTAN, senten- ciavam 0 isolamento externo do regime que se perpetuaria e agravaria até ao golpe de 25 de Abril de 1974. A outraleitura, portadora do seu proprio cunho mitolégico, com origem em varios sectores, que n4o em todos, internos ao salazarismo, nao ne- gava este real ou suposto isolamento internacional. Simplesmente, dele retirava outras conclusées. O isolamento internacional quase absoluto — embora nunca se negasse que por essa Europa, aquie ali, houve sempre quem desse uma mo tanto do ponto de vista politico como militar —,e em especial a oposigao sistematica dos norte-americanos as posicGes e interesses portugueses, demonstravam nao apenas acapacidade mobilizadora do regime, o apoio de que gozava internamente — ape- sar das acusagées em contrério provenientes de varios quadrantes — mas sobretu- do, além da bondade de uma estratégia politica adoptada na defesa dos vitais inte- resses do Pais, o génio de estadista tanto do homem que a concebera e conduzia (Oliveira Salazar), como daqueles que com ele colaboravam, fosse no dominio mili- tar mas, sobretudo, no politico-diplomatico.* Salazar-Kennedy: A Crise de Uma Alianga, tem entre muitas outras virtudes, a capacidade de desfazer com eficdcia a evidente fragilidade dessas duas grandes li- nhas de interpretag&o daquela que seria posicao de Portugal na comunidade inter- nacional a partir do infcio do terrivel ano de 1961, e f4-lo analisando, com recursoa documentagao até hoje pouco ou nada utilizada, a evolucdo das relacées bilaterais entre os EUA e Portugal, sobretudo do ponto de vista norte-americano. Esta pers- pectiva é particularmente interessante, uma vez que lhe atribui o seu peso efectivo. Isto porque se tende a ignorar uma realidade crua e simples: para 0s EUA todo 0 combate travado com o Governo portugués, tendo os Acores e os problemas africa- nos como pano de fundo, possufa uma expresso minima, sobretudo quando 178 Fernando Martins comparado com o seu significado avaliado a luz da perspectiva portuguesa. Suce- de que entre 1961 e 1963, o presidente Kennedy além de pretender querer ver resol- vido o incémodo suscitado pela presenga colonial portuguesa em Africa e no sub- continente indiano, preocupou-se sobretudo, é sempre bom recordé-lo, com os efeitos do desembarque fracassado na Bafa dos Porcos, com o bloqueio a Cubae a crise dos misseis, com o crescente envolvimento politico-militar do seu Pais no Vi- etname, com as graves complicagées decorrentes da construgdo do Muro de Berlim, com as relag6es com a Unido Sovittica, etc., etc. Olivro de Luis Nuno Rodrigues tem, portanto, o mérito de demostrar que as. teses do isolamento internacional de Portugal so uma faldcia e que o “orgulhosa- mente sés” utilizado indiscriminadamente a esquerda e a direita, sem critério, diz-nos normalmente mais sobre quem o utiliza do que sobre as dificuldades efec- tivas com que o Pais se defrontava no plano externo, além de que dé a Portugal tao somente o pequeno papel que lhe coube no plano geral da politica externa nor- te-americana, Para isso, e muito mais, o autor estruturou o livro em cinco partes, sendo que as trés do meio retinem o grosso dos factos e da argumentagao, com ex- cepsao, claro, dos sempre incontornaveis capitulos de introdugao e conclusio. Os acontecimentos e os capitulos que limitam a jusante e a montante estes trés capitu- los centrais, s4o, em primeiro lugar, a famosa “operacio Dulcineia” que se materia- lizou no jé citado assalto e desvio do paquete Santa Maria e, depois, a missao prota- gonizada pelo subsecretdrio de Estado norte-americano, George Ball, a Lisboa, para, junto do Governo portugués, tentar encontrar uma solucdo negociada da questo colonial portuguesa, procurando garantir uma melhoria substancial das relac6es entre os governos dos dois paises, tantono dominio bilateral, como no am- bito mais alargado da OTAN. Esta iniciativa do lado norte-americano, convém re- cordé-lo, foi interrompido pelo assassinato de John Kennedy em Dallas, o que fez com que fic4ssemos para sempre privados do verdadeiro alcance daquelas que se- riam nao as suas eventuais intengdes de mudanga de rumo naguilo que respeitava a avaliagao da continuacdo de uma presenca portuguesa em Africa a troco de um cada vez maior esforco (nao apenas) militar mas, sobretudo, do seu significado. Ahistéria contada em Salazar-Kennedy: a crise de uma alianga, comeca com uma Administragao norte-americana agindo de forma muito voluntariosa naquilo que respeitava ao modo como considerava dever ser tratado e rapidamente resolvido o incémodo politico-ideolégico e moral provocado pela vontade manifestada pelo Governo portugués de continuar a exercer a sua soberania na totalidade dos seus territérios coloniais. Nesta primeira fase, que se prolonga por todo o ano de 1961, mas que comeca a esmorecer no ano subsequente como consequéncia dos fracassos que amealhou, é patente o predominio que os “africanistas” tinham conquistado na definigao da politica norte-americana para com Portugal, o que significava duas coisas: que essa politica era pensada e executada tendo em conta tanto as coordena- das ideol6gicas que historicamente ao longo do século XX marcaram a vida politica norte-americana, regidas sobretudo pelos valores éticos que se considerava terem sido determinantes na formagao e afirmagao politica da nagdo americana e, depois, na formata¢ao da sua politica externa em momentos particularmente importantes da vigéncia das administragdes de W. Wilson e F. D. Roosevelt. Por outro lado, SALAZAR-KENNEDY 179 tinham um forte cunho liberal — no sentido norte-americano do conceito — uma vez que apoiavam sem hesitagdes, em matéria de politica externa, aqueles protago- nistas que na sua Optica se apresentavam do lado certo da hist6ria, que podiam ser considerados progressistas, ou que tendo estado do lado errado da hist6ria no pas- sado, como era caso de todos os povos oprimidos, colonizados, mereciam ser am- plamente apoiados de forma a poderem conquistar o seu lugar ao sol. Frente a fren- te com um Pais pequeno e, sob todos os pontos de vista, atrasado, como era Portu- gal, estes mentores da politica norte-americana nao tinham quaisquer diividas de que uma vez utilizados todos os argumentos, as suas intengdes, que eram as da Hist6ria eas dos EUA, acabariam por impor-se. Alids, tudo nao passaria de uma re- peticao da hist6ria. Tal como sucedera no passado, quando outras poténcias colo- niais europeias aliadas acabaram vergadas pela press4o norte-americana, ao mes- mo tempo em que decorriam confrontos politico-militares sérios com forgas nacio- nalistas nos seus territ6rios coloniais, também Portugal, fruto da pressao exercida, acabaria por regressar as suas fronteiras europeias, dando os EUA um contributo decisivo a todo um processo que lhes era moral e historicamente imposto, enquan- to que os povos antes sob o dominio colonial luso iniciariam um processo de desen- volvimento nos mais variados nfveis rumo ao progresso. Porém, em funcdo daqueles que eram os problemas sérios e reais com que a Administragao Kennedy se confrontava 4 medida que o tempo ia passando, tor- nou-se evidente o irrealismo, ou pelo menos 0 optimismo excessivo, existente por tras da abordagem da questo colonial portuguesa tal como os bem intencionados africanistas do Departamento de Estado tinham proposto e iam vendo ser aplica- da. Mais do que estabelecer e fazer cumprir os des{gnios da Histéria tal e qual se apresentava num programa, a Administracao Kennedy e, em particular, os depar- tamentos de Estado e de Defesa viam-se confrontados diariamente, e tinham que resolver, problemas muito concretos, encontrando soluces que deviam ser bem ponderadas em fungi da realidade e nao da ideologia. Por isso, e sobretudo a par- tir de meados de 1962, as relacées bilaterais entre Portugal e os EUA passarama es- tar dependentes nao apenas da bondade teérica da causa ou da luta anticolonialis- ta, mas sim da consisténcia politico-militar da OTAN, da importancia da geoestra- tégica da presenca militar norte-americana nos Acores e da necessidade absoluta, sendo de negociar um novo acordo, pelo menos de garantir a utilizagao ad-hoc das instalagdes militares existentes naquele arquipélago. Finalmente, e porque esta foi uma das caracteristicas essenciais da politica norte-americana para com as poténcias coloniais europeias pelo menos desde que teve inicio a Segunda Guerra Mundial, vale a pena sublinhar o que se aflorou ante- riormente. Nao foi apenas para com Portugal, e como ter pretendido Oliveira Sa- lazar j4 durante a vigéncia da Administracao Kennedy, que se desenvolveu uma politica no minimo contraditéria e “manifestamente impossivel” em que os EUA seriam “um aliado de Portugal na Europa e um inimigo em Africa’”,? numa mani- festagdo de incongruéncia politica porque pouco clara quanto a viabilidade de cumprimento dos seus objectivos e ainda claramente penalizadora dos interesses dos seus aliados. Os exemplos de que o tratamento do caso portugués no foi ex- cepcional so tantos que se torna dificil avancar sequer com um primeiro e mais 180 Fernando Martins ficativo. No entanto, sublinhe-se que a Administracdo do Presidente Roose- velt, se ndo regateou esforgos no apoio aos britanicos na sua luta contra alemaes e japoneses, se nao hesitava quanto a bondade e a necessidade de preparar e consu- mar a libertacdo de paises como a Bélgica, a Holanda ou a Franca, produziu doutri- nae apoiou sempre, enquanto decorria a Segunda Guerra Mundial, solugdes polfti- cas pe punham em causa a continuacao da presenga colonial europeia em Africae na Asia. Mais tarde, em 1956, quando do célebre incidente do Suez, a Administra- ¢4o Eisenhower nao hesitou em condenar a iniciativa militar conjuntamente execu- tada por britanicos, franceses e israelitas, impondo o regresso ao statu quoante, con- frontando os interesses extra europeus de franceses e britanicos. J4 antes, alias, a Administragao Truman obrigara a Holanda a escolher entre a continuagao da sua presenga colonial na Indonésia e a ajuda Marshall, da mesma forma que tanto FDR, como mais tarde Eisenhower, nunca apoiaram as intengdes da Franca em permane- cer como poténcia colonial na Indochina. Aconstatagao desta contradi¢ao, real ou virtual, no relacionamento dos EUA com os seus aliados europeus na qualidade de poténcias coloniais em apuros, é im- portante porque sublinha o carécter relativo tanto da ofensiva politico-diplomatica da Administragao Kennedy contra 0 colonialismo portugués — independente- mente da sua especificidade —, como alarga o leque das interpretagdes que podem ser feitas sobre seu impacte na politica em Portugal. Assim sendo, é Ifcito que se diga que o anticolonialismo norte-americano presente no seu relacionamento com Portugal, nomeadamente nos trés primeiros anos da década de 1960, pouco tem de original, no sentido em que jé outras administracdes norte-americanas o haviam praticado com outros aliados europeus, da mesma forma que nada tinhaa ver com anatureza pol{tico-ideolégica do salazarismo. Como é ébvio, os norte-americanos gostariam que em Portugal passasse a vigorar um regime democrdtico-parlamen- tar. Simplesmente, o combate que se travou no inicio da década de 1960 entre os dois pafses no dominio politico-diplomatico, nada tinha que ver com a luta que si- multaneamente as oposigées ao salazarismo travavam, nem com qualquer conspi- racao particularmente dirigida a Portugal, ao Governo ou ao regime, como que procurando pér fim a um sistema politico de caracteristicas excepcionais, 0 inico capaz de garantir a sobrevivéncia de Portugal como Nagaoe Estado independentes em toda a sua especificidade étnica e geografica. Notas 1 “Simultaneamente, convidado como peticionério contra a politica portuguesa, Henrique Galvao comparece perante a Quarta Comissao, e é interrogado pelos delegados afro-asisticos; no seu depoimento, Galvao trata os africanos de irresponsdveis formigas que nao representavam ninguém e declara que o conceito de independéncia, como imposto pela ONU, nao se aplica a Angola e a Mogambique; € 0s representantes africanos, que esperavam de Galvao um libelo veemente a SALAZAR-KENNEDY 181 brandir contra Lisboa, sentem-se frustrados e votam que seja eliminado da acta 0 seu depoimento.” Franco Nogueira, Salazar. V. A Resisténcia (1958-1964), s.e., s.L, Liv. Civilizacao Ed., s.d., pp. 543-544. Richard D. Mahoney, JFK Ordeal in Africa, s.e., Nova lorque - Oxford, Oxford University Press, 1983 e José Freire Antunes, Os americanos e Portugal. 1961. Kennedy e Salazar. O leto e a raposa, s.e., s.1., Difusio Cultural, s.d. Valha a verdade que no essencial este pouco acrescenta de original ao livro de Mahoney. Na mesma linha, Valentim Alexandre, “O Império Colonial no Século XX” in Velho Brasil Novas Africas: Portugal e o Império (1808-1975), s.e., s.1., Ed. Afrontamento, 2000, pp. 196-197. “As mudangas ensaiadas na organizacao politica e administrativa e na legislagao laboral das colénias com que, a partir de 1961, se tentara dar alguma satisfagao as criticas internacionais, ou mesmo a ampla abertura dos mercados coloniais a0 investimento estrangeiro, com que se procurava associar & politica colonial portuguesa os patses de origem do investimento, em nada tinham contribuido para por fim a guerra ou a soliddo internacional do governo salazarista.” Fernando Rosas (coord.), “O Estado Novo (1926-1974)", Histéria de Portugal, vol. VII, dir. José Mattoso, 1° ed., s.,, Circulo de Leitores, p. 541 (itélico nosso). “Portugal, por efeitos da sua politica colonial, estava agora, e no plano internacional, praticamente abandonado.” César Oliveira, “Oliveira Salazar e a Politica Externa Portuguesa: 1932/1968”, in Fernando Rosas e J. M. Brandao de Brito (coord.), Salazar eo Salazarismo, 1" ed., Lisboa, Publ. D. Quixote, 1989, p. 97 (itélico nosso). Oexemplo paradigmitico desta linha interpretativa é grande parte da obra do embaixador Franco Nogueira cujo infcio de publicacdo é ainda anterior a 1974. Todo 0 seu labor comegou em As crises e os homens, s.e., Lisboa, Atica, 1971. Prosseguiu noutros importantes trabalhos de publicago de documentacio oficial relatando o contetido de importantes iniciativas diplomaticas como Didlogos Interditos, Parte Primeira (1961-1962-1963) e Didlogos Interditos. Parte Segunda (1964-1965-1966-1967-1968-1969), s.e., Braga-Lisboa, Ed. Intervengao, 1979; na publicago do seu Diério, Um Politico Confessa-se (Didrio: 1960-1968), 3.* ed., Barcelos, Livraria Civilizacao Ed., 1986); naquele que é uma espécie de testamento politico - Jufzo Final, s.e., Porto, Livraria Civilizagéo Ed., 1992 - e, sobretudo, porque tiveram maior impacte junto do grande publico, nos dois tiltimos da biografia de Oliveira Salazar (Salazar. V. Resisténcia (1958-1964), se, s.1, Livraria Civilizagao Ed., s.d. e Salazar. VI. O Liltimo Combate (1964-1970), s.e., s.1., Livraria Civilizagao Ed., s.d.J. Lufs Nuno Rodrigues, Salazar-Kennedy: A Crise de Uma Alianga, s.e., sl, Editorial Noticias, 2002, p. 83.

Você também pode gostar