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Michacl Taussig XAMANISMO, COLONIALISMO EO HOMEM SELVAGEM Um estudo sobre 0 terror e a cura PAZ E TERRA Cultura do terror, espaco da morte O Relatério do Putumayo, feito por Roger Casement, ea explicacao da tortura A maior parte de nés conhece e teme a tortura ¢ a cultura do terror unica- mente através das palavras dos outros. Por isso preocupo-me com a mediagao do terror através da narrativa e com o problema de escrever eficazmente contra o terror. Jacobo Timerman encerra seu ultimo livro, Prisoner without a name, cell without a number (Prisioneiro sem nome, cela sem mimero], com o registro do olhar de esperanga no espago da motte. ‘Algum de vocés ja viu os olhos de outra pessoa, no chiio de uma cela, que sabe que esté para morrer, embora ninguém the tenha dito nada? Sabe que esté para morrer, mas agarra-se a seu desejo bioldgico de viver como uma nica esperanca, jd que ninguém lhe disse que sera executado. Muitos desses olhares estio gravados em mim... Esses othares, que encontrei nas prisdes clandestinas da Argentina, ¢ que retive um por um, foram o ponto culminante, o momento mais puro de minha trag Hoje eles estéo aqui, comigo. E embora eu pudesse querer agit assim, nio teria como e nao saberia compartilha-los com vocés.' A inefabilidade € 0 trago mais marcante deste espago da morte. Ao nao saber como compartilhar aqueles olhares que o atravessam, Timerman cria por um instante a ilusdo de que nés, que o seguimos, podemos ser atravessados pelo vazio da esperanga que torna esse espago real. E como esses olhares devem ter atravessado a escuridao da aproximagao da morte! Como devem ter iluminado seu vazio! O fardo de Timerman era duplo. Nao se tratava apenas de uma vitima: era vitima daquilo que ele mesmo havia prescrito — a ditadura militar como solugao para a desordem que afligia a nagao. Qual foi o resultado? Uma sociedade envolvida em uma ordem tio orde- nada que seu caos foi muito mais intenso do que qualquer coisa que 0 precedeu 25 dos vivo, onde a incerteza certa da ore ra do: do poder, 0 poder enfurccigg jtrariedade la arbitraricdace naan : 1c existe no TEVeTSO da ordem ¢ sem a tel _= um espago da morte MA alimentou @ grande rae cele grande ¢ fervilhante lamagal f il a ia existit. qual a ordem no poderia e%! je] Dorfman, eX! 19 campo chileno uma velha historia sobre Segundo Ariel Dorfman, do uma crianga € raptada pelas ee A fim de qucbray a ce quando ul Joram seus OSSOS € costuram as partes do gg vontade da ctianga, as Bruxas qUerRIT Tis, de tal modo que a ctianga te, de maneira anormal. A cabega € Vira: es ae dcce es crstames mn de andar a ré, As orelhas, os olhos ¢ & a junta militar sob Pinochet fez ay nome de Imbunche, ¢ Dorfman sente qui ‘¢ para transformar cada chileno : ma a fazer tudo 0 que esti em seu poder P oo i i Imbunche, ees on a ele insiste que, ainda que a Se oa verdade nig tenham sido quebrados ou suas ‘bocas costuradas, os chilenos sio “de cetto Modo semethantes a Imbunches, Esto isolados um do outro, seus meios de comunicagig foram suprimidos, suas conexdes cortadas, seus sentidos (Gloqucadion pelo: medo”, © controle imposto pela ditadura, assinala, “nao somente é arbitritio como tende, de vez em quando, a ser absurdo”. Um diciondrio destinado as eriangas foj retirado das prateleiras das bancas de jornais porque os censores nao concorda- vam com a definigo que era dada da palavra “soldado”. O mundo oficial se em- penha em criar uma realidade mégica. Quando $ mil moradores de cortigos foram recolhidos ¢ encerrados em um estddio, um oficial de alta patente negou que isso jamais houvesse ocormido. “Que estadio? Que moradores de cortigos?” O que corre perigo, conclui Dorfman, é a existéncia dos alicerces morais da sociedade. Ele conheceu muitas pessoas, que, como 0 Imbunche, perambulavam por ai, completamente fragmentadas.” O espago da morte é importante na criagao do significado e da consciéncia, sobretudo em sociedades onde a tortura é endémica e onde a cultura do tertor floresce. Podemos pensar no espago da morte como uma soleira que permite a iluminacdo, bem como a extingao, De vez em quando uma pessoa a ultrapassa ¢ volta até nds para dar seu depoimento, conforme fez Timerman, que se tomou ae pe ae al plete apoiava e entio criticou através de instituido pelos drbitros do cae _ pean siuininiiaialiae? ae celas onde torturador e torturado se a rao Valee di ae cued is im. E, ao voltar de 14, escreveu: “Nos, vitimas e vitimizadores, somos parte da mesma humanidade, colegas no meso empenho em provar a existéncia de ideologi i : noe 16 6 las, sentim rel gides, obsessdes. E 0 resto da humani H nentos, feitos herdicos, engajada?” idade, a grande maioria, no que esti ¢l® iste ni © que aconte es indios ¢ africanos se tornaram obedientes a tazio de um pequeno numero de eristos brancos. Quaisquer que sejam as conclusdes a que cheguemos sobre como essa hegemonia foi tao rapidamente efetuada, seria insensatez de nossa parte fazer vista grossa ao papel do terror, Com isto quero dizer que devemos pensar-através-do-terror, © que, além de ser um estado fisioldgico, é também um estado social, cujos tragos especiais permitem que ele sirva como o mediador par excellence da hegemonia colonial: ©.espago da morte onde 0 indio, o africano eo 6ranco deram @ luz um Novo Mundo, = ~~ A grande ceifadora acaso obteve uma colheita maior do que aquela provocada pela conquista espanhola do Novo Mundo? E 9 que dizer do niimero absurdo de eseravos afticanos mortos nos navios negreiros e nos engenhos e fazendas? Esse espago da motte possui uma cultura Jonga e rica. B onde a imaginagaio social povoou suas imagens do mal € do além: na tradicdo ocidental, Homero, Virgilio, a Biblia, Dante, Hieronymus Bosch, a Inquisigao, Rimbaud, 0 coragio das trevas de Conrad; na tradigao do Notoeste amaz6nico, zonas de visées, co- municagao entre seres terrestres e sobrenaturais, putrefagao, morte, renascimento e génesis, talvez nos rios e terra do leite Mmatero, eternamente imersos na sutil luz verde das folhas de coca.* Com a conquista e a colonizagao européia, esses espagos da morte se misturam em um; fundo comum de significantes ess is, ligando a cultura transformadora do conquistador & do conquistado, No entanto, os significantes estao estrategicamente deslocados em telagao aquilo que eles signi- ficam. “Se a confusao é 0 sinal dos tempos”, escreveu Artaud, “vejo na raiz desta confusao uma ruptura entre coisas e mundos, entre coisas ¢ as idéias e signos que constituem sua representagio”. Ble imagina se essa cisio é a responsdvel pela vinganga das coisas; “a poesia, que ja nao se situa mais dentro de nés e que no conseguimos mais encontrar nas coisas, surge subitamente em seu lado ertado”.> Marx assinalou o mesmo desarranjo e um novo arranjo entre nds € as coisas no fetichismo das mercadorias, no qual a poesia aparecia subitamente do lado er- tado das coisas agora animadas. Na histéria moderna 0 fetichismo das mercado- tias rejuvenesce a densidade mitica do espago da morte — gragas 4 morte do sujeito, bem como gragas 4 recém-descoberta arbitrariedade do signo, por meio da qual um animismo ressurgente faz com que as coisas se tornem humanas, e os humanos, coisas, E neste terror do espago da morte que encontramos freqiiente- Mente uma exploragdo elaborada daquilo que Artaud e Marx, cada um a seu modo, véem como a ruptura e a vinganga da significagao. Quando Miguel Angel Asturias descreve a cultura do terror durante a dita- dura de Estrada Cabrera, no inicio do século XX, na Guatemala, & insuportavel ler como, & medida que as pessoas se tornam, semelhantes a coisas, seu poder de Sonhar passa para as coisas, que se tornam nao apenas iguais as pessoas, mas que Se transformam em seus perseguidores. As coisas se tornam agentes do terror, conspirando com a necessidade do presidente de sentir os pensamentos mais Tec6nditas de seus subordinados. Uma vez sentidos, eles se tornam nao apenas 27 no fato de o ditador sentir og A os, i ni a a natureza em sua aliada: euladas de obj rliculadas ern objetos, mas partes dea eee fence i ores das pense : mundos interiores (as f i jo president, d oresta que rode! alacio sata que rodeia OP dai a floresta ( — _ capi scam ouvides. d¥e 1 Jometros em volta, on Mores i do EVs NE Teno Som, auilomet eae Par : ‘in por wim furaci®. Se aa ed ma sivesse. aldo sor « ancmbranas. OS : : cevitar a avides daqucles tnilh mae a wn tclerafo,conecvam cada folha come dos moradores da cidade.® linhas invisiveds, mais invisivets nto mais Secrets ie, permitindo the vig (pens presi lo terror encontra a perfeigio, ad Jigos que a cultura ; don oy nG¢s, retorcidos, deformados, E nesse mundo dos el jados, cegos, idiotas, an Eles sto desajustados, ale! a fo 3 juas zonas critica: Nao consepuctn falar andar e enxergar bem. Existem em d chee importantes: amontoados nos degraus da catedral, na praga ae outro lado do palicio presidencial ou, como o idiota, esparramados em cima dos mon- ticulas de lixo da cidade, Com efcito, esta é a figura que representa a sociedade como um todo: devido a sua idiotice, ele atacou um oficial do Exército de alta patente ¢, portanto, o proprio presidente. Agora 0 idiota esté fugindo, em parte imerso em um mundo de sonhos, como um homem que tenta escapar de uma prisio de nevoeiros. Esté exausto, baba, arqueja e ri. E perseguido pelos cies e por finas langas de chuva, Acaba caindo desmaiado no monticulo de lixo, com seus vidros quebrados, latas de sardinha, abas de chapéus de palha, pedagos de Papel, couro, trapos, louga quebrada, livros encharcados, colarinhos, eascas de ovo, excremento e inomindveis manchas de escuridio. Os urubus, com seus bicos afiados, chegam mais perto ¢ € no salto continuo e desajeitado dessas aves de rapina que se expressa © modus operandi do ditadot. Os urubus investem, Procura da came macia dos labios do idiota, 14 nos entulhos da lixeira, onde os signos espalhados da cidade pdem a nu, em seu desmembra: Jo poli- tica de sua arbitrariedade. ee Jogado ld, sem se mover, as negras aves de ¢ Pousaram no chéo, a seu lado, pulando em tor rapina puseram nele seus olhos azulados de sua pessoa — um pula para cé, outro para ld — incessantemente em torno deles, prontos a alcar woe . at feta ou do vento soprando na sucira — um pulo pean on vrara em um citculo, até ele ficar ao aleance d eer naa No entanto este formagio: através de bem surgir um sentimento mais vivido da vida; através do medo poders aconte- cer néo apenas um crescimento de autoconsciéncia, mas igualmente a fragmenta- go e entao a perda de autoconformismo perante a autoridade; ou, como ocorre na grande jornada da Divina Comédia, com suas harmonias ¢ catarses suave- mente cadenciadas, através do mal chega-se ao bem. Perdido nas florestas som- brias, em seguida empreendendo sua jornada no outro mundo em companhia de seu guia pagio, Dante alcanga o paraiso, mas somente apds chegar ao ponto mais baixo do mal, montado nas peludas costas do selvagem. Timerman pode ser um gutia para nds, do mesmo modo que os xamiis do Putumayo que conhege so guias para aquelas pessoas perdidas no espago da morte. Foi um velho indio Ingano das tetras quentes do Putumayo, no Sudoeste da Colémbia, quem me falou pela primeira vez deste espago, em 1980: Com a febre eu percebia tudo, mas apés oito dias fiquei inconsciente, Nao sabia onde me encontrava. Perambulava como um louco, consumido pela febre. Tiveram de cobrit-me no lugar onde cai, de boca para baixo. Assim, apds oito dias, cu nito percebia mais nada, Estava inconscicnte. Nao me lembrava de nada do que as pessoas diziain, Nao me recor- dava da dor da febre; havia apenas o espago da morte — caminhando no espago da morte. Assim, apés 0s sons que emitiam, permaneci inconsciente. Agora o mundo ficara para tras, Agora o mundo se afastara. Foi entio que compreendi. Agora as dores falavam. Sabia que nao viveria mais. Agora eu estava motto. Minha visio acabara, Do mundo cu nada sabia nem do som de meus ouvidos. Da fala, nada, Siléncio. E li uma pessoa conhece o espago da morte... E é isto a morte — 0 espaco que vi. Eu estava em seu centro, de pé. Fui ¢ para seu cute. Naquelas alturas uma estrela parecia ser meu ponto candeal. Eu estava de pé. Entio desci. Lé estava eu, procurando os cinco continentes do mundo, para permanecer, querendo encontrar para mim um lugar nos cinco continentes do mundo — no espago através do qual cu perambulava. Mas nao consegui. Mas ndo consegui. Inconclusivo, Sem harmonias cadenciadas. Ali nado havia uma resolugao catértica, Luta e fragmentos de passiveis totalidades. Nada mais do que isso. Poderiamos indagar: em que lugar dos cinco continentes do mundo o errante, que percorre 0 espago da morte, poderd encontrar-se? E, por extensdo, onde uma sociedade inteira poderd encontrar-se? O velho teme a feiti- garia, a luta por sua alma. Entre ele, o feiticeiro, e o xama curador, os cinco continentes sio procurados e por eles se luta. No entanto a risada também existe, pontuando 0 terror que incha 0 mistério, recordando para nés 0 comentario de Walter Benjamin sobre 0 modo como 0 romantismo pode equivocar-se pernicio- samente quanto 4 natureza da embriaguez. “Qualquer exploragae seria do oculto, do surrealista, dos dotes e fendmenos fantasmagéricos”, escreveu ele, pressupde um entrelacamento dialético, diante do qual uma transformagéo roméntica da mente levanta barreiras. A énfase histriGnica ou fanatica no lado misterioso do misterioso nio nos leva longe; penetramos no mistério apenas na medida em que © reconhecemes no mundo cotidiano, gracas aquela ética dialética que percebe 0 cotidiano camo algo impene- 3 travel e 0 impenctrivel como algo cotidiano, 29 Nas erénicas de Timerma) turias, fica claro que as cults cio e do mito, no qual a énfas sl rumor finamente tecido em tela: neem El serior presidente, de Miguel Ange A do terror sa0 nutridas pelo entremesclar dg sila fanitica no lado misterioso floresce atraya: 5 de realismo magico. es claro gue : un vag vitima a fim de eviar a verdade, objetivendo a fama witimizader oD cure E claro que o desejo do torturador € prosaico, Eig is outro. im aa oni informagao, agit de acordo com as estrategias eres em larga « a cai ddas pelos mestres da finanga e as exigéncias da produgo, No enya.” cala elaboradas pel ; Jar populagdes numerosas, classes soc,: existe também a necessidade de contro! Se et Be inteiras e até mesmo nagdes, através da elaboragao cu edo. - E por isso que o siléncio imposto € é por isso que Timerman, em ey jornal, i importante; é por essa raza0 que ele sabia ae Publicar e quand, manter siléncio na camara de tortura. “Tal siléncio”, escreve ele, inicia-se nos canais de comunicagio. Certos lideres politicos, insttuigSes © padres team denunciar 0 que esté acontecendo, mas nio conseguem ceabeltcee contato com a popula. gio. O siléncio comega por meio de um forte odor. As pessoas farejam os suicidas, mas 9 silencio as logra. O silencio encontra outro aliado: a solidao. As pessoas temem os suicides assim como temem os loucos. E & pessoa que quer lutar sente sua solidao e se assusta? Dai a necessidade que temos de lutar contra aquela solidao, temor e silencio, de exami. nar as condigdes de realizar a verdade e de realizar a cultura, de seguir Michel Foucsult quando ele coloca que se deve “ver historicamente como os efeitos da verdade so proguzi- dos no interior de discursos que, em si mesmos, nao so nem verdadeiros, nem falsos” 's certamente, no mesmo momento, através desse “Ver historicamente”, em- penhamo-nos em ver de outra forma — através do ato de criar um contradiscurso? Se 0 efeito da verdade € 0 poder, entio levanta-se uma questio que diz respeito ndo apenas ao poder concedido ou negado por organizagées, no sentido de falar ou escrever (qualquer coisa), mas também em relagdo a que forma exe contradiscurso deveria assumir. Ultimamente essa questdo da politica da forma tem preocupado alguns de nés, envolvidos com a escrita e a interpretagio das historias e etnografias. Hoje, defrontados com a ubiqitidade da tortura, do terror e do crescimento dos exércitos, nds, no Novo Mundo, somos tomados por una nova urgéncia. Existe o esforgo de entender o terror, a fim de fazer com que os outros entendam. No entanto, a realidade que aqui esté em jogo zomba da cont Preensao e ridiculariza a racionalidade, como aconteceu quando o jovem Jaccbo Timerman perguntou a sua mae: “Por que eles nos odeiam?”, ¢ ela respondeu! lem”. E, apds sua provagao, o velho Timerman & uaa lum objeto odiado e o medo simultineo desse objet? — 4 quase inevitabilidade magica do édio, Odiados e temidos, os names © comunista. Com a bomba do tempo latejando dentro da familia nuclear, adicionamos as feministas ¢ os gays. Os militares e a nova diteita, como os conquistadores do passado, descobrem o mal que haviam imputado a esses alie- nigenas ¢ mimam a selvageria que imputaram. Que espécie de compreensao, de fala, escrita e construgio do significado, através de qualquer meio, poderd lidar com isso e subverté-lo? Contrapor 0 eros e a catarse da violéncia a meios misticos semelhantes € mais contraproducente do que pior. No entanto oferecer explicagdes padronizadas e Tacionais em relacgao a tortura em geral, nesta ou naquela situagao especifica, é igualmente desprovido de sentido. Pois, por detrés do interesse pessoal cons- ciente que motiva o terror ea tortura, desde as esferas celestes da busca corpora- tivista de lucro e a necessidade de controlar o trabalho, até as equagdes mais estritamente pessoais do interesse de cada um, petmanecem formagoes culturais de significado — modos de sentir — intriceadamente construidas, duradouras, inconscientes, cuja rede social de convengées ticitas e de fantasia reside em um mundo simbdlico e no naquela débil ficgdo “pré-kantiana” do mundo, repre- sentada pelo racionalismo ou pelo racionalismo utilitério. Talvez aqui ndo exista explicagao alguma, nenhuma palavra acessivel, ¢ quanto a isso temos sido insa- tisfatoriamente conscientes. Aqui a compreensio se move ou muito répido ou muito devagar, absorvendo a si mesma na facticidade dos fatos mais crus, tais como os eletrodas € 0 corpo mutilado, ou no labirinto enlouquecedor dos fatos menos convencionais — a experiéncia de passar pela tortura. O texto de Timerman propicia um contradiscurso vigoroso, pois, como a propria tortura, faz-nos percorrer aquele espago da morte no qual a realidade se encontra ao nosso aleance. E aqui comegamos a enxergar a magnitude da tarefa, que nio exige desmistificagdo ou remistificagdo, mas uma poética bastante di- versa da destruigaio e da revelagio. No caso de Timerman, no caso do prisioneiro sem nome, as alucinagdes dos militares so confrontadas pelo prisioneiro, que, desa- jeitado, costura uma colcha de retalhos, feita das contradigdes criadas nos sonhos do socialismo e do sionismo, jungidos ao antiautoritarismo secular do anar- quismo. Neste caso a aspiragao foi compartilhada por outro prisioneiro do fas- cismo, Antonio Gramsci, ao enunciar seu lema, dirigido tanto a cultura do capitalismo quanto contra os dogmas petrificados do materialismo histérico: ofi- mismo da vontade, pessimismo do intelecto. Através do texto surge a figura de seu produtor, e este pode figurar apenas em uma galeria pré-organizada de posigdes assumidas e concretizadas ha muito tempo em relagao 4 politica da representagdo. Em sua posigio persistentemente critica, mas otimista, o prisioneito sem nome situa-se em dramatica contraposi- sao aquela outra voz, recente e muito aclamada, do Terceiro Mundo de V. S. Naipaul e a genealogia contra-revolucionaria, profundamente pessimista, que ele encontra no Koestler de Darkness at noon [Escuridio ao meio-dia] e The God 31 that failed [O Deus que falhou], soerguendo o manto ambicioso do mestre, Jo- seph Conrad. O modo encontrado por Conrad para abordar o terror do esplendor do ciclo da borracha no Congo foi Heart of darkness [O coragdo das trevas]. Ld, comenta Frederick Karl, havia trés realidades: a do rei Leopoldo, feita de disfarces e tra- pagas complexas, o estudado realismo de Roger Casement, e a realidade de Con- tad, a qual, para citar Karl, “situava-se a meio caminho entre as outras duas, na medida em que ele tentava penetrar o véu e ainda assim ansiava por reter sua qualidade alucinatéria”."! A formulagdo é aguda e importante: penetrar 0 véu, ao mesmo tempo em que retém sua qualidade alucinatéria, Ela evoca e combina um duplo movimento de interpretagao, em uma ago combinada de redugiio e revelagdo — a hermenéu- tica da suspeita e da revelacdo, em um ato de subversio mitica, inspirado pela mitologia do proprio imperialismo. O naturalismo e o realismo, tanto na forma estética politizada, bem como na da escrita da ciéncia social, nao pode compro- metet-se com as grandes mitologias da politica através desse modo nao-redutivo €, No entanto, sao as grandes mitologias que contam, precisamente porque elas funcionam melhor quando nao se colocam como tal, mas em seu disfarce ¢ nos intersticios do real e do natural. Enxergar 0 mito no natural ¢ 0 real no migico, desmitologizar a histéria e reencantar sua representagao reificada — cis 0 pri- meiro passo. Reproduzir o natural e o real sem seu reconhecimento é talvez segurar com firmeza cada vez maior as rédeas do mitico. Entretanto, a desrealizagao mitica do real no poderia correr 0 risco de ser subjugada pela mitologia que ela esté usando? Em Heart of darkness nao existe 0 claro desejo de Kurtz pela grandeza, por mais hortivel que seja? O horror nao é tornado belo e o primitivismo nao se torna exdtico em todo esse livro, que é, para Jan Watt, a acusagao literéria mais vigorosa e duradoura do imperialismo?” Tudo isso nao € excessivamente nebuloso? Mas talvez seja esta a questio: a subversio mitica do mito, neste caso do mito imperialista moderno, necessita deixar as ambigitidades intactas — a gran- deza do horror que é Kurtz, a nebulosidade do terror, a estética da violéncia ¢ o complexo de desejo ¢ represséio que o primitivismo suscita constantemente. Aqui 0 mito nao € “explicado” para que possa ser “dispensado”, como se da nas lasti- maveis tentativas das ciéncias sociais. Em vez disso ele ¢ brandido como algo gue vocé precisa tentar por si mesmo, aprofundando cada vez mais seu caminho no coragao das trevas, até vocé sentir de verdade o que esté em jogo: a loucura da paixo. Isto € muito diverso de fazer reflexGes morais do lado de fora ou de expor as contradigées que ocorrem, como se 0 tipo de conhecimento com que nos preocupamos de certa forma nao fosse o poder € 0 conhecimento possuidos por uma pessoa e, portanto, imunes a tais procedimentos. A dimensio artistica da politica presente na subversao mitica do mito precisa implicar um mergulho pro- fundo no naturalistno mitico do insconsciente politico da época. 32 | Fé aqui que os relatérios de Roger Casement oferecem um surpreendente contruste com a arte de Conrad, tanto mais vivid pelo modo como os caminhos dessies homens se cruzaram, na amizade € na admiragao, no ano de 1890, no Congo, € pelos tragos comuns de seus antecedentes politicos de exilados ou quase exila- dos de sociedades européias imperializadas (Polénia e Irlanda) e também pela semelhanga bastante indefinivel, se nao superficial, em seus temperamentos € em seu amor pela literatura, No entanto foi Casement quem se engajou na agio militar em favor do pais onde nascera, organizando 0 contrabando de armas de Sogo, a partir da Alemanha, para os rebeldes de Dublin, por ocasiio do domingo le Pascoa, em 1916, e que foi enforcado por traigaio, enquanto Conrad apegou-se resolutamente a sua solitdria tarefa de escrever, envolto em nostalgia pela Polé- nia, emprestando seu nome, mas, sob outros aspectos, mostrando-se incapaz de dar assisténcia a Casement € a Morel na Sociedade de Reforma do Congo. Ale- gava, com hiperbdlica humildade, que nao passava de um “péssimo romancista que inventava historias péssimas e que sequer estava 4 altura desse triste projeto”. “le, no entanto, entregou as cartas de Casement a seu muito querido amigo lista, maravilhosamente excéntrico, 0 aristocrata escocés Don Roberto, tam- bém conhecido como R. B. Cunninghame Graham (a quem Jorge Luis Borges destacou, juntamente com outro grande inglés romantico da América do Sul, W. H, Hudson, como alguém que produziu os esbogos e obras literérias mais preci- sas sobre a sociedade dos pampas, no século XIX). Na carta que ele escreveu a Don Roberto e que acompanhava as cartas de Casement, Conrad preenche o espago desconhecido deste tiltimo com uma galaxia de imagens coloniais, cujas diferengas € tenses articulam um relacionamento triangular entre esses trés ho- mens da linha de frente do império. Cada um deles era, a sua propria maneira, altamente eritico desse império; cada um, a sua propria maneita, teve de chegat a um acordo com seu romance e seu fascinio. soc! Conrad comega manifestando seu entusiasmo sobre o livro recém-publi- cado de Don Roberto, dedicado a W. H. Hudson, sobre o grande conquistador espanhol Hernando de Soto, enfatizando a simpatica percepgao com que as almas dos conquistadores foram abordadas, pois na louca confuséo do romance e no encanto € vaidade de seus monstruosos feitos, eles pelo menos eram humanos — uma grande forga humana liberada —, enquanto que conquistadores modemos, como o rei Leopoldo do Congo, nao sio humanos, mas gigantescas bestas obsce- has, cujos objetivos so postos em pritica pelos cafetées, rufiées ¢ fracassados, tecolhidos nas sarjetas de Antuérpia e Bruxelas e expedidos para as colénias."? Apés armar 0 cendrio com essas oposigdes que operam ndo sé no interior das almas dos conquistadores como entre eles © seus sucessores capitalistas, Conrad langa uma nova figura no fluxo liquefeito do imagindtio colonial que €scoa entre ele ¢ Don Roberto: “um homem chamado Casement, antecipando. {ue 0 conheci no Congo h4 doze anos. Talvez tenha ouvido falar dele ou tenha 33 visto seu nome impresso. (um itlandés protestante ¢ picdoso, mas Vizetta ban bém o era”. Feita a concxao, 0 ritmo se acelern: Posse assegurar the que: unm personalicade Hipida, Nel tualitin existe an tempus inquistador, pois o vi cmnbrenhar se em muna terra de: ines prianive Loctite, teneley tenes tinica arma um bastie recorvadds, nox ealeanhares dois bublopnes, Pudiy Chraneay « Heldy (analbado), © acompanhade unicamente de: ain raping de, Lavaca ques cane gavgae tia teeta Decorrides alguns meses aconteces me de ve te de regress, umn re), on pouco mais queimado, com seu bastin, ox cies 60 tapi de Lannea, inantnentes Bere, como se tivesse idiy dar unt passe no pargue, eo rissa en de Conrad e Brian Inglis comenta que o tempo enfeitow as recor prefere a descrigao mais descontraida que Casement fez di pais carta enviada a um joven primo, referindo-se a cla como una planicie coberta “Jndspita, mas dificilmente inexprimivel”, yom, en una de ervas € entremeada de cerrado: acrescenta Inglis." A carta prossegue. Conrad perde Casement de vista e, durante enue ¢ recimento, nasce um novo Casement. Dissipa-se o romance dos cont ¢, no nevociro que se ergue de suas ruinas, revela-se a figura herdicw do inp vel adversirio deles, Bartolomé de las C osalyador dos ihelios. cele fore COnsul britinies ens Heit 1 Cong pelo governo britaniva EB que parece, ultin fo nos perdemos de vista. Ac ¢ foi enviade la alma de Las Casax havi en Huo ajudaria, mas & trado refiy algo que nao es morfose nos eseri Decortidos quatro anos Casement passou por outra mets tos de Conrad, desta vez em uma carta dirigida a um advogado de Nova York © simpatizante dos irlandeses, John Quinn, Para Conrad, eserever a Quinn era como estar em um confessiondrio, de acordo com Zl zist ler, Agora Con tad teclaborava seu primeiro encontro com Casement, referinde se a ele como um recrutador de mdo-de-obra ¢ nao como fizera em seu didtio do Congo, onde Casement era visto como um homem que “pens inteligente ¢ muito simpatico”, Mesmo o fato de ele desposar a causa irlandesa era suspeito. “Um homem que prega a autonomia dos governs ¢ que accita 0 patrocinio de Lord Salisbury nao pode ser levado muito a série." Esta carta enviada a Quinn (com quem Ca teve em Nova York em 1914) foi escrita na primavera de 1916, no Momento em que Casement se encontrava ha prisio, aguardando julgamento pot traigao, Em- bora Conrad esperasse que Casement nao fosse condenado a morte (escreve Zavistaw Najder), rceusou-se a assinar um pedido de perio, subserite por mui- tos escritores € editores procminentes."® 1 claro que 0 apele nao teve a menor chance junto ao rei, a0 primeiro-ministro ¢ ao ministro da Justiga, que mostraram. 1, fala bem, é extremamente iscment se hospedara quando es: 34 sas influentes priginas chocantes dos didtios que a policia apreendera no aloamento de Casement,” os quais alguns ainda alegam terem sido forjados pelos homens da lei, Incluindo o tempo passado no Putumayo, esses didrios recordavam com athes as ligagGes e sonhos homossexuais de Casement. Antes mesmo de o provesso ita julgamento em junho de 1916, a natureza dos didrios era conhecida Je “muitas pessoas estranhas ao processo”, sobretudo por seu (inoperante) advo- io de detesa. Mais tarde, quando a apelagao seguia seu rumo, durante as duas emuanas estabelecidas pela corte e relativas ao enforcamento de Casement, até smo os jornais fizeram referéncias abertas aos didrios. No dia que se seguiu a0 termino do julgamento, o News of the World asseverou que ninguém que visse ‘es “voltaria a pronunciar 0 nome de Casement sem repugnancia e des- 2”. Decidido a recusar um apelo baseado na loucura, Sir Emley Blackwell, tor legal do Ministério dos Negécios Interiores, disse ao gabinete do pri- meiroministro — a quem cabia em grande parte o adiamento da pena — que o diario de Casement mostrava “que durante anos ele se entregara as mais indecen- tes pniticas de sodomia”. Prosseguia: ‘os ultimos anos ele, ao que parece, completou todo o ciclo de degeneracao sexual € ce pervertido passou a invertido — uma mulher, um ser patolégico, que obtém satisfagio ce fato de atrair homens, induzindo-os a usé-lo, Vale a pena notar este ponto, pois o mi- aust da Justiya dena a Sit E, Grey (ministro das Relagdes Exteriores, chefe de Casement, Bara quem ele escrevera seus telatSrios sobre © Congo e o Putumayo) @ impressio de que trlato que © proprio Casement fizera da freqiiéncia de seus atos era inacreditavel, ¢ sugeria Por si mesmo que, a esse respeito, ele agia presa de uma alucinagao. Creio que esta idéia Pale ser deseartada, Ao que parece, Blackwell foi o principal responsével pela divulgagao dos diirios, O Gdio maligno que sentia por Casement, traidor nao sé de seu pais, mas de sua “masculinidade”, manifestou-se com mais clareza quando ele sugeriu ao Ministério que uma discreta publicago dos didrios, apés o enforcamento de Ca- Sement, representaria a garantia de que ele ndo se tomaria um martir. Isto foi tentado com toda certeza. “Os ingleses tém feito circular Telatérios scbre a degenerescéncia de Casement”, escreveu 0 amigo de Conrad, o simpati- zante des irlandeses, John Quinn, de Nova York. “Eles chegam até mim de todos gs ladies.” Altted Noyes, professor de inglés na Universidade de Princeton e pro- Pugandista estipendiado pelo govemno britinico, escreveu um artigo, publicado em um jomal de Filadélfia alguns meses apés a execugao, no qual colocava que es disrios, cuja imundicie ultrapassava toda descrigdo, tocavam os abismos mais Profundos da degradagdo humana. O petencial do martirio era forte. Originando-se nos sentimentos ligados 4 causa irlandesa, ele, no entanto, muito devia a Tepresenta¢ao do trabalho de Ca- sement no Congo ¢ no Putumayo, como se depreende desta petigao anénima, sncontrada entre os papéis de um antigo secretério particular do Parlamento, 3s © belo aspeeto de sua carteira anterior, seu grande trabatho em prol do mundo, reali- zado no Congo © no Putumayo, também deveriam ser levados em conta pelo governo, Os horrores com que ele entrow em contato, aliados a um trabalho ininterrupte de vinte unos em climas insalubres, afetaram de tal modo sua constituigdo que cle sofreu uma total derro- cada em sua satide ¢, por volta de 1914, cra um homem completamente prostrado. Nessa condigdo ele enfrentou os horrores, provagdes € perigos do Putumayo com a mesma presteza desinteressada que sempre demonstrara, Regressou em um estado de co- lapso nervaso tao sério que, com freqiiencia, despertava aos berros no meio da noite, ¢ havia certas fotos e anotagdes por ele trazidas que no conseguia encerar sem uma agitagao mental terrivelmente intensa e com emogao fisica. Conrad explicou seus motives, ao avaliar © cariter de Casement — assassi- nato talvez fosse a palavra mais precisa —, porém nenhum raciocinio foi mais clogiiente do que 0 fluxo do imaginrio colonial em conflito, semelhante a uma montanha russa, que 0 fato de escrever sobre o personagem despertou nele. Era algo maior do que seus eus separados. Era o fato de eles encarnarem a aventura € a desventura colonial. Casement nao era apenas o traidor aprisionado na Torre de Londres, mas o ativista em quem estavam inscritas a atragéo e a repulsa da mito- logia colonial. Ele era aquela figura evasiva, apaixonada e politica, que personifi- cava a derrocada das fantasias que a colonizagio havia inspirado em Conrad, até © Ultimo estagio um tanto tardio de sua vida, quando partiu para os trépicos a fim de trabalhar para Leopoldo, rei dos belgas. Era como se 0 que em breve haveria de se tomar 0 fantasma maligno de Casement tivesse, além disso, de carregar 0 fardo daquilo que Conrad precisava matar em si mesmo. E este mesmo desejo de morte que pode vir assombrar o antropélogo, talvez mais do que nunca, antes que a sociedade assumisse 0 romance e a ciéncia, ao sul da linha equatorial. E Casement, segundo a opinido geral, teria sido um maravilhoso etnégrafo. Talvez a situagao fosse ainda mais complicada. Talvez 0 arrojado Don Ro- berto, herdeiro socialista de reis escoceses, alarmante, excéntrica e aristocratica- mente pertencente ao Terceiro e a0 Primeiro Mundo (Contad 0 via como “uma boa pena, afiada, flexivel, correta e, é claro, como uma boa lamina de Toledo”), irdnico, mas sempre verdadeiro, fosse apresentar a Conrad os aspectos mais posi- tivos da ousadia e das aventuras coloniais, deixando Casement como a expressio de tudo aquilo de que se zombava com facilidade e que chegava até mesmo a ser perigoso em homens poéticos embalados por sonhos coloniais. Em um de seus tltimos ensaios, intitulado “A geografia e alguns explotado- res”, Conrad deixou claro os varios modos gracas aos quais, para ele, a modifica ko na mescla de magia e de méquina, vinculada aquela trajetéria que ia da geografia fabulosa da Idade Média @ geografia militante da era contemporinea, significava uma mudanga, na qual mapas precisos e exploradores cientificos 0 levavam a sonhar com viagens ao desconhecido. Pelo menos as coisas assim se passaram com ele quando era um rapaz, que pds o dedo no amago daquilo que entao era 0 coragao branco da Africa, expondo-se 4 zombaria de seus compa- nheiros. “No entanto é um fato”, escreve, que dezoito anos mais tarde estava no 36 comando de um precarissimo barco a vapor, com roda propulsora 4 popa, anco- rado nas margens de um rio africano. A noite caira ¢ ele era o unico homem branco acordado. O barulho abafado das cataratas de Stanley pairava no ar, apés deixarem para tris o tiltimo porto do alto Congo, ¢ havia na escuridéo uma luz solitéria, brilhando sobre a 4gua e que provinha de uma pequenina ilha. Entéo, com temor respeitoso, ele disse a si mesmo: “E neste lugar que se situam minhas fanfarronadas de rapaz” 2” Fantasias do militante da geografia precipitam-se nas memérias juvenis, enquanto as cataratas, as de Stanley, despejam seu rumor abafado na ultima para- gem do rio. B igualmente a tltima paragem da hegemonia mitica. Apenas um homem branco esté acordado, consciente e hipnotizado por esse murmuirio na escuridao, sob as estrelas e, devido a esse hipnotismo, sente precariamente outros significados, discordantes, 14 onde o trovao ribomba, na ultima paragem do rio. Na consciéncia que comega a aflorar, a autoconsciéncia comega a tremeluzir ea brilhar, como a solitaria luz que brilha debilmente na espuma das 4guas fendidas. E ld e naquele momento que o arco da meméria retrocede para as fanfarronadas da juventude € vai adiante, além da wltima paragem do rio, para engolir as ilu- sdes de se construir um império, que assombram o homem branco, deixando-o muito solitario. ‘Uma grande melancolia desceu sobre mim. Sim, aquele era o lugar perfeito. No havia porém um amigo solidério a meu lado, naquela noite, em meio aquela imensa solidao, nenhuma grande recordagdo que me assombrasse, apenas a banal lembranga de um jornal prosaico ¢ 0 desagradavel conhecimento da mais baixa disputa por um despojo que jamais, transfigurou a histéria da consciéncia humana e da exploragao geogrifica. Que final para as, realidades idealizadas das ilusdes de um rapaz! Imaginei o que estava fazendo lé, pois, com efeito, aquilo nao passava de um episédio imprevisto em minha vida de homem do mar, no qual agora me é dificil acreditar. No entanto permanece o fato de que fumei 0 cachimbo da paz. meia-noite, no coragdo mesmo do continente afticano, e que me senti muito solitatio ali. A desilusio em breve juntou-se uma doenga suficientemente grave pata leva-lo ao espago da morte, naquilo que Ian Watt denomina encarar sozinho 0 fato da propria mortalidade, enquanto ele era trazido Congo abaixo e mandado de volta para a Europa. “Pode-se dizer”, sugete Monsieur Jean-Aubry “que a Africa matou Conrad, o marinheiro, e fortaleceu Conrad, 0 Romancista”.’ B nessa metamorfose, nascida da morte, é importante registrar a desesperanga que serviu de base para sua arte, cuja poética do desespero absorveu como uma es- ponja a magia e o romance escondidos no militante da geografia — com certeza nao seria um primo nada distante da ciéncia da antropologia? “Nao é uma bela coisa quando se a contempla durante muito tempo”, escreveu ele. “O que redime € unicamente a idéia. Uma idéia, por detrés de tudo; nio um fingimento senti- mental, mas uma idéia; e uma crenga generosa na idéia — algo que se possa erigir, perante 0 qual se possa inclinar, a que se possa oferecer um sacrificio."” A serpente enrodilhada no coragao das trevas, no centro do mapa da Africa, ndo per- 37 Gera tanto seu encanto, enquanto enlagava a si mesma, nutrindo a dor da desilu- S80. A Divina Comedia situa-se muito atris do mundo do fabulaso geogrifico eno caso de Conrad, ¢ a tragédia divina, a amargura e o desalento que Jean-Aubry va avangando, como a serpente coleante do grande rio de sonhos que tudo ocasionou. Mas ainda que nao imprimisse esse enorme desinimo em seu espirito, ainda assim 0 Congo certamente fez com que cle se erguesse das profundczas de sua alma e, portanta, Sontnibuiu sem duvida para aquelas profundas correntes de amargura que parccem brotar Ste ue Brande rio do proprio corayao da escuridio humana, carrezondo para os confins da terra dos sonhos a forga de um espinto inquieto e de uma mente generosa.?* O proprio Conrad considerava 0 Congo 0 ponto decisivo de sua vida: “Antes do Congo eu era apenas um mero animal”, disse a Edward Gamett. E Casement? “Era um bom companheiro”, confiou Conrad a Quinn, mas jd na Attica julguei que, para falar a verdade, ele era um homem desajuizado. Néo queto dizer que fosse estupido, mas que era todo emogio. Gragas a forya emocional (0 relatsno do Congo, Putumayo etc), ele abriu scu caminho, ¢ 0 puro cmocionalismo o destruiu. Uma criatura que era puro temperamento, uma personalidade verdadciramente wragica: tudo, menos a grandeza, da qual cle nio possuia o menor trago. Apenas a vaidade, thas no Congo isso ainda nao era visivel.* Poderemos muito bem indagar se no é 0 caso de alguém que desdenha e quer comprar, pois nao seria esta uma descrigdo raivosamente emocional, escrita por uma criatura de puro temperamento? Quanto ao fato de que, “para falar a verdade", Casement nao era um homem, e 0 modo como isso propicia uma aber- tura para que se invista no puro emocionalismo, quanto menos se comentar a esse respeito, melhor. Além do mais, dificilmente seria possivel referit-se ao rela- trio do Congo, do Putumayo ete. como prova de emocionalismo. Os priprios telatorios nao eram apenas textos de um género legal e sociolégico, mas também exercicios no uso do emocionalismo reprimido, a fim de transmitir com maior vigor a incredibilidade do terror colonial. E um fato que foram relatorios como os de Casement e nao a assombrosa arte do mestre que muito contribuiram para deter a brutalidade no Congo (€ talvez no Putumayo) e, segundo as palavras de Edmund Morel, inocularam na diplomacia da Gra-Bretanha uma toxina moral tZo poderosa que os historiadores saudarao essas duas ocasides como as tnicas em que a diplomacia daquele pais pairou acima do lugar-comum.”> Além das coincidéncias da histéria imperialista, o que aproxima Casement de Conrad ¢ 0 problema que eles criaram em conjunto, e que diz, respeito & politica do realismo social ¢ do realismo magico. Entre o emotivo cénsul-geral que escre- veu eficazmente, pondo-se do lado do colonizado, como um realista, e 0 grande artista que nao o fez, permanecem problemas cruciais que dizem respeito a domi- nagao da cultura e as culturas da dominagio. 38 O Relatério do Putumayo Asta altura € instrutivo petcorter os relatérios do Putumayo apresentados Edward Grey, que estava a frente do Ministério das Relacaes Exteriores da Gni-Bretanha, publicados juntamente com cartas e um memorando pela Canara dos Comuns, em cariter oficial, no dia 13 de julho de 1913, quando Casement tinha 49 anos, Deve-se notar inicialmente que a ligagao de Casement 4 causa da autono- mia irlandesa ¢ seu ddio ao imperialismo britinico nao apenas tornaram o tra- balho de toda uma vida como cénsul britinico repleto de um conflito disfargado ( exemplo do que ocorreu com sua homossexualidade), mas que ele sentin que vas experiéneias na Africa e na América do Sul influenciaram sua compreensio do colonialismo na Irlanda, 0 que, por sua vez, estimulou sua sensibilidade etno- gritica e politica ao sul do Equador. Ele alegava que foi seu conhecimento da historia irlandesa que permitiu compreender as atrocidades do Congo, quando 0 Ministétio das Relagdes Exteriotes se recusava a tal, pois, para eles, as provas nao faziam sentido, Neste caso fazer sentido significa uma disposigdo e uma capacidade instin- tiva desenvolvida a fim de identificar-se ndo apenas com uma nagdo ou com um Povo, mas com o acossado e © marginal, cujo modo e apreciagao da vida nao podleriam ser entendidos através da filosofia sem alma dos bens de consumo, Em uma carta dirigida a sua intima amiga Alice Green, ele recordava: Eu sabia que 0 Ministério das Relagies Exteriores niio compreendetia a questio, pois me dei conta de que estava encarando esta tragédia com os olhos de outra raga de povo, ‘coutnora acossado, cujos coragdes se baseavam no afeto enquanto principio primordial de contato com seus semethantes, ¢ cuja apreciagdo pela vida nio era algo a ser avaliado por seu valor de mercado.”? No artigo que ele escreveu para a respeitada Contemporary Review, em 1912, argumentava que os indios do Putumayo eram, sob o ponto de vista moral, mais altamente desenvolvidos do que seus opressores brancos, Nao somente o indio er desprovido do senso de competigaio mas, de acordo com a avaliagao de Casement, ele era “um socialista por temperamento, habito e, possivelmente, gragas dis antigas recordagdes dos Incas e do preceito pré-ineaico™. Coneluindo, Casementa indagava: “Sera tarde demais para esperar que, por meio da mesma agéneia humana e fratema, algo da boa vontade e da bondade da vida crista possa ser partilhado com os filhos da floresta, isolados, perdides, sem amigos”. Mais tarde havetia de referir-se aos camponeses de Conemata, Irlanda, como “indios brancos*.” Em boa parte o dilema de Casement consistia nao tanto em desligar-se de seus direitos inatas de unionista e protestante, submetido a Coroa, ou daquilo que ele, cack vez mais, passava a ver como uma cultura britanica hipécrita, “que profes- 39 aava, eonfarie escreveu, “e no entanto acreditava unicamente em Mammon”, Sew ilema mais agudo estava no modo como esta hipocrisia insinuava-se em neu padiacde vida, de aufodescoberta, através de uma oposigao na qual o nacio- nalisti © 0 antigntoniatisme — mas néo a vida encoberta de um homossexual — podletiam manifestarse e ser digniticantes: “Naquelas solitérias florestas do Congo onde eonheed Leopoldo (rei dos belgas ¢ dono do Estado Livre do Congo), conheed ignalmente a mim, um irlandés incortigivel”. No didtio que cobre sta Viagem ao Putumayo, decorrides uns dez anos apds ele ter se retratado como uni “irlandes incortigivel”, Casement escreveu para si mesmo um frag- Imenfa que mostrava oO Modo como seu pensamento podia elaborar imagens de feminiliate ¢ masculinidade, a fim de representar a cultura do imperialismo. Na lancha Literal, movida a vapor, que subia o Putumayo, ele escreveu em 17 de setembro de 1910: © homens que desiste de sun fimulia, de sua nagdo ¢ de sua lingua € pior do que a iste de essencial no auto-respeito ¢ no autoco- mulher que abandona sua virtue, O que e Ahecimento representa para ele o que a eastidade significa para ela, © jovem pilot Quechua de Literal chama-se Simon Pisango — um purissimo nome mas denomina a si mesmo Simon Pizarro (a quem Conrad ligou Cascment, na 4 Cuaniaghame Graham) porgue quer ser do”, exatamente como os O's itlandeses ¢ Gilegivel) que inivialmente abandonam seus nomes e sobrenomes para mos- tar evspeitabilidade ¢ em seyuida a propria Lingua, tio antiga, a fim de se tornarem comple~ nenie angltcizados. Simon Pisango ainda fala Quechua, mas outro (itegivel) dos Pizarro sariente o espanol! O'S homens si conquistados no pela invasdo, mas por si ta dinigicl: ta falara u mesmios © por sua propria torpera.” Os homens nie sie conquistados pela invasio, mas por si mesmos. Nao é mesmo um sentimento estranho, quando deftontado com provas tao brutais de invasio, quando entramos no mundo dos seringais? Eis o que ele escreveu a Sir Edward Grey em 1912: © mimens de indios mortas, sea pela fame — causada com freqiiéncia pela destrui- m regides inteiras ou infligida como uma forma de pena de morte a indivaduos que ndo conseguitam entregar sua quota de borracha —, seja por um assassinato prposi de fago, degolagio, chicotadas até a morte ¢ acompanhado pot uma vaniediaee de torturas atnoves, ao longo desses doze anos, a fim de extrait 4 mil tonela- das de borracha, nie pode tet sido inferiot a 30 mil individuos © possivetmente chegou a muito mais.” gio das cotheitas As revelagées de Hardenburg: a verdade, 0 paraiso do deménio e 0 significado da conquista O governa britinico viu-se obrigado a enviar Casement — entio estabele- cide no Rio de Janeiro — como seu representante consular no Putumayo, devido aos protestos pilblicos que se deram em 1910, gragas a uma série de artigos 40 publicados na revista londrina Truth, que desereviamn a brutalidade praticada pela companhia de borracha dos irmaos Arana naquela regisio, a qual, dese 1907, era um consércio de interesses peruanos € britanicos, Intitulados “O paraiso do de ménio: um Congo de propriedade dos britanicos”, esses artigos de: experiéncia de um jovem “engenhciro” ¢ aventurci Hardenburg que, com um compatriota, deixou seu emprego na estrada de ferro Cali-Buenaventura em 1907, descendo para um canto remoto da bacia amazo- nica, vindo dos Andes colombianos, em Pasto, através da escarpada trill que conduzia ao vale do Sibundoy. Remando 0 rio Putumayo abaixo, aqueles gringos inocentes caitam nas maos de homens armados, diabolicamente cruéis, que ater- rorizavam os comerciantes colombianos que se recusavam a se submeter a Julio César Arana — a alma e a forga motriz, conforme um parlamentar britanico 0 denominou mais tarde —, da companhia de borracha peruana, Os jornais de Iquitos jé andavam publicando relatos sobre graves fatos que ocorriam rio acima, ¢ tais relatos circularam além do rio, chegando a propria capital peruana. Foi necessario, porém, que as indignidades atingissem 0 ultrajado gringo aventurero para que esses graves fatos se tornassem uma questio politica na Inglaterra € nos Estados Unidos. (Mais tarde Hardenburg haveria de escrever um panfleto a favor do socialismo em uma das provincias ocidentais do Canadé € um livro sobre a erradicagao dos mosquitos.) ‘Ao que se dizia, Arana iniciou sua espetacular ascengio ao poder fazendo negécios com as comerciantes colombianos que tinham sido os primeiros a “con- quistar” (conforme se dizia comumente) os indios dos tributérios do Caraparand e Igaraparand, no Putumayo. Esses conquistadores haviam se estabelecido ao longo desses rios com seus derechos de conquistar desde a década de 1880, na esteira da repentina valorizagao da quinina nos contrafortes dos Andes, € (con- forme Casement) acharam mais conveniente negociar sua bortacha rio abaixo com comerciantes como Arana do que rio acima, na Colémbia, através das flo- restas, até Tolima, ou atravessando os Andes, em diregao a Pasto. Assim como conseguiram fazer com que os indios colhessem a borracha endividando-os € submetendo-os a uma espécie de escravidio econémica, esses comerciantes tam- bém contrairam dividas com seus fornecedores, tais como Arana. Eram prisionei ros da mesma armadilha de obrigagées na qual mantinham seus indios, mas completamente, Dando um jeito, por assim dizer, ainda conseguiam competir com Arana, tendo em vista os indios. Era uma regiao estranha aquela onde os colombianos se estabeleceram obrigaram os indios locais a colher borracha. Tratava-se de uma fronteira sujeita a conflitos armados e a instabilidade e cuja soberania os estados-nagées do Peru da Colémbia sempre disputaram, apés as guerras de independéncia com a Es- panha, no inicio do século XIX. Terreno das ambigdes rivais desses estados, era na realidade um lugar sem estado, uma espécie de terra de ninguém cuja queda para a violencia era canalizada por comerciantes como Arana, em lutas pelo 41 controle de colhedores de borracha indigenas, alids em mimero cada vez menor, Os derechos de conquistar, aquelas convengdes com as quais se concordava taci. tamente, fora de qualquer lei do Estado, e que garantiam supostamente a cada “conquistador” direitos ao produto de “seus” indios, eram derechos que se basea- vam tanto na probabilidade da violéncia quanto em um acordo mtituo. Ao que Parece, tratavam-se de convengées frigeis, sempre a beira da autodestruigao. A selva € seus indios eram objeto de grande temor por parte dos brancos, ao que se dizia, mas, de acordo com Joaquin Rocha, um colombiano que percorreu a regiio em 1903, a maior ameaga 4 vida dos setingalistas era o assassinato por um co- lega que exercia a mesma atividade.” Surpreendido, notou que os seringalistas geravam poucos filhos, Viviam em geral com indias, mas a uniao era estéril, Conjecturou que essa “extraordindria auséncia de criangas mestigas” era devida a0 fato de que as esposas indias bebiam o sumo de plantas anticoncepeionais, talvez “em obediéncia as ordens dos chefes indigenas, como uma medida politica”. Sete anos de comércio de borracha e de impiedosa eliminagao dos pequenos comerciantes nessa zona fronteiriga de esterilidade e assassinato levaram Arana a um controle total e, em 1907, ele estava pronto para se expandir em larga escala, com capital levantado em Londres. A exemplo de Leopoldo, rei dos belgas e dono do Estado Livre do Congo, rico em borracha, Julio César Arana era, no baixo Putumayo, o proprio Estado. Em 1903 ele contratou negros de Barbados para “conquistar” e perseguir até a motte os indios fugitivos. O conceito, para nao falar do uso da “conquista”, Pareceu estranho a muitos leigos, provocando, por exemplo, muita confusio na Comissio Seleta sobre o Putumayo, estabelecida pela Camara dos Comuns brita- nica. Ela foi informada em mais de uma ocasiéo que conguistar nao significava aquilo que se pensava, mas queria dizer “distribuir bens em troca da borracha”. A confuséo também se instaurou quando da tentativa da Comissao de inter- pretar o item referente a Gastos de Conquestacién (sic), traduzido como “despe- sas de conquista” no balango da Companhia, em 1909. O gerente de Iquitos, Pablo Zumaeta, escreveu a seu cunhado, Julio César Arana, contestando a colo- cagao do contador inglés de que 70.917 libras deveriam ser consideradas perdi- das, “assinalando que esse dinheiro representava o capital gasto em conquistat ou, melhor dizendo, em sujeitar os {ndios”.*' Nao havia necessidade de diminuir 0 capital porque, como voeé sabe, em empreendimentos como os nossos o capital é aplicado em conquistat ou, para ser mais exato, em atrair para o tabalho a civilizago as tribos selvagens e, uma vez. alcancado tal propésito... passamos a ser propricitios do solo que eles dominavam, pa- zgando mais tarde com o produto que eles fomecem o valor desse adiantamento, Em empreendi- mentos como o nosso quaisquer quantias assim aplicadas séo consideradas capital 2 Parece ter sido uma situagdo na qual os direitos aos indios eram semelhan- tes aos direitos de explorar a floresta. Os indios estavam i para serem subjuga- 42 dos e, uma vez feito isso, nenhum outro homem branco poderia entrar na regio. O primeiro branco a chegar a uma das grandes casas comunitérias, que abrigava talvez mais de cem indios, o primeiro também a impingir-lhes bens de consumo, clamou por seus “direitos de conquista”. Em troca os indios pagaram com bor- racha. Antes disso, pelo menos rio acima e, em escala bem menor, a partir de meades do século XIX, 0 pagamento consistira em plantas medicinais, veneno, laca, goma, resinas, peles ¢ cera de abelha. Na década de 1860 desenvolvera-se uma atividade intensa, que se irradiou dos Andes até os contrafortes da montafia e, em escala bem limitada, até a regio intermedidria do rio Putumayo. Essa ativi- dade foi provocada pela demanda do famoso febrifugo que era a quinina (cin- chona). O nome, alis errado e que pertencia a esposa de um vice-rei do Peru, referia-se A casca da drvore e continha a quinina necessitada por outros conquis- tadores, tais como as tropas britinicas, que precisavam combater a maléria na India. Nao entendo o poder que os comerciantes exerciam sobre os indios. A maior parte do que se disse em relagao a este assunto é repleta de fantasias e, além do mais, exttemamente contraditoria. De um lado temos a estridente énfase na con- quista, vista como a derradeira afirmagao da civilizagao, empreendida pelo macho suarento, que ultrapassa as fronteiras e penetra nas selvas. De outro temos um quadro bastante diverso, o de uma espécie de contrato social estabelecido entre comerciantes que pensam de modo igual, indios e brancos, os quais complemen- tam as muituas necessidades no scio da floresta: indios déceis, brancos maternais e provedores. Certamente nem esse paradoxo, nem a docilidade parecem ter feito parte daquilo que se disse ¢ daquilo que se lembrou, no primeiro ciclo da conquista, no século XVI. O pouco que se sabe da louca expedigao de Herndn Pérez de Que- Sada, através das selvas de Caqueta e Putumayo, em 1541, 4 procura do El Do- rado, € que os espanhdis afirmaram que, em geral, tiveram de enfrentar uma resisténcia feroz. Ao que se diz, a expedigao de Quesada consistiu de duzentos cavalos, 260 espanhdis e cerca de 6 mil carregadores indios dos altiplanos da cordillera dos Andes ocidentais. Afirma-se.também que nenhum dos carregado- res sobreviveu. Na regio em que os rios Putumayo e Caqueta correm bem perto um do outro, nas proximidades de Mocoa, Quesada teve de se haver com uma decidida oposigao. Sempre que sua expedigio atravessava espagos acanhados, ‘onde os cavalos mal conseguiam manobrar, os indios atacavam. De acordo com tal historiografia, se aquilo era uma violentagao que no chegava a se consumar na garupa de um cavalo, entéo aqueles estreitos desfiladeiros eram verdadeiras vaginae dentatae, Em determinado lugar, assinala John Hemming em seu estudo das crénicas importantes, “uma tribo antropéfaga conseguiu apoderart-se de cinco homens, diante do resto da coluna, os esquartejou antes que se pudesse fazer algo para salva-las”.” Sao estas as histérias que nos chegaram da conquista. ‘A sina dos missiondrios que sucederam os homens da espada, nos dois sé- culos seguintes, nao foi muito diferente, pelo que se diz. No entanto, apesar 43 dessa continuidade, é surpreendente redescobrir a linguagem e 0 imagindrio da conguista do Novo Mundo no século XVI, reativados no pelo ouro ou pela histéria do El} Dorado, mas pela quinina e a borracha, em fins do século XIX. A grande demanda européia e norte-americana pelas matérias-primas das florestas pluviais ressuscitou de forma ainda mais exagerada a mitologia herdica de uma época mais recuada e a incrustou na cultura do relacionamento comercial. Joaquin Rocha, um comentarista sempre interessante, que desceu os rios Caqueta e Putumayo até Iquitos, em 1903, julgou 0 conceito de “conquista” nio menos estranho do que parecera 4 Comissiio Seleta sobre o Putumayo, da Ca- mara dos Comuns. Julgou necessdrio oferecer uma definigdo: Quando se encontra uma tribo de selvagens que ninguém conhecia ou que jamais esteve em contato com brancos, diz-se em semelhante caso que eles foram conquistados pela pessoa que conseguiu comerciar com eles. Assim, colherdo a borracha, plantario ali- mentos € construirio uma casa para que cla viva no meio deles. Participando desse modo da grande e comum labuta dos brancos, esses indios sao trazidos para a civilizagao.* Tal definigdo nao é tanto uma faldcia quanto um conceito, tao necessdrio 4 conquista através do escambo quanto ao escambo através da conquista. O astuto ‘conquistador, prossegue Rocha, tomaria providéncias para garantir a reciproci- dade, ao dar presentes e adiantar bens de consumo — por exemplo, tomando como reféns as mulheres e as criangas indias. Mas se a fora bruta era aconselhavel, por que eles se incomodavam em dar presentes e persistiam na ficgao da “divida"? B freqiiente, afirma Rocha, os in- dios nio sucumbirem 4 arte da persuasio verbal. Em vez disso tentavam fugir, como sucedeu na histdria que ele narrou, de um comerciante de borracha e seus quatro peGes, que retornavam com mercadorias, percorrendo as remotas e inex- ploradas paragens do rio Aguarico, alguns anos antes. Ao perceber sinais de in- dios que nao pertenciam a qualquer tribo conhecida, o coragéo do comerciante pulsou diante da idéia de conquistd-los, pois, através do trabalho deles, poderia obter enormes quantidades de borracha. De madrugada, sob um luar espléndido, ‘os brancos entraram na casa comunitdria dos indios. Dois deles bloquearam a porta com suas armas enquanto seu patrén, o comerciante, disse aos indios, to- mados de panico, que ndo se assustassem. Os homens foram solicitados a buscar comida que as mulheres — as quais, alids, nao tiveram permissao de sair — cozinhariam. Quando os homens regressaram, os brancos os presentearam com quinquilharias © deram-lIhes roupa, machados € facdes, dizendo que deveriam trazer-Ihes bortacha enquanto eles, os brancas, se apoderariam da casa dos indios com suas mulheres ¢ criangas, na auséneia dos homens. Felizes com os presentes © as mercadorias, os homens concordaram e voltaram dai a guns dias com a borracha que deviam. i ae a ies mercadorias dos brancos ¢ tendo reeebido tio bom tra- gora eram seus patroes, concordaram em construir uma 4 : eae | casa e em cultivar rogas para eles. Assim, observa Rocha, consumou-se a con- quista desta nagao.* Foi desse modo que, em 1896, 0 colombiano Criséstomo Hernandez con- quistou os Huitoto dos rios Igarapanard e Caraparané, afluentes do Putumayo, de quem Arana apropriou-se pela forga alguns anos mais tarde. Mulato proveniente da distante cidadezinha de Descanse, nos Andes, ao que se comenta Don Crisés- tomo era um fugitivo, que escapara dos entrepostos de comeércio colombianos no Caqueté, devido aos crimes que ali cometera. Procurara refiigio nas densas flo- restas do Putumayo, onde reinava sobre brancos ¢ indios com grande crueldade. Conforme disseram a Rocha, ele recorria 4 morte, em casos de rebeldia e caniba- lismo. O crime de um era pago por todos. Ao ouvir falar de um grupo de Huitoto, cujas mulheres e filhos, bem como os homens, segundo se dizia, praticavam o canibalismo, Don Criséstomo decidiu maté-los por esse crime, decapitando todos, inclusive os bebés que ainda mamavam. O homem branco que narrou esse fato a Rocha rebelou-se por ter de matar criancinhas, mas teve de fazé-lo, pois Don Crisdstomo ficou por detris dele com um facdo.* E uma histéria estranha, sobre- tudo diante da extrema necessidade de se contar com a mao-de-obra indigena. Aqui estamos diante do relato de um homem que elimina essa mao-de-obra, chegando até mesmo a matar bebés, diante de um suposto canibalismo. Pelo menos no plano da ficgao espelha-se 0 espetéculo de moldar corpos humanos, 0 que, ainda nesse plano, ocasionou a furiosa “retaliagao” do homem branco. Logo apés esse acontecimento Don Criséstomo foi morto, “acidentalmente”, atingido por uma bala disparada por um de seus companheiros de conquista. Rastejando no cho, em seu proprio sangue, ele pediu que lhe entregassem a espingarda, encostada em um canto. Ninguém, porém, atendeu esse ultimo pe- dido, pois, segundo Rocha, ele morreria matando, levando em sua companhia tantos companheiros quanto pudesse.”” Talvez nio foi a economia politica da borracha, nem a da mao-de-obra que predominou nos horrendos “excessos” do ciclo da borracha. Talvez, segundo teo- tiza Michel Foucault em seu trabalho sobre a disciplina, o que importava naquele caso era a insctigao de uma mitologia no corpo indio, a estampa da civilizagao em luta com a selva, cujo modelo se inspirava nas fantasias coloniais sobre o canibalismo indigena. “No excesso da tortura”, escreve gnomicamente Foucault, “€ investida toda uma economia do poder”. Nao existe excesso. No entanto, até que ponto foi comum a brutalidade, conforme € descrita na histéria de Don Criséstomo? Hardenburg, incansvel ao condenar a brutalidade de Arana, conheceu outros seringais mais antigos, como os do colombiano David Serrano, onde passou alguns dias, nas margens do Caraparand, considerando-o um idilio de benevoléncia patriareal. Serrano contou-lhe que os primeiros povoa- dotes da regio, entre os quais ele se incluia, chegaram ali doentes ¢ pobres, sendo calorosamente acolhidos pelos Huitoto, “que os encheram de comida, deram- Thes mulheres e proporcionaram-Ihes um conforto muito maior do que gozaram 45 algum dia em seu proprio pais”, Hardenburg achou que as indios que estavam em torno do acampamento eram alegres € prestativos. “Chamavam Serrano de paie, com efeito, tratavam-no como tal.”* i “Longe de infligir maus tratamentos”, escreveu Joaquin Rocha sobre os comerciantes de borracha de Tres Esquinas, no rio Caquetd, eles “agradavam os indios como criangas mimadas, os quais, por sua vez, prestavam obediéncia im- plicita aos brancos” (exceto quando os indios se embebedavam, durante suas “bacanais orgidisticas”, as quais, de acordo com Rocha, ocupavam a maiot parte de seu tempo; entdo seu estimado patrén, a despeito de sua benevolente supre- macia, tinha de trancar-se em um esconderijo, até passar os efeitos do caldo de cana fermentado). Esses indios Tama e Coreguaje tinharn dividas com seu patron branco (seu “jefe supremo”, conforme Rocha o denominava), relativas a roupa, calgas, mosquiteiros, armas de fogo, facdes e panelas, que pagavam com bor- racha e com seu servigo como canoeiros. Recebiam também fumo e rum, ma: pelo menos segundo Rocha, isto era considerado “presente” ¢ ndo um adianta- mento (do mesmo modo, ao natrar a histéria dos indios Aguarico, ele estabeleceu a diferenga entre “presentes” e “quinquilharias”, por um lado, e por outro, coisas tais como roupa e machados, pelos quais a borracha devia ser trocada). Quando os indios elegiam seu chefe, submetiam a escolha ao patrén, que sempre concor- dava, afirma Rocha.” Assim, nao pareceria tio ingénuo da parte de Julio César Arana defender-se alegando, sob a pressdo dos interrogatérias da Comissio Seleta da Camara dos Comuns, que “essa palavra ‘conquistar’, pelo que me dissetam em inglés, soa muito forte. Néds a empregamos em espanhol para atrair uma pessoa, a fim de conquistar sua simpatia”. Presumivelmente devido ao fato de que, nesse caso, as palavras, o significado exato e a tradugo tinham tamanha importancia, a Comis- so julgou necessério publicar esta resposta igualmente em espanhol: “Porque esa palabra ‘Conquistar’, que segtin me han dicho en inglés suena muy fuerte, nosotros la usamos en espajiol para atraer a una persona, conquistar sus simpa- tias”.”” O objetivo de uma conquista, prosseguia Arana, é distribuir mercadorias equipar expedigdes tendo em vista a conversio dos indios a um sistema de es- cambo — dar-lhes mercadorias em troca da borracha: “Outro termo empregado para isso é a palavra correrfa”.*! Mas para Charles Reginald Enock, que passara quatro anos na Amazénia Peruana e nos Andes na qualidade de engenheiro e autor (The Andes and the Amazon, Peru) [Os Andes ¢ 0 Amazonas, Peru] e foi convocado para testemu- nhar perante a Comissdo Seleta quando sua investigagao chegava ao final, ao expli- car o significado de palavras tais como conquistar, reducir e rescatar, as correrias “niio passavam de puras expediges de escravizago”.” Quanto ao uso da palavra conquistar na Amaz6nia peruana ele declarou: “Tem © mesmo significado da Palavra inglesa ‘conquista’, sem divida para obter mao-de-obra através da forga”. 46 ee) No entanto ainda resta saber até que ponto Arana tentava enganar e despis- tar conscientemente a Comissiio ou se apenas, como uma espécie de reflexo, tirava vantagem de um modo de se expressar comum entre os brancos envolvi- alos nto ciclo da borracha, no Putumayo — “o senso comum do ciclo da borracha” . © qual, para os ingleses da Comissao, fazia pouco ou nenhum sentido. Eles fertam (los os motives para ouvir com maior respeito seu compatriota, o st. Vnock, Alem de sua experiéneia nos trépicos, havia muito de se orgulhar no que dlizia respeito aos ingleses, quando comparados com os peruanos, em seu res- preity pelo trabalho livre, pela verdade e pela incomparivel capacidade da lingua inglesa em apreender e transmitir fatos. O st. King, da Comissao Seleta, interro- gou John Gubbins, presidente do Conselho de Diretores da Companhia Amazé- utea Peruana ¢, durante 38 anos, residente no Peru. “Sua experiéneia com aquele pais o leva a dizer que, no tratamento dos nativos, os Pemanos em geral observam o mesmo padrio que os ingleses?" “Nao dlirta que seja um padrao tio elevado assim, mas, de acordo com minha expe- Mencia pessoal, cles eram bem tratados.” tas os peruanos nao aleangam o mesmo padrio?” Nao.” *O senhor diria que existe o mesmo respeito pela vida humana no Peru, quando moray la, como existe em Londres? Nao insistirei com o senhor em relagao a esse ponto. © senhor diria que na vida piblica do Peru vigora o mesmo padréo de verdade, moralidade publica ¢ auséncia de corrupgiio que se verifica em Londres?” um axioma em toda a América espanhola”, respondeu o sr. Gubbins, “que a pa- lavra de um inglés esté em primeiro lugar. A palayra de um inglés é considerada tio valiosa quanto qualquer outro vinculo de nacionalidade."* E também o caso de assinalar que sem a estima pela palavra de um inglés e sem ingleses como o st. Gubbins nao teria existido a Companhia Amazénica Pe- ruana. Juntando o capital inglés ao know-how de Arana e ao bom senso do ciclo da borracha, o sr. Gubbins ¢ seus pares associavam-se ao terror daquele ciclo, cuja titica de pressionar os indios a colher a borracha pode ser verificada no modo como a palavra de um inglés e a de um peruano se confrontaram em um outro contexto, conforme ocorreu quando Charles Reginald Enock e Julio César Arana foram testemunhar perante a Comissao Seleta. Talvez o honrado inglés nao fosse muito mais correto do que o canalha Arana, ao afirmar que a conquista significava obter mio-de-obra por meio da forga, ao passo que o canalha dizia que ela significava atrair a simpatia dos indios, a fim de haver um sistema de trocas, Talvez ambos estivessem errados — um erro que se exprimia de maneira mutamente dependente, alids —, pois nenhuma de suas declaragoes evidenciava © que ocortia na conquista € na servidio que as dividas instauravam, como se cada um dos dois representasse unicamente um dos polos exteriores que defi- niam as limites do espago no qual a conquista e a escravidio econdmica dos peves funcionavam. Nao era sequer 0 caso de se imaginar que essa subordinagao do indio fosse aleangada por meio de uma mescla de forga e trapaga ou de armas 47 Sia an © PeNasio ou ainda de conquista através do escambo ou do escambo através da eonquista. Todo esse modo de pensar ndo passa de um truismo que Preserva a scparagio des dominios, mesmo quando eles se misturam: violéncia ¢ ideologia, Pvfer ¢ conhecimento, forga e discurso, economia e superestrutura... Enock exa- ger a questio: “conquista significa obter mao-de-obra por meio do emprego da fora™ — conforme a acepgdo em inglés. Arana, astucioso, dissimula: “atrair simpatias” — conforme a acepgio em espanhol. Mas quando confrontamos os dois idiomas o que resulta nio € a mesela da forga com aquilo que Rocha deno- minava a arte da persuasio verbal, mas uma concepgdo bastante diversa, na qual © corpe do indio, no processo de sua conquista, na escravidao econémica a que cle ¢ submetido ¢ no fato de ser torturado, dissolve aqueles dominios, de tal moxlo que a violéneia ea ideologia, o poder e 0 conhecimento tomam-se um sé, a exemple do que acontece com o proprio terror. O bom, 0 mau e 0 feio: 0 lugar do grotesco e os rituais do melodrama na guerra e na tortura da economia politica Conforme quis o destino, Hardenburg descia 0 rio de canoa, em 1907, quando as homens de Arana desfechavam seu ataque final, ao longo do Carapa- rand, contra as comerciantes de bortacha colombianas que se recusavam a ven- derthes a mercadoria ou a juntar-se a eles. Um deles, David Serrano, contou a Hardenburg que um més antes uma “comissao” de Arana o amarrara a uma 4r- vore € em seguida (conforme as palavras de Hardenburg) “esses empregados- madiclo da companhia civilizadom, conforme denominavam a si mesmos, entraram 4 forga no quarto de sua mulher, arrastaram a infeliz criatura para a varanda e ali, diante dos olhos torturados do indefeso Serrano, o chefe da comissao violentou sua infeliz vitima”, Levaram toda sua bortacha, juntamente com sua mulher e filho, Serrano soube mais tarde que “ela estava sendo usada como concubina pelo criminoso Loayza, enquanto seu meigo filho servia de criado ao repugnante monstro”, Miguel Loayza era um dos principais capatazes de Arana, e o que pareceu igualmente repugnante a Hardenburg era fato de que se tratava “de um mestigo acobreado, de olhar astucioso, que artanhava um pouco de inglés (e) ao que parecia, passava a maior parte do tempo banhando-se em Agua-de-cheito e entretendo-se com suas varias eoncubinas”.** Era, sem diivida, um tipo que néo Se recomendava. Decortidas algumas semanas, Serrano foi atacado novamente, Dessa vez ele fugiu para a floresta, deixando para Arana seu pequeno dominio de indios e borracha. Em outro lugar dessa expedigiio, 140 homens de Arana atacaram vinte Sona com uma metralhadora no seringal de La Union. Desfraldando a leita de sua nagio, os colombianos defenderam-se durante meia hora, antes de deixar sua borracha e suas mulheres nas mios das peruanos, Feito prisioneiro 48 por Loayza, Hardenburg testemunhouw o destino de uma dessas mulheres, gravida de muitos meses ¢ concedida ao capitio daquela pilhagem: “Esse monstro hu- mano, unicamente preocupado em aplacar sua sede animal de lascivia ¢ sem levar em conta o grave estado de saiide da infeliz mulher, arrastou-a para um lugar retirado e, apesar dos gritos de afligio da infortunada criatura, violentou-a sem compaixio”.” Funeiondrios colombianos, bem como comerciantes de borracha, foram brutalizados de virios modos, confinados em jaulas imundas, onde Hardenburg os viu cobertos de escartadas, ridicularizados e, conforme escreveu, “ultrajados diariamente por palavras ¢ atos, do modo mais covarde possivel”. O comerciante colombiano Aquileo Torres foi tratado desse modo, acorrentado por mais de um ano como um animal selvagem. Era 0 que se contava. Ao ser solto tornou-se um dos gerentes mais siidicos dos seringais de Arana, mostrando-se especialmente incli- nado a desmembrar os corpos dos indios enquanto ainda estavam vivos, Hardenburg evoca o ritual grotesco ¢ melodramitico como uma parte orga- nica dos conflitos que se deram durante o ciclo da borracha, naquela infeliz re- gido do rio Putumayo. Sua forma de expressio combina-se com as formas exprimidas. Organizados como ritas de_degradagio, esses ataques eram (con- forme narrou Casement perante a Camara dos Comuns) organizados pelos irmios Arana a fim de esbuthar as colombianos, que nio cram apenas competidores, mas ofereciam refigio aos indios fugidos da perseguigio da companhia; © enquanto esses estabelecimentos independentes existissem no Caraparand, os indios acorre- riam para la, ¢ essa cra uma forma de escapar da regiio.”” Aquilo que, segundo Hardenburg, surgia como uma brutalidade desprovida de sentido, estartecedora, em um teatro de sensual crueldade, de acordo com Casement tornava-se 0 desfecho Idgico da “competigdo por recursos escassas” — nesse caso, os da “mio-de-obra”, Onde Hardenburg fetichiza, Casement rei- fica; so os dois lados de uma tinica moeda. A légica de Casement era peculiar, para dizer o minimo, e, em uma anilise final, ela ndo poderia ser separada dos rituais teatrais do conilito armado ¢ do terror, subentendidos como meios de um fim mais substancial. Com efeito, em outra passagem Casement comentou que o violento esbulho, praticado contra os co- merciantes colombianos de borracha independentes, zombava da légica, cujo ob- jetivo era garantir a borracha ao garantir protegao aos indios. “Os roubos constantes de indios, praticados por um cauchero (comerciante de borracha) em telagio a outro”, escreveu ele em um de seus relatérios dirigidos a Sir Edward Grey, “leva- tam a represdlias mais assassinas e sanguindrias do que tudo que um indio jamais infligira a outro indio. O objetivo primordial de conseguir a borracha, que podia ser obtida unicamente através do trabalho dos indios, era freqiientemente perdido de vista, nesses desesperados conflitas”.* Alguns anas mais tarde, ao observar funcionrios embriagados da companhia empaparem os indias com querosene e os 49 queimarem vivos durante uma festa de aniversirio, Urcenio Bucelli enunciou 9 mesmo paradoxo perverso: “Estos indios traen tanto caucho y sin embargo se les mata — Estes indios trazem tanta borracha € no entanto os matam”.”” E curioso notar que, em 1915, o juiz peruano Carlos Valedrcel fez a se- guinte observagao, 4 margem do registro de Bucelli sobre esses atos: “Hé alguns anos um padre da cidade de Bambamarea, na sierra do Peru setentrional, quei- mou uma mulher viva porque ela era acusada de ser uma bruxa”. A histéria da criminalidade, prosseguia 0 juiz, “nos revela que as mais atrozes torturas, tais como queimar gente viva, tém sido aplicadas quase sempre por motivos religio- sos ou politicos”.®” © imortal Prescott, em sua History of the conquest of Peru {Histéria da conquista do Peru] Jevantou essa questo, ao preocupar-se com o triste fato que se abateu sobre os nobres Incas. “Nao € evidente por que esse modo cruel de execugao foi adotado com tamanha freqiiéncia pelos conquistado- res espanhdis”, escreveu ele, “a menos que se desse que o indio era um infiel, ¢ 0 fogo, desde épocas remotas, parece ter sido considerado como uma condenagao apropriada a um infiel, como prefiguragdo daquela chama inextinguivel que o aguardava nas regides dos malditos”.*" De certo modo forjado Muito, se no a maior parte do vigor das revelages de Hardenburg se deve nio aquilo que ele vivenciou ow viu de primeira mao, mas aquilo que apreendeu de relatos publicados em dois “jornais” de Iquitos, de curta duragio, La Sancién e La Felpa, ao que tudo indica especialmente criados para atacar Arana € os procedimentos de sua companhia. O primeiro mimero de La Sancién anunciava que se tratava de uma publicagao bissemanal, comercial, politica literdria, dedi- cada a defender os interesses do povo. Ocupando grande destaque no centro da primeira pigina encontrava-se um longo poema, “El socialismo”, elogiando a causa socialista com indisfargada paixao. Os relatos desses jornais parecem ter contribuido muito para o modo como Hardenburg representou o horror do Putumayo, pois nao apenas eram locais e, portanto, “auténticos”, mas também porque davam forma impressa a boatos ver- bais, Além disso, tais relatos davam 4 sua experiéncia pessoal, limitada e frag- mentada, uma visio mais ampla ¢ abrangente. Algumas de suas proprias observagées foram transmitidas com um vigor irreal, que lembrava aquela mesma atmosfeta distanciada do espago da morte encontrada em Heart of darkness. Ele, por exemplo, recordava quando andava em torno do seringal de El Encanto, onde era prisioneiro: O mais penoso de tudo era ver os doentes ¢ os moribundos prostrados na casa € nes matin adjacentes, incapazes de se moverem € sem ninguém que os ajudasse em sua agonia. Aqucles pobres infelizes, sem remédios, sem alimento, eram expostos aos raios ardentes JO 50 | sol a pino, AS fhias chuvas e ao gétido orvatho da madrugada, até a morte os livrar de seus softimentos. Hntio seus companheitos cartegavam os cadaveres ftios — muitos dos quais em um estado de quase completa putrefagio — até 0 rio, ¢ as diguas amareladas e turvas do ‘Caraparand se fechavam silenciosamente sobre eles, Este trecho preeisa s conversas r comparado com aquilo que ele construiu a partir das Aqui a necessidade de procurar um tom sensacionalista é dolorosa- mente Sbvia ¢ move-se a partir da qualidade real do sonho, distanciado, inevitd- vel, cimotivo, em diregio ao histriénico: “Armados com facées, os indios penetram nas profundezas da floresta, retathando assustadoramente cada seringueira que en- contram, cortando-a freqiientemente tanto e tio fundo, em seus frenéticos esfor- gos de extrair a tiltima gota de leite, que enormes quantidades de drvores morrem anualmente”.* Mas 0 histridnico no poderia ser verdadeiro? Durante alguns meses, de outubro de 1907 até serem violentamente suspen- sos, La Sancién e La Felpa, os dois jornais publicados em Iquitos, veiculavam historias horrendas das atrocidades praticadas nos seringais de Arana, Na ver- dade toi a corajosa publicagio, no final de 1907, da dentincia ainda mais corajosa de Benjamin Saldana Roea perante o juiz do Tribunal de Justiga de Iquitos que provocou (pelo menos na aparéneia) uma preocupagao nacional por um inuérito judicial rigoroso e também facilitou uma mudanga na realidade, fazendo com que os boatas se metamorfoscassem em fatos € a historia se tomnasse verdade. Na relagio social daquilo que € falado € daquilo que é publicado, do que boato ¢ do que é noticia de jornal, freqtientemente chega um momento em que estes tiltimos nao sé dignificam, enquadram, condensam, generalizam e afirmam © primeiro, como, grgas a isso, apresentam um espelho pata a comunidade como um todo — é um meio de gerar e fixar a autoconsciéncia coletiva. No caso das atrocidades do Putumayo, esse tipo de confirmagao da realidade através da noti- cia impressa envolvia a ténue tensdo consciente do fascinio e da repulsa, ligando o fantastico ao crivel. Raramente os dois combinam como o fizeram de modo tio petturbador, como ocorreu durante ciclo da borracha, quando Peter Singleton- Gates ¢ Maurice Girodias reagiram as negativas da missio diplomatica peruana em Londres, que afirmava que La Sancién e La Felpa eram desonestos que as histé- rias por eles publicadas eram fantisticas: “Eram fantésticas, sim*, responderam Sin- gleton-Gates e Girodias, “sua prépria autenticidade é que as tornava fantasticas” * No primeiro artigo publicado em Truth e como climax ao capitulo central intitulado “O paraiso do diabo”, que consta de seu livro, Hardenburg cita “os seguintes fatos”, que parecem ser traduzides de La Sancién. Boa parte de suas acusagdes, em seus detalhes individuais, conforme foram recolhidos de testemu- nhos dados perante a justiga e de cartas dirigidas ao editor daquele jornal, bem como em seu tom, podem ser vistas como uma elaboragdo desse tipo de escrita: Eles foryam as pacificas indios do Putumayo a trabalhat dia € noite na extragio da borracha, sem a menor remuneragao; nada thes dio para comer; as mantém na mais com- pleta nudez; roubam suas colheitas, suas mulheres e seus tithas a fim de satistazer sua 31 Voracidade, lascivia ¢ a avarera que demonstram em relagio a si mesmos ¢ a seus emprepa dos, pois vive a custa da comida dos indios, mantém haréns ¢ concubinas € vendem exe, gente no atacado ¢ no varcjo em Iquitos; chicoteiam-nos de modo desumano até 08 05508 sg tomarem visiveis; nao thes dao tratamento médico algun, mas deixam-nos morrer, Comidos pelos vermes, ou entio as servem de alimento para es cachorros dos chefes (isto & os adminis. tadores dos seringais); castram-nos, cortam suas orelhas, dedos, bragos, pernas... E também torturavam os indios por meio do fogo, da agua, € os crucificavam de cabega para baixo. Os empregados da companhia reduziam os indios a pedagos por meio de facdes e faziam espirrar 0 cérebro das criancinhas, arremessando-as contra drvores e paredes. Os mais velhos eram mortos quando nao tinham mais condigdes de trabalhar e, para se divertirem, os funciondrios da companhia trei- navam a pontaria usando os indios como alvo. Em ocasides especiais como a Sexta-feira Santa e a Pascoa abatiam-nos a tiros em grupos ou, de preferéncia, lambuzavam seus corpos com querosene e tocavam fogo neles, divertindo-se com sua agonia.® Em outra carta dirigida a Hardenburg em 1909 por um empregado da com- panhia e posteriormente publicada em seu livro, lemos que uma “comissio” foi enviada pelo administrador de um seringal a fim de exterminar um grupo de indios devido ao fato de eles nao trazerem borracha em quantidade suficiente. A comissao regressou dentro de quatro dias com dedos, orelhas e varias cabegas de indios, para provar que havia cumprido as ordens recebidas.” Mais tarde o escri- tor viu prisioneiros indios serem abatidos a bala e queimados. A pilha ardente de carne erguia-se a apenas 150 metros do seringal. Isso ocorreu em um dos dias do camaval de 1903. Os “empregados mais graduados” da companhia, notou Har- denburg, brindavam com champanhe aquele que conseguisse contar o mimero mais elevado de mortes. Em outra ocasiao, no seringal do Ultimo Retiro, o admi- nistrador, Inocente Fonseca, convocou centenas de indios. Empunhou a carabina, © facdo € comegou a massacrar aquela gente indefesa, deixando 0 chao coberto com mais de 150 cadaveres de homens, mulheres e criangas. Foi o que Harden- burg escreveu a seu correspondente, ¢ a transcrigao se encontra em seu livro. Banhados em sangue e suplicando cleméncia, prosseguia a carta, os sobreviven- tes foram empilhados com os mortos e queimados até morrerem, enquanto 0 administrador, Inocente, berrava: “Quero exterminar todos os indios que no obedecerem minhas ordens sobre a borracha que exijo que tragam”.** O autor nao nos explica por que os indios foram “convocados”. Talvez nao soubesse. Talvez nao existisse um motivo. Talvez fosse dbvio. O acontecimento — talvez ritual seja o termo correto — mais emblematico do terror instaurado no Putumayo, citado por Hardenburg e Casement a partir de testemunhos publicados em La Felpa em 1908, dizia respeito a pesagem da bor- racha que os indios traziam da floresta. Em seu relatério a Sir Edward Grey, Casement declarou que essa descrigdo lhe foi repetida “varias e varias vezes. por homens que tinham sido empregados naquele trabalho”. 52 od O indio € de tal modo humilde que, assim que pereebe que marca os dez. quilos, est ‘ de ile as Mas para diante © joga-se no ch 10. Entao o chefe (do seringal) ou um subordinado avang: osu cubega, agarra 0 indie pelos cabelos, calea seu rosto no chiio; depois que © testo € yolpeado, recebe pontapes € fica coberto de sangue, o indie & agoitado, E quand tratudos melhor, pois, com frequencia, cortam-nos em pedacinhos com [acdes,” agutha da balanga nie », a fim de receber o Creio que em tude isto existe um tom sinistro © excessive, que gera o ccti- cismo, nao menos do que o temor e o horror. Pode-se entender David Caze! vice-cénsul britinico em Iquitos de 1902 a 1911 (cuja firma comercial depend da companhia de borracha de Arana) quando, ao reponder as perguntas a ele diri- gidas em 1912 pelo Comissao Seleta da Camara dos Comuns, declarou: Comecei a ler os dois primeiros mimetos (de La Felpa ¢ La Sancién), mas julguci uum tanto fantastices, devido aos horrores que descreviam, Una situagi cia-me inacteditivel e deixei de levi-los para casa, Minha € ha companhia ¢ acho que eles exerciam sobre cla um efcito muito forte... Suponho, agora que conhego as coisas melhor, que provavelmente deveria ter thes dado muito mais crédito, mas, naquele momento, eu pensava de fato que essas noticias, de certo modo, cram forjadas.°* tio horrorosa pa post enicontrava-se Histérias que, segundo parece, exerceram forte efeito sobre a sra. Cazes parecem ao vice-cénsul, seu marido, de certo modo forjadas, como se 0 lago matrimonial padecesse com aquelas incémodas narrativas, que vinculavam o horror a sua descrigao. Talvez sintamo-nos na obrigacao de indagar que verdades tais historias en- cerravam e em que ponto, na cadeia da linguagem que liga a experiéncia a sua expressdo, entra 0 tom melodramatico: ao expressé-los, nos acontecimentos des- critos ou em ambos? Tal cadeia de questionamentos assume um mundo divisivel em fatos reais € representagdes de fatos reais, como se os meios de representagao constituissem mero instrumento € nao fonte de experiéncia, “Toda uma mitologia esta deposi- tada em nossa linguagem”, notou Wittgenstein, incluindo, podemos notar, a mi- tologia do real e da linguagem como algo transparente. Mas para o vice-consul, com sua esposa fortemente afetada, de um lado, € do outro seu apoio econdmico — Julio César Arana — contestando vigorosa- mente as representagdes do terror, esta concepgio banal sobre a divisibilidade dos fatos em relagao a suas representagdes deve ter parecido simploria. Partir da avaliagao do vice-consul, preso entre uma esposa ¢ um Arana, para a avaliagio do cOnsul-geral Casement significa comegat a apreciar o poder da obscuridade epis- temoldgica na politica da representagao. 53

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