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A Antropologia Redescobre a Sexualidade: Um Comentario Teérico” CAROLE S. VANCE ** “No comego era 0 sexo ¢ 0 sexo estaré no firn cestaé a minha tese—que osexo como caracteristica do horrem eda sociedace sempre foi central eassim vai comtinuar éser[...J”” Alexander Goldenweiser (1929) Esta frase inicial do ensaio de Alexander Goldenweiser, “Sexo ¢ Sociedade Primitiva”,' sugere que a sexualidade tem sido um foco importante para a investigagao antropolégica. Na verdade, essa ¢ a reputagao que os antropélogos conferiram a si mesmos: investigadores destemidos dos costumes e praticas sexuais ern todo o mundo, rompendo os tabus intelectuais erotofébicos comuns em outras disciplinas mais timidas. Na realidade, a relagao da Antropologia com o estudo da sexualidade é mais complexa ¢ contraditéria. Como uma drea de conhecimento, a Antropologia * Gostaria de agradecer Ftances M. Doughty pelas conversas proveitosas, sugestes editorials inestimaveis e estfmulo generoso. Sou grata a Shirley Lindenbaum pelos seus comentarios, paciéncia © entusigsmo. Meus agradccimentos também a Lis Duggan, Gayle Rubin, David Schwastz, Gilbert Zicklin, Jonathan Katz, Janice Irvine, Ann Snitow, Nan Hunter, Jennifer Terry, Jacqueline Urla, Libbett Crandon, William Hawkeswood, Jeanne Bergman, Faye Ginsburg e 60s revisores andnimos de Saciai Science and Medicine pelos seus comentarios. Agradego a Pamela Brown-Peterside pela assisténcia na pesquisa, Bste artigo foi inicialmente apresentado na mesa- redonda “A Antropologia Redescobre 0 Sexo”, na rcuniao anual da American Anthropological Association em 1988, Agradego a coordenadora de enconiro. Shirley Lindenbaum. c aos partici- pantes do mesmo pelo didlogo estimulante. Os comentdtios feitos pelos membros do Coliquio de Antropologta Médica na Universidade de Columbia também me foram bastante Gteis. A respon- sabilidade pelas opinibes expreseas neste artigo ¢ inteiramente minha. ++ Professora do Departamento de Ciéncias Soc:omédicas, Escola de Satide Publica da Universidade de Cobiimbia, 600 West 168 Street, New York, NY 10052, U.S.A. L.A. Goldeaweiser, “Sex and Primitive Society”, in V. 1. Calverton eS. D. Schmthausen, eds., Sex in Civilization, Nova lorque, Maceuiay Company, 1929, p. 53. 8 PHYSIS — Revista de Satide Coietiva Vol, 5, Numero i, 1995 tem sido muito pouco corajosa ou até mesmo adequada em sua investigagio da sexualidade.? Ao contrério, a disciplina muitas vezes parece partilhar a visio cultural predominante de que a sexualidade nao é uma area inteiramente legitima de estudo, langando ditvidas néo 86 sobre a prépria pesquisa, mas também sobre os motivos e 0 cariter do pesquisador. Nisio, nfo temos sido. piores, mas também ndo temos sido melhores do que outras disciplinas das Ciéncias Sociais. Manifestagies dessa atitude sao abundantes na pés-graduagao e na estrutura de remuneragio da profisséo. Poucas departamentos de pos-graduacao ofere- cem treinamento ne estudo da sexualidade humana. Em conseqtiéncia, nao existem canais estruturados para transmitir o conhecimento antropolégico sobre a sexualidade para a proxima geracio de estudantes. A auséncia de uma comupidade académica comprometida com as questdes da sexualidade impede, na verdade, progressos nesta rea; aqueles que se interessam pelo assunto percebem que tém de redescobrir sozinhos o trabalho de gerages passadas. A maioria dos orientadores tenta ativamente dissuadir seus alunos de realizarern trabalhos de campo ou dissertagSes sobre a sexualidade por receio que 0 assunto venha a colocar suas carreiras em risco. Na melhor das hipéteses, os estudantes so aconselhados a completar o doutorado, a construfrem reputagies e creden- ciais € até a conseguircm cstabilidade em seu cargo académico, para cntao se envolyerem com o estudo da sexualidade. Em lugar do esforco coletivo neces- sdrio para corrigir uma séria limitagio estrutural na Antropologia, esse conselho transmite a mensagem clara de que a sexualidade ¢ uma rea intelectual to petigosa que pode aruinar as carreiras de estudantes de pés-graduagiio e académicos que s4o, sob outros aspectos, competentes. Sequer existe um plano de carreira depois da pés-graduagao para os antro- pdlogos profissionais que se interessam pela sexualidade. Sem atingir jamais o status de uma especializacio apropriada, a sexualidade continua a ser marginal. Os recursos sdo escassos, pois os érgios financiadores continuam a temer 0 potencial de controvérsia piiblica que o assunto suscita. Os colegas freqiiente- mente permanecem desconfiados ¢ hipercriticos, pois © desconforto com 0 préprio tema da sexualidade é vazado em termos de adequacdo ou legitimidade. académica.* 8 muito raro que os projetos de campo focalizem plena e direta- 2. L. Fisher, “Relationships and Sexuslity in Contexts and Catture”. in B.B. Wolman c J. Money, eds. Handbook of Sexvatity, Englewood Cliifs, Prentice Hall, 1980, p. 64; ¢ D. L. Davise R. G. Whitten, “The Cross-Cultural Study of Hurnan Sexuality”, Ann, Rev. Anthropol, val. 16, pp. 69-98, 1987 3. A julgor pela minha experiéncia pessoal, a resisténeia pode ter efeitos paradoxais, Em 1977 a solicitagao de uma subvengao para completar uma bibliografia comentaca antropolégica conven- ‘A Antropologia Redescobre a Sexualidade = 9 mente a sexualidade, se é que o fazem; além disso, os pesquisadores coletam dados que podem, muitas vezes, nao ser publicados por medo de prejudicar a feputacdo profissional dos esrudiosos. Alguns antropélogos se retiram para a sexologia, talvez mais hospitaleira, mas ela propria também é seriamente limitada como um gueto intelectual de refugiados disciplinares.* A luz desses desencorajamentos, talvez ndo seja surpreendente que o recente desenvolvimento de um discurso mais cultural e ndo essencialista sobre a sexualidade no tenha surgido do centro da Antropologia, mas de sua periferia, de outras disciplinas (especialmente da Histéria) e do pensamento tedrico de grupos marginais. O aparecimento de trabalhos interessantes e desafiadores durante os tiltimos 15 anos, no que veio a ser chamada de teoria da constru¢ao social, ainda nao se fez. sentir plenamente na Antropologia. A histéria intelectual da teoria da construgao social ¢ complexa, ¢ os momentos apresentados neste artigo servem como ilustracio, nio sendo uma revisfio abrangente.* A teoria da construciio social reccrreu a varias correntes na Sociologia: interacionismo social, teoria dos rétulos e nog&e de teoria do desvio:® histéria social, estudos do trabalho, historia das mulheres e historia marxista;’ ¢ na antropologia simbética, andlises transculturais sobre a sexuali- cional das influéneias bioculturais sobre a sexualidade me foi negada sob o pretext de que a investigadora “era jovern demais pana sealizar pesquisa sobre este Lépico’” e, sendo incapaz de ler Japonés, “aio podia ler a nova ¢ importante literatura sobre os macacos japoneses no original”. Longe de me desencorajarem, esses comentérios aumentaram sind mais 0 meu interesse. pois as reacées voliteis des antropdiogas pareciam merecer, pelo menos, atengao igual 8 dispensada ao maatetial transcultural 4, CS. Vance, “Gender Sistems, Ideology and Sex Research”. in A. Snitow et alfi, eds., Powers of Desire, Nova lorque, Monthly Review Press, 1983, p. 271; € 5. Irvine, Disorders of Desire, Filadéifia. Temple University Press, 1990. 5. Para textos basicos. ver J. Katz. Gay American History, Nova Torque, Crowell, 1976: J. Weeks, Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the 19h Century to the Present, Londres, Quartet Books, 1977; R. A. Padgug, “Sexual Matters: On Conceptualizing Sexuality in History”, Radical History Review, vol. 20. pp. 3-23. 1979; J, Weeks, Sex, Politics and Society: The Regulation of Sewaliry since 1800, Nova lorque, Longmen, 1981: A. Snitow 2i alii, eds., Powers of Desire.... op.cits, 1. Katz, Gay Lesbian Almanac, Nova Torque, Harper and Row, 1983; C. S. Vance, cd., Pleasure arid Danger: Exploring Female Sexuality, Nova lorque, Routledge & Kogan Paul, 1984: J. Weeks. Sexuality, Londres, Tavistock, 1986; C. Peiss C. Simmons. eds.. Passion and Power: Sexaulity in History, Filadélfia, Ternple University Press, 1989; J. D'Emilio ¢ E. B. Freedman, fntimate Matters: A Social History of Sexuality in America, Nova lorque, Hamper ard Row, 1988; D. Altman ef alti, eds, Homosexuality. Which Homosexuality? Avasterdl, An Dekker/Schorer, 1989: M. B, Duberman er alii, eds.. Hidden from History: Reclaiming ihe Gay and Lesbian Past, Nova lorque, New American Library, 1989. 6. J, H. Gagnon e W. Simon, Sexual Conduct: The Social Sources of Human Sexuality, Chicago, Aldine, 1973; K. Plummer. "Symbolic Interactionism and Sexual Conduct: An Emergent Perspec- tive”. i M. Brake, ed_, Human Sexuai Relations, Nova Torque, Pantheon, 1982, 7, L. Duggan, “From Instiacts to Politics: Writing the History of Sexuality in the U.S.”. Journal of Sexual Research, vol. 27, p. 95, 1990. 19 PHYSIS ~~ Revista de Sade Coletiva Vol. 5, Namero 1, 1995 dade ¢ estudos do género, para mencionar apenas as correntes mais significa- tivas. Além disso, teéricos de muitas disciplinas reagiram aos novos temas Jevantados pelos estudiosos das quest6es feministas, gays e lésbicas a respeito do género e da identidade. Sexualidade e género As feministas académicas e ativistas implementaram o projeto de repensar 0 género, 0 que teve um impacto revoluciondrio sobre as nogdes do que é natural. Os esforcos feministas se concentraram em uma revisao critica das teorias que usavam a reproduco para ligar 0 género com a sexualidade, explicando dessa forma a inevitabilidade e a naturalidade da subordinagio das mulheres. s O reexame tedrico levou a uma critica geral do determinismo biolégi¢o, em particular do conhecimento baseado na biologia das diferengas sexuais.” A evidéncia histérica e do cruzamento de varias culturas minou a nogio de que ‘os papéis das mulheres, que variavam tio amplamente, pudessem ser determi- nados por uma sexualidade e reprodugdo humana aparentemente tao uniformes. A Ina da diversidade dos papéis de g@nero na sociedade, parecia improvavel que estes fossem inevitdveis ou causados pela sexualidade. A facilidade com que essas teorias tinham sido aceitas sugeria que a ciéncia era regida ¢ mediada por poderosas crengas sobre o género, ¢ que cla dava, por sua vez. apoio ideolégico its relagdes sociais correnies. Além disso, essa maior sensibilidade aos aspectos ideoldgicos da ciéncia acarretou uma investigagéo de grande alcance sobre a conex4o histérica entre a dominagao masculina, a ideologia cientifica, e 0 desenvolvimento da ciéncia ¢ da biomedicina ocidentais.'” A pratica fominista do ativismo militante também fomentou andlises que 8. Paraa Antropologia, var. Reiter, ed., Toward an Anthropology of Women, Nova Lorque, Monthly Review Press, 1975; M. Z. Rosaldo ¢ L. Lamphere. eds.. Women, Culture and Society. Stanford, Stanford University Press, 1974; L. Lamphere, “Anthropology: A Review Essay, Signs, vol. 2. p. 612, 1977; R. Ragp, “Anthropology: A Review Essay”, Signs, vol. 4, p. 497, 1979; J. M. Atkinson, “Anthropology: A Review Essay”, Signs, vol. 8, p. 236, 1982; H.L. Moore, Feminism and Anthropology, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1988, 9. R Bleiet, Science and Gender: A Critique of Biology and its Theories on Wemen, Nova Torque, Pergamon Press. 1984: A. Fausto-Sterling, Mfytits of Gender: Biological Theories abou Women and Men, Nova lorque, Basic Books, 1985; J. Sayers, Biological Politics: Feminist and Anti-Fe- rninist Perspectives, Nova lorque, Tavistock Publication, 1982; M. Lowe c R. Hubbard, Wonien’s Nature: Ravionalizaiions of Inequality. Nova Torque. Pergamon Press, 1983; R. Hubbard, et alli, eds., Biological Woman: The Convenient Myth, Cambridge, Schenlanan, 1982; E. Tobach e B. Rosoft, eds., Gones and Gender, Nova lorque, Gordian Press, vols. 1-4, 1978. 10. S. Harding, The Seience Question in Feminism, \haca, Cornell University Press, 1986; L. Schiebinger, The Mind Has No Sex: Women in the Origin of Modern Science, Cambridge, Harvard A Antropologia Redescobre a Sexualidade 11 separavam a sexualidade e 0 género. As lutas populares para promover 0 acesso. das mulheres ao aborto e ao controle da natalidade representavam uma tentativa de separar a sexualidade da reprodugao ¢ do papel das mulheres enquanto esposas e mies. As discussies em grupos de conscientizacio deixavamn claro que © que parecia ser um corpe naturalmente marcado pelo género era, na verdade, um produto mediado socialmente em alto grau: a ferninilidade e os atrativos sexuais eram alcangados por uma persistente socializagaéo com respei- to aos padres de beleza, maquiagem e linguagem corporal. Finalmente, as discussdes entre geragées diferentes de mulheres explicitavam a variabilidade deuma sexuatidade pretensamente natural, que em nosso proprio século passara do dever conjugal ao orgasmo miltiplo, de erotisme vaginal ao clitoridiano, e da auséncia de paixiio vitoriana a um entusiasmo adequadamente feminino. A sexualidade e o género andavam juntos, ao que parecia, mas de uma forma que estava sujeita a mudaneas. Em 1975, o influente ensaio da antropéloga Gayle Rubin, “The Traffic in Women”, apresentou uma argumentagio imperiosa contra as explicagdes es- sencialistas de que.a sexuatidade e areprodugio causavam adiferengade genera de maneira simples e inevitavel.! Em lugar disso, cla investigava a forma de “sam aparato social sistemtico que toma as fémeas como matérias-primas ¢ molda muiheres domesticadas como produtos”.”? Ela propunha o termo “siste- ma sexo/género” para descrever “o conjunto de medidas mediante 0 qual a sociedade transforma a sexualidade biolégica em produto da atividade humana 2 essas necessidades sexnais transformadas sao satisfeitas”."? Em 1984, Rubin sugeriu ainda outra desconstrugdo do sistema sexo/género, dividindo-o em dois dominios, em que a sexualidade e o género eram reconhe- cidos como sistemas distintos,'* A maioria das andlises feministas anteriores University Press, 1989; B. Ebrenteich ¢ D. English, For ker Own Good: 150 Years of Experts Advice w Women, Nova lorque, Doubleday, 1979; G. J. Barker-Benficld, The Horrers of ihe Half-Known Life, Nova lorque, Harper and Row, 1976; D. Haraway, Primate Visions: Gender, Race and Nature in the World of Modem Science, Nova Torque, Routledge, 1989; L. I. Jordanova, Sexual Visions: Images of Gender in Scienve and Medicine heween the Eighteenth and Twentieth Centuries, Madison, University of Wisconsin Press, 1989; B. F. Keller, Reflections on Gender and Science, New Haven, Yale University Press, 1984; 8. Harding ¢ M. Hintikka, eds., Discovering Reality: Feminist Perspectives om Epistemology, Metaphysics, Methodology and Philosophy of Science, Dardrecitt, Reidel, 1983. LL. G. Rubin, “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex”, in R. Reiter, ed. Toward an Anthropology of Women, Nova lorque, Monthly Review Press, 1975, p. 157. 12. Idem, p. 158, 13. Idem, 9. 159. i4, G. Rubin, “Thinking Sex", a C.S. Vance, ed., Pleasure and Danger... ap. tits, p. 267. 12 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5. Ndmero 1, 1995 considerava a sexualidade uma categoria totalmente secundaria cuja organiza- ¢ao era determinada pela estrutura da desigualdade de género. Segundo a formulacao de Rubin, a sexualidade e o género eram fenémenos analiticamente distintos que requeriam estruturas explicativas préprias, mesmo que fossem inter-relacionados em cireunstancias histéricas espectficas. As teorias da se- xualidade nao podiam explicar 0 género, ¢ fevando a argumentagdo para um novo patamar, as teorias do género nao podiam explicar a sexualidade. Esta perspectiva sugeriu uma nova estrutura: a sexualidade eo género sfio sistemas distintos entrelagados em muitos pontos. Embora os membros de uma cultura vivenciem esse entrelagamento como natural, sem costuras e organico, os pontos de conexiio variam historicamente e nas diversas culturas. Para os pesquisadores da sexualidade, a tarefa ndo consiste apenas em estudar as mudangas na expresso do comportamento ¢ atitudes sexuats, mas emexaminar a relagdio dessas mudangas com alteragées de base mais profundas no modo como 6 género é a sexualidade se organizam e inter-relacionam no dmbito de relagées sociais mais amplas. Sexualidade e identidade ‘Um segundo estimulo para o desenvolvimento da teoria da construgio social surgiu de questées que emergiram do exame da homossexualidade masculina na Europa e na América do século XIX.'* E interessante observar que uma porco significativa dessas primeiras pesquisas foi realizada por estudiosos independentes, por naio-académicos e por academias alternativas, que em gerat trabalhavam sem financiamento ou apcio universitario, pois nessa Epoca a historia da sexualidade (particularmente a de grupos marginais) nao era um tdpico considerado legitimo. Na medida em que esse campo de pesquisa atingin © minimo necessério para sua aceitagio acad&mica, tornou-se comum que pesquisadores formalmente vinculados a academia fizessem uma leitura desse. processo de producic de conhecimento a partir de Foucault e de The History of Sexuality." Sem negar sua contribuigdo, esta genealogia singutar obscurece uma origem importante da teoria da construgio social, 2 inadvertidamente dé a 15. J. Kats, Gay American History... op. cit:1. Weeks, Coming Out..op. vit 1. Weeks, Sem Politics and... op. cit; J. Katz, Gay Lesbian Aimanae..., 0p. cit, 16. M. Foucault, The History of Sexuality. Nova lorque, Pantheon, 1978. A Antropologia Redescobre a Sexualidade 13 universidade e a di: elas nunca apoiaram. A primcira tentativa de enfrentar as questées de identidade sexual de um modo agora conhecido como construgao social aparece no ensaio de Mary Mcintosh, de 1968, sobre o papel homossexual na Inglaterra.’” Apesar de se constituir em um marco de referéncia e oferecer muitas intuicdes sugestivas sobre a construcdo hist6rica da sexualidade na Inglaterra, suas contribuigdes no obtiveram teconhecimento algum até a metade dos anos 70, quando foram retomadas por escritores envelvidos com as questdes do feminismo da Jiberago gay. E nessa época que uma abordagem reconhecidamente construtivista apa- iplinas académicas 0 crédito de um desenvolvimento que rece pela primeira ver. Os primeiros estudiosos da histéria gay e lésbica tentaram recuperare reviver documentos, narrativas e biografias que haviam se perdido ou tormmado invisiveis devido 4 negligéncia histérica e 4s tentativas de suprimir esse material empreen- didas pelos arquivistas ¢ historiadores. Esses documentos ¢ a vida neles repre- sentada foram primeiro concebides como “lésbicos” ou “gays”, € 0 empreen- dimento como via busca de raizes histéricas. Os mesmos pesquisadores que iniciaram tal tarefa a partir de categor xuais fixas, passaram entéo a considerar outras formas de enfocar o seu material ea formular perguntas mais amplas. Jeffrey Weeks, historiador inglés que se dedica ao estudo da sexualidade, foi © primeiro a articular essa transig&io tedrica.'* Recorrendo ao conceito de McIntosh a respeito do papel homossexual, ele (ragou a distingdo entre com- portamento homossexual, que ele considerava universal, ¢ identidade homos- sexual, que ele via como um desenvolvimento histérica e culturalmente espe- cifico ¢, na Gra-Bretanha, relativamente recente. Sua rica e provocadora andlise da mudanga de atitudes e identidades também contextualizava a sexualidade, examinando sua relacio com a reorganizagao da famitia, do género ¢ do lar na Gra-Bretanha do século XIX. Os trabalhos de Jonathan Katz também se desenvolvem nessa mesma linha. Seu primeiro livro, Gay American History, esta inserido na tradigio da busca de antepassados gays.’” Ao realizar a pesquisa para o seu segundo Hvro, no entanto, ele comegou a considerar que os atos de sodomia registrados nos documentos coloniais americanos do século XVII talvez niio fossem equiva- 17. M. McIntosh, “The Homosexus! Role”, Sucial Problems, vol, 16, pp. 182-92, 1968. 18. J. Weeks, Coming Out.... op. cit. 19. J Katz, Gay American Histery.... op cit. |4 PHYSIS — Revista de Sande Coletiva Vol, §. Namero 1, 1995 lentes 4 homossexualidade contempordnea.”” A sociedade colonial nao parecia conceber um tipo Unico de pessoa — o homossexual — que praticava esses atos, nem havia evidéncia alguma de uma subcultura homossexual ou de individuos cujo senso subjetivo de identidade fosse organizado em tomno do que comprcendemos como preferéncia ou identidade sexual. Gay Lesbian Almanac marca um afastamento acentuado do primeiro livro, na medida em que registros ou relatos que documentam relagdes sexuais ou emocionais entre pessoas do mesmo sexo nao sao tomados como provas de identidade “gay” ou “lésbica”, mnas so tratados como pontos de purtida para uma série de questdes sobre os significados desses atos para as pessoas que os praticavam e para a culturae a época em que viviam. Esse desenvolvimento teérico também é evidente nos primeiros trabalhos sobre a formagao da identidade iésbica,”’ assim como naqueles que consideram a questéo do comportamento e da identidade sexwais em culturas nio-ociden- tais, como, por exemplo, o de Gilbert Herdt, na Nova-Guiné,” A partir desse volumose corpo de trabalhos”’ surgiram questionamentas muito interessantes: as categorias “homossexua!” c “Iésbica” sempre existiram? E se nio existiram, quais seriam os seus pontos de origem e suas condigGes para o desenvolvimen- to? Se atos fisicos idénticos tinkam significados subjetivos diferentes, como era construfdo 0 significado sexual? Se subculturas sexuais passam a existir, o que causa a sua formagia? Embora estas perguntas fossem inicialmente formuladas em termos de identidade ¢ histéria homossexual, é claro que sao igualmente 20, 1. Kaw, Gay Lesbian Almanac... op. eit. 21. N, Sahll, “Smashing: Women’s Relztionships before the Fall”, Chrysalis, vol. 8, 1979; L.. Rupp, *raagine My Surprise’: Women’s Relationships in Mid-Twersticth Century America”, Frontiers, n° 5, 1980; L., Faderman, Surpassing the Lave of Men, Nova lorque, Willian Morrow, 1981: G. Rubia, “|ntcocugio”, in R. Vivien, A Womun Appeared to Me, Weatherby Lake, Missouti, Naiad Press, 1979, 22.G. Herct. Guardians af ihe Flutes, Nova torque, McGraw Hill, 1981; G. Herdi, “Semen Transac- tion in Sambia Culture”, i G. Hordt. ed. Rimalized Homavenuallity in Melanesia, Berkeley, University of California Press, 1984: G. Herdt, The Sambia: Ritual and Gender in New Guinea, Nova lorque, Holt, Rineharct, Winston, 1987. 23,M, B Duberman et alii, eds., Hidden jrom History... op. cit, K. Plummer, ed.. The Making of the Modern Homosexual, Londies, Hutchinson, 1981; J. DEmilio, Sexxa Politics, Sexxal Comma. nides. Chicago, University of Chicago Press. 1983 A. Bray, Homocexuulity in Renaissance England, Londres. Gay Men’s Press, 1982: E, Newton, “The Mythic Mannish Lesbian, Radely te Hall and the New Wotan”, Signs, vol. 9, pp. 567-75, 1984; M. Davise E. Kennedy, “Oral History and the Suily of Sexuslity ia the Lesbian Community: Buffalo, New York, 1940-1960", Reminis: Studies, vol. 12. pp. 7-26, 1986; M. Vicinus, “They Wonder to which Sex { Belong’: The Historical Roots of the Modern Lesbian Identity”. in D. Altman et alli, eds., Homosexuality. Which Homoseruality?.... op. city pATL; K. Gerard ¢ G. Hekma, eds., “The Pursuit of Sodomy: Male Homosexuality in Renaissance and Ealighteninemt Funope", Journal of Homosexuality, a° 16 (ndimero especial}, 1988 ‘A Antropologia Redescobre a Sexualidade 15 aplicdveis 4 identidade e histéria heterossexual, implicagdes que sdo agora exploradas.”* A sexualidade como uma area disputada Os trabalhos que tém sido realizados sobre a histéria da construgao da sexua- lidade na sociedade moderna mostram que a sexualidade € uma drea simbélica € politica ativamente disputada, em que grupos lutam para implementar plata- formas sexuais e alterar modelos e ideologias sexuais. O crescimento do interesse estatal em regular a sexualidade (e 0 correspondente declinio do controle religioso) transformou, nos séculos XIX € XX, as reas legislativa e de politicas publicas em campos particularmente atraentes para as lutas politicas ¢ teéricas em torno da sexualidade. Movimentos de massa se mobilizaram ante as doencas venéreas, a prostituigao, a masturbagao, a pureza social e o duplo padrio, empregando métodos de organizacao de militancia politica, lobbying legislative, manifestagdes de massa e interveng6es culturais que utilizam sim- bolos, retérica e representagdes complexos.”* Como a intervengiio estatal tem sido cada vez mais formulada em uma linguagem da satide, os médicos e os cientistas tornaram-se atores importantes nos discursos reguladores que vém sendo desenvolvidos. Além disso, participaram ativamente na elaboragao des- ses discursos como uma maneira de legitimar novas especialidades nesse campo de atuagao. Embora grupos socialmente poderosos tenham exercido poder mais discur- sivo, eles nao foram os tinicos participantes nas lutas sexuais. Minorias refor- mistas, progressistas, sufragistas e radicais do sexo também apresentaram ‘Charity Girls’ and City Pleasures: Historical Notes on Working Class Sexuality”, in A. Snitow et alli, eds., Powers of Desire... op. cit. p. 131; C. Peiss, Cheap Amusements: Working Women and Leisure in Turn-of-the-Century New York, Filadélfia, Temple University Press, 1986; C Stansell, City of Women. Sex and Class in New York, 1789-1860, Nova Torque. 1986: E. K. ‘Trimberger, “Feminism, Men and Modern Love: Greenwich Village, 1900-1925”, in A. Snitow et alli, eds., Powers of Desire... Op. cit., p. 131; J. Katz, “The Invention of Heterosexuality”, Socialist Review, vol. 20, pp. 7-34, 1990. 25. J. Wecks, Sex, Politics... op. cit: C. Peiss ¢ C. Simmons, eds., Passion and Power... op. cit: J R. Walkowitz, Prostitution and Victorian Society: Women, Class, and the State. Cambridge, ‘Cambridge University Press, 1980;E. J. Bristow, Vice and Vigilance: Purity Movements in Britain since 1700, Nova Jersey, Rowman and Littlefield, 1977; D. Pivar, Purity Crusade: Sexual Morality ‘and Social Control, 1868-1900, Connecticut, Greenwood Press, 1972; A.M. Brandt, No Magic Bullet: A Social History of Veneral Disease in the United States since 1880, Nova lorque, Oxford University Press, 1985; W. Kendrick, The Secret Museum, Nova lorque, Viking, 1987; L. Gordon, Woman's Body, Woman's Right: A Social History of Birth Control in America, Nova lorque, Penguin, 1974. 16 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5, Numero 1, 1995 programas de mudanga e introduziram novas maneiras de pensar e organizar a sexualidade. As subculturas sexuais que tinham crescido em dreas urbanas foram um campo especialmente fértil para esses experimentos. A abordagem construtivista mostra que essa tentativa de criar espagos puiblicos parcialmente protegidos de elaboracao e expressdo de novas formas, comportamentos e sensibilidades sexuais, também faz parte de uma Iuta politica mais abrangente para definir a sexualidade. As subculturas ndo s6 dao origem a novas maneiras de organizar o comportamento e a identidade, como também a novas formas de oposicdo e participacdo simbélicas em relacao 4 ordem dominante, algumas das quais chegam a ter um profundo impacto fora dos pequenos grupos em que so propostas pioneiramente. Nesse sentido, o enfoque construtivista tem sido vyalioso ao explorar a agéo € criatividade humanas em relagao a sexualidade, afastando-se dos modelos unidirecionais da mudanga social para descrever relacionamentos complexos e dinamicos entre o Estado, os especialistas pro- fissionais e as subculturas sexuais. Essa tentativa de historicizar a sexualidade tem produzido trabalhos inovadores para os quais tém contribuido os historia- dores, os antropdlogos, os socidlogos e outros, num didlogo interdisciplinar pouco comum. O desenvolvimento de modelos de construcio social, 1975-1990 A crescente popularidade do termo “construgio social” obscurece o fato de que os construtivistas tém empregado este termo de diversas maneiras. E verdade que todos rejeitam as definigdes de sexualidade extensivas a toda a histéria e a todas as culturas, sugerindo, ao contrario, que a sexualidade é mediada por fatores ‘histéricos e culturais. Mas uma leitura cuidadosa dos textos construti- vistas mostra que seus atores tém opinides distintas sobre 0 que poderia ser construido, incluindo de forma variada atos sexuais, identidades sexuais, co- munidades sexuais, a dire¢do do interesse erdtico (escolha do objeto) e 0 proprio desejo sexual. Apesar dessas diferencas, todos partilham a necessidade de problematizar os termos e 0 campo de estudos — no m{nimo, todas as aborda- gens adotam a viséo de que atos sexuais fisicamente idénticos podem ter importancia social e significado subjetivo varidveis, dependendo de como sio definidos e compreendidos em diferentes culturas e perfodos hist6ricos. Assim como um ato sexual nao traz em si um significado social universal, a relagdo entre atos sexuais € significados sexuais também nao € fixa, o que torna sua transposigao a partir da época € do local do observador um grande risco. Na A Aniropologia Redescubre a Sexualidade 17 verdade, as culturas gerarn categorias, esquernas e rétulos muito diferentes para estruturar as experiéncias sexuais e afetivas, Essas construgdes nao s6 influen- ciam a subjetividade e 0 comportamento individual, mas também organizam e dao significado & experiéncia sexual coletiva através, por exemplo, do impacto das identidades, definigdes, ideologias e regulagdes sexuais. A relaciio entre alos sexuais ¢ identidades nas comunidades sexuais organizadas é igualmente varidvel e complexa. Assim, as distingSes entre os atos, as identidades ¢ as comunidades sexuais sio amplamente empregadas pelos construtivistas. ‘Uma outra abordagem da teoria da constru¢ao social postula que até a diregdio do préprio interesse erético — por exemplo, a escolha do objeto sexual (heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade, como a sexologia contemporanea a conceitualizaria) — nao ¢ intrfnseca ou inerente ao individuo, sendo construfda a partir de possibilidades mais polimorfas, Nem todos os consirutivistas dao esse passo; ¢ aqueles que nfo o fazem talvez pensem no desejo e no interesse erético como algo fixo, embora a forma comportamental assumida por esse interesse va ser constrnida pelas estruturas culturais predo- minantes, assim como a experiéncia subjetiva dos individuos e a importancia social que os outros lhe atribuem. Na sua perspectiva mais radical, a teoria construtivista”® esta disposta a considerar que 0 proprio desejo sexual é construido peta cultura e pela histéria a partir das energias e capacidades do corpo. nao existindo, portanto, a idéia de “imputso” sexual, “pulsdo sexual” ou “apetite sexual” essencial e indiferencia- do, presente no corpo devido ao funcionamento e sensagoes fisiolégicos. Neste caso, uma questic construtivista importante diz respeito 4 origem desses impulsos, uma vez. que j4 no se assume que eles sejam intrseces, nem talvez necessdrios. Esta posigdo certamente contrasta, agudamente, com a teoria constrativista mais modezada, que aceita implicitamente um desejo inerente que é construfdo em termos de atos, identidade, comunidade e escalha do abjeto sexual, © contraste entre as posigdes modetada e radical deixa claro que os construtivistas tém divergéncias entre si, e no apenas com aqueles que traba- lham segundo as tradigGes essencialista e da influéncia cultural. De qualquer modo, a produgdo de uma literatura construtivista, que apareceu pela primeira 26. Nio se sugere neste artigo que as formas mais radicais da teoria da construgdo social sefam necessariamente as methores, embora 9 exereivio dedesconstruit asexualidade, uma das Categorias mais essenciais, tonha freqiientemente um efeito eletrizame e energizante sobre o pensamento das pessoas. Se (al gra de desconstrucée pode ser sustentado de uma maneira plausfvel, jd € ovtra questo. 18 PHYSIS — Revista de Satde Coletiva Vol. 5, Némero 1, 1995 vez em meados dos anos 70, vem demonstrando wma habilidade crescente em pensar a sexualidade como uma Construgao social. Os modelos de influéncia cultural da sexualidade, 1920-1990 As abordagens antropolégicas convencionais da sexualidade, ao contrario, permaneceram extraordinariamente estaveis de 1920 a 1990. Assim como a sexualidade continuon a ser uma construgdo nao estudada, seus fundamentos teéricos mantiveram-se igualmente inexplorados, niio nomeados e implicitos, como se fossem de tal forma inevitaveis e naturais que nao poderia haver grande disputa ou escolha a respeito dessa abordagem padrio, generalizada. Por essa razdo, quero sugerir a expresso “modelo de influncia cultural”, a fim de chamar a ateng&o para suas caracteristicas distintivas e incentivar um maior teconhecimento desse paradigma. Neste modelo, a sexualidade & vista come o material basico — uma espécie de massa de modelar — sobre o qual a cultura trabalha, uma categoria naturalizada que permanece fechada 4 investigugiio e & andlise. Por um lado, 0 modelo de influéncia cultural enfatiza o papel da cultura e do aprendizado na formagado do comportamento e das atitudes sexuais, rejeitando formas Gbvias de essencialisrno e universalizagdo. A variacao foi uma desco- berta-chave em muitos estudos, em surveys transculturais,”’ em relatos etno- grdficos de sociedades singulares cujos costumes sexuais apresentavam um forte contraste com os do leitor euroamericano,” e em estudos tedricos.”” A 27. C.8. Forde. A, Beach, Patterns of Sexual Behavior. Nova torque, Harper and Row, 981; Minturn et alii, “Cudture Patterning of Sexual Beliefs and Behavior”, Ezology, vol. 15, 1976, p.409: G. J. Broudee S, J. Greene, “Cross-Cultural Codes on Twenty Sexual Attitudes and Practices”, Btinology, vol. 8, 1969, p. 301; J.P. Gray, “Cross-Colaural Factors Associated with Sexual Foreplay", Jounal of Saciad Psychology, vol.3, 4930; S. G. Frayser, Varieties of Sexual Peperience: An Anthropological Perspective on Hunan Sexuality, New Haven, HRAF Press, 1985. 28. M, Mead, Coming of Age a: Samoa, Nova lorque, Morrow, 1923; B. Malinowski, The Sexual Life of Savage in North-Western Melanesia, (1° ed. 1929), Nova forque, Haleyon House, 1941; 1 Schapera, Married Lie in an African Tribe, Nova Torque, Sheridan House, 1941; W. H. Goode- nough, “Premarital Freedom on Truk: Theory and Practice”, American Anihropologist, vol. 51, 1949; R. M. Bemdie C, Bemdt, Sexual Behavior in Western Arnhem Land, Nova lorque, Viking Fund, 1951;R. A. Levine, “Gussi Sex Offenses: A Study in Social Control”, American Anthrope- iogist, vol. 61, 1959; A. Howard e I. Howard, “Premarital Sex and Social Control among the Roumans”, American Anthropologist, vol. 66, 1964; W. Davenport, “Sexual Paverns and their Regulation in a Society of the South West Pacitic”, in F Beach, ed. Sex and Behavior, Nova Jorgue, Wiley, 1965, p. 164: R. C, Suggs. Marquesan Sexual Behavior, Nova lorque, Harcourt, Brave and World, 1966; W. A. Lessa, “Seaual Behavior”, in Ulihi: A Design for Living, Nova A Antropologia Redescobre a Sexualidade 19 cultura é vista como fonte de encorajamento ou desencorajamento da expressio de atos, atitudes ¢ relacionamentos sexuais genéricos. Por exemplo, o contato oral-genital pode fazer parte da expresso heterosexual normal em um grupo, mas ser tabu em outro; a homossexualidade masculina pode ser severamente punida em uma tribo, mas tolerada em outra. O trabalho antropolégico desse periodo é caracterizado por uma persistente énfase na variabilidade. Por outto lado, embora se pense que a cultura forme a expressiio e os costumes sexuais, assume-se — e muitas vezes se afirma bem explicitamente — que o fundamento da sexualidade ¢ universal e biologicamente determinado; na literatura, ela aparece como “pulsdo sexual” ou “impulso”.° Embora capaz de ser modelada, a pulsio concebida como poderosa, procurando expressar-se depois de seu despertar na puberdade, as vezes indo além das regras sociais ¢ assuminds uma forma nitidamente diferente nos homens e nas mulheres. O micleo da sexuatidade é a reprodugdo. Embora a maioria dos relatos antropolégicos de modo algum se restrinja a analisar apenas o comportamento reprodutivo, a sexualidade reprodutiva (interpretada como relagao heterosse- xual) parece ser o “feijao-com-arroz” do “cardépio sexual”, enquanto outras formas, tanto heterossexuais como homossexuais, sdo concebidas como tira- gostos, legumes e sobremesas. (Estas metéforas nao sao incomuns nas narrati- vas antropoldgicas.) Os relatos etnograficos e os surveys quase sempre seguem. um formato de relatério que trata primeiro do “sexo real”, passando depois as “variagdes”. F visfvel a escassez de pormenores sobre comportamento nio reprodutivo em alguns relatos supostamente sobre a sexualidade: 0 artigo de Margaret Mead sobre os determinantes culturais de comportamentos sexuais (em um volume maravithosamente intitulado Sex and Internal Secretions)” Torque, Holt, Riseharét, Winston, 1966; D. S, Marshall e R. C. Suggs, eds., Hinman Sexual Behavior, Englewood Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1972; K.G_ Heider, “Dani Sexuality: A Low-Energy System”, Maz, vol. 11, pp. 188-201, 1976; D. S. Marshall, “Too Much in Mangaia”, in C. Gordone G. Johnson, eds., Readings in Human Sexuality: Contemporary Perspeciives, Nova Torque, Holt, Rinehardt, Winston, 1976, p. 217. 29. A. Goldenweiser, “Sex and Primitive...”, ia V. F. Calverton e S. D. Schmalhausen, eds., Sex and Chuilization..., op. eft;G. Bateson, “Sex and Culture”, Annals of the New York Academy of Science, vol. 47. 1947; G. P. Murdock, “The Social Regulation of Sexual Behavior’, ta P. H. Hoch e J Zubin, eds... Psychosexual Development in Heaith and Disease, Nova lorque, Gruhe ¢ Stratton, 1949, p. 256; J. J. Honigmen, “An Anthropological Approach to Sex”, Sucial Problems, vol. 2, 1954; P.H. Gebberd, “Human Sexual Behavior: A Summary Statement”, in C. Gordon ¢ G. Johnson, eds., Readings in Human Sexuality... op. cil.. p. 95. 30. O trabalho de Heider sobve os danis ¢ uma excecdo no que diz respeito & conceituacso de niveis varidveis de energia sexual, 31. M, Mead, “Cultural Detezminants of Sexual Behaviors”, a W. C. Young, ed., Sex and Internal Secretions, Filadétfia, Williaras and Wilkins, 1961, p. 1.433, 20 PHYSIS — Revista de Saude Coletiva Vol. 5, Némero 1, 1995 segue uma trilha estonteante que inclui gravidez, menstruagdo, menopausa lactagdo, mas muito pouca coisa sobre a sexualidade nfo reprodutiva ou erotismo, Da mesma forma, um livro mais recente, intitulado Varieties of Sexual Experience (1985), dedica quase todas as suas paginas & reproducdo, ao casamento € A organizagdo familiar.” Dentro do modeto de influéncia cultural, o termo “sexualidade” abrange uma variedade de tépicos. Seu significado & freqiicntemente dado como natural, ficando implicito como uma compreensio partilhada entre o Ieitor ¢ 0 autor. O Tastreamento de seu uso em varios artigos ¢ livros mostra que a sexualidade abrange diferentes elementos: relagdes sexuais, orgasmo, caricias preliminares, fantasias, histérias e piadas eréticas; as diferencas de sexo e a organizagio da masculinidade e da feminilidade, bem como as relagSes de género (freqitente- mente chamadas de papéis sexuais na literatura mais antiga). Nesse modelo, a sexualidade ndo sé esta relacionada ao géncro, mas miistu- ra-se faciimente a cle « muitas vezes nele se funde. Considera-se que a sexualidade, os arranjos de género, a masculinidade e a ferninilidade sejam Conectados, até intercanibidveis. Entretanto, este pressuposto jamais explicita suas conexGes culturais ¢ histéricas especificas; ao contrério, chscurece-as, A confusdo parte de nossas préprias opinides populares de que (1) 0 sexo causa © género, isto é, as diferengas reprodutivas do macho e da fémea e 0 processo de reprodugdo (estraturado come “sexualidade” e equiparado a ela) dao origem Adiferenciacio de género, e de que (2) o género causa o sexo, isto é, as mulheres marcadas pelo género constituem o locus da sexualidade, do desejo c da motivagiio sexual. A reprodugio © sua organizagio tornam-se as principais cixos da diferenciagao macho/fémea ¢ do desenvolvimento do sistema de género. O género ¢ a sexualidade estdo inextrincavelmente unidos. Finalmente, o modelo de influ&ncia cultural pressup6e que os atos sexuais possuem estabilidade e universalidade em termos de identidade e significado subjetivo. De mode geral, a literatura considera o contato sexual com o género cposte come “heterossexualidade” ¢ o contato do mesmo género como “ho- mossexualidade”, como se fossemm observados fenédmenos similares em todas as sociedades em que estes atos ocorrem. Em uma visao retrospectiva, esses pressupostos s40 curiosamente etnocéntricos, pois os significados atribuidos a esses Comportamentos sexuais sA0 as dos observadores ¢ da sociedade indus- trial e complexa do século XX. Os strveys transculturais podem mapear bastante bem esses contatos sexuais com 0 mesmo sexo ¢ com 0 outro Sexo, OU 32. 8. G. Prayser, Varieties of Sexual... op. cit. A Anttopologia Redescobre a Sexualidade 21 a freqiiéncia de contato sexual antes do casamento. Mas quando os pesquisa- dores falam da presenca ou auséncia de “homossexualidade” ou “permissivi- dade sexual”, transformam levianamente o ato ou cormportamento sexual em significado ¢ identidade sexuais, deslocamento que desenvolvimentos tedricos posteriores viriam a rejeitar. Resumindo. 0 modelo de influéncia cultural reconhece variagdes na ocorréncia do comportamento sexual e nas atitudes culturais que estirmulam ou restriagern 0 comportamento, mas no as reconhece no significado do préprio comportamento. Além disso, os antropélogos que trabalham com essa perspectiva teérica accitam, sem questionar, a existéncia de categorias universais como heterosse- xual e homossexual, sexualidade masculina e feminina, e pulsdo sexual. Apesar de todas essas deficiéncias, é importante reconhecer os pontes fortes dessa abordagem, particularmente em seu contexto intelectual, histérico ¢ politico. O compromisso da Antropologia com a comparago transcultural transformou-a na mais relativista das disciplinas das Ciéncias Sociais no que diz respeito ao estudo da sexualidade. A descoberta da variagdo questiona nogées dominantes sobre a inevitabilidade ou naturalidade das normas e comportamentos sexuais comuns na América e na Europa, bem como a conexio entre regulagio sexual e estabilidade social ou familiar. A variabi- lidade por cla relatada sugere que a sexualidade humana seria maledvel capaz de assumir formas diferentes. Os trabalhos inseridos nessa tradigio da influéncia cultural minavam teorias mais mecanicistas do comportamento sexual, ainda comuns na Medicina e na Psiquiatria, que sugeriam ser a sexualidade em grande parte uma fungo do fimcionamento fisiotégico ou de pulsdes instintivas. Comegavam a desenvoiver um espago social ¢ inte- lectual em que era possivel considerar a sexualidade como algo que no fosse uma simples fungdo da Biologia. Embora os trabalhos do modelo de influéncia cultural tenham contribuida para o desenvolvimento da teoria da construgae social, ha, sob muitos aspectos, uma forte ruptura entre essas duas formas de conhecimento. Esta diferenga nico tem side reconhecida por muitos antropdlogos que ainda trabalham dentro dessa primeira perspectiva. Na verdade, muitos parecem considerar erroneamente que esses novos desenvo!vimentos sio teoricamente compativeis, até mesmo uma continuagio do trabalho anterior. Algons assimilaram termos ou expres- sdes (como “construgao social” ou “construgao culturat’”) em seus trabalhos, mas suas estruturas analiticas ainda contém muitos elementos essencialistas no examinados."? Nao é 0 caso de o modelo de influéncia cultural, por reconhecer 33. Uma tentativa diferente de assimilagdo & encontrada na afirmativa de que o debate catre os essencialistas ¢ os construtivistas soviais sobre a sexualidade seria uma repetigao ca controvérsia 22 PHYSIS — Revista de Saide Coletiva Vol. 5, Numero 1, 1995 a variacao cultural, ser igual 4 teoria da construgio social. Assim, o modelo de influéncia cultural ja nfio é 0 tnico paradigma antropoldgico, embora ainda domine 0 trabatho contemporaneo.** O desenvolvimento da Antropologia neste século — um movimento geral que se afasta de estraturas biologizadas em busca de perspectivas que so desnaturali- zadoras ¢ antiessencialistas — pareceria alimentar a aplicagao da teoria da cons- trugio social ao estudo da sexualidade. Entretanto, apesar de colocar em questo © estatuto natural e universalizado de muitas 4reas, a Antropologia tem excluide a sexualidade da idéia de que as agdes humanas tém sido e conlinuam a estar sujeitas a foreas hist6ricas e culturais e, portanto, & mudan¢a. Uma abordagem da sexualidade segundo a teoria construtivista examinaria seus significados subjetivos, a esfera do comportamento e da ideologia, além de analisar © corpo, suas fungdes € sensagées como poténcias (e limites), incorporados e mediados pela cultura. A fisiologia do orgasmo e da eregdo peniana explica tio pouco o esquema sexual de uma cultura quanto o alcance auditivo do ouvido humano explica a musica. A biologia ¢ o funcionamento fisiolégico so determinantes apenas nos limites mais extremos, apontando o que é fisicarnente possivel Mais interessante para a pesquisa antropojdgica sobre a sexualidade 6 mapear o que é culturalmente possivel — uma area muito inais extensa. Da mesma forma, a adaplacio ecoldgica e as demandas reprodu- tivas explicam apenas uma pequena parte da organizagao sexual, pais a fertili- dade adequada para a reprodugao c 0 crescimento da populagao se alcangacom relativa facilidade. O mais importante é que a sexualidade niio 6 adjacente, nem equivalente 4 reprodugao: a sexualidade reprodutiva constitui uma pequena parte do universo sexual mais amplo. Além disso, essa abordagem da sexualidade também deve problematizar e natureza-educacio. Esta é uma compreeasio profundamente errénea da teoris da construcao social. Nos debates sobre natureza-eduzagho, os pesquisadores propoem mecanismos bioldgicos ou culturais alternatives para explicat os fendmenos que observam, Atualmente, 2 maioria dos observadores concorda que 0 comportamento hutnano € produzido por uma complexa interagao de fatores bioldgicos culturais; eles divergem quanto ao peso relativo que atribuem a cada um desses fatores. Embora possa ser apropriado encontrar alguma semelhanca entre os essencialistas © 0 campo da naturcza, € creado equiparar a construgdo social ao campo da educagaio. A teoria da canstrugao social nfo cst simplesmente propondo a causalidade cultural. Alémn disso, ¢ 0 que é mais importants, cla nos cncoraja a desconstruir e eaaminar o comportamento ou os processos que tanto o campo da natureza como 0 da educagdo reificaram € querem “explicar”. A construgao soctal sugere que 0 objeto de estude merece, pelo menos. tanta afeagao anallitica quanto o mecanismo ‘causal pressentido, 34. S. G. Frayser, Varieties of Sexual.... op. cit.; F. E. Mascia-Lees, eds, “Human Sexuality in Biocultural Perspective”, Medical Anthropology, vol. 11, 1989. A Antropologia Redescobre a Scxualidade | 23 questionar convicgées cientificas ¢ populares evro-americanas, em vez de proje- td-las sobre outros grupos, o que seria etnocéntrico em qualquer outra area de estudo. Assim, afirmagées sobre a forga universalmente imperiosa do impulso sexual, a importincia da sexwalidade na vida humana, o status universalmente. privado do comportamento sexual ou sua natureza quintessencialmente reprody- tiva so apresentadas como hipdteses, ¢ néo como pressupostos a prior’. A Antropologia mostra-se especialmente bem equipada para problematizar essas categorias muito naturalizadas, mas a sexualidade tem sido a tiltima drea a ter 0 seu status natural e biologizado questionado. Para muitos de nds, o essencialismo fot a nossa primeira maneira de pensar a sexualidade, ¢ ainda se mantém hegemonico. A teoria da construgdo social oferece uma perspectiva radicalmente diferente no estudo da sexualidade, incentivando novas e titeis quest6es de pesquisa. Sua influéncia tem aumentado na Antropologia,** embora os modelos de influéncia cultural ainda dominem.”® Teria sido possivel predizer uma competigio grada- tivamente mais intensa entre os paradigmas, possivelmente até uma mudanga de paradigma. No entanto, o surgimento da AIDS alterou essa dindmica. A AIDS e a pesquisa sobre a sexualidade A grande preocupagio com a AIDS tem aumentado consideravelmente o interesse em financiar ¢ realizar pesquisas sobre a sexualidade. No infcio da 35. B. Newton, Mather Camp: Female Impersonators in America, Chicago, University of Chicago Press, 1979; B. Caplan, od,, The Cultural Construction of Sexuality, Londres, Tavistock, 1987; M. Davis ¢ E, Kennedy, “The Reproduction of Sutch-Fem Roles: A Social Constructionist Approach”. in C. Peiss eC. Simmons, eds,, Passion and Power... op. cil, p. 241; H. Whiteced, “The Bow and the Burden Sirap: A New Look at Instituionalized Homosexvality in Native North America”, in SB. Otner H. Whitehead, eds.. Sexual Meanings, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 80, 5. Blackwood, ed., Anthropology and Homosexuality, Nova Torque, The Haworth Press, 1986; P. Foy, “Male Homosexuality and Spirit Possession in Brazil", Journal af Homosexualiry, vol. 11,99. 137-53, 1985; J, M. Cartier, “Mexican Male Bisexuality”, Journal of Homosexuality, vol. LM, pp. 75-85, 1985; C. §. Vance, “Negotiating Sex and Gender in the Atorney General's Commission on Pornography” iF. Ginsburge A.L. Tsung, eds, Uncertain Terms: Negoviating Gender in American Culture, Boston. Beacon Press, 1990, p. 118; R. Parker, Bodies. Pleasures, and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil, Bostoa, Beacon Press, 1991. 36.8. G. Frayser, Varieties of Sexual... op. vit T. Gregor, Anxious Pleasures: The Sexual Lives of an Amazonian People, Chicago, University of Chicago Press, 1985; C. B, Coben e PF. E. Mascia-Lees, "Lasers in the Jungle: Recoafiguring Questions of Hamar and Noa-Human Primate Sexuality”. Medical Anihropotagy, vol. 11, 1989, FB. Mascia-Lees ef alii, “Investigating the Biocujtural Dimensions of Human Sexnal Behavior”, Medical Anthropology. vol, 11, 1989: 5. G. Frayser, “Sexual and Reproductive Relationships: Cross-Cultural Evidence and Biosocial Impli- cations”, Medical Anthropology, vol. k1, 1989; T. Perper, “Theories and Observations on Sexual Selection and Female Choice in Human Beings”, Medical Anthropology, vol. 11, 1989. 24 PHYSIS — Revista de Saide Coletiva Vol. 5, Numero 1, 1995 epidemia, os epidemidlogos comegaram a incluir, por rotina, baterias de per- guntas sobre a freqiiéncia ¢ a natureza do comportamento sexual de seus pacientes. Sens problemas de mensuragao e conceituagio, bem como sua busca va de dados que levassem a uma diregio, salientaram o desamparo cientifico da pesquisa sobre a sexualidade. Na verdade, o fato de nenhum estudo em grande escala sobre os hébitos sexuais norte-americanos ter sido realizado desde os volumes de Kinsey” representa agora uma séria dificuldade, que tem como resultado nossa incapacidade de responder até mesmo as perguntas mais basicas. A medida que grupos cientificos e formuladores de politicas reconhe- ciam a necessidade dessas informagées, recomendavam com insist@ncia au- mentos drasticos no empenho de financiamento e pesquisa nos paises afetados.** Embora um passo necessdtio © positive sob muitos aspectos, a corrida aos financiamentos possibilita que modelos de sexualidade inadequa- dos, essencialistas ¢ seguidores da teoria da influéncia cultural sejam revividos ¢ fortalecidos. A AIDS incentiva que o ressurgimento de abordagens biomédicas da sexua- lidade possua repetida associagao com a doenga. A medicalizaco da sexuali- dade aumenta 4 medida que o ptiblico recorre as autoridades médicas em busca de informagées e conselhos sexuais. Além disso, os pesquisadores biomédicos nas escolas de Medicina e de Sade Publica estéo realizando uma poredo significativa da pesquisa sobre sexualidade relacionada com a AIDS.” Isto assinala uma mudanga da tend@ncia geral que se desenvolveu depois da Segun- da Guerra Mundial, quando a pesquisa sobre sexualidade se retirou cada vez mais das arenas médicas. Assirn, o interesse da Medicina pela sexualidade esta. 37. A Kinsey et alti, Sexual Behavior in Human Mate, Filadélfia, Samders, 1948; A. Kinsey et alii, Sexual Behavior in the Human Female, Filadélfia, Saunders, 1953. 38. C.F, Turner ee atié, eds., AIDS: Sexual Behavior and intravenous Drug Use, Commistec on AIDS Research and the Behavioral, Social and Statistical Sciences National Research Council, Washing- ton, D.C., National Academy Press, 1989, cap. 2; W. Booth, “Asking America about its Sex Life”, Science, vol. 242, 20/1/1989, W. Booth, “WHO Seeks Giobal Dataan Sexuat Practices”, Science, vol, 244, 28/4/1989. 39, Isto aio quer dizer que a pesquise no esteja sendo realizada por cientistas sociais fora das instituigoes médicas, nem que os cientistas sociais também nio contribuam para estudos imple- mentados nas Escolas de Medicina, ainda que geralmente cesempenhando um pape! secundario, Entretanto, 0 sicaples nfimero de inguéritos populacionais com orienta¢ia biomédlica, ac lado do tamanho considerével dc suas amostras ¢ orcamentos, ameaga ofascar ¢ suplantar a pesquisa da sexualidade realizada por investigadores com uma otieatagio menos biomédica. Além disso, atribui-se mais 40s médicos do que aos cientistas sociais autoridade para falar sobte o corpo. Diante disso, 28 perspectivas cada vez mais essencialistas, que estruturam a sexualidade em relagiio & AIDS come uma questio corporal, ira aumentar automaticamente a legitimidade das voxes € dos textos médicos, A Antropologia Redescobre a Sexualidade 25 se expandindo para novas areas que vdo além das especialidades em que ficava tradicionalmente confinada: doengas sexualmente transmissfveis, obstetricia & ginecologia, ¢ psiquiatria. Esse desenvolvimento apresenta varios perigos. As abordagens biomédicas freqlientemente consideram a sexualidade como um derivativo da fisiologia e encaram 0 corpo como possuindo um funcionamento supostamente universal. Os modelos biomédicos tendem a ser os que menos refletem sobre a influéncta da cigncia ¢ da prdtica médica na construgao de categorias como “corpo” € “sade”. As abordagens construtivistas sao virtualmente desconhecidas, ¢ a idéia de que a sexualidade varia com a cultura a hist6ria é expressa, na methor dag hipéteses, via modelos primitivos de influéncia cultural. 6 limitado o reconhecimento de que a sexualidade tem uma histéria e que suas definigdes e significados madam com o tempo € no interior das populagdes. Na pesquisa de base biomédica, a confianga nos instrumentos de levantamente ¢ em dados facilmente quantificados aumenta a tendéncia de priorizar a cémputo dos atos, em detrimento da exploragHo dos significados. Esses levantamentos tém fre- qiientemente equiparado identidades sexuais a atos sexuais, por exemplo, ¢ tratado os “homens gays” e os “heterossexuais” como categorias ado proble- matizadas. Além disso, 0 elevado status dos médicos no século XX e seu perttencimento a grupos privilegiados de raga, género ¢ classe resultaram historicamente em aliangas estreitas com as ideclogias dominantes, inclusive a sexual, Se esse padrao persistir, ¢ igualmente improvavel que tomem conheci- mento das subculturas e sensibilidades sexuais marginais ou que se mostrem sens{veis a esses fenGmenos. Estruturar a pesquisa sexual dentro de um modelo biomédico € da perspec- tiva da doenga também ameaga repatologizar a sexualidade, Isto promete fazer a sexualidade voltar 4 posig&o que ocupava no final do século XIX e comego do XX, quando sua discussao ptiblica era em grande parte motivada pela e circunscrita 4 doen¢a venérea, prostituigao e masturbag4o. Apesar de tratarem ostensivamente da satide e da doenga, essas discussdes puiblicas, estruturadas por especialistas médicos, cram implicitamente discussdes sobre moralidade, género ¢ ordem social. Esse perigo é intensificado pelo respeito atribuido Medicina e & ciéncia, e pela opiniao ptiblica muito difundida de que a ciéncia nao contém valores. A expansio de um discurso supostamente objetivo e livre de valores sobre a sexualidade organizado sob a mascara da satide abre caminho para o aumento das intervengdes governamentais e de profissionais da area, A énfase conferida aos gays ¢ a seu comportamento sexual nas primeiras fases da epidemia constitui um desvio abrupto da desatengao que sempre Mereceram os grupos sexuais secunddrios. No entanto, essa aten¢ao salienta 26 PHYSIS — Revista de Setide Coletiva Vol. 5, Numero 1, 1995 sua “diferenga” de um modo que lembra os modelos patolégicos da homasse- xualidade no século XIX,” enfatizando a naturalidade da identidade e refor- gando a dicotomia aguda entre heterossexualidade e homossexualidade. Essa diferenga esta se expandindo, pois comega a envolver outros grupos estigmati- zados que correm o risco de contrair AIDS, como os usudrios de drogas intravenosas, seus parceiros ¢ mulheres de minorias nos centros das cidades, recorrendo a estereétipos que t¢m ressonncias histéricas e culturais.”" O perigo apresentado pelo aumento de financiamentos para a pesquisa sobre sexualidade relacionada & AIDS nao fica restrito 4 biomedicina. Dentro da Antropologia, € improvavel o retorno dos modelos essencialistas; entretanto, a drea pode sofrer o impacto de abordagens cada vez mais biomédicas da sexualidade em trabalhos interdisciplinares realizados em ambientes médicos. E o mais importante: é provdvel que o aumento de financiamentos ¢ das demandas urgentes de pesquisa reforcem os modelos de influéncia cultural da sexualidade, 4 medida que um niimero cada vez maior de antropdlogos seja levado a trabalhar sobre AIDS.” A maior parte deles parece ser antropdlogos médicos ou especialistas nas dreas geogrificas afetadas, sem treinamento especializado em sexualidade. Enquanto antropdlogos, pode-se ter confianga que traréo consigo uma expec- tativa da diversidade humana, uma sensibilidade ao emocentrismo eum respeito pelo papel da cultura na formagdo do comportamento, inclusive da sexualidade. Mas é precisamente af que reside o problema, pois essas perspectivas vao reinventar 0 modelo de influéncia cultural como a abordagem antropolégica de bom senso para a sexualidade. Os antropélogos novatos na pesquisa em sexualidade podem facilmente pensar que, por teconhecer a variag30 cuitural, sua abordagem baseada na influéncia cultural seria idéntica a teoria da constru- ¢40 social. Suas comparagées com trabalhos realizados a partir de abordagens mais biologizadas ¢ biomédicas, particularmente nas culturas nao ocidentais, 40. M. Gever, “Pictures of Sickness: Awioft Marshall's Bright Eyes”, in D. Crimp, ed., AIDS: Cudeural Analysis, Cultural Activism, Cambridge, MIT Press, 1989. 41. S. L. Gilman, Disease and Representation: images of Hiness from Madness to AIDS, Race, Cornell University Press, 1988 42. D. A. Feldman D.A. eT. M. Jobnson, The Social Dimension of AIDS: Method and Theory, Nova Torque, Praeger, 1986; E. M. Gorman, “The AtDS Epidemic in San Francisca: Epidemiological and Anthropological Perspectives”, in C. James et alii, eds., Anthropology and Bpidemiotogy, Dordrecht, Reidel, 1986, p. 157,M.C. Bateson R. Goldsby, Thinking AIDS: The Social Response tv Biological Threat, Reading, Mass., Addison-Wesley, 1988; R. Bolton, “The AIDS Pandemic: A Global Emergency”, Medical Anthropology, n° 10 (ntimero especial), 1989; P. A. Marshall e L. A. Bennett, eds., “Culture and Behavior in the AIDS Epidemic", Medicai Anthropology Quarterly, vol. 4 (niimero especial), 1990, A Antropologia Redescobre a Sexualidade 27 fardo com que os modelos de influéncia cultural paregam avancados, até mesmo motivo de orgulho. Fm todas as dreas, 0 reconhecimento tardio de graves lacunas no conheci- mento sobre o comportamento sexual pode enfatizar a importancia dos dados comportamentais, que parecem mais facilmente mensuraveis do que a fantasia, a identidade e o significado subjetivo. Os dados comportamentais prestam-se. auma quantificagao facil, encaixando-se nos vieses metodoldgicos das ciéncias sociais positivistas. Em meio a uma epidemia, os pesquisadores pressionam por resultados rdpidos, e rejeitam o tempo, a paciéncia ¢ a tolerancia com as incertezas que as técnicas emogrdficas e desconstrutivas parecem requerer, Apesar dessas tendéncias que reforcam as abordagens biologizadas e de influéncia cultural, o quadro permanece complexo e contraditério, As investi- gages, inspiradas pela AIDS, sobre a realidade do mundo sexual das pessoas j4revelaram discrepancias entre as ideologias sobre a sexualidade e a experién- cia vivida. As contradiedes aumentam exponencialmente em outros contextos culturais. Essas lacunas existem em muitas areas, mas sio particularmente persistentes em relacSo aos sistemas classificatérios, identidade, & congruén- cia entre comportamento e autodefinigZo sexnais, ao significado dos atos sexuais e a estabilidade da preferéncia sexual. Tais inconsisténcias apontam Para a utilidade da teoria da construcao social ¢ tém estimulade novos trabalhos na Antropologia.”* De forma bastante semethante ao que aconteceu nos primér- dios da histéria gay, os pesquisadores sobre a sexualidade ¢ a AIDS talvez venham a se confrontar com as limitagdes de scus modelos, produzindo trabalhos imaginativos ¢ provocadares. Além disso, 0 fenémeno do “sexo seguro” tem enfatizado os aspectos culturalmente maledveis do comportamento sexual. A campanha do sexo seguro organizada pela comunidade gay americana, certamente uma das cam- panhas de saiide publica mais comoventes e eficientes ja registradas, deixou 43. R. Parker, “Acquired Invaunodeficiency Syndiome in Urban Brazil", Medical Anthropology Quaterly, vol. 1. pp. 155-75, 1987, 8. 0. Murray ¢ K. Payne, “The Social Classification of AIDS in American Epidemiology”, Medical Anthropology, vol. 10. pp. 115-28, 1989; J. M. Carrier, “Sexual Behavior and the Spread of AIDS in Mexico", Medical Anthropology, vol. 10, pp. 129-42, 1989; M. Singer. et afi, “SIDA: The Economic, Social and Cultural Context of AIDS among Latinos”, Medical Anthropology Quaterly, vol. 4, pp. 72-114, 1990; S. Kane, “AIDS, Addiction and Condor Use: Sources of Sexual Risk for Heterosexual Women”, Journal of Sex Research, vol. 27, pp. 427-44, 1990; M. Asencio, “Puerto Rico Adolescents Playing by the Rules”, trabalho aprescntado na repnidio anual da American Anthropological Association. 1990; W. G. Hawkes- wood, “i'm a Black Gay Man who Just Happens to Be Gay’ The Sexuality of Black Gay Men”, ‘trabalho apresentado na reunido anual da American Anthropological Association, 1990. 28 PHYSIS — Revista de Sniide Coletiva Vol. 5, Niimero 1, 1995 claro que os atos sexuais s6 podem ser compreendidos em um contexte cultural e subcultural, e que uma consideragiio cuidadosa do significado e do simbolis- mo permite a possibilidade de mudanca, até mesmo para os adultos.” A lideranea ¢ a participacdo consciente dos homens gays nessa campanha. bem diferente da apresentada pelos especialistas médicos, sugere que os individuos participem ativamente da criagéo e da mudanga dos significados culturais ¢ erdticos, patticularmente quando hd um interesse em jogo. As campanhas do seX0 seguro revelam agentes sexuais alivos que tém consciéncia de seu universo simbélico e so capazes de manipuld-lo e recrid-lo, em lugar de receberem passivamente uma socializacdo sexual estatica. As mobilizagées politicas ¢ simbélicas em torno das dimensées e significa- dos sexuais da AIDS por parte de diversos grupos também contradizem a nogio de que a sexualidade e seu significado derivam simplesmente do corpo, inter- pretado de modo facil ¢ imutével. Entretanto, varios grupos apresentam inter- pretagdes da AIDS e de seu significado sexual como ligées a serem lidas na natureza ¢ no corpo.*’ A multiplicidade de ligdes competitivas e a luta feroz pata ver que interpretacdo prevalecer4 sugerem que o significado sexual € uma drea veementemente disputada, até mesmo politica. O fato de setores dominan- tes, particularmente o Estado, a religiZio ¢ os grupos profissionais, exercerem uma influéncia desproporcional sobre o discurso sexual, nao significa que suas visGes sejam hegerénicas, nem que ndo sejam questionadas por outros grupos. Também néo significa que os grupos marginais sé respondam reativamente e no criem suas proprias subculturas e mundos de significado. No meio da criago de novos discursos sobre a sexualidade, é crucial que 44. C. Patton, Sex and Germs, Boston, South End Press, 1985: D. Altman, AIDS in the Mind of America: The Social, Political and Psychological Impact of a New Epidemic, Nova lorque, Anchor Press/Doubleday, 1986; D. Crimp, ed., AIDS: Cultural Analysis, Cultural Activism, Cambridge, MIT Press, 1989; S. Watney. Policing Desire: Pornography, AIDS, and the Media, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987 45. C. Patton, Sexand Germs..., on, cit; D. Altman, AIDS in the Mind..., op. cit; 8. Watney, Policing Desire... op. cit; 4.Z, Grover, “AIDS: Keywords", in D. Crimp, ed., AIDS: Cultural Analysis... op. cit, p. 17;P. A. Treichler, “AIDS, Homophobia and Biomedical Discourse: An Epidemic of Signiftcation”, én D. Crimp, ed, AIDS: Cuhural Analysis... op. c#,, p. 31; 8. Gilman, “AIDS and ‘Syphilis: The lconography of Disease, in D. Crimp, ed., 4/D8: Cultural Analysis... op. 87; S, Watney, “The Spectacle of AIDS”, ia D. Crimp, ed. AIDS: Culsural Analysis... op. cits p. 71; P, A, Treichler, “AIDS, Gender, and Biomedical Discourse: Current Contexts for Meaning”, in E, Fee cD. M. Fox, eds., AIDS: The Burden of History, Berkeley, University of California Press, 1988, p. 190; A. Juhasz, “The Contained Threat Women in Mainstream AIDS Documen- tary”, Journal of Sex Research, vol. 27, pp, 25-46, 1990: J. Williamson. “Every Virus Tells a Story The Meanings of HIV and AIDS”, in E, Carrier ¢ S. Watney, eds., Taking Liberties: AIDS and Cuitaral Politics, Londres, Serpents Tail, 1989, p. 69. A Antropoiogia Reclescobre a Sexualidade 29 nos conscientizemos de como cles so criados ¢ de nossa prépria participagao neste processo. Os antropéloges tém muito a contribuir para a pesquisa em sexualidade. A nova situagio gerada pela AIDS em relagiio a essa pesquisa esti impregnada de possibilidades: trabalhar sobre as questées desafiadoras que a teoria da construgao social tern fevantado ou recair nos modelos essencialistas e de influéncia cultural. Os interesses nao séo pequenos — para a pesquisa em sexualidade, para o trabalho aplicado na educagiio e prevengiio da AIDS, para as politicas sexuais, para a vida humana. Se este é 0 momento em que a Antropologia “redescobre” o sexo, devemos considerar duas questdes: quem vai realizer a investigagao? O que seremos capazes de perceber? Precisamos ser expticitos sobre nossos modeios teéricos, atentos 2 sua histériae conscientes de nossa pratica. RESUMO A Antropologia Redescobre a Sexualidade: Um Comentario Teérico Apesar da reputago de ser aberta & pesquisa sobre a sexualidade, a Antropo- logia como disciplina s6 relutantemente tem dado apoio a esse trabalho. A Pesquisa e a teoria antropolégicas desenvolveram-se lentamente, partilhando um paradigma tedrico estdvel (o modelo de influéncia cultural) desde os anos 20 até os 90. Embora fosse além das estruturas determinista ¢ essencialista ainda comuns na biomedicina, o trabalho antropoldgico ainda assim considerava aspectos importantes da sexualidade como universais e transculturais. A teoria da construgdo social propés um desafio aos modelos antropoldgicos tradicio- nais, ¢ a partir de 1975 tem sido responsdvel por uma explosio de tabalhos inovadores sobre a sexualidade, tanto na Antropologia como em outras disci- Plinas. As origens ¢ implicagSes tedricas da teoria construtivista siio investiga- das. A competigao cada vez maior entre a influéneia cultural e os paradigmas consirutivistas foi alterada pelo surgimento da AIDS e do subseqiiente apoio mais substancial para a pesquisa sobre a sexualidade. Por tm lado, a expansio do financiamento as pesquisas ameaga fortalecer os modelos essencialistas em contextos biomédicos e os modelos de influéncia cultural na Antropologia. Por outro, as complexidades e as ambigtiidades inerentes & sexualidade estudada podem revelar a forga das abordagens construtivistas e estimular o desenvolvi- mento da pesquisa ¢ da teoria na Antropologia. 30 PHYSIS — Revista de Saiide Coletiva Vol. 5, Niimero 1, 1995 ABSTRACT Anthropology Rediscovers Sexuality: A Theoretical Comment Despite its reputation for openness to research on sexuality, anthropology as a discipline has only retuctantly supported such work. Anthropological research and theory developed slowly, sharing a stable theoretical paradigm (the cultural influence model) from the 1920s to the 1990s. Moving beyond determinist and essentialist frameworks still common in biomedicine, anthropological work ne- vertheless viewed important aspects of sexuality as universal and transcultural. Social construction theory has offered a challenge to traditional anthropolo- gical models and has been responsibie for a recent burst of innovative work in sexuality, both in anthropology and in other disciplines, since 1975. The theoretical roots and implications of constructionist theory are explored, The intensifying competition between cultural influence and constructionist paradigms has been altered by the appearance of AIDS and the subsequent increased support to: research on sexuality. On the one hand, the expansion in funding threatens to strengthen essentialist models in biomedical contexts and cultural influence models in anthropology. On the other hand, the complexities and ambiguities inherent in the sexuality under study may both reveal the strengths of constructiortist approaches and spur the development of research and theory in anthropology. RESUME L’anthropologie Redecouyre La Sexualité: Un Document Théorique Malgré la reputation d’étre ouverte 4 la recherche sur la sexualité, Anthropo- logie offre son appui 4 ce travail avec résistance. La recherche et Ja théorie anthropologique se sont developpées Jentement en partageant un modeéle théo- rique stable (le modéfe d’influence culturel) dés les années 20 jusqu' aux années 90. Bien que cela soit au-dela des structures déterministe et essentialiste encore frequentes dans la Biomédicine, le travail anthropologique considerait les aspects importants de la Sexualité comme universaux et transculturels. La théorie de la construction sociale a proposé un défi aux modéles anthropologi- ques traditionnels et, d&s 1975, elle est reponsable par une explosion de travaux inovateurs sur la sexualité, dans ‘Anthropologie et d’autres disciplines. Les A Antropologis Redescobre a Sexualidade 31 origines et Jes implications théoriques de la théorie constructiviste sont inves- tiguées. La compétition, chaque fois plus grande entre |'influence culturelle et les paradigmes constructivistes se sont altérés avec ’avénement du Sida et du subséquent appui substantiel a la recherche sur la sexualité. D’un cété, l’expan- sion financive aux recherches menace consolider les modéles essentialistes dans les contextes biomédicales et les modéles d’influence culturelle dans l Anthropologie. D’un autre cdté, les compléxités et tes ambiguités inherentes & la sexualité peuvent annoncer la force des abordages constructivistes et stimuler le développement de la recherche et de lathéorie dans I Anthropologie.

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