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inv INT A FORCA DO CARATER Uma revoluciondria abordagem da terceira idade pelo psicanalista e autor de O cédigo do ser si? EEE Sa ee O tempo passa e deixa suas marcas. © compo que vai, pouco a pouco, per- dendo o vigor, a saiide. A menie que ja ‘do responde com a mesma acuidade. © vazio. As perdas. Na mentalidade ‘competitiva que domina nossos dias, parece nio haver mais espaco para os velhos. Os velhos e suas historias inter- mindveis. Os velhos e suas lemisrangas. Os velhos ¢ seu iminente fim, Eniretanto, nao ha como fugir — este ¢ 0 epilogo da vida da maioria de nos. O que fazer para nao tomar este momento uma fase de anguistias e nostalgia? Como descobrir 0 prazer, a alegria, a vontade de viver, mesmo quando reconhzcemos que, jé nao somos mais os mesmos? O psic6logo James Hillman traz neste livro importantes reflexdes sobre 0 assunto. Em seu best-seller O codigo do ser, {illman reintroduziu paixao e sentido 10 coneeito de identidade, argumentando jue cada um de nés nasce com um ardter inato, que nos chama para sermos quilo que nascemos para ser. Em | fora do caréter, completa o circulo a idéia do caréter, oferecendo uma Ho nove © revolucionaria a. respeito a mais temida e incompreendida fase © nossa vida: a velhice Envelhecer ndo € um acidente”, bserva Hillman. “E algo necessario condigao humana e pretendido pela ma.” Num texto sensivel de acurada TCepGAO, o autor nos mostra como velhice € um momento especial > _nossas vidas, quando estamos, fim, preparados para confirmar James HILLMAN A FORGA DO CARATER EA POETICA DE UMA VIDA LONGA w Tradugao de Eliana Sabino OBIETIVS oS 8€0¢000000CC00000C0C Oe © 1999 by James Hillman Titulo original ‘THE FORCE OF CHARACTER Todos os direitos desta edigao reservados & . EDITORA OBJETIVA LTDA., rua Cosme Velho, 103 PARA MARGOT, Rio de Janeiro ~ RJ — CEP: 2241-090 que nunca, nem uma vez, subiu no casco da tartaruga. ‘Tels: (21) 556-7824 — Fax: (21) 556-3322 worw.objetivacom.br Capa Arthur Frées ~ Idgia Digital Revisio Neusa Peganha Sandra Pissaro Tereza da Rocha Editoragao Eletrénica Abreu’s System Ltda. Hosat Hillman, James ‘fora do cardter:€ a poética de uma vida longa J James Hillman s Rio de Jancito: Objetva, 2001 2p. ISBN 85-7302-348-1 Tradugio de: The force of character 1. Psicologia - Envelhecimento, 2. Terceiea idade, 3. Auto-ajuda, I. Ticulo DD 155.67 Os idosos deveriam ser exploradores, T. S, Eliot CE Ill: SER DEIXADO/RESTAR, 17. De “Deixar a Vide/Partic” a "Ser Deixado!Restat” monn 185 18. Filosofando a Respeito do Cardcer . 195 19, O Carder das Virtudes, ou 0 Cariter Moralizado 203 brie 20. O Cariter Imaginado “ 212 Sumdrio 21. Ser Avo/Ser Av6 217 22. 0 Velho Ranhera 22 23. As Virtudes do Cardter wr 27 24, Linka de Chegada/Acabamento 230 Notas cose i 235 rinciasBiblogrifics 245 Preficio para o Leitor . : sense TT ee woth Preficio do Autor conn nen orien 2E Profcio ao Liv. se 7 I: PERDURAR 1. Longevidade 33 2. A Ultima Vez... ——_ 59 3. Velho ss " - 70 Il: DEIXAR A VIDA/PARTIR, 4, De “Perdurar” a “Partir” 83 >. A Repetigio 93 6. A Gravidade e a Flacidez 98 7. Despertando 4 Noite. 102 8. Inquietagio Confusa ... 108 9, Secando . ui 10, Meméria: Perda a Curto Prazo, Ganho a Longo Prazo 14 1A Irvicabil 124 12, Despedida.. 128 13. O Erotismo nous 133 14, Anestesia 144 15, Colapso Cardiaco 150 16, 0 Retorno 156 INTERLUDIO: A Forga da Face... 163 Preficio para o Leitor A velhice nao é acidental. E algo necessario a condigao humana, pretendi- da pda alma. O envelhecimento esta embutido na nossa fisiologia porém, para nossa perplexidade, a vida humana estende-se bem apés a fertilidade, ¢ dura mais do que a capacidade muscular e a acuidade sensorial. Por este motivo, precisamos de idéias criativas que possam embelezar a velhice € dirigir-se a cla com a inteligéncia que ela merece. © leitor encontrard essa visio neste livro, que oferece a promessa de renovar a sua mente com uma saraivada de percepgdes cujo objetivo ¢ afetar, de modo profundo ¢ até mesmo permanente, a transico para a idade avangada, Entao: por que vivemos tanto tempo? Os outros mam{feros mortem, 20 passo que nés continuamos, 40, 50 € as vezes 60 anos depois da meno- pausa. Nés persistimos, deitados em nossas espreguigadeiras ou caminhando numa esteira ergométrica aos 88 anos. Nao posso apoiar a teoria de que a longevidade humana é 0 resultado attificial da civilizacao, sua ciéncia e suas redes sociais, produzindo uma safra de miimias vivas, paradoxos suspensos numa zona ctepuscular. Os velhos como “retardados”. Em ver disso, vamos examinar a idéia de que o carter necessita des- ses anos adicionais e que a longa duragao da vida nao nos ¢ imposta pelos genes, pela medicina de conservacao, nem pela conivéncia social. Os tlti~ ‘mos anos confirmam ¢ realizam 0 caréter. © que a natureza humana mais deseja saber sobre a natureza humana nio acadeia de desenvolvimento desde as origens mais remotas até 0 agora imediato; 0 que queremos é entender o sentido de envelhecermos além da nossa capacidade plena. Para que serve a velhice? Qual &a sua justificativa? Essas perguntas surgem de repente, no curso da vida, ¢ nao apenas durante a “crise da meia-idade”, suspeirosamente norte-americana. Essa crise retine dois temores: estou ficando mais velho, mas ser que continuo sendo o que realmente sou? Envelhecimento ¢ carter juntos. Essa sindro- me tao popular refere-se menos & metade da duragio da vida do que & crise central da natureza do individuo, menos ao fato de ser velho demais do que ser jovem demais. Nao se refere & falta de capacidade, mas 3 falta de ilusio. Descobriremos mais sobre a nossa crise da meia-idade se langarmos um olhar critico para 0 passado, para prolongamento sentimental da adolescéncia, do que se enfocarmos 0 asilo de idosos daqui a 40 anos. Essa segunda projecéo nos livra de estamos no meio da vida ¢ coloca uma mortalha de medo sobre as fascinantes questées da velhice. Aos 40 anos nao temos 80, € temos muito mais “tempo acordados” pela frente do que no nosso passado. O nosso encontro da meia-idade com a velhice é pre- maturo: ainda nao temos a percep¢io que nos permite examinar a fundo as imagens, de modo que as respostas que encontramos na meia-idade refletem principalmente os nossos temores. Este livro atrisca respostas bem diferentes. Para explicar o envelhecimento, geralmente recorremos & biologia, 4 genética e & fisiologia geridcrica, mas para compreender o envelhecimento precisamos de algo mais: a idéia do cariter. A biologia nao é 0 préprio corpo, € sim apenas um modo de descrevé-lo. © envelhecimento é me- diado pelas histérias-contadas sobre ele. A biologia conta um tipo de his- térias a psicologia, outro. Ou, melhor dizendo, a psicologia tenta com- preender as explicagées da biologia. A nossa realidade como seres vivos e pensantes chega antes das nossas explicagdes sobre nosso viver e nosso pensar. Uma abordagem psicoldgica da velhice precisa prender-se a essa prioridade. Se a idia da alma (mesmo ‘nfo se conseguindo explicar essa idéia) vem primeiro no que se refere a0 valor, entao as nossas idéias deveriam estar em acordo com o nosso verda- deiro sistema de valores. Isto significa que temos de psicologizar 0 enve- thecimento, descobrit nele a alma. ee _ No curso normal da vida, a velhice termina na morte, ¢ 0 nosso pen- sar normal sobre o envelhecimento chega & mesma conclusio, Se todo envelhecimento termina em morte, sera que isso significa que todo 0 pro pésito de envelhecer é morrer? A biologia considera o envelhecimento um processo que leva a inutilidade. Em vez de um processo, vamos considerar a velhice uma estrufura com sua prdpria natureza essencial, Vamos entio perguntar por que os nossos tiltimos anos tomam certa forma e mostram certas caracteristicas, Talvez a “inutilidade” precise ser olhada esteticamente. A alma precisa ser adequadamente envelhecida an- tes de partir? Podemos entéo imaginar o envelhecimento como uma trans- formagao em beleza, tanto quanto em biologia. Os idosos sio como ima- gens num mostruitio, cransportando a vida biolégica para a imaginagio, para a arte. Os idosos tornam-se representagdes notavelmente memoré veis, personagens no teatro da civilizacio, cada um deles uma figura de valor unica ¢ insubstituivel. Envelhecer: uma forma de arte? Para entender alguma coisa da velhice, das dificuldades muitas vezes ab- surdas e da ridicula degradagao congruentes com a idade, devemos voltar a.uma das mais profundas quest6es propostas pelo pensamento humano © que € 0 cariter, ¢ como cle nos impde os padrdes em que vivemos? © que fica velho nao sio apenas nossas fungdes € nossos érgios, mas toda a nossa natureza, essa pessoa que viemos a ser ¢ jf éramos hd anos. O carter vem formando nosso rosto, nossos habitos, nossas amizades, nossas peculiaridades, 0 nivel da nossa ambigdo com sua carteira ¢ seus defeitos. © carater influencia 0 modo como damos ¢ recebemos; ele afeta rnossos amores € noss0s filhos. Ele vai conosco para casa 3 noite ¢ pode nos manter acordados por muito tempo, Voct e eu no somos os primeiros a enfrentar a velhice, ainda que seja primeira ver.que a enfeentamos. A humanidade sempre envelheceu; entio, por que no aprendermos com a mancira pela qual as outras pessoas, nos séculos anteriores, recebiam o envelhecimento? Na nossa cultura, esta seria tuma abordagem nova. Buscar nossas idias nas pesquisas recentes € algo que limita severamente as nossas perspectivas aquilo que € nove — ¢ muito do que é novo terd desaparecido quando esta pagina tiver sido impressa e tiver chegado as mis do leitor. Além disso, muita coisa do novo tem origem na negacao: nas pesquisas sobre o envelhecimento, um motivo subjacente é 0 impulso de livrar-se do envelhecimento, como se fosse um cancer. Também eu estou tentando livrar-me de uma idéia — ou pelo menos empurré-la para longe: a idéia de que somos basicamente criaturas fisiolé- gicas e portanto 0 nosso pensar sobre nés mesmos pode ser reduzido a0 pensar sobre nosso corpo. Esta teoria nos condena: tornamo-nos vitimas da idade. Acreditamos que a nossa existéncia inteira é subjugada & fisiolo- gia ¢, mais drasticamente na velhice, governada por ela. ‘A idéia que estamos trazendo para ocupar o lugar da anterior afirma que € a0 caréter que somos mais verdadciramente subjugados. Nos pri- mérdios do pensamento ocidental, Hericlito disse: “Carater é destino.” Nio, Napoledo, nao é geografia; ¢ nao, Freud, rambém nio é anatomia. Cardter! O caréter governa — governando também a fisiologia. Aqui va- mos defender, com toda a convicgio ¢ a perseveranga de que ainda somos capazes, a teoria de que a heranga genética ganha a forma do nosso padrio individual através do carter — a composigao espectfica de tragos, fraque- za, gostos ¢ envolvimentos, a figura identificdvel que leva 0 nosso nome ¢ a nossa histéria, € um rosto que espelha um “eu”, Entio seremos capazes de ver no declinio do corpo ¢ da mente algo mais do que um mal. Iremos ligé-lo a uma verdade subjacente que nds j4 sentimo: : alguma coisa modela qualquer vida humana na forma de uma imagem abrangente, que inclui as contingéncias casuais da vida e as irrele vncias desperdicadas. Muitas vezes dedicamos os anos da velhice & explo- ago dessas irrelevancias, aventurando-nos em etros passados para tentar- ‘mos encontrar padrdes compreensiveis. A compreensio que a mente idosa tenta trazer a0 seu corpo idoso transforma 0 corpo numa metifora, acrescentando mais um nivel de sig- nificado aos processos biolégicos. Envelhecer destextualica a biologia exa- tamente quando estamos mais escravizados por ela. A velhice permite uma segunda leitura do que antes parecia ser apenas problemas literalmente biomédicos. Outras culturas falam em “abrir o terceiro olho”, “consolidar © corpo sutil”; no meu entender, essas coisas significam que a perspectiva psicolégica vera em primeiro lugar, que o territ6rio basico do ser moveu- se para a alma, — EE eee EE Destextualizar a biologia nao é negar a biologia: no podemos negar qualquer dos processos degenerativos, das influéncias genéticas. Estamos simplesmente mudando a mobilia de lugar, passando-a da frente do cené- rio para os fundos, mudando de lugar as nossas prioridades. As coisas que podem vir primeiro no tempo —bactérias, mitocéndrias, bolores do lodo, compostos quimicos, cargas elécricas — nfio necessariamente vém primei- ro em termos de valor ou de pensamento. Além disso, “a lacuna entre a mais complexa mistura de elementos quimicos organicos ¢ a mais simples célula nunca foi fechada, Nem na teoria nem no laboratério a vida foi ctiada através de elementos quimicos, por mais complexos que eles se- jam”, escreve a bidloga evolucionista Lynn Margulis.’ ‘A vida pode muito bem depender de bactérias, bolores e compostos quimicos, mas 0 pensamento atinge complexidades que nao podem ser reduzidas a tijolos primordiais. Este € um dos grandes enigmas do pensa- e pode originar sua propria espécie, escolher idéias antinaturais ¢ ment mostrar sua propria evolucio; € muitos pensamentos totalmente inade- quados sobrevivern. Se a velhice & necesséria para que o carter se complete, entio 0 que dizer de todos aqueles que nao chegam a alcangé-la, morrendo antes dos 50 anos? Talvez estejam corretas as observagGes corriqueiras: “Ela morreu cedo demais”, “A morte dele foi prematura”. Cor isso queremos dizer que o carter deles ainda no amadurecera totalmente. E a grande maioria das pessoas nos séculos anteriores, que viviam apenas até os 30 ou 40 anos? © caricer de cada uma delas era incompleto? Talvez a velhice fosse menos necesséria naquela época. As culturas antigas (como muitas culturas primitivas ainda existentes) ritualizavam a formagio do carater com iniciagées, festivais ¢ funerais; ¢ os mais velhos forneciam instrucio coletiva. Embora os mais velhos deles devessem ser mais jovens em anos do que os nossos idosos, eles mesmo assim eram bastante presentes, observando cada membro do grupo sob o enfoque cons- tante no cardter. Desde que a psicanilise relatou o desenvolvimento “fixado” ou “interrompido” do cardter e “disturbios de carter” infantis, até mes- mo a idéia de cardter fixou-se na infincia. A psicologia passou a olhar para trds para estudar © desenvolvimento do cardter, ignorando a evi- EEE EEE Prerito ana 0 Lerton déncia dbvia de que na maioria de nds o caréver revela bem mais tarde toda a sua forca modeladora. Simplesmente ao durar, nds nos caracte- rizamos. O modo como envelhecemos, os padrées que executamos re- gularmente ¢ o estilo da nossa imagem mostram o cardter em funcio- namento. Assim como o cariter dirige o envelhecimento, o envelheci- mento revela o cardter. eae Avelhice deve ter os seus deuses, assim como a infincia ea juventude tem seus protetores, que inspiram as proezas do primeiro amor e das aventuras imprudentes. A velhice invoca outros deuses, e so necessérios muitos ¢ longos anos para conhecé-los. Suas exigéncias ¢ sua inspiragio podem ser de outro tipo, mas eles, tanto quanto os deuses que visitam a juvencude, nao podem ser rejeitados. Sua descoberta e suas promessas nao pertencem apenas & juventude; a idade nao é exclufda da revelagio, Precisamos reconhecer a extenso em que 0 nosso pensar sobre a du- racio da vida tem sido emboscado num “idadeismo” depreciativo — um conccito de classificagao que relega codos os idosos a uma categoria com limites definidos e inescapaveis, por causa do colapso do organismo ¢ do esgotamento das suas reservas. A biologia e a economia so 0 n0ss0 mode- lo ocidental bisico. [dias de alma, de carater individual e da influéncia da consciéncia nos processos vitais tornaram-se acessérios decorativos para aliviar 0 desespero e disfargar a “verdade real” sobre a velhice. Aconvengao do “idadeismo”, essa “verdade real”, nos dé a sensagao de estarmos presos — e nos deixa em conflito: ou desmoronamos num softimento cada vez mais pessimista, jd aos 50 anos obcecados pela deca- déncia da mente € do corpo, ow negamos otimisticamente a “verdade real” com um programa herdico de crescimento espiritual e boa forma fisica. ponto de vista otimista ¢ 0 pessimista compartilham um pressu- posto: a velhice é um mal, Esta é a sua “verdade real”. Nao importa se a vencemos ou se sucumbimos a cla, a natureza da velhice ¢ inegavelmente solitéria, pobre, ruim ¢ longa demais. Podemos nos imaginar prisioneitos da miséria, abandonados num asilo pobre, loucos, mudos e fedorentos, esperando o fim. Praraco esta 0 Lon Vainos supor que tanto 03 otimistas quanto os pessimistas eenham, razio, € ao mesmo tempo. Sim, a velhice é um mal — especialmente se é afligida pela idéia de um mal. Enquanto consideramos cads temor, cada manchinha de velhice, cada esquecimento de um nome apenas um sinal de decadéncia, estamos afligindo a velhice com a nossa mente, tanto quanto a nossa mente é afligida pela velhice. A propria repetigio co nosso diag. néstico negative do que esté nos acontecendo cada vez que vemos nosso sosto no espelho mostra como é poderosa a idéia & qual subjugamos a nossa velhice, ‘A mente aprecia idéias. Ela pede idéias novas, mesmo incompletas. la se ocupa de cogitar. A mente é naturalmente curiosa, inventiva, trans- gressora. Aos idosos aconselha-se manterem-se mencalmente ativos para adiar o declinio do funcionamento do cérebro. A pesquisa diz que o traba- Tho mental constrdi células cerebrais, Use a sua mente, senio vai perdé-la — e no importa em que se pensa, contanto que a mente seja exercitada como um misculo, Mas as idéias nao s4o apenas vitaminas que servem para manter a mente alerta; a mente também oferece idgias. Manuseando- as idéias ¢ impede que clas se as e dissecando-as, a mente mantém viva embrutegam, ‘As nossas idéias sobre a velhice esto precisando set substituidas. Como um joelho que jé nao consegue suportar nosso peso ou um cristalino que perde a transparéncia e jé nao nos permite enxergar, precisamos levar nos- sas idéias para a sala de citurgia, Mas substituir habits mentais gastos tequer acio e vigor. Pode ser que para romper com as idéias usuais sobre a velhice tenha mos que superi-las. Entéo poderemos reconhecer que muitas idéias con- vencionais que sio um refiigio contra a opressio do envelhecimento sio na realidade meios de esconder-se da forga do carster, E reconfortante acreditar que estamos ficando mais sébios, que a nossa capacidade de julgar é mais s6bria, que as alteragdes na nossa fisiologia geni- tal sao, como disse Séfocles, um alivio. E mais fécil ser velho se concordar: ‘mos com os hugares-comuns do “idadeismo”, ¢ acreditarmos que as atitudes que emergem a medida que envelhecemos nao sao revelagoes da nossa natu- teza essencial, mas meramente efeitos do envelhecimento. Por exemplo: ch ‘gamos ’s ligrimas de emogio com um ato de bondade de alguém, ou nos oferecemos para ajudar alguém com problemas. Em ver de aceitar a gentile- za como um traco do nosso carter, nds a descartamos: “Estou ficando mole com a idade.” Ou: “Nao é 0 meu carter que me leva a dizer essas coisas racistas e cruéis, dar essas gorjetas minimas, espionar meus vizinhos. Sou apenas uma vitima da velhice” —¢ 0 rabo que sacode o pobre cachortinho. Quanto mais tempo nos agarrarmos a idéias gastas, mais elas nos afetam negativamente, atuando como parologias. A principal patologia da velhice é nossa idéia da velhice, A nossa prépria juventude ¢ uma cultura 10s coisas que podem tornar mérbida “Cujas idéias derivam da juventude s a nossa velhice. Depois dos 50 ou 60 anos inicia-se uma nova terapia — a terapia das idéias. vee Envelhecer tornou-se 0 maior medo de uma geragao. © que tememos in- dividualmente, a sociedade prevé demograficamente. Quantias imensas ‘io gastas para extirpar as causas do envelhecimento ¢ adiar a sua aproxi- macio. No entanto, a velhice avanga numa progressio estatistica regular. Os anos vindouros sero cada vez. mais dominados pelos idosos. O século XXI pode ou nao ser “esverdeado” pela consciéncia ecolégica, mas certa- mente ser “acinzentado” pelo envelhecimento da sua populagio. As ni des desenvolvidas esto envelhecendo rapidamente; algumas sequer estio mantendo sua taxa de nascimento, & medida que aumenta a longevidade. ‘Acterna luta de classes entre os que tém € os que nao tém posses torna-se, no novo século, a luta entre [dade ¢ Juventude. O maravilhoso livro America the Wise, de Theodore Roszak, guarda a expectativa do triunfo dos idosos. A simples quantidade deles poderia re- volucionar a sociedade, levando-a do capitalismo predatério e da explora~ Gao ambiental ao que Roszak chama de “a sobrevivéncia dos mais bran- dos”:? ou seja: a crescente proporcio de idosos na populasio modifica o equilibrio em favor de valores que, segundo ele, os idosos consideram mais caros: 0 alivio do softimento, a nao-violéncia, a justica, a educagao, a ma- nutengio “da sade da beleza do planeta”.* Cada um de nés pode ajudar a promover a vis exorcizando a idéia mérbida de que © envelhecimento mantém os idosos imobilizados pela depressio, limitados pela raiva ¢ alienados da sua voca~ ao de Roszak: primeiro, EEL rao LatToR go como idosos; segundo, restaurando a idé ¢ 8 ia do cariter, que reforga a fé na unicidade do individuo como uma forga instrumental afetando aquilo que trazemos para o planeta, Um estudo do caréter através do envelhecimento nos leva a terrenos inexplorados. Os atuais mapas do envelhecimento, que nio levam em conta o carater, sao factuais e pobres, deixando o leitor sem picos de inspiragio, sem profundidade de alma, 20 passo que os textos sobre 0 carter apresen- tam-se menos como guias para as pedreiras ¢ as nascentes da natureza humana do que como manuais para a criagio e a disciplina da juventude. Embora os moralistas continuamente reclamem a idéia para o seu campo, a forca do carécer é natural antes de ser moral. O carterdeve ser estudado primeiramente como idéia, antes de ser submetido por nds’ correcio moral T. S. Eliot escreveu que “os idosos deveriam ser exploradores”. Para mim, isto significa seguir a curiosidade, investigar idéias importantes, correr o ris co da transgressio.‘ Segundo o brilhante fildsofo espanhol José Ortega y Gasset, “investigar” ¢ 0 nosso equivalente mais proximo ao grego alethia, uma atividade mental que iniciou toda a filosofia ocidental: “uma tentativa (..) de nos colocar em contato com a realidade nua (...) oculta atrés das roupagens da falsidade.” A falsidade muitas vezes usa roupagens de verda- des comumente aceitas, usa a inconsciéncia coletiva que compartilhamos ‘uns com 0s outros; uma cerapia das idéias iria nos libertar das convenges que impedem que nossa mente cometa transgressées interessantes. Para ver de perto a forga do carter, devemos nos envolver de todo 0 coragio nos acontecimentos do envelhecimento. Isto requer curiosidade e coragem — neste caso, coragem para deixarmos para trds velhas idéias ¢ nos deixarmos levar por idéias desconhecidas, deslocando a importancia dos acontecimentos que tememos. Ou seja: a coragem de ser curioso. A curiosidade é um dos grandes motores da humanidade, talvez da vida ani mal em geral: 0 desejo de explorar o mundo € 0 que leva o macaco ¢ 0 rato as suas arriscadas aventuras. Para nés, seres humanos, a aventura acontece cada ver mais na mente, Essa coragem mental o grande fildsofo Alfred North Whitehead chamou de “a aventura das idéias”. “Um pensamento é um grande tipo de excitagio",* afirmou ele. Prefiicio do Autor Por que os idosos se tornam.moralistas, sentimentais ¢ radicais? Eles se acorrentam a arvores ameagadas, eles marcham, eles dio sermées. Fazem discursos — para ouvidos tapados por fones de walkman — sobre 0 decli nio moral do Ocidente. Nés, os idosos, nos sentimos indignados, uleraja- dos, envergonhados. Por que fenecer nio ¢ suficiente? Por que no conseguimos deixar simplesmente nossa luz se por atras dos montes acinzentados? © por-do-sol é a imagem errada, pois 0 declinio do sol é marcado pelo fogo, um tltimo protesto, um chamado & beleza, ¢ nds iriamos au- mentar o brilho do dia, nao deixar que ele desbote para a serenidade da noite, “Mais luz”, disse Goethe ao partir. Nada de doces andorinhas pipi- lando ao creptisculo, mas sim vésperas incessantes, sinos tocando, 0 cha- mado & pregacio. “Segundo Platio, roubar os deuses ¢ subverter 0 Estado so crimes desculpéveis quando cometidos sob a influéncia da extrema velhice.”' Seré a subversio aquilo que incita este livro? Vamos imaginar que somos incitados pelo nosso tema, Carter, ¢ também pela variagao do autor sobre este tema, o carater dele, ao mesmo tempo carregando a bagagem moral, sentimental ¢ radical* que todos os idosos cém presa as costas. Escrever como fard« escrever como aventura; escrever como revelagio. Certamente no quero ler mais palavras sobre como construir 0 caré- ter e desenvolvera sabedoria da velhice. C. G. Jung, apesar de identificar 0 arquétipo do sibio idoso, ¢ até mesmo de identificar-se com ele algumas * Radical nese contento,refereze a “ai. [N. da T] veres, escreveu: “Consolo-me com o pensamento de que s6 um tolo supde que a sabedoria vird.”? “E a sabedoria da idade?”, pergunta T. S. Eliot em Four Quartets) “Teriam eles nos enganado/ Ou enganado a si préprios, os idosos de voz mansa,! Deixando-nos de heranga apenas uma receita de incrujice?” A sabedoria, a compaixio, a compreensio ¢ todas as outras qualida- des atribuidas aos idosos server principalmente como trangiiilizantes {fSbicas contra o poder ousado do cariter que envelhece e idealizacoes ari que esté enrodilhado dentro da alma idosa, pronto para dar 0 bote, Nés, idosos — na metade do caminho para 0 status Fantasmagérico de ances- trais e da sensibilidade nua dos espiritos puros —, podemos dardejar uma lingua de serpente quando nos irticamos. O estopim é curto. © que peso de um livro é « que quero escrever: um livro que eu mesmo gostaria de ler. Os escritores na velhice parcccm cer uma gama pequena de opgoes: ‘memérias da vida passada, revisbes ¢ retratacbes de obras anteriores € resu- mos em defesa de antigas maneiras de pensar. Poderia haver alguma alter nativa? Escrever sobre o final da vida nao pode ser um estudo objetivo, indi- ferente ao escritor. A vida dele também esta em jogo, de modo que o texto, se ven do coracio, fala do carter do autor. O autor € personage em sua prdpria ficc20. O fato de um livro anunciar-se como nio-ficgio tratar objetivamente de histéria, ciéncia, pesquisa ou verdade nao esconde sua qualidade ficticia. Quem escreve nao consegue deixar seu carter de fora de qualquer coisa que escreva. - O velho soldado revive sua primeira campanha ver apés vez, em cada novo combate.-O final da vida ¢ repleto de repetigoes e retornos a obses- soes basicas. A minha guerra — na qual ainda nao venci uma batalha decisiva — é contra os modos de pensamento ¢ de sentimentos condicio- nados que prevalecem na psicologia, portanto também no modo como pensamos e sentimos o nosso ser. Desses condicionamentos, nenhum é mais tirinico do que as convicgées que atrelam a mente ¢ 0 coragio & ciéncia positivista (genética e determinismo), economia (capitalismo de- senfreado) e fé cega (fundamentalismo). A idéia do carater é desconhecida de todas as trés, Eu a defendo precisamente porque ela esté tao exilada do cenério contemporiineo Prutico 00 Aviom Essa idéia fard uma parte do trabalho para mim, porque as idéias sao, clas préprias, forcas que comam conta da mente, ¢ nao a libertam, até termos dedicado a elas algum tempo. A idéia de carater pede para ser escri- ‘a; cla quer ser publicada, A propria palavra deriva-se de kharasein, wim termo grego que significa “gravar”, “esbogar” ou “inscrever"; khanaktér, que € tanto a pessoa que faz. marcas agugadas ¢ incisivas quanto a marca assim feita, como uma letra num sistema de escrita. “Carter” refere-se as qualidades distintas de um individuo, ¢ na lingua inglesa pode também significar uma pessoa numa obra de ficcio ou representada no palco. A palavra retine as peculiaridades da individualidade do autor, 0 ato de e crever € 0 livro como um palco povoado pela imaginaczo. Mas que tipo de escrita faz uma pessoa idosa, ¢ como faz isso? “Nem. sempre é ficil”, disse Wallace Stevens, “distinguir a diferenga entre pensar e olhar pela janela.”* Como foi que Paul Valéry colocou? “Pensar? (...) Pensat! E perder o fio.” “Escrever é a unica coisa que para o pensamento, vocé sabe”, disse David Mamet a um entrevistador.* E como é que progride essa escri- ta que para o pensamento? Don DeLillo diz: “A obra (...) sai de todo 0 tempo que o escritor desperdica. Andamos de um lado para outro, olha- mos pela janela, descemos o corredor, voltamos & pagina. (..).”° A tarcaru- ga determina a velocidade. Somos carregados em suas costas. Explorando ‘como quem pensa lentamente, ¢ pensando como quem escreve ainda mais lentamente: nds, idosos, somos connoisseurs de fios perdidos e tempo ocio- so, porque nao conseguimos acompanhar o pensar costumeiro. O pensar costumeiro sobre a velhice pira na morte. Este nao é 0 destino deste livro, nem a morteé um modo ousado de se pensar a velhice. © que poderia ser mais comum do que as alegorias da natureza: érvores espléndidas descansando sobre troncos sélidos; uma velha tartaruga nas profundezas do mar; 0 rico sator de vinhos ¢ queijos envelhecidos (“O amadurecimento é tudo”)? Minha paixio no pode satisfazer-se com aquilo que ¢ evidente, ou até mesmo com aquilo que evidencia. Um final com morte nao nos leva a tertit6rio proibido. Penso na exortagao de Maurice Blanchot para “escre- ver 0 que é proibido ler”.” Todo o mundo tem uma opiniao sobre a morte. O assunto é propicio a faceis lugares-comuns, Como diz Woody Allen: “A morte é uma das poucas coisas que podem ser feitas com igual facilidade enquanto se esté deitado.”* Os rabis, os monges, os fildsofos antigos, os pregadores e os médiuns videntes podem encher nossos ouvidos com ensi- ‘namentos. Uma observagio empirica que parece persistir & que, embora os deuses possam gostar daqueles que morrem jovens, a morte prefere os muito velhos. A morte nao é um assunto para meditagio, porque nao pode ser st jeita a0 pensamento; a morte esta além do pensamento, inatingivel por seus métodos. Légica, demonstracao, experimentos — tudo isso tem re- sulrado nul. A morte nao tem ps simbolismos, espiritualismos e especulacdes metafisicas. Ninguém sabe coisa alguma sobre ela. $6 ha Nada em que pensar. “Um homem livre pensa ‘ologia nem fenomenologia além de menos na morte que em todas as coisas”, afirmou Spinoza.” E portanto essencial & nossa pesquisa separar-a morte da velhice, ¢ em Jugar disso restaurar a antiga ligagio entre a velhice ¢ a unicidade do caré- ter. O “velho” esta presente em varios graus nos muitos fendmenos cujo cardter admiramos, como velhos navios, velhas cabanas, velhas fotogra- fis; aqui, “velho” nao se refere a alguma coisa que passou da meia-idade, nem a alguma coisa a caminho da morte. A pergunta “Por que sou velho2”, a resposta costumeira € “Porque estou morrendo”. Mas os fatos mostram que eu revelo mais cardter 4 me- dida que envelheco, ¢ ndo mais morte. Nio estou negando que irei morrer uum dia, mas no vou passar o final da vida escrevendo sobre algo que nao posso conhecer, Muito mais importante é olhar para a velhice como um estado de ser, ¢ para 9 “velho” como um fenédmeno arquetipico, com seus préprios mi- tos e significados. Este é o desafio mais ousado: encontrar o valor no enve- thecimento sem pedir esse valor emprestado & metafisica ¢ is teologias da morte: 0 envelhecimento por si s6, uma coisa propria liberta do cadaver. Um dvido interesse no “velho” como uma possibilidade arquetipica em todas as coisas, inerente ao ser humano como a todos os seres — & disso que a nossa sociedade sente falta, ¢ disso que os idosos particular- mente sentem falta ¢ anseiam por descobrir. Pois sabemos que devemos assar nossos dias € nossas noites sob os auspicios do deus implacdvel que governa a velhice c exige sactificios. O abandono desse deus reflete-se no abandono dos velhos, e nos asilos para idosos, com suas rotinas em lugar de tituais, um santudrio secular sem viséo transcendente, sem embasa- mento arquetipico. A restauragao do templo do Velho no requer uma construgio literal Ela poderia comegar como uma construgio literdria, uma construcio es- ctita, feita escrevendo-se construtivamente. Sejamos ousados a ponto de imaginar que esta pesquisa é um ritual, ¢ que 0 nosso pensamento ¢ a nossa escrita podem invocar os poderes que governam o nosso tema. Va- mos imaginar que est sendo iniciada uma consagragao. Prefacio ao Livro Este livro divide-se em trés partes principais, enfocando o tema do carter através de trés estagios, Esses estagios no sio os costumeiros: infincia, maturidade e velhice; em vez disso, este liveo estuda as mudangas pelas {quais 0 cariver passa nos itimos anos da vida. Primeito, o desejo de durar 9 méximo possivel; em seguida, as mudangas no corpo ¢ na alma a medida que a capacidade de perdurar vai embora e 0 cariter se toma cada ver mais, exposto e confirmado, até que surge a terceira pega do quebra-cabega: 0 que & deixado/resta depois que se deixa a vida/parte. Perdurar, Partir, Res- tar. Trés partes, trés idéias principais. Um livro é construido sobre idéias, este livro especialmente. A capa- cidade de tet idéias ¢ encontrar prazer nisso tem sido durante muito tem- po uma justificativa para escrever ¢ ler livros, e para agarrar-se a eles como uma proptiedade valiosa, O capitulo denominado “Longevidade” estuda aquilo que esta idéia implica de maneira mais abrangente, as aspiragées que ela traz.¢ como a idgia de longevidade pode ser ampliada além das medidas da eficiéncia bioldgica ¢ das expectativas estatisticas. A Parte I ia de “velho”, 0 motivo por que a velhice ¢ essencial estuda também a Aquilo que amamos no carater de uma pessoa, de um lugar, de uma coisa. A Parte II estuda os sintomas fisicos que a vida traz & medida que comecamos a deixé-la, ¢ examina o papel desses sintomas na formagio do cardtet. Este € 0 cemne do livro, porque vai ao cerne de toda vida. “Partir” curtas, como as disfungées do en- tenta mostrar, em uma dtizia de segd« velhecimento convertem-se em fungdes do carter. Os aborrecimentos, os impedimentos ¢ os temidos sincomas dos iiltimos anos mudam de impor- tincia a medida que descobrimos 0 propésito dessas coisas. A idéia a ser EEE EEE EEE EE tratada em todo “Partir” como parte deste livro e partir como parte da vida é que o cardter aprende sabedoria com 0 corpo. “Parcir” religa a psicologia ao seu primeito lar histérico, a filosofia Nietzsche disse que a tarefa do filésofo ¢ “criar valores”. Hoje, os valores sao freqiientemente descartados como meras opinides pessoais, e dog- matizados ou enfeitados para conquistar adeptos ou fregueses; assim, a0 encontrar valores duradouros na velhice, 0 psicdlogo enquanto filésofo ira, nas palavras de Nietzsche, “encontrar-se em contradicio com o seu hoje”.! De modo que este livio é também um livro filoséfico. Os vethos filésofos foram carinhosamente reccbidos nele, para falarem sobre a cria- io de valores Entre “Deixar a vida/Partit” © “Ser Deixado/Restar” criei um breve Interlidio, “A Forga da Face”. Esse trecho afirma que os rostos mais ido: 0s sio marcados pelo cariter, que a beleza deles revela o carater ¢ que seu poder duradouro como imagens de inteligéncia, autoridade, tragédia, co- ragem € profundidade de alma deve-se ao cardter. Esse trecho do livro afirma que a auséncia dessas qualidades na sociedade contemporinea e em suas figuras puiblicas deve-se & falsificagao do rosto ma puiblico A Parte III, “Ser Deixado/Restar”, lida com o velho dito “carater é is idoso aos olhos do destino”. Pois o que “resta” 0 pedago de destino que o carater tinico de cada pessoa personifica, Ser tinico é ser impar, diferente, atfpico, diverso de qualquer outra coisa em cualquer lugar; as singularidades que uma pessoa tenta abafar durante a maior parte da vida reemergem no final da vida para compor a imagem que é deixada, A Parte III aponta as diferengas entre 0 enigma do cariter ¢ a idéia abstrata do eu que tanto agrada aos psicdlogos, ¢ também entre o carter € a idéia — mais popular — da personalidade, apropriada ao charme de celebridades e as preocupacées da juventude. Outra diferenciagao percorre todo o livro: entre o cardter como uma ‘estrutura moral inculcada por precéitos ¢ mantida pela forga de vontade e coergio, por um lado, ¢, por outro lado, o carter como estilo estético, de tragos duradouros, expressos em gastos ¢ comportamentos individualiza dos. Pois o que € deixado quando a pessoa deixa o palco ¢ uma imagem iossincratica (especialmente aquela apresentada nos tltimos anos) ¢ nao Preracis ao Liao 9s preccivos morais que a pessoa tentou manter sob @ nome equivocado de “carder”. A imagem que fica da pessoa, aquele modo tinico de ser e agir, deixada na mente dos outros continua a agir sobre eles, em casos, reminis céncias, sonhos, como um exemplo, como mentor, como ancestral — uma forsa poderosa atuando sobre aqueles a quem ainda resta vida a viver ‘Um preficio deveria dizer de que trata o livro, set um resumo da obra como um todo. Ele nao conseguiré atingit seu objetivo se o livto for psico- Porque psicologia nunca é Jégico, mesmo que sé um pouquinho. Por qué? sobrealguma coisa, algo do lado de fora, um resumo, wma abstragéo. Um livro que convida a alma a entrar em sua pesquisa nos leva para dentro de um labirinto. © preficio tenta desenhar o labirinto num mapa plano; no entanto, nao consegue fazer justiga As curvas, aos volteios e &s passagens fescuras, ou aos momentos inundados de clara luz. Télvez. 0 maximo que este preficio pode fazer seja desejar boa viagem ao livro, revelar sua grati- dio pelo faro de o livro existir ¢ ter ido parar nas maos e sob os olhos de alguém, ¢ talver até na mente e no coragio de alguém. PERDURAR Continue vertendo; eu agiientarei. Shakepeare, Rei Lat w CAPITULO Longevidade Movendo-se, ¢ sendo ela mesina Lenta, e no questionada, E extravagantemente ali, ah, estdica! DH, Lawrence “Tortoise Family Connections” as nossas sociedades competitivas, “perdurat” acabou significan- do “ulerapassar”. “Vivi mais do que meu pai e meus dois avés!” “Segundo 0 meu meédico, eu deverin ter morrido hé trés anos.” “Minha companhia de seguro tem prejuizo comigo, pois o total do que ja recebi por més € muito maior do que o que eu paguei.” Certamente a bondade e a misericérdia irio me acompanhar em todos os dias da minha vida, porque a minha vida ultrapassou a curva de expectativa. Nio apenas venci a minha heranga genética, os meus colegas de esco- la e as companhias de seguro, mas mantive & distancia a prépria morte. A vida: uma competigao contra todas as outras pessoas e contra a morte, de modo que viver mais tempo se torna uma vit6ria, repetindo a cada aniversirio a famosa passagem de Sao Paulo: “A morte ¢ engolida na vit6- ria. (..) Ah, morte, onde esté o teu fertio?”, — Annossa experiéncia de envelhecer € to incrustada de ntimeros de anos que restam a viver, segundo tabelas de expectativa de vida, que mal podemos acreditar que durante séculos os anos da velhice eram associa- |dos, nao & morte, mas a vitalidade e ao cardter. Os idosos nao eram consi- /derados principalmente pessoas que capengavam em dire¢ao A porta da ‘morte, mas sélidos repositérios de costumes e lendas, guardides dos valo- \tes locais, mesttes em trabalhos manuais e vozes preciosas nos conselhos I, ceca comunitérios, O que importava cra a forca de carter provada pela exten- sio de anos. A mortalidade era associada 3 juventude; aos natimortos e mortos na infincia aos ferimentos de guerra, duelos, roubos, execugées ¢ piratatiass aos riscos profissionais de fazendeiros, minciros ¢ pescadores, e aos riscos do parto; aos feudos de familias ¢ & violéncia cometida por citime; a epide- mias € pragas que maravam populagdes inteiras no inicio da vida, Os ce- mitérios eram ponuill Ocalace intimo de longevidade e mortalidade, los de pequenos ttimulos de criangas. sse elo que monoga micamente casa 0 arquétipo de velhice coma idéia da morte, passa a do- minar nossa mente apenas no século XIX, com 0 avango da demografia Na Franga, a filosofia positivista promoveu o estudo estatistico das popt lagbes, o que veio a deslocar a morte, levando-a do reino do particular e do espiritual para o reino da sociologia, da politica e da medicina, As estatis- ticas sobre a duragao da vida evidenciavam uma taxa de mortalidade de- crescente, 0 que era tomado como indicado: do progresso da civilizacao. ‘A sociedade como um todo podia provar o seu aperfeigoamento pelo avango das cifras de longevidade, ¢ a longevidade podia ser aumentada pelos no- vos métodos medicinais (vacinasao, pasteurizagio, esterilizacio) e progra- 0). Durkheim, um s de suicidio, mostrando que cada distrito da Franga tinha uma taxa de suicidios que mal variava de uma década para outra. Um mimero previsivel de pessoas em qualquer dos distritos iria cometer suicidio no ano seguinte. Quando a incidéncia de suicidios funde-se a sociologia de classe social, ocupacio, hereditatied: de, religiao, idade, ¢ assim por diante, entio o ato do suicidio torna-se um fato sociolégico bem distance da psicologia do individuo que 0 comete O fato estatistico torna-se uma forca social, condenando uma percenta- gem definida de habitantes em cada distrite a morrer por suas proprias mios. Os dados tornam-se destino. mas de satide publica (gua potivel, tratamento do esgoto, ventilag: A demografia firmou-se ainda mais quando Emil dos pais da sociologia, analisou as estatisti A curva de expectativa de vida carrega uma forga prépria. Se vocé se colocar dentro dela ainda adolescente, poderi ter uma expectativa de vida de pelo menos 70 anos. Aos 60, descobriré que sua expectativa de longevi- dade aumentou; agora pode ser 78 ou mais, Uma vez chegando idade, as tabelas estatis essa as podem colocar o termo da sua vida aos 86 anos. assim por diante, Mesmo se voce chegar aos 100 anos, os estatisticos de seuiria falam da “probabilidade condicional” de que renka mais alguns meses ou anos. As estatisticas confirmam que quanto mais tempo a pessoa ves mais tempo viverd, de modo que com cada dia de envelhecimento ela pode esperar outro dia na “curva atuéria até o infinite”. A curva no con- 1 quando a sua longevidade findards em vez disso, ela parece z de empurrar voce segue PINT 4 a empurtar voeé interminavelmente para a frente. Em ve fm ditegio & morte ¢ revelar o faco cru da sua mortalidade, a curva fu Gona como um antincio estatistico da imortalidade! Se “perdurar” significa mais do que sobreviver as expectativas estat ticas, entdo 0 que € isso que dura? O que € 0 “isso” que persiste e perman ce? O que poderia possivelmence perdurar através de todos os aconteci mentos de uma vida longa, permanecendo constante do inicio a0 fi Nem nosso corpo nem nossa mente permanecem os mesmos; eles nio conseguem evitar a mudanga. O que parece ser verdadeiro ducante todo 0 tempo até 0 fim é wim duradouro componente psicolégico que marca cada pessoa como diferente de todas as outras: 0 seu carter individual Aquele vocé que ¢ sempre o mesmo, ‘Mas 0 que significa “o mesmo"? Eu mudei tanto ¢ estou tio diferente, no entanto, apesar de todas as mudangas, alguma coisa continua a me assegu- rar que sou o mesmo. Poderia perder minha identidade social, minha con- figuragao fisica e minha histéria pessoal, no entanto alguma coisa perma icais, Este livro afirma ssma, ultrapassando essas vicissitudes que o cardter é esse cerne que nao se altera. Se esse cere inalterado € 0 nosso cardter, temos que aprender mais sobre este profundo principio: a inalterabilidade, ou “mesmic:”* —o que sofos vém pensando como funciona, Nao ¢ tarefa simples, jé que os fil sobre a mesmice desde que Platdo fez do Mesmo ¢ do Diferente duas das idgias mais bésicas que entram na existéncia das coisas, formam 0 nosso pensamento sobre elas ¢ até mesmo as tornam possiveis.! * Mesmice éo cexmo que melhor teadue a palavea sameness “inalcerivel", “permanente” sio adjetivos ques aplicaty a ea, (N. da T] A Foca Canes Os filésofos brincam com o enigma da mesmice. Tomemos, por exem- plo, o seu par de meias favorito. Vocé encontra um buraco no calcanhar ¢ 0 cerze. Depois encontra um buraco no dedio — ¢ 0 cerze também, Logo a meia seré feita de mais buracos cerzidos do que da la original. Finalmente a mia inteira estard feita de uma la diferente, No entanto, éa mesma meia, Em relagio a sua aparéncia e em relagio ao outro pé do par, ela ainda é a mesma mia. Elas so usadas juntas ¢ guardadas juntas na gavetas ¢ até em relagio a si ‘mesma, sua propria identidade, € a mesma meia, embora seja diferente. picas de Platio: 0 Aqui 0s filésofos podem aplicar as idéias arquet Mesmo ¢ o Diferente. A meia ¢ inteiramente diferente da original no que se refere a li, mas sua forma permaneceu a mesma. Ela nunca se ¢orna uma meia diferente, apesar da radical alteracio material. Seu material é diferen- te; sua forma é a mesma. Por “forma” os fildsofos entendem a aparéncia da meia, pela qual vocé a identifica como meia. (As meias sem calcanhar criam problemas conceituais!) Quando é que uma meia nao parece uma meia ¢ ainda assim € uma meia? Os fildsofos entendem também por “forma” a fungio da meia como compativel com o outro pé de meia e com o seu proprio pé (a forma acompanhando a funcao). Um tercciro significado & 0 que mais nos interessa: a forma como principio ativo governando 0 modo como a nova 1a integra-se a velha meia. A forma ¢ portanto o formato visivel e a forga que dé forma ao visivel. Da para perceber que estamos chegando mais perto da nogao de cardter? O corpo humano ¢ como aquela meia, perdendo suas células, mu- dando seus fluidos, fermentando culturas de bactérias inteiramente novas enquanto outras mortem. Ao longo do tempo a sua matéria se torna toral- mente diferente, mas continua sendo o mesmo vacé, Nem um centimetro quadrado de pele visivel, nem um grama palpavel de osso é 0 mesmo, no entanto vocé nao é uma pessoa diferente. Parece haver uma imagem inata que nao esquece o seu paradigma basico e mantém vocé a carter, igual a si mesmo. A idéia do DNA parece restrita demais para conter as dimensoes psiquicas da nossa imagem tinica. Para abarcar a nossa complexidade pre- cisamos de uma idéia mais abrangente. Alguns tildsofos e pensadores gregos da Igreja medieval atribuiam & iia da forma essa consisténcia no meio das mudangas. Outros iam além, rt afirmando que a forma individualiza. O que faz cada pessoa, cada coisa ser diferente das outras pessoas ¢ coisas é a forsa ativa da forma. Duas formas nao podem ser iguais. Cada um de nés conserva sua imagem individual especifica pelo prinetpio da forma, Para usar um dos termos sugestivos de ‘William James, cada um de nés é um “cada”. Como “cada”s, somos tini- cos, porque cada um de nds tem, ou €, um cariter especifico que permane- ce 0 mesmo. Nesse ponto € importantissimo entender que somos tinicos qualitati vamente, Voce tem o seu estilo, a sua histéria, 0 seu conjunto de tragos ¢ um destino, Vocé é essencialmente diferente de mim por causa da inalte- ravel mesmice de cada um dos nossos caracteres individualizados. Sea diferenga entre voc’ e todos os outros fosse definida pela fisica, légica, politica, economia e lei, cada um de nds seria um “um" numérico sem quaisquer caracteristicas necessitias. A lei diz: “Todos sio iguais pe- rante a lei”; a politica diz: “Cada pessoa, um voto"; a fisica diz: “Dois corpos néo podem ocupar 0 mesmo espago ao mesmo tempo”; a econo: mia coloca todos os “cada”s em categorias — consumidores, trabalhado- res, proprietarios, patrdes. Quando cada um é intercambiavel com qual- quer outro, a individualidade nao necesita de mais que um mimero de identidade diferente. Como a singularidade depende das diferengas quali tativas que formam a perene mesmice da sua individualidade, a idéia do cardter & necesséria para nos manter diferentes uns dos outros ¢ os mesmos que nés préprios. Vamos voltar & meia. Se o que sobrevive & li é a forma, entio a preo- cupagao com o declinio fisico — onde a meia estd se esgarcando — perde de vista um ponto crucial. Realmente, a meia mostra buracos, ¢ costurar seus lugares mais fracos mantém-na funcional. Mas nossa mente lucraria mais se pensasse sobre o mistétio desse principio formal que permanece a0 longo das substituigdes materiais. Certamente a forca duradoura do card ter conta tanto quanto a durabilidade da li Algumas vezes as costuras e os cerzidos no se fixam. A medicina observa com cuidado a rejeisio depois de transfusdes, transplantes de 6r- gi0s ¢ implantes ésseos. O principio formal que garante a mesmice apesar da introdugao de material estranho € denominado pela medicina “sistema imunolégico”. Esse sistema accita ou rejcita substitutigdes segundo seu pré- prio eddigo inato. Os novos materiais devem ser integrados 4 integridade da pessoa. Ou, como diriam nos debates da Igreja hi 900 anos, o material precisa ser acomodado 3 forma, Ele deve adequar-se & minha imagem ina- ta, A parte ntra — rim, quadril ow joelho — precisa tornar-se 0 meu joelho. A nova la tem que se tornar eu. © que € que transforma “essa coisa” em “eu”? A psicologia moderna, nao importa a escola, entende a assimilagao de acon tecimentos por um “eu” como uma fungio do cariter. As escolas de psicolo- gia usam outras palavras para carater,tais como “personalidade”, “ego”, “eu”, “organizacio comportamental”, “estrutura integeativa”, “identidade”, “tem- peramento”, Esses termos substitucos no conseguem caracterizar os estilos de assimilagio que so os marcos da individualidade. Cada um de nés reage diferentemente a0 mundo, levando nossa vida num estilo particular. A pala- vra “caréter” implica um conjunto de tragos ¢ qualidades, habitos e padres; cla requer uma linguagem descritiva, tal como encontramos em referencias de cariter, cartas de recomendacio, boletins escolares, rotciros ¢ romances, criticas de desempenho, obitudrios. “Ego”, “eu”, identidade sio abstragbes cruas, que nada nos dizem do ser humano que elas hipotericamente habitam ¢ governam. Na melhor das hipéteses, esas palavras referem-se & uniformi- dade das pessoas ¢ ignoram suas diferengas singulares. E muito animador constatar que algumas das idéias mais antigas ¢ mais basicas da filosofia — Mesmo ¢ Diferente, Forma ¢ Matéria — estio na realidade atuando na nossa vida cotidiana, até mesmo no nosso corpo. Acho maravilhoso que esses principios antiquados ¢ confusos sejam ime- diatamente priticos e possam ser discutidos como fatos corporais, Por que devemos ser exortados a construir o cariter ou fortalecer o carter quando © carater j4 € um fato consumado, a resisténcia que nos mantém sendo quem somos e prende nosso corpo a sua forma? Imagine o corpo como ‘um antigo fildsofo, o corpo como um lugar de sabedoria — uma idéia ja anunciada no titulo das livros de dais médicas especialistas. Walrer Can non e Sherwin Nuland. Cannon na década de 1930 ¢ Nuland na de 1990 afirmaram que fisiologia do corpo sabe o que esté fazendo. Existe uma sabedoria em acio. A idéia do carder torna mais comprecrsivel essa sabedoria governance ‘Além disso, se considerarmos 0 cardter mais do que uma colegao de carac- reristicas ou um actimulo de hdbitos, vittudes e vicios, se em ver disso 0 Considerarmos uma forsa ativa, entéo o caréter pode ser o principio for- ador no envelhecimento do corpo. O envelhecimento se toma entio tama revelacio da sabedoria do corpo. Estou enfatizando a forma na organizagao da matéria por dois moti- yos. Primeiro, para contradizer os mercadores do materialismo, que nos pedem para comprar a idéia de que somos pecas complexas de biotecnolo- gia, compariveis aos mais modernos chips de computador. Seja qual for a forma escolhida por nés, ela resulta de impulsos biogenéticos subjacentes. A forma pode ser reduzida a matéria; ela obedece as leis da matéria e toma sua forma através do material genético. Como é a matéria que faz a forma, nao hd necessidade de uma idéia de forma em separado. Um trecho sucinto, bem escrito — ¢ fantdstico —, de auroria de um tivos do planeta representa aqui uma série de afirmagées semelhantes em livros semelhantes. ‘Armente é um sistema de érgios de computasao desenhado pela selesio natural para resolver os tipos de prodlemas que nossos ancestrais saqueadores enfrentavam por causa do seu modo de vida. (...) A mente 6 0 que cérebro faz; especificamente, 0 oérebro processa informacio, ¢ pensar é uma espécie de computacio.(...) Os varios problemas dos nossos ancestrais eram subtarefas de um tinico grande problema para 1s genes deles: maximizar 0 niimero de exemplares que conseguiam chegar & geragao seguinte. Por que chamo isso de fantastico? Porque este relato de ancestrais saqueadores, genes enfrentando problemas e seleco natural como deus ex machina deixa pendentes as grandes perguntas. E mais: a afirmagio é colo- cada axiomaticamente, nao como mito ou como uma simplificagao redu- tora, mas como uma verdade evidente, ¢ sso permite que Pinker continue a dizer alegremente que psicologia é engenharia Reduzir psicologia a engenharia agrde o significado de forma. A mi- nha forma é mais do que o modo como sou montado. Todos nés sabemos que a maneia de perdurar é ficar em forma, mas “ficar em forma” signif A Fone 10 ca mais do que fazer gindstica. Fazer dieta, fazer exercicios fisicos ¢ deitar- se antes da meia-noite satisfazem as necessidades da sua forma? O prime 10 significado de “formar” é “criar”, o que utiliza uma forga que € invisivel 6 no entanto, em seu proprio estilo, corna cada criatura visivel. O termo generalizador “processamento de informagio” cobre a historia do pensa- mento sutil subjacente & idéia de forma, Minha segunda razo para insistir na forma € manter um ponto de vista psicolégico ao cratar de questoes psicoldgicas. Afinal, a vida, para quem vive, € perturbada pelas perplexidades psicoldgicas para as quais a bioquimica e a fisiologia cerebral oferecem pouco consolo. Por que viver, por que viver muito e com a probabilidade de debilitacao fisica sto, para cessas cigncias, perguntas irrelevantes. Mesmo que elas removessem a debi- liragao e prolongassem os anos de vida, os “porqués” que elas possam responder satisfaroriamente “como” permanecem, sem tee No caso das perguntas antigas, calejadas e bisicas, gosto de recorrer aos pensadores antigos, calejados ¢ basicos, como Aristételes — especial- mente Arist6reles, j4 que ele pensou a idéia de forma em relagio ao cor- poe Aalma. Bis o que ele diz: a alma é a forma do corpo, “o original do movimento dele”, ca meta ou o propésito final dele. Como “substancia dos seres vivos”, essa forma chamada psigue “influencia” e “comanda” 0 corpo, ¢ ¢ “mais verdadeiramente uma parte do animal do que € 0 cor- po”, mas os interesses “do corpo ¢ da alma séo os mesmos”. A alma forma.o corpo, no entanto ela mesma ¢ sem corpo, portanto nao pode ser localizada-num érgio, numa célula ou num gene do mesmo modo que a forma da meia pode ser localizada na 1a. Por causa da incorporali- dade da alma, “a beleza da alma ¢ mais dificil de ser vista do que a beleza do corpo”. Milénios depois, o fisico Richard Feynman, que ganhou um Prémio Nobel, também descreveu a forma que mantém a mesmice: Aquilo que chamo de minha individualidade é apenas um padrao ou uma danga, (...) Os 4tomos entram no meu cérebro, fazem uma danga € entio sacm — ha sempre Atomos novas, mas fizendo sempre a mesma danga, lembrando-se de como era a danca ontem.* Prove para dar mais precisio & forma de Platao, & alma de Aristételes ou & danga de Feynman, a tradigéo freqiientemente usa a linguagem de caractersti- Sos. A alma esté preocupada com a bondade e a beleza, com a justiga e a nilise do cardter e as descrigées da coragem, com aamizade ea lealdade; a | lma empregam termos em comum, tais como “sagaz”,“sensato”, “conhe- cedor”, “bondoso”, “rimdo", “ponderado”, “hesitante”, Essas qualidades Gao a alma em ago, padronizando os nossos movimentos ¢ revelando o poder formador da alma, que influencia ¢ até mesmo instiga 0 nosso com- portamento, A alma é apenas uma abstrasio até nos defrontarmos com a jua corajosa vontade de viver ou com a sua sensater. ou com o seu humor. Os adjetivos tornam 0 nosso comportamento profundo, ou cilide, ow timido, ou modesto, ou educado, ou cruel, ou prudente. Eles dio um estilo & danga. Nés fazemos a alma ao corporificar ¢ representar adjetivos que diferenciam o prolifico potencial da alma. Através dessas caracteriti- ‘cas, ficamos conhecendo a natureza da nossa alma € podemos avaliar a alma dos outros. As qualidades so a infra-estrutura final, dando um pro- pésito € uma forma Aquilo que acontece ao corpo. Elas sio a forga no ‘carter. [sto me leva a peasar que viver uma vida longa ajuda na confecgio da alma, ao trazer A vida a espantosa colegio de adjetivos da psique F proveitoso considerar a alma uma inteligéncia ativa, formando € “tramando” o destino de cada um. Os tradutores usam a palavra plot (em portugués, “trama, enreco, conspiragio”) para verter para o inglés a antiga palavra grega myrhos (*mitos”, em portugués)*. Os enredos que embara- gam a nossa alma e empurtam o nosso cardter para a frente sio os grandes mitos. E por isso que precisamos de um senso de mito e um conhecimento dos diferentes mitos pare podermos ter uma visio dos nossos esforgos épi- cos, nossas aliangas malfeitas, nossas tragédias. Os mitos mostram a estru- tura imaginativa dentro da nossa confusio, ¢ 0 nosso carter humano con- segue localizar-se contra o pano de fundo dos personagens do mito. Essa idéia estruturada, intencional ¢ inteligente de que a alma em geral (¢ cada alma em particular) possui um cariter definide contrasta forremente com os lugares-comuns de hoje, O que € dito hoje sobre a alma ¢ como um fio de aranha, nao tem fibra. A “alma” tornou-se um, + O autor reere-se a rads para o ingh és, [N. da E.] 1 Fons bo Caste refiigio de mistério ¢ névoa, uma terra encantada de fantasia ¢ sentimen- tos, de sonhos ¢ devaneios, de estados de espirico, simbolos e vibragées, uma amabilidade passiva, impalpivel ¢ vulnerdvel como uma asa de bor boleta. A idéia da forma dé contorno e carder & alma exige mais rigor no pensar sobre ela. A forma dé também uma pista para a espantosa energia dos idosos. Segundo Aristételes, 0 corpo é governado pe sua forma, a psique. O cara ter da psique nao tem outra causa além de si mesmo, ele se realiza fazendo aquilo para o qual esté naturalmente apto a fazer, € que & também o seu prazer. Aristételes chama de enérgeia essa atividade natural. A energia é ante- rior e diferente de Kinesis, ou movimento, e de dynamis, que é capacidade ou poder porencial. A capacidade mental c a vitalidade fisica podem declinar na velhice, assim como a mobilidade pode diminuir; no entanto, o cardter mostra uma energia cada vez maior, a medida que a forma se torna mais realizada. Agora vamos voltar Aquelas meias. E curioso que os fildsofos usem as meias em sua duradoura alegoria, ja que a palavra inglesa “/ast” (que em portugués significa, entre outras coisas, 0 verbo “perdurat” ¢ 0 adjetivo “altimo”) tem um significado derivado de leis, palavea do nérdico antigo que significa “pé” e “meia”; ssim, “ast” & também o termo inglés para a forma de metal ou madeira usada para fabricar ou consertar um calgado — no fabrico de um sapato, o tiltimo (/ast) vem primeiro, E manter-se a cardter é seguir a sua forma (Jas) Mais um sentido de “/ast” acompanha o nosso tema da longevidade: refere-se & capacidade de carga de um navio, sua capacidade de agtientar peso; um las é uma carga, um peso. Esses diversos significados de “Jat” — permanecer através do tempo, manter-se fiel & forma ¢ capacidade de agiientar peso — juntos enriquecem a idéia da longevidade, estendendo-a na diregéo do cariter. Se no idioma inglés “perdurar” (/ast) significa mancer-se fiel & forma, entao o que dura éo nosso carver — ¢ cle pode sobreviver muito além da nossa prépria vida, porque a sua influéncia ea sua forga de origem sao anteriores vida do corpo assim nao inteiramente dependentes dele. O cariter dura porque é a estru {ura que agiienta o peso, aquilo que nés com demasiada freqiiéncia sentimos como uma carga. “Nio consigo mudar; é como sou, quem sou.” Construir ‘0 carter aumenta a longevidade, a0 tornar a sua imagem mais indelével. — — {Uma palavea de cautela: embora duremos mais tempo permanecen do iis A forma, ssa forma pode nio ser forte, ou reta, ou verdadeira, Um geer estruturado no é necessariamente amarrado por virtudes morais canst jrio pode ser superficial, sorrateiro, até mesmo corrupto. Mas isto see Pm forma 0 destino. Integridade nio significa ter um queixo de gra- veto, Unia fiigrana rambém é um padrlos um castelo de carts também & viina estrutita, A iddia de integridade pede apenas que a pessoa seja o que soa é, ¢ nada além ou diferente, Os suigos contam uma piada sobre um banqueito. O pai, proprietério de tum banco pequeno, diz aos dois filhos que um dia ele vai comegar a mos- trar sinais de senilidade, € sua capacidade de decisio ficara prejudicada, E lembra a cles 0 provérbio russo: “O peixe comeca a feder a partir da cabeca.” Os filhos deverio entao abordé-lo e dizer-Ihe francamente que ja éhota de ceder 0 controle. Os anos passam. Finalmente os filhos, sempre respeitosos para com o pai, vém dizer ao velho 0 que ele thes mandou dizer, O velho, escondido atrés de uma pilha de papéis, ergue os olhos e, com um sortiso abilolado, exclama: “Tarde demais!”. Um segundo e sombrio significado esconde-se atris desta piada — como costuma acontecer, ¢ como Freud adorava demonstrar. Nao apenas 6 pai mantém o controle mesmo quando j nao consegue ficar sio, mas também “Quem vai dirigir banco?” representa a disputa arquerfpica en- tre pais e filhos, ¢ dramatiza o papel da longevidade nessa disputa. Em algumas culeuras, enquanto o pai for vivo 0 filho nao pode tomar o poder dele. Os tallensis em Gana dizem: “Seu filho, seu rival.” A forca vital con- sgénita em cada um deseja destruir a forca vital do outro.” Entre 0s pastores, da Somilia, “mesmo quando 0s filhos recebem do pai terras ¢ animais suficientes para tornarem-se chefes de familia independents, cles na reali- dade nao agem como chefes de familia independentes enquanto o pai esti- ver vivo”. E, uma questio nao apenas de controlar os recursos ¢ os bens, mas de um antagonismo arquetipico entre espiritos, . ‘As mulheres idosas também ganham poder por viverem mais. “Rela- t6rios etnogrificos de varias regides confirmam afirmativas de um papel as mulheres de mais idade.” Nao apenas as mulheres ido- sas dirigem 0 servigo das mais jovens, como também em muitas socieda- des clas ganham ascendéncia na aldeia. Na Melanésia, por exemplo, as mulheres idosas “s40 em parte sabedoras dos segredos rituais dos homens, que sio rigidamente escondidos das mulheres mais jovens”.* Agartar-se a alguma coisa ou cedé-la — eis a questo para os idosos. Os termos médicos nos permitem refazer a questo como um caso de do- sagem. Quanto de poder a pessoa deve ceder de cada vez? Deve ceder regularmente, dentro de um planejamento, em pequenas medidas bem diluidas? Ou macigamente, todo de uma vez, como numa faxina geral? Aescolha do momento é crucial. O erro de Rei Lear pode ter sido ceder cedo demais, antes de todo ele estar pronto. Ele nao conhecia as raizes de realeza do seu préprio caréter; um reinado arquetipico nao poderia ter sido cedido tao depressa. Ja para o banqueiro suigo foi tarde demais. ‘Avontade de viver por muito tempo poderia ser redurida & ambiga0 do poder, de Nietzsche, ou a0 darwinismo social com 0 seu mau uso da afirmativa de Hobbes: “A preservasio é a primeira lei da natureza” — numa distorcio que, por sua vez, reformula ¢ transforma em reprovivel egoismo a definicao filoséfica de “esséncia”, de Spinoza: “A atividade de persistir em seu proprio ser.” Os idosos nao desistem facilmente. Seri por isso que a compaixao, a justica, a caridade e a magnanimida- de sio virtudes pregadas aos que envelhecem? Quem é que diz aos adoles- centes: “Sejam compassivos ¢ caridosos?” Bles aprendem a lutar pelo que xém direito ea agarrar-se isso. “A compaixio ¢ uma emogio que se aprende, Quem menos a tem € a crianga’, diz Thomas Wolfe. As palavras-chave dos jovens sio “conseguir”, “ter boa aparéncia”, “ter sucesso”, “vencer”. Sé a nés, idosos, so dirigidas as exortagdes para cedermos, e as citagoes das palavras de Jesus segundo as quais 0 caminho dos ricos para o oéu é estrcito ou nao existe. (Essa afirmativa pressupde que o caminho dos ricos 86 tem 0 outro destino.) Todas essas nobres exortagdes podem n guir acabar com a cobiga de um idoso, mas servem, sim, para nos lembrar dessa cobiga, aquela mao bem fechada que acomete tantos idosos. Para que nao seja “tarde demais” para ceder seu lugar, algumas socie- dades praticam 0 geronticidio. Das 95 sociedades estudadas pelos pesqui- sadores gerontologistas Albert ¢ Cattell, 20 matavam os idosos.” Das 75 10 conse- que nao o faziam, apenas 17 tinham sangoes legais contra isso. Algumas edades confrontam a longevidade com violencia, seja surrando, en- rando, estrangulando ou apunkalando o idoso que tiver se tornado soci cer decrépito. Esses assassinatos nao sio incompativeis com o respeito pelos idosos; na realidade, muitas vezes eles correm em paralelo a medidas de apoio aos jidosos. “Apressar a morte”, como a sociologia batizou esse procedimento, nada tem a ver com pouco alimento disponivel ou com a transmissio da gutoridade. Assim como os rituais de luro podem comegar enquanto a pessoa ainda faz parce da sociedacle, maci-la faz parte da coesio social. Os ancropélogos observam que onde existe uma identidade grupal force 0 jeronticidio € menos proviivel. Ele € também menos proviivel onde existe tuma descendéncia unilaceral — isto é, onde o idoso se finde ao sew ances- tral, Algumas sociedades empregam © mesmo termo para “ancestral” “avo” ou “avo”. E outras usam o mesmo termo para “mort” ¢ para “fis gil’. “doente”, “decrépiro”. © que éa decrepicude? Em geral, a palavra “decrépito” pode ser apl cada aquele que nio mais desempenha seu papel na sociedade. As socieda- des indigenas a definem mais social do que fisiologicamente. Se uma mu- Iher idosa nao consegue mais tirar leite de uma cabra, cuidar de uma fo- gueira ou tecer uma cesta, entao esti decrépita. O fato de ser cega, aleijada ou invélida pode contribuir para a decrepitude, mas a fisiologia por si sé nao a define, ja que essa mesma mulher, cega, aleijada ou invilida, pode ainda assim cumprir seu papel como, digamos, contadora de histérias. Ou pode incorporar um ancestral ¢ carregar um “poder”, ¢ nesse caso a sua mera presenga tem uma funcio. O progresso moderno diminui o valor dos idosos ao mesmo tempo em que acrescenta anos 4 nossa vida. Quanto mais tempo vivermos, me- nnos valemos, e vamos viver mais tempo! ‘Também é crenga comum que as sociedades relativamente tradicionais (Bangladesh, India, Nigéria) respei tam mais seus idosos do que as relativamente modernas (Chile, Argentin: Israel). Portanto, a importincia da velhice est em relagio inversa a0 pro- spfesso. Mas esse chavio no é verdadeiro em algumas sociedades muito tradicionais, “arcaicas”, onde o geronticidio € um costume, ¢ tampouco em sociedades modernas tais como a Irlanda ea Rtissia, onde os idosos si0 muito considerados. = 4 Fees Do CATER A estima pelos idosos & menos uma fungio da modernizagao do que | da vitalidade da tradi¢a0 que mantém clos com um outro mundo i sivel, seja através da religisio, dos costumes, da supersticao ou do folclore, ou por meio da linguagem poética comum. Tanto na Irlanda como na | Russia, a poesia tem grande vigor nvi- A depreciagio dos valores geralmente associados aos velhos — tru- ques, habilidade © conhecimento técnico; familiaridade com 0 folclore, com cangées ¢ frases, ¢ ainda com superstigées locais, ¢ a lerdeza pura e simples — diminui o valor deles. No contexto desses valores diminuidos, podemos com mais facilidade justificar 0 geronticidio. Chamamos a isso “liveé-los do softimento” e disfargamos com uma linguagem mais anti séptica, tal como “DNR (“Do Nor Resuscitate”, “Nao ressuscite”), eutand- sia, antecipagao da monte e assisténcia a0 suicidio. Essas praticas aconte- com em residéncias, clinicas e hospitais particulares com muito mais fre- qiiéncia do que o piiblico ¢ informado. Mesmo se a nossa sociedade nao aceita surrar, apunhalar e estrangular os idosos, em alguns coragGes muitas vexes existe esse desejo, Os maus-tratos a idosos tornaram-se uma sindro me disseminada nos Estados Unidos. Com demasiada freqiiéncia 0 desejo se torna um ato. Em geral, nos Estados Unidos odiamos envelhecer e odia- ‘mos os idosos por personificarem o envelhecimento. O que condena a velhice 3 feitira nao € a velhice em si, mas 0 abando- no do caréter. Nao podemos imaginar a beleza de envelhecer porque en- xergamos apenas através dos olhos da fisiologia. Como disse Aristételes: “Abcleza da alma ¢ mais diftcil de ser vista do que a beleza do corpo.” Sem aideia do cardter, 0s idosos s40 meramente pessoas diminuidas ¢ pioradas, ¢ sua longevidade ¢ uma carga para a sociedade, (Nos Estados Unidos, os gastos federais com as pessoas de mais de 65 anos sao cinco vezes maiores do que os gastos com as pessoas de menos de 18 anos, os quais sio em grande parte para detengao de menores, prevengio de crime e cadeia, mais do que para suas necessidades bisicas, tais como alimento, aprendizado ¢ abrigo.) A idéia do idoso incapacitado impede que se veja 0 jover incapa- citado. Os idosos se tornam decrépitos, em nossa mente ¢ no sentido so- cial da palavra, muito antes de estarem fisicamente moribundos. Sera que nés transformamos os idosos em “decrépitos” pelo Faro de nao esclarecermos os papeis tradicionais para eles? Serd que eles se tornam gisfuncionais porque nao remos fangdes para eles? A produividade snedida de utilidade muito estreta, ea incapacidade é uma nogio de de Camparo muito rcstritiva, Una mulher idosa pode ser tl simplesmente somo uma figura valorizada por causa do seu carter, Como uma rocha no meio de um tio, ela pode nao fazer coisa alguma alm de estar ali e manter- sefirme, mas 0 Flo tem que levé-la em consideragao e alterar seu fluso por causa dela. Por sua simples presenga, um homem idoso desempenho seu papel como Personagemn da tama familiar ¢ da vizinhanga, Ele tem que fer levado em consideragio, ¢ os padrdes precisam ser ajustados simples- mente porque cle esté ali, Seu carter traz qualidades particulares a todas as cenas, enriquece ¢ aprofunda o enredo ao representar 0 passado e os mortos. Quando todos os idosos so removidos para comunidades de apo sentados, 0 tio flui mais serenamente de volta para casa, Nao ha rochas que 0 perturbem. Tampouco hi muito cariter. A aposentadoria também contribui para a decrepitude, porque a idéia de aposentadoria afasta os idosos do funcionamento social itil. A aposentadoria tende a congregar os aposentados em suas comunidades edade em geral € reforgando as posigdes préprias, isolando-os da soci politicas baseadas num tinico assunto, para a sua prépria protegio e para defender suas proprias vantagens. Naturalmente os idosos encoatram individualmente maneiras de se envolverem, mas a idéia da aposentado- ria tende a estimular a consciéncia dos seus direitos em lugar dos seus deveres ‘As evidéncias mostram que a decrepitude incapacitante nos muito idosos dura apenas cerca de trés meses. Mesmo durante esses trés meses, dois entre trés “decrépitos” tém clareza mental, mais da metade raramente std s6 (recebendo mais visitas durante esse periodo do que antes), ¢ meta- de sente apenas dores fracas, outros nio sentem dor alguma.* Os iiltimos anos sio preciosos para se fazer uma revisio da vidae para reparar erros, para especulagées césmicas e para transformar lembrangas cm histérias, para usufruir sensorialmente as imagens do mundo e para ligar-se a espiritos ¢ a ancestrais — valores que a nossa cultura ceixow fenccer. Quem quiser encontrar a decrepitude e cortigi-la deve enfocar a cultura © comegar pelo rigor mortis dos filésofos dessa cultura, céticos ¢ analiticos, e pela solido e deméncia da imaginagio dessa cultura. A Fone to Cana Se o valor de uma vida longa reside num curriculo longo, sabemos que a maior parte dessa historia passada é distorcida ou esquecida na velhi- ce, € nio esté A mao para o exercicio da opinido. Nao conseguimos lem- brar exemplos, recordar ocasides semelhantes. © idoso s6 poderd servir & sociedade se 0 seu carter refinou sua inteligéncia, expandiu 0 seu conhe- | cimento ¢ foi testado em crises. E por isso que recorremos a historias que revelam carter — de rabinos, monges ¢ mestres idosos, e a entrevistas Jomo testemunhas do carater, com velhos pintores. escritores © poetas. essas pessoas sio exemplos vivos. Resignar-se, que no idioma inglés (“20 resign") significa “demitir-se” além de “agiientar a adversidade sem se queixar", é uma atitude que mui: tas veres acompanha a aposentadoria e pode ser um indicador precoce da dectepitude. Antes de “resignat-se a demitir-se” de uma posigio de con-_ trole, a pessoa deve perguntar a si mesma o que poder vir depois: um mergulho total em resignagio agiientar sem quecixas (ou com queixas)? Talver “re-signacao” precise significar, em ver de uma literal queda na qualidade de vida, uma re-significagao, uma redefinigdo do significado da prépria posicao, uma revisio da idéia de controle para que ela sirva a valo- res que nds acabamos por concluir que sio importantes. Os entusiastas da longevidade esquecem-se de mencionar que cariter ruim dura, também. Assim também os desamparados e os intiteis, os mi- serdveis que o juntam ¢ 0 estocam como doninhas, quanto mais tempo vivem. A crueldade sédica pode se tornar cada vez mais tiranica a medida que os anos eliminam outros caminhos do prazer, € a ambigio nao se modera necessariamente na velhice. Simone de Beauvoir devora paginas venenosas ao cariter do Marechal Pétain, chefe do governo francés que | colaborou com a ocupagio nazista, Ela 0 mostra como mau, mesquinho, egoista, vaidoso, indiferente, duro, evasivo, obstinado, pretensioso, ma niaco sexual. Nenhum desses tragos pertencia & velhice dele; todos perten- cciam ao seu caréter, tornando-se mais nitidamente visiveis na velhice, como um esqueleto sob o uniforme ¢ as medalhas, Pétain exemplifica o carécer determinando a velhice, e nao o inverso. Essa nogio era muito conhecida dos observadores clissicos. az O texto mais lido de Placio, A Reptiblica, comeca com uma conversa sma ver com 6 nosso tema, Sécrates diz. “Gosto de conversar com os ue te tito idosos”.e pergunta ao velho Céfalo: “O que o senhor tem a dizer da vyelhice? E uma parte da vida dificil de suportar?”. Cefalo divaga um pou- vo, mas depois enfoca as queixas dos idosos, “a triste ladainha de todos os sofiimentos pelos quais culpam a velhice”. E conclui: “Existe apenas uma ‘ausa, Socrates. Nao é a velhice, mas o cariver do homem.”” A obra De Senectute, de Cicero, faz a mesma distingio: “Os idosos sao rabugentos, perturbados, nervosos e dificeis de serem contentados; (.) alguns deles fo sovinas, também, No entanto, estes sio defeitos do caréter, ndo da idade.”" Se as qualidades atribuidas & velhice sio independentes da velhice ¢ cém suas raizes no cariter, entio elas podem evidenciar-se em qualquer época da vida, Um estucante fechado em seu quarto pode se sentir, como ignorado, desprezado e escarnecido”. E uma mulher de meia- Cicero. idade, suportando a carga de filhos, dividas ¢ um marido egocéntrico, pode se tornar “rabugenta, perturbada, nervosa e dificil de ser contentada”. A suposta psicologia da velhice pode comegar muito antes da velhice. Qual- quer dia podemos cair de cama e ficar ranzinzas com amigos, ansiosos por causa do futuro e oprimidos pela morte que sentimos préxima, A autono- mia desses ataques mostra que a fonte deles nio esté no tempo, mas em | alguma coisa atemporal, forcas arquetipicas afetando e dirigindo o caréter. | Na tradigio eldssica que durou até bem recentemente, os mitos personi cavam essas forcas, de modo que a condigao descrita por Cicero, por exem- plo, seria imediatamente reconhecida como tendo sido provocada por Sa- turno, o deus dos sovinas e do sofrimento. A uaadicio clissica nao olhou para a velhice através das lentes da Nova Era. A velhice nao era um periodo alegre, 0 tltimo estigio do crescimento. Em ver disso, na visio dos classicistas a longevidade reforga 0 cardter, de modo que o que se tem na velhice ¢ outta po:¢ao da mesma coisa, uma grande porsao. © médico inglés Sir Thomas Browne (1605-1682) tam- bem escreveu uma triste ladainha: Masa idade nao retifica, ¢ sim encurva a nossa nacureza, tvansformando uma disposigao ma em hibitos piores, ¢ tra vielos incuriveis; pois todos os dias, & medida que ficamos mais fracos na idade, ficamos A Four m0 LaRires ais fortes no pecado. (..) Todo pecado, ao suceder-se no tempo, progride em niveis de maldade (..) como digitos na Aritmética: 0 Ultimo representa mais do que todos os que vieram antes dele." A ambigdo pode ser um “vicio incuravel” que raramente enfraquece com a idade, mas, como diz Browne, “fica mais forte”. Os eruditos que- rem produzir a obra enciclopédica definitiva, os arquiretos, seus monu- mentos, os empresirios, a grande fusio — todos forgam sua velhice no trabalho, para uma faganha duradoura. As vezes ha a ambigo sem qual- quer projeto ou propésito além da prépria pessoa — “uma ambicao senil de rodas as coisas”, como De Gaulle (que sabia algumas coisinhas sobre ambigio) disse de Pétain."* Muitos homens idosos de grande sucesso (e, em menor escala, mulheres idosas) lamentam o faro de sua importincia nao ter sido suficientemente reco- nhecida. A gratidao recebe um breve aceno nos momentos de gloria: 0 astzo agradece & equipe, o ganhador do Oscar elogia efusivamente uma lista de no- mes decorada. Mas enquanto a Grandeza deixaa ribalta, a Gratidao vem man- cando atrés, incapaz de alcangi-la, Apesar das honras e dos prémios, a voz da ambigZo ainda reclama: “Nunca ninguém fez tanto, to bem, por tantos,¢ foi reconhecido por tio poucos.” A ambigio ainda se esforga e voa alto, Mesmo depois da tiltima despedida, a ambigo quer afetar © que acontece no paleo, influenciar um sucessor, decidir a divisdo dos bens da familia, derrorar um tiltimo rival (ndo importa quem, mesmo um irmao). No podemos desist inceiramente do trono ou do impulso que nos levou até ele. Sobre a remtincia 3 ambigio, T. S. Eliot escreve as seguintes palavras: Desejar o-dom deste ou 0 alcance daquele — J& nao aspiro aspirar por tais coisas (Por que a velha dguia deveria estender as asas?)”” Ele lembra aos sentimentais a ave de rapina que habita 0s idosos, uma voracidade infinica por algo mais. Robert Bly escreve, em seu poema “Meu pai aos 85 anos”: Othos azuis, aertas, Decepcionados (...) suspeitosos (..) Ele é um paissaro Experando ser alimentado, Quase todo ele bico — uma guia uum abutre (..) Um poderoso motor de desejo continua Funcionando dentro do seu corpo." Nisso estamos além da longevidade, penctrando no tertitério do ca- iter, Ser 0 senador mais velho de todos os tempos, o ultimo veterano da brigada, a mulher engelhada que nunca, nem por um s6 dia, dea deassar suas toreas, mesmo numa cadeira de rodas. Nisso ni hé rentineia a0 dese- -se de devogio, fizendo assim os dias perdura- jo. porque 0 desejodisfara vem e dando uma importincia duradoura aos dias, JA que nio é a idade, mas o carter que tem a culpa da intensificagio das peculiaridades na velhice, entio o trabalho de prolongamento devia enfocar a causa principal, a forca do carrer, em vez da “Aritmética” da longevidade. Estaremos agindo equivocadamente se apenas empurrarmos nossa mente € NOss0 corpo através dos rigores do prolongamento. Deve- riamos, sim, perguntar: 0 que € que preserva 0 cariter? O que & que o faz perdurar? Podemos responder usando 0 exemplo da ambigao. Ela dura perque cem um background arqueripico. Suas exigéncias sobre-humanas apresen- fam um mito em agio levando um ser humano até além de si mesmo. Os mitos atuam nos casos humanos, dramatizando 0s nossos esfor- gos ¢ desordenando 0 nosso carter. Uma ver. que abrimos a mente aos mitos, podemos ler mitologia na vida, ¢ nao apenas nos livros. Como Jung escreveut: “Os deuses tornaram-se doengas.” Os padres do mito ¢ seus poderes personificados apresentam estilos de existéncia arquetipicos, dos quais no podemos escapar ou ser curados, Nas culturas baseadas em mitos, os deuses sao inumanos e eternos; os gregos costumavam denominar seus deuses avhanatoi, “os imortais”. Como Forgas no nosso carter, eles fazem aqueles tragos indeléveis dos quais nao conseguimos nos livrar ¢ que nio conseguimos manter totalmente sob 0 nosso controle humano. Uma pista para a figura mitica na “doeng:” da ambigio éa éguin Jtipiter dos romanos, como Zeus dos gregos, era muitas vezes repre- sentado como uma Aguia, ¢ sob o estandarte da guia as legides romanas estenderam 0 ambito do império através da maior parte do mundo conhe- cido, Alguns dos epitetos latinos para esse que foi o maior de todos os deuses classicos cram: dlontitor, magnus (grande), fecuendus, altus, domitor mundi (conquistador do mundo), omnipotens, summus, supremus, rector (governante, controlador), saror Fundador), rex (rei). Quando um imperador romano era cremado, uma guia era liberta- da perto da pira finebre, para conduzir a alma imperial aos céus. Somente a dguia, dizia-se, podia olhar diretamente para a face do sol e ser renovada voando diretamente para dentro dele. © temperamento da éguia era “ex- cessivamente quente € seco”, ¢ seu apetite era voraz, E ela aparece em con- textos sactos: Joa nal”, é repre- sentado tradicionalmente por uma guia. Ela € a portadora do espirito 0 quarto dos evangelistas ¢ mais “espit mais elevado, do aleance mais longinquo da ambicio. Um momento soba luz brilhante ¢ cla renasce, pronta para seguir em frente, com tudo ainda por vir. (A dguia é a letra “A” nos hierdglifos egipcios.) Segundo o antigo folclore dos animais, a guia morre por ca “crescente curvatura do seu bico para baixo”, que a impede de alimen- tarse ¢ finalmente perfura sua pidpria garganta. Bly reconhece esse bico em seu pai idoso, ¢ Browne diz que a idade “curva para baixo a nossa natureza”. Nada pode derrubar a guia, além do seu proprio envelheci- mento. A ligao da 4guia ensina que envelhecer ¢ o método que a morta- lidade usa para curar as fontes imortais do carter, que empurram os seres humanos para além de scus limites, “desejando 0 dom deste ¢ 0 alcance daquele”. A ambigao finalmente se autodevora, tornando-se uma torturante autopunigio; Prometeu, que ambicionava demais e foi longe demais, era castigado dia apés dia por uma guia que estracalhava suas entranhas. ‘Apintura de um vaso grego mostra Hércules com Geras, a figura que personificava a velhice ¢ cujo nome ainda encontramos em “geriatria” ¢ “ gerontologia” — a especialidade médica ¢ o estudo da velhice, Hércules, vestindo sua pele de ledo, cinturso ¢ equipado, ergue-se diante de Geras, uma figura calva, curvada e magra, com genitais pendentes ¢ reversos (per- versos?). Ele se apdia num bastio fino ¢ torto, ao passo que Hercules segu: ra um enorme porrete cravejado de pregos. Vemos um clissico confronto do herdi arquetipico com uma melancélica imagem do envelhecimento Essa imagem € paralela as muitas outras de Hércules lutando com a Morte (Tanatos) e com Hades, o deus do mundo inferior. Os ancestrais da nossa cultura mostram esse confronto em lamentos, cm ingcrigbes Rinebres, em tragéiase em imagens. No mundo de hoje, © ar rano de ariuces herdicas que desafiam a morte com o “problema” do selhecimento tomouse interiorizado, abstr € miniatutizado, A alego- ctipica cornou-se um tema de pesquisa, ¢a opos 9 herdica ao enve- riaarqu . 1 senve thecimento tem lugar em laboratérios © éencapsulada em lrascos de vitami- fhaesuplementos. Acsséncia da hut, no entanto, nfo mudou, porque ica, como se uma inimizade arquetipica existisse entre a mente muscu ie da civilizagio progressiva, que exter mina monstros, seca pintanos¢ cons- snsi muralhas, ¢o velhinho no final da estrada, Mesmo tendo as armas enco- thido até as menores proporgées imaginaveis, a retdrica ea estracégia da huta ainda sio aquelas de batalha, guetra, combate. Hoje, a biologia molecular ¢ a nanotecnologia — a manipulagio de matéria viva num nivel infinitesimal — lideram 0 camino. O primeiro objetivo na pesquisa da longevidade tem sido estudar as doengas com uma abordagem cada vez menor. Embora as operagoes de Hércules tenham ocortido numa escala maior do que derrorar bactérias e virus — ele derru- ou um touro selvagem, estrangulou um ledo e cortou as cabegas serpenti- formes da Hidra —, a fantasia de destiuir os predadores nao mudow. Vencer a doenga é apenas o primeito objetivo. O projeto seguinte é 0 sejuvenescimento, o prolongamento da vida por meio de reverter 0 préprio processo de envelhecimento. “O que € preciso é um modo de reverter 0 envelhecimento, nao apenas interrompé-lo”, diz um editorial da revista Life Extension, seduzindo seus leitores ao expressar um desejo popular: “E preciso encontrar um meio que permita que iquemos mais jovens, mais saudaveis e ‘amos sagaricar em mais vigorosos; um meio de voltar 0 reldgio, para que po: splendor juvenil durante séculos,e nao apenas décadas.” O meio de se chegar a esse sagarico devasso (ridiculo aos olhos dos freqiientadores de teatro no mundo antigo) é a nanotecnologia, um cam: po que faz célculos com niimeros cada vez menores, aplicando instrumen- tagio cada vez menor a pedagos diminutissimos de matéria. A nanotecno- logia retine os reinos do orginico ¢ do inorganico, 0s modelos de biologia ede engenharia Além de detrotar doengas tais como a tuberculose ¢ 0 cancer, além de até mesmo diminuir a velocidade do envelhecimento ¢ reverté-lo, 0 proje- P| to heratileo definitivo enfrenta a morte de frente: precisamos estender ou climinar as categorias condicionantes que impoem limite a toda vida. ‘Numa recente reuniao de sécios mais velhos do Foresight Institute, 0 presidente fez algumas previsées: Enquanto sociedade, estamos confusos quanto & matéria, a0 espago eA mente. A matéria: dizem que estamos ficando sem recursos, mas a nanotecnologia pode mudar isto. O espago: i2em que estamos ficando sem espaco, mas a exploragao espacial remove esse limite © tempo: supse-se que todos nds vamos morrer, mas com a nanotecnologia poderemos manter uma fisiologia jovem. A memétia € principalmente uma estrutura, e podemos fazer sua manutengio. ‘A mente: com a nanotecnologia podemos criar sistemas de inte- ligéncia artificial um milhio de vezes mais répidos do que 0 nosso cérebro."" O diretor de tecnologia da corporagio Netscape também fez algumas pre- visdes: Muitas das coisas que as pessoas fazem serio desnecessérias quando a mutéria puder ser reorganizada arbicriviamente. (...) Isto penetra em todo tipo de coisas bizarras. A imortalidade, Nao hi uma razao fandamental para que o colapso das estruturas celulares sejainevitavel. Nio ha razao para que a morte aconteca. Nao hé razio para que a decadéncia nao possa ser totalmente reparivel, nao hé razio para que nao se possa desenhar exatamente 0 corpo que se quer ter."” Qual 0 padrao segundo 0 qual vocé desenharia exatamente 0 corpo que quer? Barbie? Rambo? Hércules? Que tal Séerates, calvo e de nariz arrebitado, a enorme Amy Lowell, o nanico Toulouse-Lautrec, John Keats, que antes dos 26 anos teve seus pulmées destruidos pela tosse tuberculosa, Emily Bronté, morta aos 30 anos, ou Sylvia Plath, cuja tortura terminou aos 31; 0u Franklin Roosevelt ou Stephen Hawking; ott 0 doentio Niets- che, 0 doentio Schubert, o doentio Schumann, o doentio Chopin? Tantos perduraram admiravelmente, embora privados da longevidade por causa do corpo. Doren Serd verdade que “nao existe razo para a morte ocorrer”? A longevi- ade ser principalmente um problema para a engenharia genética, a ser “nfrentado no estilo de Hércules? Por mais atrasada que fossea sua recno- Togia 0s greb0s pelo menos sabiam que era clice desejar 2 imortaidade, c cneraram em pormenores sobre a complexidade desse desejo, Contavam histdrias de Titonos, um humano que eve satisfeito sew desejo de viver para sempre mas equccetse de especificar que seria com a mesma idade jovem que tinha naquele momento, de modo que reeebeu a maldigao de vjver para sempre, envelhecendo cada vez mais. Mais importance do que as acauteladoras hist6rias de horror sobre os humanos que tolamente pedem coisas erradas aos deuses é a necessidade — fundamental para o mundo antigo — da mortalidade humana. Pois se fos humanos podem se tornar imortais, entao nos tornamas iguais aos deu- ses — imortais, como ja disse, era 0 termo mais usado para descreve-os. Sua esséncia € imortal; a nossa € mortal. Como eles néo podem morrer, nds nao podemos nao morrer; as fronteiras devem ser mantidas absoluta- mente nitidas. Digamos que devemos morrer para que eles possam ser imortais. A nossa mortalidade asseguta a imortalidade deles; caso contra tio, nfo haveria diferenca absoluta entre seres humanos e deuses, ¢ eles poderiam ser nada mais do que fantasias humanas, figuras inventadas para preencher os céus. Hercules oferece ainda outra li¢éo grega. Heércules nao envelhece. Tendo vencido Geras/Hades!Panatos, ele pode apenas enlouquecer e per- der sua forga herdica, a propria virtude que desde o bergo foi o cere do seu cardter. A Antiguidade nao deixou imagens de Hércules como cidadao mais velho, conselheiro ou mentor. Hercules nada sabe do envelhecimen- to. Sua opiniao vem de sua posic4o contraria ao envelhecimento, A seus olhos, 0 envelhecimento é calvo, curvado e magro, “wm casaco esfarrapa- do sobre um pedago de pau” (a0 passo que para Geras, Hércules devia parecer um dos pregos do seu porrete) Em nossa época, devemos perguntar as ciéncias herciileas que preten- dem vencer Geras, seja fazendo musculacao e caminhando na esteira ergo- métrica ou através de mintisculas manipulages da causa genética do enve- Ihecimento: a abordagem herdica nao transgride a esséncia mortal de ser- mos humanos? A Foes 00 Cans tee Quanto mais uma pessoa dura, mais ela quer perdurar — na maioria das veres. Todos conhecem a piada sobre o homem de 99 anos brigando com © funcionério do asilo que esté tentando arrumar seu quarto: “Nao me interessa a qualidade, eu sé quero quantidade!”, Somente pelo fato de acres- centar mais um dia cu toro a provar o meu valor, “Sua mae tem 97 anos? Que maravilha!". As pessoas sorriem, dao parabéns. Ninguém diz: “Poxa, que dureza, coitadinha!". Ao cornar-se uma meta em siy a longevidade numérica pode manter & distancia e nas sombras outros significados de “fir”, tais como “terminar” ¢ “fechar”. Além disso, quando a idéia de duragao pode ser redurida a niimeros de anos e de dias, entio a medicina pode justificar seus tratamentos radicais para prolongar algo que pode nao mais ser desejado. Naturalmente existem virtudes na longevidade. Para comecar, é um, favor aos descendentes. Pode baixar 0 prémio do seguro de vida deles ¢ aumentar a sua expectativa de vida. A pessoa pode conhecer seus bisnetos ¢ observar as formagoes de ramos repetidas na drvore genealdgica, ou ape- nas assistir a mais uma Copa do Mundo. Embora as estatisticas nunca mintam, elas nao dizem a verdade inteira. Elas nada dizem sobre o que é que esta sendo prolongado. Com o envelhecimento, uma espécie curiosa de extensio de vida acon- tece sem que fagamos coisa alguma para forgé-la, Depois dos 50, as vezes nos encontramos mais aliados de nossos pais do que de nossos filhios, em pensamentos, sentimentos € lembrangas. Aos 70, parecemos mais ligados 4 um av6 hd muito falecido do que aos nossos netos muito vivos, que aparecem de vez em quando como extraterrestres em suas naves espaciais. ‘Os nossos idosos parecem estar ampliando a alma ao atrat-la de volea para si, A medida que a interiorizagio se expande, nos movemos mais facilmen- te para dentro dos quartos dos alojamentos dos velhos, ocupando cada ver ‘menos espago no mundo, Existe uma clara diferenga entre prolongamento estatistico ¢ expan- sio psicolégica. A primeira nao se dirige absolutamente & preocupagio de uma possivel vida apés a morte, aos escriipulos crescentes a respeito de limpeza cuidados, & crescente fragilidade fisica, ¢ ao crescente medo ¢ amargura, vergonha e arrependimento jé demasiadamente vivenciados. 1 vida ser prolongada nada diz a respeito do carater desses (O fiato de um: ccrescentados, Eles podem ter uma tinica qualidade: a duragao. jas eanos a I : ne Jongos € noites longas. Enquanto as nossas escatisticas melhoram, a fas 1 . ~ alma declina, rornando-se tabelas, horérios ¢ injegoes. nossa a "Assim, nio ¢ a longevidacle que deve ser prolongada, se esse prolon~ amento meramenteacrescentar mais dias de dor, tristeza ¢ incapacidade Frecisamos, isso sim, de ampliar a idéia de prolongamento. Precisamos alangar € aprofundar o nosso pensimento, Ao contrario de Mateus, po- “jamos acrescentar um ctibite 3 nossa estatura pensando mais a respeito de expandir a idéia de longevidade. Em primeiro lugar, podemos estender para trés. Por que 0s idosos nas nossas sociedades léem biogeafias e sintonizam 0 Canal de Histéria na TV? Por que viajam a antigos locais de civilizag&es mortas, visitam mu- io histérica? O que os leva a procurar e restaurar seus, apdiam a preserv: ferramentas enferrujadas ¢ maquinas antiquadas, comprar rizomas antigos para fazer enxertos, repetir desenhos, bordados ¢ colchas de retalhos de 200 anos? Ou catalogar moedas antigas e gastar dinheiro em espécimes de rocha? Por que recotrem a ervas medicinais usadas antigamente? Antigos soldados tornam-se atores de representacdes da Guerra Civil americana; as mulheres idosas preferem romances historicos passados em cenétios de Epoca. Sio fantasias de longevidade de outro tipo que nao aqucle ofereci- do pelas estatisticas. Quanto mais longe no passado a imaginagao alcanga, mais expandi- dos ficamos. © nosso cardter e suas excentricidades encontram eco em caracteres semelhantes, que povoam as ruas da imaginagio, demonstran- do qualidades essenciais libertas dos confusos disfarces usados pela pré- pria familia e amigos. A alma esté sendo preenchida pela riqueza de ima- gens; mais ainda, ela esta sendo absorvida para dentro de outra imagina- 640, que nos expande além dos limites da nossa condigao real. O velho no parque de trailers contempla sua colegio de moedas antigas do Velho Ocs- te, liberando fantasias que o levam mais longe do que suas pernas enfer~ mas. Podemos nos imaginar vivendo num frio castelo escocés em meio a um cla querido, esperando a volta de Ulisses a ftaca, chorando no cortejo fiinebre de Lincoln, Podemos descobrir um pais, uma época, compatrio- tas que combinam com 0 nosso carter ¢ onde a nossa alma se sente em A Forcasio Caste casa. A longevidade se torna uma espécie de osmose, fundindo- € con vidas mais antigas em lugares mais antigos ¢ coisas mais antigas. Estamo sobrevivendo & nossa prépria vida. Nao sendo mais uma folha solicér num ramo ressecado, ou sequer a sua fruta, estamos afundando na resina ¢ ficamos com 100, mil anos de idade, tao velhos quanto a propria érvor com a longa vida futura — uma vida de histérias e cenas que cont nuan eternamente, de cacos ¢ talismas que provocam fantasias sempre novas, Crescer para dentro das raizes da tradicio prolonga a vida para tri Podemos estendé-la para baixo, também — para os descendentes; pa aprendizes que estudam os tragos do nosso carater —, ¢ também para fora, para a familia de imagens coladas no album de retratos ¢ esquecidas n. gaveta das lembrangas. Eu me estendo através das outras pessoas cuja imagens animam minhas cogitagbes solitirias, assim como através das outa pessoas cotidianas que vém me visitar para ver como estou passando. A cariosidade pela vida das outras pessoas estende a nossa vida. Ist nao € compantilhar; € escutar com arte. A outra pessoa € uma fonte vida, que faz uma transfusio de vitalidade para dentro da nossa alma, se pudermos provocar essa pessoa com a nossa escuta. Bisbilhotar — procu- rar segredos, pedagos de escdndalo, saborosos mexericos que despertam 4 apetite pela vida agitada 4 nossa volta — alarga os limites para além das preocupagoes pessoais consigo mesmo. Para tris, para baixo, para fora isso estende a vida para além de suas fronceitas e liberta-a da ligacé identidade pessoal, 0 cariter liberto desse fanfarrao guloso: Eu. jo com 4) Quanto mais penetramos no passado da Hist6ria, mergulhamos na- quilo que é posterior a nés mais baixo que nés ¢ alcangamos aquilo que A longevidade ¢ liberada da cépsul do tempo. Isto é a verdadeira longevidade, uma sobrevivencia que é eter: na, pois nao tem uma linha de chegada. nao é nds, mais extensa é a nossa vid: CAPETULO 2 A Ultima Vez Na diltima ver que vi Chapli “Mantenha-se aquecido, Mantenha-se aquecido.” Ainica coisa que ale diese fois Grouchy Murs em conversa vom Woody Allen Itima chance, tltimo minuto, tiltima rodada, ultimo gol, tiltima saida, dltima fronteira. Ultimos sacramentos, Ultima Ceia, tilti- mos dias, Juizo Final. Ultimas palavras, tiltimo alento, dltima danga, tiltima rosa do verao, tiltimo adeus. Que palavra imensamente pe- sade! Por que ela confere tanta importincia aquilo que ela qualifica? E como a palavra “\iltimo” afeta o cariter? Temos que descobrir. Jé posso adiantar o seguinte: a nossa pesquisa ird aprofundar-se além do significado evidente de “tiltima vez” como final, portanto morte. Se isfeita com esse resultado {sso fosse tudo, a pesquisa poderia parar aqui, sa banal, Lembrem-se, em todo este livro estamos fugindo da morte, tentan- do impedir que a morte engula em sua escuridio impenetravel a luz da pesquisa inteligente. A morte & uma generalidade tinica ¢ assombrosa que coleca um fim na nossa pesquisa sobre a vida. A idéia da morte rouba da pesquisa sua vitalidade apaixonada ¢ esvazia o propésito dos nossos esfor- Gos a0 chegar a uma conclusao predeterminada: a morte. Por que pesqui sar, quando ja se sabe a resposta? Se um par de meias nos ajudou no capitulo anterior, a fiegéo de um casal pode nos ajudar neste. la simplesmente entrou no carro ¢ partiu. Foi a tltima ver que a © momento passa de maneira casual ¢ se funde no cotidiano. Mas quando a acao simples ¢ marcada pela qualidade de “tltima”, © aconteci- vil mento se torna uma imagem indelével. “Ultimo” torna um acontecime to memorivel, elevando-o acima do cotidiano, deixando dele uma i pressio duradoura, As tiltimas palavras ficam “famosas”, os tltimos mi mentos se tornam emblemas enigméticos para serem estudados duran, anos seguintes. Por qué? Porque o que acontece no final de uma seqiiéncia marca seu fechamento, dando-Ihe finalidade. Reverbetagbes do destino. Os acon tecimentos que compuseram o casamento, o caso amoroso, a vida conjuy gal tornam-se indispensaveis na diltima cena. Ela entra no carro e parte Para a morte num acidente? Para outra cidade € um novo recomego? Par outro amor? Para a casa da mae? De volta para 0 matido e os filhos? ¢ local para onde ela se dirige tem mais a ver com a proxima histéria do qu a tiltima cena dessa ficgio de uma vida tentada a dois. Se ela tivesse voltado depois, como em qualquer outro dia, sua ima gem entrando no carro nao teria importancia, portanto nao perduratia Mas agora essa imagem fala de carter: 0 carter permanente do relaciona: mento — seu compromisso com a casualidade; sua aparente abertura, qui esconde a verdade — ou revela a independéncia e rebeldia dela, ow su coragem aventureira, ou sua falta de coragem, out sua frieza timida... Re vela algo do cardter dele, também — os sentimentos no expressos; a sen ibilidade amortecida que no consegue perceber ¢ nao prevé. O carite dos dois juntos, dele e dela, tudo comprimido e expresso, finalmente, quan: do ela parte. De modo que a tiltima vez é mais do que informagao para o relatério do detetive. “Apenas os fatos.” Ela, na realidade, apenas entra no carro parte. Mas a tiltima ver transforma os fatos numa imagem. A impressio dela no meio-fio, quando finalmente 0 motor pega, porque ela esti coms primida e transformada numa imagem significativa, num momento poé- tico. Outras ocasides ficam presas pela tiltima vez e eternamente dotadas de significado, A poesia, para ter impacto, depende da compressao. A palavea alema para “poeta” é Dichter, a pessoa que fa as coisas dicht (espessas, densas, compactas). Uma imagem poetica comprime-se num instantineo de um determinado momento caracteristico de um inteiro maior, capturando sua profundidade, complexidade eimportancia. Ao colocar um fecho numa Few sie de acontecimentos que, caso contrario, continuariam para sempre, a rie yer & transcendente, esté fora do tempo corrente. HH xe tipo de momento ¢ dificil de suportar e dificil de abandonar, Ele senenta a saudade, voltando & mente como um refiio que nfo quer su- lime Myelhice abre espaco para aquilo que T. S. Eliot chama de “uma nif“ om o dlbum de retratos”, instantineos que trazem de volta um Ot rt A gerontologia chama essas noites de “revisio da vida" e afirma nutlas si0 2 principal vocasio da velhice. Coma qualquer pessoa em Mlquer iad pode cair num devancio nostilgico, a palavra“velhice” iijcser tomada menos litralmente, para significar um estado de alma Pivico, apreciado pelos idosos mas nao exclusive deles, ‘A ima vez transforma em poesia o amor, a dor, o desespero ¢ 0 Jabito, Ela coloca um fim, impede o movimento para a frente e ergue a ida para fora de si mesma, Isto é transcendéncia, Sentimo-nos abalados, ‘amo se os deuses tivessem surgido no meio da nossa vida ‘A transcendéncia do cotidiano nio acontece até a epifania da tikima ver, Ela entrava no carto todos os dias —atilkima ver. se torna totalmente iferente, Em nenhuma sucessio de acontecimentos imaginamos que qual- {quer momento possa sero tilkimo. Sempre podemos voltar em outra oca- ido, fazer isso de novo. A ultima vez diz que nao existe “de novo”. A tilti- Ima ver é vinica, singular, fatal. As letras das cang6es populares brincam se momento poético — Maxwell Anderson: “Os dias passam até ‘com, restarem uns poucos preciosos, setembro (...)"; Leonard Cohen: “A tlti- ima vez que vimos vocé (...)”; Oscar Hammerstein: “A tiltima vez que vi Paris”; Pamela Sawyer: “A ultima ver que o vi"; Mick Jagger e Keith Ri- rewart: “A tiltima vez chards: “Esta podetia ser a ultima ver (..)"; Rod S que vi George vivo (...)”. “Outta ver, isto nfo podia acontecer outra vez (..)” etc. Cada cena da vida pode ser a tiltima ver, como a manha em que cla partiu de carro. Chamar de tinica, singular e fatal essa diltima vex a faz parecer inevitavel ‘enecessiria, como se ela tivesse partido porque isso foi determinado pelo seu cariter. Se cariter € destino, como disse Heraclito, entio aquele era para cla © dia de sua morte, Ou ela tinha que sumir porque “cra esse tipo de pessoa, livre; deviamos imaginar que isso aconteceria”. No entanto, pode ser que seu cariter tenha cedido a um impulso espontaneo: “J& chega; vou cair fora © processo de fazer com que todos eles se encaixem € chamado, sicdlogos jungianos, de integragao das personalidades de sombra, t significa antes de tudo acharmos que eles estio daqui.” Um impulso aparentemente nada caracteristico dela, Nao podem: saber. Para nés, a hist6ria acaba quando o carro se afasta. pelos et clos, Ro entanto, | cos, adequados 4 nossa idéia do nosso cariter. O ideal jungiano nctam carter mais integrado, pata toda 3 hospedaria, sem excluses, vide requerer a conversio dos mais mal-afamados e indisciplinados ° : : ‘ seo da maria, uma integragio que leva 3 integridade do caréter Nesse momento precisamos ter cuidado: o carter pode tornar-se ty lei férrea, permitindo apenas os atos que so “caracteristicos”. Nesse cas a idéia de carter cria pequenas ondas de repressao. “Nao é da minha nat reza fazer isto, pensar aquilo, querer isso, agit assim.” Seré que nao hy espago para o espontineo, para momentos de falar, pensar e sentir de umg maneira um canto “nao-caracteristica”? A resposta depende de como pent samos sobre o caréter Euafirmaria que nada é“nao-caracteristico”. O cariter € inescapavel se alguma coisa fosse realmente “nao-caracteristica”, qual seria a sua fonte © que ha por trés de um impulso? Quem impulsiona a compulsio ¢ acen de um impulso? De onde surgem os pensamentos vagos? Os impuls emergem da mesma alma que as escolhas, ¢ so parte do nosso carit fanto quanto qualquer habito. A tiltima vez fazia parte dela exatamenté como todas as outras vezes faziam. Parte dela? Qual “ela”? O cardter dela deve consistir em érios caracteres — “personalidad cido. ee eceil na mesa, pois os eses nobres ideais ficam melhores na receita do que na mesa, pois os 10 muitas vezes des- dosos, como Yeats escreveu ¢ Pound demonstrou, sto mu destemperados, cheios de caprichos e mais préximos do caos nhados, _ mais HF que a sabria sabedoria bem ajustada que a iddia de innegragao sugere lade do caret provavelmente nio é tio unicitia; em vee disso, quando 0 coro, 0s Aintegti : ¥ todo 0 elenco esti no palco, como no final da 6pe ailavinos, os solistas e-0 maestro fazer sias reveréncias descoordenadas ‘A vida quer todo 0 conjunto, em flagrance delito. Até mesmo os disfarces renicem a0 cariter. O estudo do modo como cada umm dessescaracteres das principais atividades da velhice, quando a “revisio da . Seja revendo pe a se encaixa é uma vida” consome uma parte cada vez maior das nossas hor: pillas de papéis e armitios cheios de coisas, ow entretendo os netos com histdrias, ou tentando escrever autobiografia, obituirio e historia tenta- mos comprimir os meandros ¢ acidentes da vida num “estudo de carter. E por isso que precisamos de tantos anos de velhice c é por isso que, 8 medida que os dias se encurtam, cada vez. mais noites sio absorvidas pelo ibum de retratos. Nao importa que o atrependimento, a nostalgia ou a vontade de vinganga marcuiem os nossos sentimentos ao virarmos as pagi- nas — ficamos tao absorvidos nesse estudo como se Fosse pata uma prova final na escola. Estudamos 0 nosso aariter ¢ 0 dos outros em busca de uma revelagao da esséncia, ¢ interpretamos certas agées, tais como ela entrar no carro € partir, como expressies dessa esséncia. Ela junto ao meio-fio, abrindo a porta do carro, entrando ¢ se afastando pela ultima vez tornou-se uma Imagem indelével, uma foro rirada com lente objetiva que corresponde a0 cariter dela. Estudamos esse exemplo poético & procura de predicados des: ctitivos que possam propiciar previsSes do comportamento dela. Outras parciais”, como a psicologia chama essas figuras que mexem com os 110s sos impulsos e penetram nos nossos sonhos, figuras que ousariam faze aquilo que nds no ousamos, que nos empurram € nos afastam do can aho conhecido, cuja verdade surge de uma garrafa de vinho numa cidadi desconhecida. O caréter é miltiplo; a nossa natureza é uma complexidad plural; um tecido polissémico* multifisico, um amontoado, um emara nhado, um ninho. E por isso que precisamos de uma velhice longa: par desemaranhar os nds e deixar as coisas certinhas. Gosto de imaginar a psique de uma pessoa como uma hospedati cheia de personagens. Aqueles que aparecem regularmente e que habitual mente seguem os regulamentos da casa podem nao ter conhecido outr moradores, que ficam por trds de portas fechadas ou que s6 aparecem noite. Uma teoria do carter adequada tem qui abrir espaco para os atores, 0 dublés ¢ os adesttadores do carter, para todas as figuras que tém ui pontinha e produzem atos inesperados. Eles muitas vezes tornam o espe culo fatal, ou cragico, ou comicamente absurdo. * Polissemia:ofato de uma palawra ter muitos signficados.[N. da T] » imagens nos vém 4 mente — outras ocasides em que os olhos dela brilha. ram com uma luz rebelde enquanto cla se sentava atras do volante; pala vras triviais de inveja da liberdade de uma amiga; sua colegio de sapatos leves, de solado fino; uma histéria na adolescéncia de uma carona perigo, sa. Esse punhado de imagens mostra qualidades que constituem o cariter dela: liberdade, perigo, movimento, surpresa. Como essas coisas fazer) parte do caréter dela, elas sio previsiveis. A partida dela nio deveria ser surpresa — contanto que compactemos o carater dela em apenas aquelas imagens compativeis, arrumando-as numa histéria cocrente ¢ omitindo tudo aquilo que nio se adapta O que nio se adapta exige um exame mais minucioso e ut na idéia de carter. Tudo o que precisamos fazer ¢ fixar essa imagem, per- mitir que as suas complicagoes nos deixem perplexos, abandonar idéias superficiais sobre o cariter tais como habitos, virtudes, vicios, ideais. O acesso ao carter vem através do estudo de imagens, niio do exame da moral abertura O mundo cotidiano é notoriamente pobre nesse tipo de estudo. O garotinho assassino era um met bastante comum, parecido com qualquet pessoa; a babé que maltratava as ino bom ¢ calmo; o assassino era um tipo’ criangas era eficiente, limpa ¢ educada. A estreiteza da nossa idéia de ca- riter restringe aquilo que somos capazes de enxergar nas pessoas. Se as pessoas sio eficientes ¢ educadas, boazinhas ¢ calmas, se nao apresentam tragos curiosos, imaginamos que tenham o caréter adequado, A nao ser que tenhamos 0 olhar treinado para as discrepancias significativas, as nos sas previsOes serao invariavelmente incortetas. O crime vem como uma sutpresa € um choque, um ato inteiramente incaracteristico. Uma cultura cega as complexidades do carter permite ao psicopata o seu dia de mas- sacre, Ninguém percebeu qualquer esquisitice porque ninguém tinha olho para isso. Assim, depois do horror cle € mandado para o exame de psicdlogos que agora, past facto, sabem 0 que procurar ¢ naturalmente 0 encontrarao. Somos o que parecemos ser, sim, mas somente quando as aparéncias sfo lidas com imaginacao, somente quando o olho perspicaz estuda 0 que vé como uma imagem duradoura, Esse olho procura nos fatos 0 gesto significativo, o estilo caracter(stico, o fraseado ¢ o ritmo verbal. Esse olho gapontado para as visbilidades da nacureza humana, Ele aprende “ob- os servando v0 fad “defini como cir um instance do cempo”. a a - mle instante que vemos como “a dlkima vez”. Quanto mais velhos fica- s tempo olhamos, € queremos olhar. Uma mulher de 103 anos, gente”, em closes nos filmes, em posturas de danga ¢ em jantares na linguagem corporal ¢ na rua, Ele vé uma imagem, que Ezra “aquilo que apresenta um complexo intelectual 1 acrescentaria: especialmente na- mos, mal rrpnadora de Nevada, descreveu seu desejo: Quero construit uma capela para casamentos. (...) Eu me sentaria numa boa poltrona ¢ deixaria (..) 0 trabalho cansativo para quem eu conttatisse, O motivo de queret una capela para casamentos € que cu poderia estudar as pessoas. Poderia ver o tipo de homem com uem ela ia se casar, € 0 tipo de mulher ou moga que ela é. Eu sei 4 reconhecer, eu sei reconhecer. Al Hirschfeld, artista e caricaturisea, declara, aos 95 anos: O que € que 0 homem pode fazer? Passar o dia inteiro sentade na praia tomando sol? Contemplando as ondas? Ou jogando golf? (...) Os seres humanos me fascinam. Gente, Eu costumava adorar ficar simplesmente sentado junto & janela do hotel Howard Johnson’s em Nova York, na esquina da rua 46 com a Broadway, desenhando 0 desfile constante de pessoas passando. (...) Desenho uma gravata borbolera, ou uma bengala, ou anoto uma palavra ou fago um esbog que me traz de volta a cena inteira.? (0 olho para a imagem corta todo o supérfluo. Na nossa cultura hiperpsicologizada, os testes psicolégicos substi- tem esse olho experiente e impedem o seu desenvolvimento. Em vez de lolhar, testamos; em vez de insight imaginativo, lemos redagées: em vez de entrevistas, curriculos; em vee de histérias, contagem de pontos. A psicologia parte do pressuposto de que poder chegar ao cariter reme- Hxendo motivacdes, reages, escolhas ¢ projegdes. Ela usa conceitos ¢ nii- Imietos para avaliar a alma, em vez de confiar no olho andmale de um lobservador experiente, A Fowcs bo Canarin olho andmalo é 0 olho idoso. A alma idosa, envelhecida até a sug prépria peculiaridade, nao pode, na realidade, ver reto; ela favorece o sin gular. O amor ao singular pode aparecer cedo na vida, com os apelid carinhosos que as criangas dao umas as outras e que destacam determin, do atributo ou um trago do carter. Mas em geral a juventude prefere conformidade, tentando ajustar ou sufocar aquilo que nio se encaixa. N, velhice, tendo agora nos tornado exemplos de singularidade, procuram companheiros tao estranhos, a seu modo, quanto nés somos a nosso mod: Semelhangas nas rotinas didrias, experiéncias semelhantes no passado, sing tomas paralelos ¢ elementos comuns na vida passada nao sao coisas suf cientemente reconfortantes. O divertimento ¢ o amor vém com colegas singularidade. O casal estranho: um par de figuras excéntticas O termo “gerontologia” seria mais correto se definisse o tipo de estu do que fazemos com o nosso olho idoso, mais do que o estudo da velhi 2or psicdlogos jovens. © nosso estudo nio tem por objetivo descobrir po que ela entrou no carro ¢ partiu. A causa esté dada; era necessatio porqu estava no cardter dela, Nao adianta explicar a raziio — ela se sentia pres e sinha um segredo; para ela, aquele era o momento; ela teve una ci quizdide e fugiu do amor, ou era parandica e fugiu dos deménios, ou um: sociopata, pegou o dinheito e fugiu. Temos pouco interesse nas caus iustificdveis, tais como a mae dela, a infancia, seu mapa astral, seu femini mo despertado. As generalidades convencionais nada explicam para 0 ve tho observador. O olho anémalo simplesmente gosta de observar, mergu thar mais fundo no enigma do cardter humano, o que aumenta a tolerin: cia para com a estranheza humana, Em ver de apresentar motivos ¢ diagndsticos, nés estudamos a imal gem. A nossa curiosidade se concentra na imagem da tiltima vez, no com portamento dela como um fenémeno, na imagem como uma epifania pois é a imagem que dura e pode ser refletida vezes sem conta numa vat tiedade de hist6rias, exibindo o carter em agio. Ela estava desempenhan do um drama no qual, como disse Aristételes, 0 carter é revelado atravé da acio, A diltima cena dela é também onitica, um quadro: 0 meio-fio, 0 cat 10, a chave uz iynigav. Num sonho, nunca sabemos 0 motivo dos atos ot © diagnéstico do problema de alguém. A psicologia comega de manha io sabemos 08 motivos para o que as pessoas fazem nos sonhos, como cjaseram rratadas na infancia, ou mesmo por que estio ali. Quanto mais 0 onho nos parece uma imagem — ¢ cada sonho ¢ tinico, é a tltima vee — ‘nos conseguimos formuli-lo, no entanto mais podemos retornar a ele ¢ me inder com ele, Tudo © que vemos nos parece estranho, como se visto apre pea primeira ver, ou pela dima, Alguma coisa redentora acontece. nos abencoados por tudo,/ Tudo o que vemos é abencoado”, escreve Yeats — 05 tltimos, e duradouros, versos de um de seus poemas de refle- x. Os literalistas insistem em que a lembranga de uma ocor- a imaginak ‘ ; réncia — por exemplo, um incidente sexual na infaincia — vem prim » cendo-se ire 4 é-la um pouco. M mesmo que a imaginacao possa enfeité i : lade eso poder da imagem, Freud alinhou sua teoria 3 antiga tradiga0 da memoria, cujo centro & a imaginagio. . A memoria ajuda a explicar nao apenas o ganho de Tonge braso também a perda de curto prazo. Nao conseguimos recordar o di. sc na, 0 nome do sobrinho ou a esquina em que devemos virar eer estas coisas fazem parte do que a mente aprendeu, € s6 quando algum:

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