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Expediente

Texto: Pedro Jansen


Revisão: Samantha Castelo Branco
Capa: Dario Mesquita
Diagramação: Pedro Jansen
Fotos: Arquivo pessoal, acervo Jornal O Dia e Internet
Impressão: Gráfica Center Copy

Ferreira, Pedro Augusto da Cunha Jansen


Deus ex machina: quando o rock teresinense nasceu do nada /
Pedro Augusto da Cunha Jansen Ferreira
Teresina: 2006.
Universidade Federal do Piauí
Centro de Ciências da Educação
Departamento de Comunicação Social
Curso de Comunicação Social

Pedro Augusto da Cunha Jansen Ferreira

Deus ex machina: quando o rock teresinense nasceu do nada

Teresina-PI
2006
Pedro Augusto da Cunha Jansen Ferreira

Deus ex machina: quando o rock teresinense nasceu do nada

Livro reportagem apresentado ao Departa-


mento de Comunicação Social da Universida-
de Federal do Piauí, como trabalho de con-
clusão de curso.

Orientadora: Profª. Drª. Samantha Castelo


Branco

Teresina-PI
2006
Esse livro é especialmente dedicado a...

Rosa Edite da Silveira Rocha, pelo seu apoio, carinho, ternura e compreensão;
Eduardo Ribeiro Gonçalves Affonso, pela amizade singular, pela preocupação, por ser meu irmão
e pelo companheirismo;
Fátima Melo, professora de português dos meus tempos de Diocesano, que tanto me incentivou
na escolha do jornalismo como profissão e da literatura como paixão;
Los Comillones, nas figuras amigas de Rafael Campos, Francisco Lima, Allisson Bacelar, Carlos
Lustosa Filho, Flávio Meireles e Marco Aurélio Freitas.
A gr adeço...
gradeço...
A todos que ajudaram e a todos que não atrapalharam;
À minha mãe, pela educação e atenção dispensada a mim em todos esses anos;
A meu pai, por sempre me fazer crer, logo no início, que a leitura era importante e, principalmente,
que inspiração não se espera aparecer, mas se busca;
À minha professora orientadora, tia Samantha Castelo Branco, pelas conversas, palavras de incen-
tivo e bom humor.

Obrigado sempre!

Agradecimentos especiais a Geraldo Brito, Durvalino Couto, Cinéas Santos, Edvaldo Nascimento,
Ernesto José Batista, Paulo Vasconcelos, Chico Vasconcelos e Marco Vilarinho, pelas entrevistas e
por terem contado tanto a mim.

Patrícia Vaz, pelos conselhos, pela atenção e pelo chão da sala bom de dormir;
Clarisse Cavalcante, simplesmente por ser quem é;
Maryara Nayara dos Anjos, pela amizade e por ter me bloqueado no MSN quando necessário;
Igor Cunha Teixeira, meu primo, meu irmão, meu nego, pela ajuda, atenção e carinho;
Ana Clara da Cunha Jansen Ferreira, por deixar o computador ligado de madrugada e pela ajuda;
Sanmya Layanne de Sousa Meneses, pelo carinho e pelo abraço bom;
Dario Mesquita, pela comparação que me honra, pela ajuda e pelos conselhos;
Jucélio Júnior, Guilherme Jimbo e Daniel Campos, pela compreensão e ajuda na hora precisa;
Graça Targino, pelas palavras de carinho;
Leonardo Freire, pela ajuda e prestatividade acima da média;
Igor Cordeiro, pela atenção;
Ila Silveira, Zedka Russo,Tânia Sâmara,Amanda Neco, João Paulo Mourão,
pela ajuda e colaboração;
Karine Tito, Juliana Alves,Aline Maria, Ítalo Damasceno, Luana Maria, pela preocupação.
[Sumário]
Prefácio Pedro é música! Deus ex machina é música! Pág. 15

Introdução Pelos prados e campinas verdejantes eu vou Pág. 19


[ou Com quantas noites se faz um livro-reportagem]

Apresentação Os primeiros passos de uma mudança Pág. 23


[ou O início do início]

Capítulo 01 E no princípio era o verbo, a bota e o cabelo comprido... Pág. 31


[ou Live Fast, Die Young é a lei. É?]

Capítulo 02 Por entre brotos e brasas Pág. 45


[ou Eu quero mesmo é isso aqui]

Capítulo 03 O Início do Fim Pág. 59


[ou A morte anunciada de um Sonho]

Capítulo 04 A sua estrela renascerá Pág. 67


[ou O início do reinício]

Capítulo 05 Teu pai nunca mais falou She’s leaving home Pág. 77
[ou O passado é uma roupa que não nos serve mais]

Capítulo 06 Desde que eu tenha o Rock’n’Roll Pág. 87


[ou O mundo é um moinho]

Conclusão Hoje é domingo, pede cachimbo Pág. 97


[ou Dia da Criação]

Referências Bibliográficas Pág. 101


Pedro é música!
edro
Deus e
exx mac hina é música!
machina
[ou Prefácio]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Prefaciar a produção de Pedro Jansen ao final do seu Curso de Jornalismo da Universidade Fede-
ral do Piauí envolve todos os nossos sentidos: visão, audição, olfato, gosto e tato. Pedro, com seus
cabelos assanhados, encaracolados, longos ou curtos, com seu sorriso de menino, com seus olhos
que expressam extrema vivacidade, constitui festa aos olhos de qualquer pessoa, que consegue
ver na juventude a força do viver.
Da mesma forma, ouvir os seus sonhos e inquietudes de poeta ou compartir as suas
expectativas ante o futuro consiste em música melodiosa. E para quem não sabe, ouso afirmar
que música tem odor e sabor. Odor ao produzir impressão agradável, tal como o aroma de flores
ou de chão molhado. Sabor, como qualidade comparável a qualquer coisa que nos agrada e nos
delicia. Em se tratando do tato, a presença de Pedro Jansen provoca, sempre, sensações que
extrapolam o contato meramente físico para a cumplicidade silenciosa dos que buscam extrapo-
lar a mediocridade que nos tenta sorrateiramente, no dia-a-dia.
Por tudo isto, o livro-reportagem que Pedro disponibiliza para a comunidade piauiense
representa a sua própria força. Atuante como aluno, companheiro e amigo dos professores e 15
demais estudantes, desde o início do Curso, Pedro sempre mostrou preocupação em vencer a
distância entre universidade e sociedade. E é isto que faz Deus ex machina: quando o rock tere-
sinense nasceu do nada. Escrito numa linguagem extremamente acessível, mas devidamente con-
substanciado com depoimentos de pessoas respeitadas no meio cultural do Estado do Piauí, a
exemplo de Marco Vilarinho, Chico Vasconcelos, Cinéas Santos, Paulo Vasconcelos e todos os
demais entrevistados, Deus ex machina... não deixa de lado registros formais e consistentes, mas
está a serviço de quaisquer interessados em música.
Trata-se de roteiro extremamente agradável acerca do primeiro decênio do rock teresi-
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

nense. Consiste, na verdade, em longo passeio, que se inicia com a evolução do rock, ainda em
terras estrangeiras, indo de Elvis Presley (a quem se atribui a criação do rock), aos The Beatles e
a outros, até alcançar o território brasileiro, com o The Clevers. Nesse momento, o autor brinca
com as palavras, como faz o tempo todo, por meio de títulos e entretítulos atraentes e inovado-
res, e chama a atenção para a influência marcante de outros países sobre a nossa gente: “Brasil,
meu Brasil Brasileiro... ou Uma nova colonização através da música”.
Porém, a chegada do rock a Teresina provoca reações adversas, gerando situações repre-
sentadas ironicamente:“E ´tu toca´ é rock, é?” Para Pedro, tem-se, aqui, a epopéia de ser músico
em Teresina. E ele expõe, com malícia e bom-humor, as dificuldades culturais vivenciadas pelos
jovens de então. Enquanto estes, literalmente, se deliciam com a nova febre musical, os mais
velhos visualizam o rock como sinônimo de degeneração e deterioração dos costumes, como
este trecho confirma:

[...] existia um preconceito contra aqueles que se dedicavam à música, sendo todos
eles alcunhados de perdidos ou homossexuais. Os cabeludos eram perdidos,as moças
de mini-saia eram perdidas, os músicos eram perdidos, os que iam aos shows dos
músicos eram igualmente perdidos.

É a luta da “[...] terra do Sol contra a música do diabo ou Como Teresina luta contra as
artes”. E é assim, que, de forma quase lúdica, o autor infere que a primeira fase do rock (o
primeiro decênio), em Teresina, compreende duas fases.A primeira chega ao fim quase ao mesmo
tempo em que se dá o declínio da Jovem Guarda, e tem a marca de Os Brasinhas e, em escala bem
16 menor, de Os Metralhas.A segunda fase incorpora dois núcleos, dos quais, o primeiro privilegia o
regionalismo e integra nomes, como os dos cantores Geraldo Brito e Laurenice França. O segun-
do, por sua vez, tem como expoentes Durvalino Couto, Edvaldo Nascimento e Edino Neiva.
Afinal, lembramos, como o autor também o faz, que a música é uma das expressões cultu-
rais mais significativas de um povo ou de um país, não importa se rock ou samba, rumba ou salsa,
xaxado ou forró, frevo ou baião, mambo ou chá-chá-chá, e assim quase incessantemente. E é isto
que faz de Deus ex machina: quando o rock teresinense nasceu do nada relevante fonte de
inspiração para estudos futuros ou novos escritos sobre a música neste Estado. Música que conta
com a presença de Pedro Jansen no contrabaixo ou ecoando a sua voz em canções, em textos

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


jornalísticos ou poéticos, na sua condição de “menino” com futuro promissor!

Teresina, 22 de agosto de 2006


Maria das Graças Targino

17
Pelos prados e campinas
verdejantes eu vvou
erdejantes ou
[ou Com quantas noites se faz um livro-reportagem]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo Led Zeppelin –The Rain Song

“Eu admito. Eu perdi para esse livro. Ele me venceu”.


Não, não era assim que eu gostaria de começar essa introdução.
Então, eu começo assim:
Quando escolhi esse tema, essa proposta de resgatar o início da história do rock teresinen-
se, que é também o início do rock piauiense, eu não tinha noção do esforço que seria catalogar
todas as informações que cercam a temática.
Na verdade, eu imaginava que não conseguiria chegar a esse momento, de fechar o livro,
completar tudo, mandar para a gráfica, e, enfim, vê-lo pronto. Eu achava que não conseguiria
escrevê-lo.
E, por alguns poucos momentos, eu realmente achei que a proposta inicial não se consoli-
daria completamente, com informações bem apuradas, em um processo jornalístico calcado na
verdade, na ética e no compromisso com o dever de bem informar.
Quando decidi meu tema e o que fazer com ele, pedi demissão do meu emprego-estágio, já
sabendo que seria uma árdua tarefa parir tudo isso. Logo vi que árduo seria encontrar os entrevis- 19
tados ‘certos’, aqueles que teriam mais lembranças, mais coisas a me contar.Terminei por achá-los. E
fiz as entrevistas que precisei, embora a mim ou a eles possam ter escapados alguns detalhes.
Foi aí que meus pulsos começaram a doer ou, para ser mais preciso, voltaram a doer.A cada
lauda escrita, eu me via mais aliviado por saber que aquela dor cessaria assim que a última palavra
fosse digitada.
Afora isso, não me acostumei a não trabalhar, e consegui outro estágio. Mais sofrimento
para pulsos e mãos já tão castigados pela digitação intensa e para uma mente renovada por
reflexões profundas acerca do tema enfocado.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

O despertar por essa temática se deu a partir da leitura, há alguns anos, de um artigo
publicado na revista Cadernos de Teresina, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da Prefeitu-
ra de Teresina, edição 34, de 2002. Com a leitura desse artigo, que mostrava apenas uma idéia de
como a música teresinense evoluía desde a inclusão do rádio em nossas rotinas, fiquei interessado
pela história do rock.
Até então, o interesse se mantinha por dois motivos: pela minha atuação como jornalista
no Caderno de Cultura de um jornal local e pela atuação como membro integrante de uma banda
de rock nascida na cidade. Mas estas duas razões encontraram maior ressonância quando me vi
obrigado a pensar em meu trabalho de conclusão de curso. O tema veio naturalmente, e o rock
me encontrou outra vez.
Ainda assim, agora no papel de um pesquisador em início de carreira, tive consciência que
estudar a história do rock ou a história do rock teresinense mereceria, de forma racional, um
corte, um recorte. Para tomar esta decisão, comecei a pesquisar ou continuei a pesquisar.
Nesse processo, descobri uma carência bibliográfica acerca da história do rock teresinense
em sua totalidade, composta por informações fragmentadas, desprovidas de precisão em relação
a datas e nomes dos participantes do movimento. Estava aí o meu trunfo: contribuir para o
processo de redução desta lacuna. Foi, então, que optei por começar do começo, ou melhor,
iniciar a pesquisa pelo surgimento do rock em Teresina, estendendo a análise a um período
equivalente a um decênio.
Nas minhas pesquisas, também descobri que, por coincidência, parte dos integrantes da
banda primeira do movimento, Os Brasinhas, eram parentes da professora que havia escolhido
como orientadora. Iniciei aí uma pesquisa informal, procurando referências na imprensa, com
20 outros pesquisadores [dentre eles o autor do artigo motivador desse trabalho], e com os inte-
grantes das bandas citadas no mesmo artigo.
Iniciou-se, então, o processo de entrevistas, checagem de fontes e datas. Cataloguei as
fontes, em um total de oito pessoas, e as histórias, que somam quase 5 horas de entrevistas, sem
contar com as conversas e entrevistas informais.
Tomei a decisão acertada de que as fontes utilizadas nesta obra seriam, em sua grande
maioria, personagens que vivenciaram diretamente o primeiro decênio do rock teresinense.Além
destes, foram ouvidos MarcoVilarinho, jornalista e historiador, e Cinéas Santos, professor, escritor
e memória viva desses tempos.

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Impossível, no entanto, entrevistar todos os envolvidos. Há um limite para tudo, até para a
apuração de dados que construiriam um livro-reportagem de resgate histórico. Há um limite
físico, psicológico e temporal.
Este livro passou por diversos problemas e enfrentou muitos deles, sendo os mais marcan-
tes a minha falta de experiência como escritor de longas narrativas, a imprecisão de muitos dados
fornecidos pelos entrevistados e a total falta de disponibilidade de outras possíveis fontes. Outro
empecilho se refere aos poucos registros fotográficos que ilustram esse livro, explicado, basica-
mente, por duas frentes: pela reduzida estrutura da época e a inexistência de esforço no sentido
de documentar tais momentos.
No que se refere à construção do texto, outro desafio. Me propus a elaborar um livro-
reportagem. Um livro gerado a partir do trabalho jornalístico, que prevê pesquisa, entrevista,
reflexão, questionamento. Nesse sentido, é mister pontuar que, embora nós, alunos de Jornalismo,
sejamos treinados e formados para desenvolver tais habilidades, nos acostumamos a canalizá-las
em textos mais curtos, dirigidos a veículos da imprensa local ou nacional. Nesse cenário, o livro é
uma novidade. E transformar reportagem em livro-reportagem acaba sendo um valioso aprendi-
zado, justamente no final da graduação.
Como escritor que se lança no mercado editorial, optei pela proximidade com o leitor,
privilegiando os fatos em detrimento de termos rebuscados.Afinal, é um livro produzido a partir
da atividade jornalística, que prima, ainda, pela clareza na exposição dos fatos.
O resultado desse esforço, dessa tentativa de fazer algo novo, é o primeiro passo de uma
caminhada que começa aqui. E segue por onde for preciso.

21
Os primeiros passos
primeiros
de uma mudança
[ou O início do início]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo: Elvis Presley –That’s alright, mama.

A identidade de um povo é estabelecida pelos mais diversos parâmetros. Por estamos no Ociden-
te, esses parâmetros se tornam mais próximos e parecidos para a maioria dos países, mesmo os
que enfrentam grande diferença geográfica. Assim, Brasil e Canadá, por exemplo, países bem
distantes entre si, compartilham interesses e características. Com a já tão falada globalização,
essas semelhanças se espalharam entre os países ocidentais e orientais. China, Japão, Inglaterra e
Alemanha já dividem costumes, tecnologias e outras similaridades.
Mas voltemos a falar das características que definem um povo. Sem necessidade de ser um
profundo pesquisador das relações e características humanas e de seus agrupamentos, sabe-se
que a língua, o modo de falar, a indumentária, as manifestações culturais em geral, tudo isso pode
definir um povo, uma comunidade ou um agrupamento de pessoas. O que dizer, então, da música?
Força motriz de festas, encontros, tardes quentes de verão e noites frias de chuva, aparecendo
junto com os filmes nas trilhas sonoras, com rádios por todos os lados, a música é, hoje, um dos
fenômenos sociais mais baratos e abrangentes que existem.
Junto com o fenômeno ‘música’ vem o fenômeno ‘rock’, que contrariando a tudo e a todos, 23
a todas as capas do Melody Maker, todas as afirmações dos críticos eufóricos britânicos absurdos
de que o bichinho precisa ser salvo, se mostra forte e altivo. Está aí pra quem quiser ver.
Mas e então? Vamos ficar falando das singularidades da música e suas maneiras de se
manifestar? Qual nada... Pega uma cerveja ou um chá gelado na cozinha, senta numa poltrona
confortável e te prepara. Começa agora uma viagem aos primórdios da história do rock, saindo da
criação no exterior, passando pela propagação nacional, e por fim, continuação/repetição no Piauí.
Como se dizia no antigo programa Rá-tim-bum...‘Senta, que lá vem a história!’.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

Com a ‘brasa, mora’, o queijo na mão e outras histórias


[ou O iê-iê-iê bem dançado, a cuba-libre gelada]

Começa-se pelas outras histórias, que vem antes do iê-iê-iê.A não tão breve história do Rock,
consolidado como estilo próprio e que até ser chamado de Rock passou por diversas influên-
cias e nomenclaturas, já tem seus 52 anos. Mesmo com a divergência de várias correntes e
histórias inspiradas em fatos paralelos ou tomados por propostas que vão além da análise
musical [embora o caráter social da música deva ser respeitado], atribui-se a criação do Rock
a Elvis Presley.
Conversa fiada, segundo Paul Friedlander, no seu ‘Rock and Roll – Uma história social’, de
1996, é bem sabido, e se não sabes, ficarás sabendo agora, que muito se deve a diversas referên-
cias da música branca e negra até a chegada de uma formatação de rock n’ roll como se conhece.
Antes de tudo, e pra simplificar, existiam o country, juntamente com suas diversas variantes, e o
blues/gospel vindo do lado negro da coisa.A mistura desses dois gêneros deu origem ao que se
convencionou a chamar de rhythm'n'blues e, mais tarde, com mais influências da música branca,
chegou ao ‘meio termo’ que convencionou-se a chamar de rock’n’roll.
A primeira leva de roqueiros surgiram nos EUA, lembrando que os ingleses só entrariam
no páreo mais tarde, em meados da década de 60, e eram, eminentemente, negros. Fats Domino,
Chuck Berry, Little Richard e, o único branco dessa época, Bill Halley.
Depois da fórmula do rock’n’roll ser usada exaustivamente, e de jovens do mundo inteiro
se renderem ao ritmo, a segunda leva de artistas veio mais forte que a primeira, que se complicou
24 com as mais bizarras lendas da história do rock, como as prisões de Little Richard, as loucuras de
Chuck Berry dentre outras...
Aí foi a vez de Elvis Presley, dono de um rebolado contagiante e de voz enebriante, Jerry
Lee Lewis, Buddy Holly e outros de menor expressão. Essa segunda fase deu abertura para a
chegada de uma mudança rítmica e de estilo, pois com o início da década de 60, o rock’n’roll
começou a entrar em verdadeiro declínio dando espaço para o aparecimento do que foi chamado
de ‘Invasão Britânica’, e que trouxe ao mundo da música os Reis do Iê-iê-iê, os Fab Four, os moços
de Liverpool, enfim, os Beatles.
E desde então o mundo nunca mais foi o mesmo.

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


A combinação de rostinhos bonitos, vozes suaves e afinadas, arranjos açucarados e letras
versando amores fez tudo tremer tanto que eles desistiram de tocar ao vivo em 29 de agosto de
1966, quando fizeram o último show no Candlestick Park em San Francisco. Depois disso, só em
estúdio, com algumas apresentações ao ar livre, mas bem espaçadas e limitadas, como a que
aconteceu no teto do prédio da Apple, em 1969.
Esse tremer não é força de expressão. A desistência dos Beatles pelas apresentações ao
vivo se deu, simplesmente, porque eles não conseguiam se ouvir durante os shows.A histeria era
tanta que quando os moços foram ao Estados Unidos e se apresentaram no Ed Sullivan Show,
reza a lenda que, durante a apresentação da banda no programa de TV, não foi registrado nenhum
crime nos EUA.
Aí eles perverteram a música. Se desde bem antes, os artistas já falavam de sexo e eram
podados pelos produtores, radialistas e censores, com os Beatles, a existência de um discurso
mais elaborado levou meninas a quererem as mesmas coisas, mas de forma mais sutis.A abertura,
no entanto, foi acontecendo, e era cada vez mais fácil ser ácido nas letras.
Esse período de abertura para artistas da Inglaterra, uma virada do mercado, que começou
a notar o Reino Unido como provedor de boas canções, possibilitou o aparecimento dos moços
do Rolling Stones, a banda malvadinha da época. Sim, por que se o Fab Four era a personificação
dos genros ideais, o Rolling Stones eram a personificação do capeta...
Isso seguiu até meados da década de 70, com aparecimento de diversos outros artistas,
como The Who, The Yardbirds, Led Zeppelin, ainda com Rolling Stones e outras caras para o
rock aparecendo, que vão influenciar diretamente as mudanças de ares que ocorreram nas
áridas terras de Teresina. Foi a vez do progressivo, com Pink Floyd aparecendo em 1965, e um
modelo de composição que, por ser muito mais elaborado e complexo, dividiu platéias. O que 25
Elvis Presley
antes era simples de ser assimilado e unia pessoas de diferentes tendências e experiências,
passou a dividir em grupos mais específicos.

Brasil, meu Brasil Brasileiro...


Brasileiro...
[ou Uma nova colonização através da música]

Na década de 50, ainda estávamos longe, de certa forma, de acompanhar que acontecia lá fora.

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Então, só quando do estouro mundial inevitável dos Beatles foi que o Brasil começou a pensar em
rock, e, como fala José Ramos Tinhorão no livro “História Social da Música Popular Brasileira”,
lançado em 1998, de sua autoria, em uma “diluição comercial dirigida (do rock sofisticado dos
Beatles) às camadas mais amplas pelo iê-iê-iê de Roberto Carlos”.
No entanto, antes disso, Cauby Peixoto;Tony e Celly Campelo tiveram participação funda-
mental na consolidação do rock no país. Foram eles quem abriram espaço para os já citados
Roberto e Erasmo Carlos, Martinha,Wanderléia, além de Renato e seus Blue Caps.
Se o iê-iê-iê continuava muito forte, as influências desse rock inglês que veio com a mudan-
ça de proposta dos Beatles, além de uma possibilidade de inovar no campo da composição, a
Tropicália surgiu como uma possibilidade de misturar a coisa do Brasil, do ‘cafona’, como dizia
Caetano Veloso, expoente do movimento, com as guitarras elétricas advindas de outros artistas
que não apenas os Beatles. Jimi Hendrix e Janis Joplin foram fonte de inspiração, e a anarquia que
se fez presente durante as apresentações do grupo originaram artistas como Gal Costa, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes,Tom Zé e Rogério Duprat.
Esses e outros artistas menores da Tropicália conquistaram espaços nos festivais, incomo-
daram a sociedade emepebista da época, e por fim tiveram sua criação dissolvida pela ditadura,
que já estava achando demais aquela baderna toda pelo país.

E tu ttoca
oca é rroc
ock, é?
ock
[ou Da epopéia de ser músico em Teresina]

‘É, moço, a gente toca rock sim’. Imagine uma resposta dessa em meados da década de 60, nas 27
cercanias de Teresina, mais província do que ela é hoje. Primeiro que o moço receberia, no míni-
mo, um puxão de orelhas. Depois que você seria vilipendiado a vida inteira, como perdido, rebel-
de, inconseqüente. Será?
Quando a banda Os Brasinhas, que tocava o bom e velho iê-iê-iê [tocava não porque tenha
encerrado definitivamente suas atividades, mas por que agregou outros estilos, inclusive o forró
pé-de-serra ao seu repertório], começou a sua carreira por Teresina, com ensaios e mais ensaios,
não houve muita resistência. Pelo contrário.
“Eu vim pra Teresina definitivamente em 1965, mas já passava férias aqui há anos. Foi dessa
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

maneira que eu conheci os outros integrantes do que viria a ser Os Brasinhas”, explica José
Ernesto Arêas Batista, cujo nome correto é Ernesto José.“Essa confusão foi uma coisa de família,
que terminava por confundir que nome vinha primeiro, e terminaram por se acostumar a me
chamar assim”, lembra ele, que também deveria ter um P no meio do Batista.“Era pra ser Baptista,
mas o escrivão errou e meu pai não notou o erro. Ficou assim mesmo”. Perdeu-se aí um vínculo,
mesmo que apenas nominal, com os Baptistas da sagrada banda Os Mutantes.
Dos primeiros ensaios saíram covers das principais músicas tocadas na Rádio Pioneira, no
programa de Alexandre Carvalho, que além de radialista, foi o autor do livro “Os Brasinhas – O
Sonho não acabou”, lançado em 2002, para comemorar os mais de 30 anos de existência da banda.
A estréia do Rock Teresinense, surpreenda-se, caro leitor, não foi em Teresina. Criada,
crescida e amadurecida aqui, debaixo das asas dos pais que tanto os apoiavam, Os Brasinhas
puseram os pés em um palco e miraram um público pela primeira vez na cidade de José de Freitas,
por volta de novembro 1966.“Quem nos levou até lá foi o pai do Paulo Vasconcelos,Tio Aurino,
e nós íamos muito alegres e nervosos de fazer nosso primeiro show. Depois desse, fomos para
Pedro II e só em março de 1967 é que estreamos em Teresina, numa espécie de clube beneficente
que ficava nos arredores do que é hoje o Ginásio Dirceu Arcoverde”, conta, com certa nostalgia
na voz, Ernesto José.
Esse clube beneficente que foge à memória de José Ernesto é o Centro Recreativo Nossa
Senhora do Amparo (CRENSA), que abrigou uma das primeiras apresentações dos rapazes em
Teresina. Mas essas são histórias para serem contadas aos poucos. E tudo começa na página
seguinte.

28 Tá Pronto?
Aqui, os Brasinhas em sua formação clássica, da
esquerda para a direita: José Ernesto Batista, Sidney
Castelo Branco, Assis Davis, Getúlio Araújo, Chico
Vasconcelos e Paulo Vasconcelos.
E no princípio era o vverbo,
erbo,
a bota e o cabelo comprido...
bota
[ou Live Fast, Die Young é a lei. É?]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo: Bill Halley & His Comets – Rock Around the Clock

Se você não é daqueles que pula a introdução dos livros, deve ter prestado atenção que o nosso
início é muito parecido, embora com um delay de dois anos, com o rock que vinha sendo feito no
Sudeste, para ser mais preciso, em São Paulo.
Fazer rock era significação de choque, dos pais conservadores, da igreja conservadora, da
sociedade em geral.A idéia de ver seus filhinhos dançando ao som de música negra não agradava
aos pais de um EUA pouco aberto a novidades.A rebeldia existia apenas na idéia de que dançar
não tinha nada demais. Não havia discurso político, filosófico ou niilista. A grande maioria das
canções que tocava no rádio falava de amor. E eram dançantes.
A rebeldia sem causa de James Dean, jovem, bonito, de futuro promissor, estava baseada no
choque.A necessidade de choque levou à mini-saia, ao sexo antes do casamento, às danças mais
sensuais. A batida 4x4, ritmada, incansável; as guitarras estridentes, com solos e harmonias dan-
çantes, os vocais gritados e sem a gentileza que marcou os cantores do rádio, com suas baladas, o
baixo dedilhado com velocidade, em escala quase bluesística; tudo isso contribuía para uma empa-
tia estranha do jovem. Estranha por uma única razão: aquilo era totalmente novo. 31
Mas isso era na década de 50...Atentemos bem para o salto evolutivo com a chegada dos
ingleses, que foram logo bagunçando o coreto e subvertendo tudo numa interpretação própria da
mesma manifestação musical.
E foi aí que o rock brasileiro começou a se apoiar. Na década de 60, as vozes do rock eram
Elvis Presley e The Beatles, que basearam as manifestações artísticas por aqui. Esses artistas
fundamentavam as criações da Jovem Guarda, representantes de carteirinha do iê iê iê no Brasil,
e que conquistaram os jovens aqui em Teresina.
Mas é como diz o jornalista Marco Vilarinho, figura que viu e participou, mesmo que de
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

forma afastada, da época de formação do público e da proposta musical da época, acompanhando


o surgimento da Jovem Guarda por essas paragens. Estava tudo atrasado.“Aqui em Teresina, tudo
chegava muito tempo depois de ter sido lançado no Rio.A cidade era muito pequena. Os jornais
de grande circulação só chegavam aqui dois dias depois; a maior revista da época, a Cruzeiro,
chegava aqui com duas semanas de atraso. Era tudo muito assim”.
Foi assim que ficamos sabendo da Jovem Guarda só em 1966, dois anos após o seu surgi-
mento, em 1964. E mesmo com o atraso, o cheiro de novo ainda não tinha saído do estilo musical
mais preocupante na época (espere para ver o que acontecia na Tropicália).A principal justificativa
para a defasagem era a dificuldade em fazer as informações chegarem aqui. Enquanto as novida-
des eram conhecidas, era muito complicado ter acesso aos discos do estilo, preteridos pelos
radialistas,mal-vistos ou incompreendidos pelos adultos. Só depois de muito tempo foi que os LPs
começaram a chegar por aqui.
Ou, como eu descobri com PauloVasconcelos, guitarrista base da primeira formação de Os
Brasinhas, nessa época, informação era artigo que não se encontrava na venda da esquina...
Perguntei a ele em que ano ele conhecera José Ernesto Batista Arêa, peça principal da banda
supracitada. Com a memória já falhando, mais pelo pouco uso das lembranças do que pela idade,
Paulo não soube bem definir em que ano conhecera o rapaz que terminou sendo seu amigo durante
todos esses anos.Talvez ele o tivesse conhecido por volta de 66.“[Nessa época] não tinha nada de
rock em Teresina, talvez só alguma música popular, aquele sistema de fazer seresta no meio da rua,
bolero,mas nada de Jovem Guarda nem rock,não tinha nem Beatles nessa época, isso não existia em
termos musicais aqui emTeresina. Era como se estivéssemos ilhados, ilhados em relação ao resto do
Brasil. Se você fosse comprar um LP, vinil, demorava muito pra chegar aqui. Se fosse no Sul demorava
32 menos, mas pra chegar em Teresina, tinha dificuldade, demorava um mês, dois meses”.
O isolamento era tanto que discos e notícias desse gênero musical na cidade grande eram
tratados como raridade e com deferência e respeito.Tidos como relíquias, muitos eram os casos
de admiração distante, mas ponderada. Não causava surpresa saber que o entusiasta da Jovem
Guarda, aquele que conseguia por as mãos em um vinil do gênero não poderia possuí-lo por sua
família não aceitar tal manifestação cultural. Mesmo assim, quandoWanderléa pôs seus sacrossan-
tos pés nessa terra, em 1965, a comoção foi apoteótica.
A situação explica-se por diversas razões. Uma delas era a fama que a cantora já tinha por
essas bandas, impulsionada pela execução de seus vários sucessos nas rádios da época. Aliado a

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


isso, temos o lançamento do long play da moça que trazia uma versão para a uma música de
Rossini Pinto, chamada ‘Rapaz do Piauí’. Quem estava por perto quando do fenômeno garante que
só se teve a mesma quantidade de gente nas ruas a esperar por alguém quando o Papa João Paulo
II veio a Teresina, em 1980. Mas, nessa feita, quando a cidade esvaziou, calou, todo mundo sumiu, a
causa era um broto da Jovem Guarda.
“Quando a Wanderléa veio aqui foi um escândalo! Ela de mini-saia, todo mundo correndo
nas portas para ver.Teresina em peso, em peso! Quem não pôde pagar pra entrar no show dela
ficava nas portas, ficava pelas ruas, pelo menos para ter o prazer de dizer assim:‘Eu estava na rua,
eu estava perto do show da Wanderléa!’. Foi uma comoção popular, mas a cidade inteira, inteira,
aqui também foi com os Vips, foi com o Roberto Carlos, com o Erasmo Carlos, todo esse pesso-
al”, recorda Vilarinho.
Esses fatos mostravam uma popularidade acumulada pela falta de informações atualizadas,
já que as notícias chegavam muito depois [de muito], e os locutores tinham dificuldade de encai-
xar na programação os discos da época, pois os artistas eram profícuos e, até as novidades
chegarem aqui, havia um acúmulo de conteúdo. E se a raridade de informações não desse jeito na
curiosidade, o conservadorismo da cidade o fazia. A alternativa era professar a fé na arte de
outras formas.As famílias de bom nome ainda suportavam um violão dentro de casa, para serem
usados nas festinhas e encontros, tudo muito inocente. Os jovens da época, e juntamente deles,
José Ernesto e Paulo Vasconcelos, usavam esses violões mais tempo do que seus pais desejariam.
“Você encontrar um LP de uma banda, era uma relíquia, então eu e o José Ernesto forma-
mos uma dupla, ou melhor, um trio, com um amigo que eu nunca mais vi chamado Carlos, que
virou médico, não pra cantar Jovem Guarda nem rock, mas as músicas da época daqui de Teresina,
um bolero...”, completa um pensativo e quase macambúzio Paulo Vasconcelos. 33
A lembrança, pescada da memória durante uma manhã de quinta-feira, foi verbalizada numa
ante-sala do curso de Odontologia da Universidade Federal do Piauí, UFPI, onde Paulo Vasconce-
los leciona. De pronto, ele se dispôs a responder minhas perguntas. Não consultou livro, não ligou
para ninguém, não viu fotos. Lembrava tudo de cabeça, numa imprecisão milimetricamente exata.
Talvez a frase que mais tenha repetido durante a entrevista foi que “José Ernesto poderia respon-
der melhor”. Talvez só não tenha perdido para aquela em que frisava que sua memória o traía.
Uma modéstia estranha, admitamos, já que suas respostas eram todas cheias de detalhes e lem-
branças peculiares. Paulo Vasconcelos lembrava de tantas coisas quanto possíveis, nessa vida em
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

que o tempo e o cansaço tanto mal fazem à nossa cachola.


Logo, percebe-se que o pontapé de partida primeiro, o primórdio dos primórdios do rock
teresinense teve uma base de bolero. Curioso... O atraso em relação à capital não demoraria a ser
reduzido a algo quase imperceptível, e o rock teresinense então nasceu.
O ano era 66, já entrega Geraldo Brito, músico, pesquisador, compositor e participante
efetivo da construção da história da música teresinense, e esse terminou gravado na história da
Cidade Verde como o ano em que o rock, na época chamado de iê iê iê ou apenas de Jovem
Guarda, viu a luz do sol pela primeira vez. A mola propulsora foi a bandinha de sucesso The
Clevers [no nosso maltratado português, Os Espertos], que veio paraTeresina nesse ano e provo-
cou um contato direto e imediato com a Jovem Guarda, mostrando a força e o poder desse
movimento.
“Eles [The Clevers] chegaram aqui, e começaram a fazer show e tocavam, iam pra União...
Tinha um cara aqui chamado Tio Bents. Ele era da base, desses coroas que gostavam de som jovem.
Foi aí que ele começou a segurar a galera e arranjou um sítio por aqui, lá na saída da cidade”, lembra
Geraldo Brito, ao continuar dizendo o furor que esses músicos causavam ao ligar suas guitarras nas
caixas amplificadoras.“De vez em quando eles faziam show noTheatro,e lotava de gente, a garotada,
a meninada impressionada pegava a cadeira, puxava, sentava e ficava olhando...”.
Essa admiração declarada, pela representação de tantos estereótipos que os jovens daqui
só tinham acesso pelas revistas, pelo rádio e pelo cinema foi o suficiente para a empatia imediata.
No entanto, longa temporada rendeu fãs, admiradores, mas também desafetos. O que não seria
nenhuma surpresa, convenhamos. Para os rapazes da cidade, era complicado ver todo o esforço
da côrte às ‘moças de família’ se esvair ao dedilhado de um iê iê iê, umas gírias estranhas e um
34 cabelo comprido. Ou como conta Cineas Santos, incentivador cultural, literato e professor de
português que veio de São Raimundo Nonato para Teresina em 1965,“era complicado ver esses
caras comendo as meninas da cidade”.
Tudo isso culminou em confusão numa das várias festas que o The Clevers fez pela cidade.
Lá pelas tantas, a admiração das moças despertou o ciúme dos jovens da cidade, e quando a
confusão estourou, foi para valer.“Houve uma briga, justamente por causa das meninas darem em
cima dos cabeludos. Houve uma briga feroz com esse grupo [The Clevers], gente se machucou de
verdade, até quebraram o braço de um cara com um microfone, com o pedestal do microfone. E
ficaram presos, eles ficaram detidos na chácara do Tio Bento, me parece que uma semana. Deu

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


rolo!”, diverte-se ele ao lembrar.
Era bem como sentia Paulo Vasconcelos, mais um dos arrebatados pelo poderio da música
do The Clevers. A chegada da banda a essas ermas terras provocou uma mudança na rotina da
cidade, que passou a olhar o Theatro 4 de Setembro com olhos diferentes. Onde antes só entra-
vam as pessoas que já tinham fama duvidosa, com esses shows, os filhos das famílias tradicionais
podiam chegar mais perto da manifestação cultural do momento. O impacto visual foi tão grande
quanto o musical. Era muito complicado para uma cidade pequena e de preceitos católicos tão
fortes admitir mudanças de comportamento repentinas e quase que imediatas. Deu o que falar...
“O The Clevers veio para Teresina, e era um pessoal cabeludo... Eu nunca tinha visto um cabelo
daquele tamanho, enfim, aqui em Teresina o povo não usava cabelo grande. Era só estudante
fazendo essas brincadeiras com os amigos, uma serenata ali pela praça do Liceu. Era comum fazer
serenata, você ia pra porta da casa da namorada uma ou duas horas da manhã e ficava cantando.
[Mas aí] veio esse grupo para Teresina vindo de São Paulo, eram cinco, e a primeira apresentação
deles foi no teatro 4 de setembro. Fui assistir essa apresentação, nunca tinha visto o tipo de
música que eles tocaram”.
Na vida sempre há grandes momentos. Momentos em que, nem se espera, e a cabeça dá
aquele estalo, pedindo pra idéia surgir, e ela, obediente, surge. Foi nesse momento, em que José
Ernesto e Paulo Vasconcelos, já sem o amigo Carlos, estalaram juntos.“Por que não montar uma
banda de iê iê iê?”.
Estalo natural, provocado pelo comichão do rock, que faz bater pés e mãos...“Sei que nós
assistimos a esse show no Theatro 4 de Setembro, e a partir daí surgiu a idéia, junto com José
Ernesto, de formar um grupo parecido com aquele ali, com aquele estilo de música bonito pra
época. Naquele tempo tinha o Roberto Carlos, a gente ouvia Roberto Carlos, ouvia ele aqui acolá 35
Os primeiros instrumentos usados pel’Os Brasinhas
eram de segunda mão e foram conseguidos depois
que o grupo The Clevers decidiu trocar seus
equipamentos por outros melhores.
na rádio, porque aquele conjunto tocando aquele tipo de música, o rock, eu desconhecia pratica-
mente”, entrega Vasconcelos.
O desconhecimento provocou uma sensação de quase morte para o, na época, estudante
de Odontologia, tamanha foi a fascinação. “Eu fiquei muito empolgado, a guitarra aquele tipo de
som... Nós levamos até um susto quando os rapazes começaram a tocar em função da intensida-
de do som, nós não conhecíamos aquele tipo de caixa de som, guitarra, aqueles contrabaixos.Você
não sabia que tipo de som eles ia apresentar, quando eles começaram a tocar, parece até que o
Theatro tremeu, todo mundo ficou naquele estado de choque. Aquele tipo de música, aquela

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


intensidade surpreendeu todo mundo. A partir daí, o Ernesto entrou em contato comigo e nós
resolvemos formar uma banda daquele tipo”, confidencia Paulo. Começa, então, já não pelas
pernas e pés dos outros, mas sim dos moços daqui, a maior revolução musical associada ao rock
que essa cidade de Teresa Cristina já viu.

Quem casa quer casa


[ou Todo índio quer seu tambor]

O sonho do rock no Piauí, e em Teresina, cidade onde tudo começou, poderia ter sido adiado
indefinidamente se não tivesse acontecido a tal temporada de shows dos Clevers no 4 de Setem-
bro. Os rapazes da banda tanto tocaram, tanto se apresentaram, que o seu instrumental ficou
surrado demais para levar de volta para São Paulo. Com a grana adquirida aqui, eles conseguiriam
equipamento muito melhor em Sampa. Mas como instrumentista sabe, é quase pecado jogar um
instrumento fora, condená-lo a uma lata de lixo. Foi a hora, então, de procurar alguém que pudes-
se cuidar deles com carinho, e que pudessem continuar o legado que cada instrumento tem, que
é fazer música.
Foi aí que acharam os rapazes José Ernesto e PauloVasconcelos. Ernesto já tinha uma guitarra
Giannini vermelha, trazida de Fortaleza numa das suas férias por essas bandas. Então os instrumen-
tos foram comprados pelo resto da banda e colocados na casa do baterista, Sidney Castelo Branco.
Mas a banda começou antes da partida do The Clevers, e foi um começo desbravador.
“Eles passaram aqui um tempão, e terminaram por influenciar a galera d’Os Brasinhas, os
da primeira leva, Getúlio Filho, o Chico Vasconcelos, o José Ernesto, que era o baterista e o Paulo 37
Vasconcelos que era o guitarrista base, o Getúlio, baixista. Mas quando começou a tocar mesmo
pra valer, o Sydney ficou de bateria e o Ernesto ficou de pandeiro, de percussão...”, entrega o
arquivo vivo, Geraldo Brito, numa entrevista quente em seu apartamento.
Quente tanto pelo clima quanto pelo conteúdo. Estando no Lourival Parente, sem vento,
sem chuva, contávamos apenas com o frescor da noite, que tinha ido tomar um refresco.Ao abrir
a casa, me deparei com um sofá pequeno, uma TV grande, e muitos quadros na parede.Tanto de
shows que ele organizou, participou e liderou. Muita memória permeava aqueles cartazes emol-
durados, já amarelados pelo tempo e pelos olhos de cada um que por ali já deve ter passado,
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

tentando imaginar o que cada um naquela foto desejava para seu futuro.
Numa estante, pilhas de cds que iam de Mutantes a produções de Edvaldo Nascimento,
passando por Hermeto Pascoal, Rita Lee, Chico Buarque, Chico César, dentre muitos outros.
Dono de uma memória fabulosa, Geraldo Brito consegue lembrar do mais simples detalhes, com
precisão cirúrgica. Foi incrível ver que, para quem pouco viveu da época, assistindo de soslaio a
um ensaio aqui e outro acolá, a curiosidade levou a tanto conhecimento, que o tempo não se
atreveu a levar.
“Existia uma dificuldade muito grande em se fazer as coisas aqui, e só se conseguia fazer
shows e outras coisas com muita luta.As estruturas eram limitadas, mas mesmo assim os rapazes
da época davam um jeito”, rememora o pesquisador.

As dif iculdades
dificuldades
[ou Fácil é uma palavra que não existe no mundo adulto]

“Antes de comprar esses instrumentos, eu e o Ernesto, nós tivemos a idéia de formar o grupo. Nós
ensaiávamos na casa do José Ernesto,só com uma guitarra,e chamamos até um primo meu pra fazer
o acordeom... Olhe só, acordeom! Veja como foi, o início completamente fora. Convidamos meu
irmão, o Francisco, que era o guitarrista solo e o ensaio foi com uma guitarra e um acordeom, não
existia bateria nem contrabaixo. Nós falamos assim:‘vamos começar a ensaiar, cantando as músicas
e depois vamos conseguir os instrumentos’.”, puxa da memória PauloVasconcelos.
Conseguir os instrumentos foi uma luta a parte, já que certas coisas, naquela época, eram
38 um luxo só. E nenhum deles esbanjava dinheiro para tanto... E como o que não tem remédio
remediado está, eles trataram de montar uma bateria artesanal. “Nós fizemos uma parte da
bateria, e de parte em parte chegamos a uma completa e continuamos os ensaios”, continua ele.
Outra peculiaridade da época é que, ao contrário do que costuma acontecer nas bandas, os
instrumentos que cada músico tocaria foi escolhido intuitivamente, sendo pouco considerada a
afinidade do cidadão com o seu pretenso instrumento. Caso clássico foi o convite de Sidney para
assumir as baquetas d’Os Brasinhas.“Nós fomos convidando outras pessoas, convidamos o Sid-
ney pra ser baterista, ele nunca tinha tocado bateria na vida. Nós convidávamos as pessoas,
dizíamos ‘ele vai tocar isso’, mas não se sabia se isso ia dar certo. O convite era assim, você

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


convidava fulano pra tocar determinado instrumento, eu na época era pra tocar contrabaixo, mas
nunca na minha vida tinha visto um contrabaixo, mas eu fui rotulado como sendo o contrabaixista,
eu tocava um violão, por causa do meu pai, era uma coisa de família. Mas aí me chamaram pra
tocar contrabaixo, sendo que eu nunca tinha visto um contrabaixo na vida. E foi rolando os
ensaios, e depois o Ernesto conseguiu chamar o Getúlio, eu vi que não ia dar certo eu tocar o
contrabaixo e passei do contrabaixo pra tocar guitarra”.
Com o convite feito a Getúlio da Costa Araújo Filho, que na época já trabalhava, tendo
largado os estudos há muito, Paulo Vasconcelos assumiu a guitarra-base. “Convidamos ele para
tocar, e como ele tocava muito bem violão, ele se adaptou ao contrabaixo. Nós compramos um
contrabaixo feito aqui em Teresina, com cordas de lambreta, não era nem corda apropriada para
se tocar, aqui em Teresina não tinha. Mas lá na Rádio Difusora tinha um quarteto e os instrumen-
tos eles fabricavam por aqui mesmo, e nós compramos deles esse contrabaixo e entregamos para
o Getúlio”, conta Paulo.
A festa estava para começar, e Os Brasinhas ganharam a sua configuração que durou até
1972, quando a banda encerrou a sua primeira fase.“O conjunto, nessa altura, já estava formado:
eu, Ernesto, meu irmão; Francisco, o Getúlio e o Sidney, os cinco”. Estava formado Os Brasinhas.

Antes da div
Antes er
diver são, a obrigação
ersão,
[ou Toda hora é hora, todo tempo é tempo]

Formaram-se Os Brasinhas e aí? Ficou-se a olhar para o tempo?


Qual o quê, como diz Chico Buarque. Banda formada, instrumentos à mão, era hora de 39
começar os ensaios, montar um repertório, tocar, se divertir. Não existia ainda na cabeça dos
rapazes d’Os Brasinhas a oportunidade de show onde figuraria a estréia dos mesmos, em José de
Freitas.“A intenção de fazer essa banda era de tocar assim em aniversários, sabe? Se apresentar
pra família, não tínhamos idéia de que mais tarde a banda iria ser muito solicitada”, esclarece
Chico Vasconcelos. Essa oportunidade não demoraria a chegar.
Das sessões de ensaio no fim de 66, à estréia em 67, pouco tempo se passou, coisa de
quatro meses, o suficiente apenas para se montar um repertório decente. Os ensaios, no entanto,
eram em horários alternativos, para se enquadrar na agenda apertada dos integrantes, que já
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

trabalhavam, com exceção de Paulo Vasconcelos, acadêmico de Odontologia naquele momento.


“Veja bem, eu me lembro de uma época que só eu estudava, fazia Odontologia na época. Eu
deveria ter uns 19 anos quando comecei a ensaiar e na época o Sidney não estudava, nem meu
irmão. O Getúlio era funcionário da Secretaria de Saúde, e o Ernesto não estudava, depois ele
veio a trabalhar no Tribunal [de Justiça]. Como eu não podia ensaiar nem pela manhã nem pela
tarde, durante o dia, todos os nossos ensaios nós marcávamos por volta das 18h. Eu me lembro
que saía da aula às 18h e ia direto para o ensaio. E nós ensaiávamos todos os dias. Você vê o
trabalho que deu, todos os dias até formar o repertório, depois que formou o repertório é que
nós marcamos o primeiro show, mas não um repertório pra baile, e sim um com umas 15 músi-
cas”, atesta Paulo.
Árduo início, os ensaios aconteciam na casa do baterista Sidney Castelo Branco, na rua Clo-
doaldo Freitas.A preparação era feita aos poucos, sem as facilidades das cifras de hoje. Muita coisa
era ‘tirada’ de ouvido, aprendida na raça, numa metodologia cruel. “Imagine que nessa época não
existiam cifras, nem internet, nem escola pra aprender a tocar, nem nada.Então, esses rapazes iam lá,
escutavam a música, aprendiam a tocar e ainda tinham que passar uns para os outros. Era um
processo muito lento”, elucida Geraldo Brito. E assim ia.“Tiramos dos LPs de Renato e Seus Blue
Caps, tudo de ouvido. Nós sentávamos e íamos ouvir uma música, ai íamos tirar ela. E mais outra e
assim você ia formando o repertório, mas todas elas captadas pelo ouvido. Nenhum tinha formação
musical, não sabia ler uma partitura, eram todas as músicas que você retirava, colocava pra ouvir o
LP e cada um retirava sua parte. O guitarrista tirava a dele, o vocalista a dele, ia anotando a letra, o
que o contrabaixo fazia, o que a guitarra solo fazia, cada um tirava sua parte depois juntava tudo, e
íamos ensaiar a música, ensaiávamos quantas vezes fosse preciso, vinte vezes, trinta vezes. Até a
40 música ficar no ponto pra você tocar. Eu sei que deu muito trabalho. Mas para você fazer um
repertório de um baile de 4 horas, o seu repertório no mínimo tem que ter umas 80 músicas. Pra
você chegar lá demandou muito trabalho na época”, arrisca Paulo Vasconcelos.
Mas para chegar a essa absurda quantidade de músicas no repertório, muitas noites foram
gastas. O início era mesmo mais modesto e os rapazes da Clodoaldo Freitas tinham 15 canções já
tinindo de prontas.As músicas selecionadas faziam parte do repertório comum às rádios locais, e
eram as que embalavam os pés, os quadris e as mentes dos jovens da época, mas mesmo assim não
caracterizava uma estrutura para baile ‘dançante’, como eram chamados na época.“Nosso repertó-
rio era para um show pequeno, uma apresentação simples, num era pra dança [...], lá quem quisesse
dançar podia dançar, mas não era uma estrutura para um baile”, lembra Paulo Vasconcelos.
A rotina de ensaios não parava, cumprindo sempre o cronograma proposto para uma
semana cheia.Antes de fazer os primeiros bailes, as primeiras festas, Os Brasinhas ralaram muito
para conseguir estabelecer um repertório que pudesse preencher o tempo de uma apresentação.
Até que finalmente o dia desta chegou. “A nossa primeira apresentação se realizou em José de
Freitas, aqui perto, o pessoal gostou muito, daí ficamos pra tocar no dia seguinte, fazer uma manhã
de sol em um clube de lá”, abre Chico Vasconcelos, para o complemento de Paulo:“Nós tocáva-
mos umas duas ou três músicas e parávamos, conversávamos mais um pouquinho, tocávamos
umas cinco músicas e o povo aproveitava pra dançar, e parávamos de novo. E por aí nós consegui-
mos fazer toda a matinê, a manhã de sol, mas com muito trabalho”.
Esse show que aconteceu em José de Freitas foi o pontapé na carreira d’Os Brasinhas
como artistas, já que até então eles eram virgens no palco. Nervosos e ansiosos para o início do
show, foi normal se sentir acuado antes de subir ao palco, mas essa retração não impediu o
sucesso da apresentação. A memória, no entanto, mais uma vez trai e esconde as lembranças, e
tudo se torna muito vago.“Foi uma apresentação no teatro, foi à noite, eu não me lembro a data
certa, e nós ficamos lá no teatro e todo mundo gostou da apresentação, e tinha assistindo ao
show o presidente do clube de José de Freitas, e contratou a gente pra fazer uma manhã de sol,
uma matinê, na manha seguinte, nós fizemos o show no sábado a noite, e ficamos pra fazer essa
matinê e nem tínhamos repertório para isso, porque é mais longo, mas nós fizemos assim mesmo.
Tocávamos uma seqüência de música, parávamos um pouquinho e conversávamos e repetíamos
tudo de novo porque não tínhamos repertório pra fazer”, admite Paulo.
Dada a largada em José de Freitas, a rotina de shows deslanchou para uma constante de
semanas cheias e eventos em seqüência.“E aí começou. Depois nós fomos a Pedro II, e foi quando
a Elvira Raulino, que também estava começando no rádio, deu uma força muito grande pra gente,
nos convidando para tocar no Jockey Clube, todas as quintas-feiras. Depois fomos convidados a
tocar as manhãs de sol”, esclarece Chico Vasconcelos.
A profissionalização já começava a bater na porta dos rapazes, que quase não tinham
tempo para se coçar, o que pode ter contribuído consideravelmente para a falta de produção
própria. “Passados uns seis meses de ensaios e pequenas apresentações, a agenda já estava
sempre lotada e aí muito solicitada. Para melhorarmos a banda, nós procuramos um grande
músico piauiense que já se foi, o Assis Davis, que inclusive hoje é homenageado no Piauí Pop, tem
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

um palco com o nome dele. E o Assis Davis tinha um amigo que tocava saxofone, o Pantchico, que
também não está mais com a gente. E aí nós reforçamos a banda, e ela se tornou profissional.... Era
muito contrato, aqui, no Maranhão, a gente andou quase o Maranhão todo... A gente não tinha
muito sossego porque de quinta feira até domingo a gente sempre tava tocando direto”, lembra
Chico. E a roda viva apenas começara.

42
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]
43
Os Brasinhas se apresentavam em diversos locais da
cidade de Teresina, indo do elitizado Clube dos Diários
até o popular Centro Recreativo Nossa Senhora do
Amparo (CRENSA).
Por entre brotos e brasas
bro
[ou Eu quero mesmo é isso aqui]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo Renato & seus Blue Caps – Ford de Bigode

Se o processo de aparecimento da Jovem Guarda foi fundamentado nas revistas e notícias que o
cinema trazia, e inspirava, além de um forte caráter comercial, aproveitando o aparecimento desse
novo público consumista, o jovem, aqui o surgimento do Iê Iê Iê foi fundamentado na identificação
com a música daqueles artistas nacionais do rádio e que já começavam a se apresentar pela
cidade, como o The Clevers, banda que surgiu em 1963 e durou até meados de 1967.
Essa comercialização do rock, no entanto, contaminou o ideário rock’n’roll deTeresina, mas
de maneira inocente. Enquanto no grande eixo Rio-São Paulo, tal associação do rock ao capital
era resultado de uma aposta nesse novo mercado, com incentivo de gravadoras e oportunismo de
artistas, que gravavam versões de clássicos internacionais, aqui parecia ser a única forma encon-
trada para quem quis se expressar.
Os precursores do rock em Teresina o conheceram como uma emulação do que acontecia
fora. Decidiram emular também.
Por mais que se queira duvidar, é preciso lembrar que os rapazes que começaram Os
Brasinhas não tinham formação musical nem incentivo comercial para uma produção própria. 45
Enquanto Cineas Santos explica a vertente de que o momento não abria espaço para uma produ-
ção autoral, Geraldo Brito corrobora a idéia lembrando que a técnica deles era muito escassa.
“Era todo um esforço para que esses rapazes conseguissem tirar uma música, ouviam várias
vezes, tentando imitar os acordes, até conseguirem a música completa.Aí era passar esse conhe-
cimento para o outro integrante da banda. Era um esforço muito grande. Diferente de hoje,
tempo em que já temos escolas de música pela cidade”, explica Geraldo Brito.
Cineas Santos, por sua vez,‘justifica’ que a não produtividade autoral foi uma coisa engolida
sem dó nem piedade dentro do turbilhão de novidades.“Todo mundo tocava versões, não havia
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

composições deles. Eu não me lembro se tinha, eu realmente não me lembro. Parece que Os
Metralhas tinham um compositor”, conta Cineas.
Independente disso, Os Brasinhas foram absolutos na cidade até 1968, ano do surgimento
d’Os Metralhas. E de 66 a 68, nada foi produzido. “Eu acho que isso aconteceu devido à pressa
mesmo, nem eles mesmos estavam preparados para aquilo. Foi uma coisa que aconteceu tão de
repente que eles precisavam aproveitar a onda, o momento, tinha que aproveitar aquilo, porque ia
passar. Eles tinham uma consciência que aquilo era muito rápido”, continua Cineas.
A brevidade com que o movimento se mostrava, a incerteza, e, principalmente, a fama,
atrapalharam a produção autoral da banda. “Aí pintava o lance das meninas, fã-clube, e tal. Não
havia muito tempo pra trabalhar musicalmente as canções, eram as versões feitas pelo Rossini
Pinto de música dos Beatles, quase sempre. Isso por que qualquer música dos Beatles era muito
bonita, tinha um apelo fácil e as melodias eram agradáveis. Eles cantavam também Roberto Carlos,
Erasmo Carlos, mas era um repertório feito de versões”, entrega o professor.
Essa ausência de produção própria, em estranha consonância com as bandas e artistas de
fora é lembrada com certo pesar por José Ernesto, que quase se arrepende de não ter composto
um material próprio.“É, eu acho que a gente deveria ter feito alguma música. Mas na época nem
pensávamos nisso”, diz, quase sorumbático. Essa idéia da falta de necessidade de uma música feita
por eles é confirmada e assinada embaixo por Paulo Vasconcelos, que pensa na época como um
tempo de diversão. “Os Brasinhas sempre foi uma banda cover, eu acho que nunca existiu na
banda um compositor. E não há nenhum arrependimento, tanto é que até hoje os Brasinhas
permanece sendo uma banda cover e tocando as músicas dos outros. Sempre foi e não acho que
emperra se for uma banda cover, tocando as músicas dos outros grupos musicais”, frisa Paulo.
46 Essa referência é fundamentada, principalmente, nas bandas nacionais de 1960 e 70, que
norteavam os trabalhos dos Brasinhas, até então banda unanimidade em Teresina.“Tocamos jun-
tos até 1972, aí nós encerramos a primeira formação da banda. De lá pra cá, nós voltamos no ano
2000 para lançar nosso livro e contar a história da banda, e ela permanece como cover até hoje,
e nunca houve uma composição própria da banda que nós pudéssemos colocar”, expõe Paulo,
confirmando tal fato com a certeza declarada de que, se alguém escutasse alguma música própria
durante os shows, o estranhamento seria total.“O pessoal ia estranhar, porque só conheciam a
gente como uma banda cover, talvez ia até parecer estranho tocar uma música e o pessoal nem
reconhecer, porque até hoje o pessoal só ouviu Os Brasinhas tocando músicas do Renato, dos

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Beatles”, fecha ele.
Mas memórias já vão traindo mesmo. Embora Paulo declare que não havia composições
autorais da banda, seu irmão, ChicoVasconcelos, garante que elas existiram.“O Assis Davis, guitar-
rista que fez parte da banda durante muito tempo, tinha algumas composições, talvez umas 3 ou
4, mas eram coisas que nunca saíram dos nossos ensaios. Devido a pouca estrutura da época, não
ficou nada registrado”, lembra ele. A justificativa, pelo menos, se confirma no estranhamento da
população para músicas próprias.“Seria complicado tocar esse material nosso. Éramos uma banda
só de covers, fundamentamos nossa carreira assim”, justifica ele.“Na época mesmo, a gente era
cover. A gente sempre procurava tocar mais as músicas do Renato e Seus Blue Caps, Roberto
Carlos, Os Fevers,The Jordans,Wanderléia... Mas nós tínhamos composições próprias, só que na
época não existia os recursos eletrônicos que hoje existem, e a gente não gravou”, constrói
ChicoVasconcelos.
E mesmo que esse material tenha sido composto e tenha sido um número expressivo de três
a quatro músicas, o bloqueio do público e do efeito comercial que isso teria era mais forte. Pergun-
tado se as músicas próprias compostas faziam parte do repertório, Chico responde com o corpo
todo que não,“de forma nenhuma, porque o que fazia sucesso mesmo na época era o cover. Nós
ficamos caracterizados pelo que hoje se chama banda comercial, uma banda de bailes”, define.
Não que a justificativa seja plausível ou necessária. Como já foi começado a ser dito em linhas
anteriores, não é exagero dizer que Os Brasinhas eram unanimidade por essas ermas terras. O
fenômeno da banda foi confirmado e consolidado principalmente pelo fato de não existirem outras
bandas do gênero Jovem Guarda na cidade.A constante citação dos entrevistados [quase todos] à
banda Barbosa Show Bossa deixa claro que a única ‘concorrente’ d’Os Brasinhas, na época de seu
surgimento, era uma banda teoricamente de bossa nova.Assim, a ausência de um material escrito 47
pelos próprios integrantes da banda se torna quase compreensível. Uma cidade longe da novidades,
com uma oferta de bailes e festas quase intermitente e com uma mentalidade relativamente fechada,
inventar de perder popularidade com música própria pra quê?
“O pessoal só conhecia Roberto Carlos, Erasmo, Wanderleia e se tivesse uma música
diferente o pessoal ia dizer:‘de quem é essa música aí, que eu não escutei nem no rádio, nem na
televisão?’ Então tinha que tocar músicas dos outros mesmo, músicas que tocavam nas emissoras
de rádio ou que o pessoal conseguia comprar nas lojas de disco que eram poucas aqui em
Teresina.Você só ouvia o rádio, então tinha que tocar aquilo ali”, encerra Paulo.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

Outro problemas indicado pelo músico e pesquisador Geraldo Brito, é que a falta de conhe-
cimento técnico dificultava qualquer pretensão de composição própria.“A coisa de não ter escola
aqui também, esse negócio dificultava muito as coisas por que eles iam ouvir aquelas músicas,
aprendendo tudo sozinho, no ouvido. Quem tinha um bom ouvido aprendia, pegava, passava pros
outros, o cara ainda ia ter o trabalho de passar pros outros”, esclarece o pesquisador.
Assim, havia, além da fuga do estranhamento da platéia, uma certa impossibilidade técnica
por parte dos artistas, que se limitavam quase que somente aos próprios Brasinhas.
“Hoje em dia se o cara vai pra uma escolinha de música, toca aqui e já está tocando algumas
coisas, daqui a seis meses já está legal, já junta com outros amigos já resolve fazer umas músicas.
Naquele tempo não. Era difícil. Porra, eu me lembro que pra pegar essas músicas, eu colocava,
tinha uma rotação 16, eu botava por que tocava bem lento.Tinha a introdução de uma música do
Roberto Carlos que era um bend [movimento vertical feito com a corda da guitarra para conse-
guir um som diferente do natural]. Hoje, eu faço é sorrir ouvindo essa música. O cara fazia e eu
não conseguia pegar aquele negócio e fui botar no disco e tal, então a gente perdia muito tempo”,
confessa Geraldo. E tempo era artigo em falta na promoção de todo dia. Os Brasinhas mal tinham
tempo para respirar, tamanha a agenda de shows e apresentações.

A tterra
erra do Sol contra a música do diabo
[ou ‘Como Teresina luta contra as artes’]

“O nome da rainha, altivo e nobre, realça a faceirice nordestina na graça jovial que te recobre.
48 Teresa, eternizada TERESINA!”.Assim é cantada uma das estrofes do hino da capital do Piauí, que
tem letra de Cineas Santos. E mesmo com a ‘graça jovial que te recobre’,Teresina sempre foi uma
terra fechada a novidades. A chegada do rock trouxe junto com ela reações das mais adversas.
Para os jovens, aquela sensação do momento era a febre que não poderia deixar de ser seguida à
risca. Para os mais velhos, era uma degeneração, uma coisa esdrúxula, numa quase xenofobia.
Dizem que o teresinense é um povo que estuda bastante, e não é de hoje. Já no tempo em
que o rock rasgou o manto da época, existia um preconceito contra aqueles que se dedicavam à
musica, sendo todos eles alcunhados de perdidos ou homossexuais. Os cabeludos eram perdidos,
as moças de mini-saia eram perdidas, os músicos eram perdidos, os que iam aos shows dos

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


músicos eram igualmente perdidos. Um olhar dissociado do rancor advindo do preconceito dessa
época nos faz ver que há mais por trás disso do que uma simples e pretensa vontade de parar as
mudanças e castrar o movimento artístico.
Lembremos que na Teresina de 1966, pouco do que é hoje dessa cidade já estava aqui
presente. A zona leste já era quase fora dos limites da cidade. Não que a cidade não quisesse
crescer. Ela só não sabia como crescer, como aceitar essas novidades tão diferentes dos valores
até então certos à sua população.
Mesmo assim, ainda há um ranço nessa história, originado justamente nessa lentidão em
aceitar e renegar o novo. MarcoVilarinho novamente lembra como a época era cruel com os que
ambicionavam serem artistas.“[Tudo] era muito mal visto. Era até uma questão da arte em geral:
pintores eram mal vistos; as mães colocavam as filhas na escolinha de balé, mas só era aquela
brincadeirinha, quando completavam 13 anos, 12 anos, normalmente tiravam das escolas, elas
mesmas não queriam porque achavam que vida de artista era muito mal vista”, explica ele.
Esse desejo em renegar o processo criativo e artístico, que não era incentivado nem apoi-
ado, ainda originava um preconceito social e uma estigmatização social injustificada e preconcei-
tuosa em sua gênese. “Tudo que se falava em arte era mal visto. Se alguém dizia ‘ah, quero ser
artista’ a resposta era ‘você não está nem doido, vá estudar para ser gente, artista não é gente’. Eu
cansei de ouvir isso. Eu lembro que na época, 69, 70, teve o Festival Internacional da Canção [...]
e eu lembro que meu deu uma vontade imensa de cantar [...], e eu lembro que meus pais diziam:
‘Não, meu filho, não tem nada a ver, isso aí, olhe, você não tem nada a ver com esse meio, você tem
uma certa educação, isso é pra esse povo muito baixo’. Eles diziam claramente que artista, arte,
era pra gente muito baixa”. E esse tipo de declaração não era algo apenas dito e percebido por
Marco Vilarinho dentro de sua família. 49
As roupas extravagantes, que chocavam a sociedade,
abriam os olhos para quem estava esperto às
mudanças vindouras.
Dentro da banda, dois exemplos diferentes dessa postura contrária à carreira de música
em detrimento da moral e dos bons costumes podem ser percebidos. Único estudante da banda,
PauloVasconcelos levava seus livros para estudar durante as viagens ao interior que Os Brasinhas
faziam.“Na época que eu estudava, em todos esses compromissos que nós íamos viajar, eu levava
meus livros, porque eu tinha que estudar, porque quando chegava o domingo à noite, na segunda
eu já tinha uma prova pra fazer, eu vivi muito pouco aquela época de banda”, lembra ele.
Valorizando também uma outra carreira que poderia dar segurança após o sucesso ir, Paulo
sacrificava uma integração maior com o público antes e depois dos shows. “Eu me lembro que,

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


quando eu chegava ao hotel no interior, o pessoal saía pra conversar, pra brincar e tudo, mas eu
ficava no hotel estudando. Eu me lembro que tinha uma prova na segunda feira pra fazer, então era
um escravo não só do estudo, mas como também da música.Tinha que fazer bem o curso”, conta
ele. Foi assim durante todo o seu curso de Odontologia, mesclando estudo e música.
Nesse grande ritmo de shows, o próprio Paulo elegeu os shows mais importante da carrei-
ra d’Os Brasinhas, o mais marcante.“Foi o que fizemos no Lindolfo Monteiro. Nós fizemos o show
pra acompanhar o Wanderley Cardoso, o show feito lá no campo de futebol, estava completa-
mente lotado, foi uma coisa que marcou a gente também, foi esse show pra acompanhar o Wan-
derley Cardoso, e teve outros também com o Jerry Adriani, com o Martinho da Vila. Outro show
também que marcou pra gente, foi um show no Theatro 4 de Setembro, que foi pra acompanhar
esse cantor, o José Roberto. O José Roberto também fez parte da Jovem Guarda, deixou também
muitas recordações pra gente, em função do público, da lotação do teatro. Lá estava mais ou
menos parecido com o show dos The Clevers, esse também marcou muito”, conta ele.
Estranhos no ninho de uma sociedade católica apostólica romana praticante, o preconceito
ficava limitado a esses ataques dos mais ardorosos defensores da moral e dos bons costumes.
Dentro da classe artística quase não havia problema.“Era o lance dos cabeludos, mas num existia
muito isso não, tinha alguns comentários, mas nada relevante. Não tinha rivalidade, na época todo
mundo se aceitava bem.As pessoas foram aceitando, aceitando até se conformarem com aquilo
que nós fazíamos na época. Existia espaço pra todo mundo, embora Teresina naquela época fosse
uma cidade pequena, com poucos clubes, mas tinha espaço pra todo mundo. Depois vieram os
Metralhas, e outras bandas que nem me lembro o nome, nós tivemos várias bandas, foram acom-
panhando a Jovem Guarda e acabaram também”, explica Paulo.
Mas assim como todos os processos sociais, desde os de extrema paz e acachapantes, até 51
os violentos e autoritários, nos deixam alguma coisa, a Jovem Guarda também deixou. Extrema-
mente acachapante e até violento na sua forma de implantar da noite para o dia uma nova ordem
de valores, a Jovem Guarda tem sua página de contribuição social do Brasil, e de Teresina.
Cidade fechada a novidades, a Jovem Guarda foi o estopim para a destruição gradativa de
tudo que era ‘careta’ em Teresina, mora? “[A Jovem Guarda] contribuiu para incentivar as pessoas
a tocarem um instrumento musical, porque naquela época era muito difícil se ver um jovem
tocando um instrumento. Inclusive, quando um jovem naquela época (como eu), tocavam um
violão, os mais velhos já colocavam um apelido de que a gente era degenerado, de que bebia e não
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

queria nada com estudo...Muito diferente de hoje que todo jovem já vai pra uma escola de música,
todo jovem hoje toca um instrumento com a maior facilidade.Não, naquela época era muito difícil
um jovem tocar um instrumento, e quando tocava, recebia esse preconceito”, rememora Francis-
co Vasconcelos.
Esse preconceito, citado na fala de Vasconcelos, tem, pelo menos para ele uma explicação
plausível.“A Jovem Guarda foi um movimento revolucionário, e aí os pais temiam que as pessoas
que se envolviam com esse movimento deixassem o estudo. O que não acontecia. Porque o meu
irmão, Paulo, se formou em Odontologia, passou em primeiro lugar, foi o primeiro da turma,
tocando nos Brasinhas. Isso não impedia não, quando um jovem queria estudar, não tinha nada
haver”, garante. Por conseguinte, é preciso afirmar que o fato das famílias dos componentes d’Os
Brasinhas serem tão ‘diferentes’ das outras famílias, permitindo a degeneração divulgada de seus
filho, se deve a um envolvimento com a arte também.
Durante a entrevista com Marco Vilarinho, na sala de reunião de Jornal O Dia, onde ele é
editor do caderno de cultura Torquato e repórter e editor do caderno de comportamento Me-
trópole, ele muito falou sobre esse preconceito e ressalvas que as famílias faziam para os seus em
relação a nenhum envolvimento com os músicos, orientação essa que ele mesmo recebeu. O
preconceito queVilarinho cita, no entanto, tem outra origem, também. Segundo ele, a cara fechada
que se tinha contra os músicos “era porque muita gente naquele tempo, praticamente, que ficou
lá pelo mundo artístico eram pessoas de poucas posses, eram pessoas que não tinham muito. Elas
eram vistas na sociedade como pessoas que não tinham educação, que não tinham berço e que
não tinham dinheiro. Então eles faziam aquilo porque era um meio de ganhar dinheiro, mas eles
eram super mal vistos. Os pais deles levavam porque também não tinham nenhuma formação,
52 para os olhos da sociedade. Mas um pai que tinha um certo nome na sociedade, uma certa
profissão jamais levaria um filho dele, jamais admitiria que um filho dele participasse de um movi-
mento musical”, diz ele, pisando em ovos, cuidado necessário para ser fiel ao que acontecia na
época e não parecer mais um preconceituoso.
E se a questão era ganhar dinheiro, ninguém poderia dizer que eles estavam indo mal. Com
uma rotina de shows avassaladora durante o período áureo (de 66 a 68), Os Brasinhas eram bem
pagos pelo que eles faziam.“Os cachês eram excelentes, nós éramos muito valorizados, tínhamos
contratos muito bons, que compensavam essa parte financeira para todos nós. Nossa agenda era
lotada, não só aqui em Teresina, mas também no interior e em uma boa parte do Maranhão. Nós

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


viajávamos muito, bastante. Depois, com o certo tempo, nós passamos há ter um empresário
profissional, o Raimundo Magalhães, ele ajudou nisso aí, e o Sidney ficou só tocando mesmo, e
passou essa parte aí só pra o Magalhães, um empresário mesmo profissional. Foi então que a
banda passou a ser requisitada demais, proporcionalmente. E o Raimundo Magalhães ainda hoje é
empresário. Ele começou a organizar a banda do ponto de vista administrativo mesmo, de legali-
zar a banda como empresa, registrar a banda na Ordem dos Músicos e ter realmente uma direção
administrativa, com agenda e com tudo registrado. Ele administrou a banda até o final de 72
quando a gente encerrou as atividades”, estima Paulo Vasconcelos.
Mesmo assim, Marco Vilarinho explica que as famílias pretendiam até apoiar as artes, mas
dentro de casa, num espaço limitado. “Podia comprar até um violão, mas era só aquela festinha
com poucos amigos, aquela brincadeirinha. Nada profissionalmente, nada de cantar em palco.
Todos [que tocavam em palco] eram mal vistos e todos vinham de camadas menos favorecidas.
Grosseiramente, o termo que se usava naquele tempo era que todos vinham de baixo. Todos
vinham de um nível inferior e eram aplaudidos nos palcos e tudo, mas fora deles pouca gente
queria aproximação fora dos palcos, não queriam aproximação”, expõe.
Essa sucesso do movimento na época, embora mascarado pelo falatório, fez nascer uma
certa badalação, que incentivou a participação desses jovens e de seus pais. “A diferença vinha
porque a maioria dos pais dos músicos eram músicos. Eles tocavam instrumentos musicais e
passaram a incentivar porque se sentiam orgulhosos de ver os filhos fazendo parte de um movi-
mento que era muito badalado na cidade. Então, não tinha, por parte dos pais de nenhum dos
componentes dos Brasinhas, nenhum tipo de resistência”, contrapõe Francisco Vasconcelos. Esse
apoio era algo efêmero e válido apenas no raio de visão dos pais desses rapazes. No resto da
cidade, o que se confirmava era o preconceito contra a Jovem Guarda, e outras expressões 53
artísticas, citado por Vilarinho. “Elas [manifestações artísticas] ficavam à margem, ninguém da
chamada boa família sequer cogitava de ter um filho ou uma filha que participasse de um grupo de
teatro, participasse de um grupo musical. Por exemplo, eu não cheguei a conviver de forma alguma
com o Torquato Neto, porque existia uma barreira imensa, entre o pensamento das pessoas da
minha família, da minha classe social. A gente não era rico, mas a gente tinha aquela educação
tradicional, embora não tivesse dinheiro, mas tinha educação tradicional. E essa educação tradici-
onal era uma barreira imensa para o novo. Eu jamais tive qualquer contato com o Torquato Neto,
com o Geraldo Brito, com o Durvalino Couto...a gente sabia que eles existiam, podia passar por
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

eles mas a gente nem encostava, passava por longe, por que eles eram tidos como maconheiros,
como pessoas transgressoras desse comportamento sexual, essa coisa toda. Então eles eram mal
vistos mesmo, eram tidos como pessoas assim que não valiam a pena. Se você se aproximasse de
pessoas que viviam no meio musical, é como se você fosse caindo, caindo, caindo... e ninguém lhe
valorizava mais na sociedade“.
Mesmo com os problemas dentro de casa para assumir que gostava da tal Jovem Guarda e
seus representantes patrícios, os jovens da época ousavam. Os Brasinhas gozavam de um privilé-
gio que era um fã-clube, o acompanhando aos shows e outros eventos.“Eu lembro que quando a
banda ia tocar, nós saiamos do centro de Teresina e íamos lá pro Poty velho, por exemplo, o
pessoal saía com a gente acompanhando até chegar lá. Se você ia na zona Norte, Sul e Leste você
sempre ia encontrar as mesmas pessoas, o fã-clube. As caras eram praticamente as mesmas,
sempre chegavam nas nossas festas. O pessoal gostava mesmo, adorava, fazia questão de acompa-
nhar e seguir, a partir daí surgiu o fã-clube dos Brasinhas, não era um fã-clube, que nem existe hoje
todo documentado, o fã-clube era só pra acompanhar mesmo, eles adoravam acompanhar e
conversar com a gente antes e depois da festa, era uma amizade. Na época não existia essa
violência que você tem hoje, você podia fazer uma festa lá no Poty Velho e todo mundo ia, pra se
divertir e dançar, o pessoal ia pra lá mesmo era pra ouvir a música porque gostava mesmo da
música, pra dançar, pra conversar com a gente, fazer esse tipo de coisa”, elucida.
A despeito da própria história de vitórias e sucessos imediatos, Os Brasinhas tiveram que
engolir a não concordância dos pais em permitirem seus filhos em tal tipo de espetáculo. Nas
palavras de Francisco Vasconcelos, ex-guitarrista da banda, não eram poucos os casos das amigas
e fãs que queriam ir aos shows e era proibidas. “Os pais eram sempre contra porque aí já se
54 começavam a usar aquelas roupas extravagantes, as meninas com aquelas mini-saias, e realmente
os pais proibiam. Eu tinha relato de amigas que diziam ‘olha, eu não vou ao show de vocês porque
o papai não deixa, o show vai até tarde’, e naquela época nove da noite as mocinhas já estavam em
casa, as mocinhas não podiam sair...”, confidencia Chico.
A testa franzida, o corpo contra a luz de uma manhã de julho, mês de ventos fortes em
Teresina, a janela aberta e uns seis gatos espalhados pela sala ajudavam Chico Vasconcelos a
lembrar detalhes dessa época. É engraçado perceber que a importância que esses garotos tive-
ram na história do rock teresinense já vai se esvaindo na memória, se perdendo, embora a menor
referência já seja suficiente para que todas as cores se reavivem e voltem a ser e mostrar tudo

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


como era nessa época. “Então, realmente foi difícil, mas a resistência foi sendo quebrada aos
poucos e era um show mesmo, foi bacana!”, finalmente conclui Chico.
O preconceito era estendido não só à música, mas também ao vestuário, linguagem e
outras manifestações. “Essa coisa contra o cabeludo, ainda hoje existe. ‘Pô, vai cortar o cabelo,
vagabundo!’.Ainda hoje tem isso, imagina no fim dos anos 60 e 70. Era provincianismo mesmo, e
as pessoas são preconceituosas e elas reagem, qualquer novidade, qualquer coisa estranha que
pinte no pedaço, a tendência é uma reação e essa reação podia ser violenta, chegou a ser violen-
ta”, explica Cineas.“Mas as pessoas acabaram acostumando e a coisa pegou.Teresina hoje é uma
cidade muito permeável a mudanças”. E com essas mudanças, novos caminhos começaram a ser
abertos.
A despeito disso tudo, no entanto, a arte ia sendo feita. Cineas Santos lembra que além
dos carros e mulheres em abundância encontrados em Teresina, o que mais lhe chamou aten-
ção assim que ele pôs os pés aqui e se acostumou com a rotina teresinense, foi a efervescência
cultural.“O Ari Sherlok [radialista da época] era um agito, o Santana Silva fazia teatro, o grupo
do Tarcísio Prado, o teatro estudantil com Gomes Campos, havia muitas opções culturais. A
cidade era pobre, mas havia uma certa efervescência cultural.Tinha um cara aqui, um escritor,
chamado Castro Aguiar, hoje morador do Rio de Janeiro, que escreveu dois romances, que todo
teresinense da minha época leu. ‘Adolescente de Rua’ e ‘Caminhos de Perdição’. Todo mundo
leu isso, hoje não tem mais em Teresina.Você não tem mais um escritor teresinense que seja
lido por todo mundo, ninguém nem lê ninguém. Esse cara, o Castro Aguiar, todo mundo leu. Isso
era uma coisa fantástica!”, empolga-se Cineas. Essa empolgação perdurava em outras áreas, e a
efervescente cultura em Teresina ia se chegando e tomando canto por canto para si, juntando
tudo para a cultura.Além do teatro, da literatura e da música, existia ainda o rádio.“O Arimatéia 55
Tito fazia programas na Rádio Clube, Difusora, sei lá o que, e também tinha uma audiência
enorme. Aqui se fazia novela de rádio, o Rodrigues Filho escrevia novela, com personagens
daqui e coisas locais”, relembra ele.
A capacidade teresinense de tolher novidades e arte em geral ia se propagando de casa em
casa, como numa espécie de comoção geral. Pelo menos é essa a impressão que se tem das
declarações dos entrevistados. Corroboram a impressão de Cineas as palavras deVilarinho. Con-
ta ele, que certa feita, uma moça inventou de ir ao Jockey Club do Piauí de mini-saia. Resultado?
“O coronel Júlio Castelo Branco jogou ela da escadaria do Jockey Clube para o meio da rua.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

Disse que ela não podia entrar no clube. Eu lembro bem porque era um show de Jovem Guarda.
Ela foi literalmente jogada no meio do asfalto, pelo presidente do clube”.Alguém aí arriscaria usar
uma roupa mais extravagante?
Sim, houve quem teve coragem. Os Brasinhas, por exemplo. Para grande mal à paz dos pais
de Teresina, e seus filhos ‘de bem’, eles começaram a usar peças mais tresloucadas e desafiantes,
provocando ira e paixão, por onde passavam. O trecho pode parecer exagerado, mas a amplitude
d’Os Brasinhas, na época, era exatamente essa. Eles eram adorados pela população jovem e
odiados pelos responsáveis do futuro da nação.“Qualquer moça que fosse vista namorando um,
ou dançava muito tempo na festa com um deles, ela ficava mal vista, ficava falada...Tinha uma que
era uma fã ardorosa dos Brasinhas, chegaram até a jogar milho nos pés dela na praça Pedro II,
chamando ela de galinha. Outra delas era muito bonita e era fã desse pessoal e foi ao show deles
no Jockey Clube...como ela era falada, diziam que ela era rapariga. Mas não tinha nada demais,
simplesmente porque era mais popular”.There’s no free dinner... Nunca houve, nem nunca haverá.
O imaginário dos pais é que muito se perderia na formação dessas suas jóias prontas para o
consumo e o convívio em sociedade pacata e sobrevivente.
Para a juventude da época, no entanto, tais atitudes criavam uma identificação que levava a
uma transgressão de valores e uma capacitação de um enfrentamento mais direto com as resis-
tências dos pais. Durante esse período de Jovem Guarda, Cineas Santos viveu na Casa do Estu-
dante, e sentia isso na pele.“Havia uma efervescência cultural bastante boa. Era bom. Era alegre. E
isso ajudava a viver. Morava aqui na União Piauiense dos Estudantes Secundaristas, passava uma
fome arretada, mas cantava o tempo inteiro. Nós tínhamos três violões lá”, exclama ele, rememo-
rando, hoje em condições bem melhores, aqueles dias de dificuldade e complemento pela música.
56 “Morávamos 80 pessoas numa casa que cabiam 20, não tinha água, não tinha um banheiro, mas a
gente cantava. Eu acho que é como aquela canção,‘cantar é um jeito de não morrer’”, explica.
E ali nascia um caminho que levaria a abertura de novas possibilidades para as gerações
vindouras.

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


57
A formação clássica d´Os
Brasinhas começou a se
fragmentar em 68. Percebe-se
que aqui, José Ernesto já não
faz mais parte do grupo. Essa
foi a primeira de várias
mudanças.
O Início do Fim
[ou A morte anunciada de um Sonho]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo: Roberto Carlos – Namoradinha de um Amigo Meu

As gerações vindouras citadas no fim do capítulo anterior ainda teriam a sua vez.A vez continuava
com Os Brasinhas, senhores de tudo e de todos. As poucas referências históricas na imprensa,
não passando de algumas poucas notas no colunismo social feito na cidade na época, era reflexo
da inexistência dos cadernos que tratariam especificamente de cultura nos jornais locais, fato que
só aconteceu em meados da década de 70.
Assim, o sonho só começou a ser possível de ser sonhado por outras pessoas quando os
rapazes influenciados pel’Os Brasinhas começaram a colocar as asas para fora das garagens, salas
e outros estúdios improvisados.
As citações mais clássicas, mas que não se comparam em expressão ao que a primeira
banda de rock da cidade representava, são Os Cartolas,The Dandies, Os Lords, Os Fantasmas,
The Shammers,The Tangarás, Zé e Seus Quatro Ases, mas nenhum conseguiu atingir a populari-
dade d’Os Brasinhas. Nenhum, com exceção de Os Metralhas.
Essa banda, formada depois da saída de Paulo Vasconcelos e José Ernesto de Os Brasinhas,
contava com os já acima citados e com Paulo Chaves, Fernando Chaves, Mario Lúcio na bateria e 59
Rubito, que tocava o contrabaixo.“Eu saí uma semana antes do show de estréia. Eu me desentendi
e saí. Discuti com o Rubito, e naquela época, a gente era muito jovem, tinha o sangue esquentado,
aí eu saí da banda e entrou o Fernando Chaves, irmão do Paulo Chaves.Aí eles fizeram um show
muito bonito em frente a Útil-lar”, recorda Paulo Vasconcelos.
Nessa formação, a banda estreou na fachada da Loja Útil-lar, propriedade de Aerton Fer-
nandes, grande incentivador da cena roqueira da época e promotor de vários shows nacionais,
como Roberto Carlos,Wanderleia e o pontapé,The Clevers, e intencionava conseguir o mesmo
prestígio que Os Brasinhas, embora isso fosse quase impossível.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

“Os Metralhas chegaram a fazer um sucesso relativo, era um concorrente à altura d’Os
Brasinhas, mas com um som mais pesado, diferente, mas realmente era a banda concorrente
mesmo d’Os Brasinhas”, explica o Vasconcelos mais velho. Essa falta de prestígio para as outras
bandas que tanto se esforçavam para fazer um trabalho de relativa qualidade era bem presente na
época, e para Francisco Vasconcelos, está baseado no gosto dos jovens.“[Além d’Os Brasinhas...]
tinha um conjunto muito bom que tocava no Clube dos Diários, o Barbosa Show Bossa. Depois
teve uma outra banda, o Sambrasa, e outros muito bons... Mas essa banda também era muito
requisitada, mas era mais para o pessoal de idade. Para os jovens mesmo eram Os Brasinhas e os
Metralhas. Não existia mais nada na época, não”, decreta Chico.
Esse decreto é corroborado com o currículo que Os Brasinhas passou a construir com o
tempo, tanto abrindo shows de artistas de grande renome, como acompanhando esses artistas no
palco. “Nós tocamos com o Jerry Adriani no estádio Lindolfo Monteiro, e com Silvio Aguiar.
Depois o Jerry Adriani voltou, e nós fizemos um show no SESC com ele,Wanderley Cardoso. Era
um privilégio muito grande, porque eram os nossos ídolos da época, e a gente se sentia maravilha-
do em estar com eles, dividindo um show. Era bacana, muito bacana mesmo”, garante Chico. E
embora muitas coisas possam ser ditas, Os Brasinhas foi um grupo que pareceu valorizar bastante
seu público.Ao menos é o que garante a fala do mesmo Chico Vasconcelos.
Indago o que o marcou mais na sua passagem pel’Os Brasinhas. Sem pestanejar ou esperar
muito tempo, ele responde com firmeza.“As amizades... as amizades do grupo, os ensaios que a
gente fazia, as fãs... A gente ensaiava na casa do Sidney, ali na Rua Clodoaldo Freitas, e quando a
gente chegava pra ensaiar, a copa da casa dele já tava lotada de fãs, e as meninas sempre querendo
conversar com a gente. Pra nós, era uma surpresa, porque a gente não tinha idéia da dimensão
60 que era tudo aquilo ali. Então, isso traz muita saudade pra gente”.
Depois de participar de dois projetos, de viajar com Os Brasinhas por grande parte das
cidades do interior do estado e por estados vizinhos, como Maranhão e Ceará, sendo a banda
mais disputadas por essas localidades, com fãs, que juntamente com os gritos, foram importantes
para a quebra do preconceito existente contra os cabelos grandes que as moças puxavam, depois
de muito preconceito, Chico Vasconcelos ainda fundou mais uma banda, que entrou nas referên-
cias no início desse capítulo. Como já foi dito mais acima, além de Brasinhas e Metralhas, não havia
espaço para mais seu ninga.
“Os Lords era na mesma linha dos Brasinhas, só que naquela época o nome mesmo era

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Brasinhas e Metralhas, então Os Lords fez pouco sucesso. As outras duas bandas eram mais
requisitadas, eram conjuntos de maior nome... E o pessoal que começou comigo nOs Lords não
eram conhecidos, eram pessoas que estavam começando. E o certo é que Os Lords não fez o
sucesso que fazia Os Metralhas e Os Brasinhas, não...”, lembra, fugazmente, Chico Vasconcelos.

E dando os trâmites por ffindos


trâmites indos
[ou Há a perspectiva do fim]

Estórias à parte, relevâncias e sucessos à parte, o que fica marcado ao se perceber tudo isso é que
a história do rock teresinense pode ter tido vários colaboradores, mas teve mesmo como epicen-
tro Os Brasinhas e, já em menor grau, Os Metralhas.
Por isso, pode-se dizer que a primeira fase do rock teresinense se encerra em consonância
com o declínio da Jovem Guarda. Os grupos foram acabando, mudando de formação e, em 1972,
depois da primeira mudança em 68, Os Brasinhas já não eram mais quase nada do que foram no
início de sua carreira, crescidos, amadurecidos e com uma formação totalmente nova, que contava
com a cantora Lena Rios, a Barradinha; com o tecladista Donizete; o sanfonista Orion; o guitarris-
ta Jimmy; Mário Lúcio e Renato Piau também nas guitarras, dentre muitos outros nomes que se
perderam na história.
Mas como dizem muitos por aí, tudo que sobe tem que descer, tudo que começa um dia
acaba, ou nas palavras do próprio John Lennon:“The dream is over”.
E o sonho tinha acabado mesmo.A entrada em declínio dos Brasinhas se transforma num
galope de desce ladeira, e era chegada a hora, a fatídica hora de dizer adeus. Drama? Não.“Nós 61
Se não estava na foto passada, José Ernesto aparece
nessa, registro da primeira apresentação
d´Os Metralhas, em 1968.
acabamos a banda ainda no auge da Jovem Guarda, eu continuo ouvindo e fazendo a Jovem
Guarda, nem penso em mudar meu estilo musical, eu diria que todo grupo irá permanecer na
Jovem Guarda. Acho que nossa morte vai ser prestigiando, ouvindo, adorando, fazendo a Jovem
Guarda. Na época nós já tínhamos novos componentes, houve uma dissidência. Nós chamamos
outras pessoas, e aí vieram alguns estudantes da época pra compor Os Brasinhas, então o que
mais tinha eram estudantes por volta de 70 e 71 e outros colegas que já estudaram, e eu me
lembro que em 72 acabou justamente por isso, cada um queria seguir seu caminho, eu já estava
me formando em Odontologia, eu tinha um colega que tocava na banda, o Mário Lúcio, ele era

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


estudante, junto com o Donizete, e eles foram para o Rio estudar, concluir os estudos. Foi por
isso que acabou, foi uma época certa de acabar”, fala Paulo Vasconcelos, naturalmente.
Mais de 30 anos depois, já não se sabe se é preciso ressentimento, dor ou chateação por
algo tão interessante ter acabado. Para Paulo Vasconcelos, muito provavelmente não. É certo que
os anos já calejaram bastante esse professor universitário e dentista renomado, e talvez por isso
ele possa dizer de forma tão singela que tudo acabara.“Foi o momento de encarar o lado profis-
sional mesmo, eu acredito que não mais do lado da música. O sonho acabou, tanto é que, todo
mundo estava pensando em sua vida, não mais no lado musical, mas nós tínhamos que assumir
nosso lado profissional, eu como odontólogo, tinha que deixar mais de lado a música. A música
envolve muito o individuo, tem que ensaiar, e eu não tinha mais tempo pra ensaiar, precisava de um
tempo para minha profissão. Larguei por isso, não só eu, mas como os outros que aproveitaram a
época. O Ernesto já não estava mais no Brasinhas, então na época, quem fazia parte dos Brasinhas
era: Eu, Sidney, Donizete, Renato e o Mário Lúcio, esses eram os componentes da época. O sonho
acabou e agora voltou de novo, não morreu, vai continuar eu não sei até quando”, pondera.
A volta do sonho a que Paulo se refere tem a ver com o retorno d’Os Brasinhas, em 2002,
para o lançamento de um livro, ‘O Sonho não acabou...’, que conta a história da banda e para
alguns shows, que vêm ocorrendo em clubes, restaurantes e churrascarias de Teresina.
Mas não foi só PauloVasconcelos que sentiu com o término da banda. Seu irmão, Francisco
Vasconcelos, também lembra bem desse declínio para o fim, mas com outras cores.
Ainda na entrevista na sua casa, na sala, sentados em móveis de madeira, gastos, mas ainda
vistosos, vendo numa prateleira uma foto de Os Brasinhas tirada quando do retorno da banda,
pergunto a ele como foi perceber que o sonho estava chegando ao fim.A primeira coisa que saiu
da boca de Chico foi um suspiro, antes dele declarar que foi algo “terrível”.“Terrível porque foi 63
uma época maravilhosa das nossas vidas e a gente não consegue apagar, a gente não esquece de
forma nenhuma, a gente tem a lembrança sempre viva”, garante ele. Insisto na pergunta, numa
tentativa de acabar com a minha dúvida de que aquele homem sentira mais do que apenas uma
saudade instantânea. Corto o raciocínio dele e engato uma outra pergunta.“Mas como era perce-
ber que tinha tanto sucesso e agora a situação estava mudando?”. Mais uma vez pensativo e
macambúzio, como se tocasse num assunto assim periclitante, ele respondeu de forma sincera.“É
aquele negócio, né? Tudo o que começa tem meio e fim...A gente sentia bastante porque a gente
estava se afastando dos amigos, e tava fugindo aquilo que a gente tinha nas mãos, e a gente sentiu
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

bastante. Depois que a banda acabou, nós sempre nos reuníamos na casa de um ou de outro pra
fazer uma brincadeira, e a gente sempre comentava os tempos bons que nós passamos juntos,
mas a gente nunca perdeu o contato. A gente era assim como, era não, é como uma família. A
gente sempre estava junto, brincando, tocando um violão, lembrando. Só que a gente não tinha
nada assim guardado em fitas, nada gravado, porque foi um negócio assim tão rápido que a gente
nem percebeu isso e a gente não deixou assim quase que nada, da época, gravado”, recorda ele.
É preciso dizer, todavia, que o retorno da banda para o lançamento do livro foi feito de
grande repercussão na cidade, tanto que o número de shows aumentou. “Nós nos reunimos
novamente, para fazer um lançamento de um livro. E a intenção era só essa, nós fizemos um
repertório só para a uma apresentação de 20 músicas. Mas parece que a coisa se repetiu na frase
‘o sonho não acabou’. Então, as pessoas, os amigos diziam ‘rapaz, não vamos acabar com a banda,
vamos fazer alguns bailes?’, e nós reforçamos o repertório e, por incrível que pareça, o sucesso foi
quase o mesmo.A coisa pesou tanto que a gente já não tinha mais tempo pra fazer outra coisa, a
não ser os bailes que a gente vinha fazendo”, lembra Chico Vasconcelos.
No meio disso tudo, do fim, das reuniões, das lembranças, brincadeiras, um fato tirou um
pouco da alegria da época. Assassinado no dia 21 de dezembro de 1981, o grande parceiro de
banda, músico genial e gênio indomável,Assis morreu depois de uma festa no Bairro Prainha, e a
suspeita que as pessoas que viviam próximo a ele têm é que tenha sido um crime passional.“Foi
um golpe terrível, inclusive, no velório dele e no enterro, a banda toda estava presente. Foi um
golpe muito grande, porque ele era um grande amigo nosso. Um cara espetacular”, emociona-se
Chico Vasconcelos, que depois do declínio e término d’Os Brasinhas continuou na carreira de
músico até hoje, com a volta da banda.“Eu quase não parei depois que eu saí dos Brasinhas, dos
64 Metralhas, de 68 pra 69 eu ainda fundei a banda ‘Os Lords’. E aí, quando chegou 72, a Jovem
Guarda já tava perdendo a força... Eu passei a tocar na noite, voltei aos ritmos antigos, tocava
bossa-nova, bolero... e não parei, não cheguei a parar, não. Parava assim um ano, um ano e meio,
mas não resistia... Eu sempre gostei de tocar e eu toquei, e até hoje eu toco”, expõe Chico. E
assim, cada caminho foi seguido por cada um da banda. José Ernesto continua sendo funcionário
público estadual do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí; Paulo Vasconcelos ainda é cirurgião
dentista e professor de Radiologia da UFPI,Assis Davis ainda descansa em paz, ChicoVasconcelos
permanece no seu trabalho de funcionário público estadual, assim como Sidney Castelo Branco, e,
por fim, Getúlio vai aposentado. Com revivals e retornos constantes, a formação flutua e varia,

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


mas a original ainda está por aí. Ícone imóvel no tempo.

65
Geraldo Brito depois de ter sido apresentado ao Jazz
e à Mpb. Seu início, no entanto, foi no rock.
A sua estrela renascerá
[ou O início do reinício]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo Janis Joplin – Summertime

É como diz a música versada assim...“Um baú vai ser achado, a sua estrela renascerá”, do contem-
porâneo grupo Mombojó, de Recife... E foi desse jeito que as coisas se sucederam. Depois do
‘legado’, ou dos caminhos abertos pelas mãos d’Os Brasinhas, o rock teresinense começou a
colher sua fragrância por aí, pescando influências de todos os cantos possíveis, de onde a informa-
ção chegava.
A demora para o acesso a essa informação estava maior, com uma ditadura convidando,
gentilmente, algumas moças e rapazes produtores de conteúdo a visitarem outros países e por lá
ficarem. Quem ia por vontade própria, e voltava, trazia na bagagem todo o conteúdo cultural da
explosão do rock, da literatura e do cinema que estava acontecendo por lá depois das nossas
fronteiras, já que ter acesso a partir daqui era muito mais difícil.
Ou, no mínimo, quem daqui ia ao fabuloso centro cultural que era o Rio de Janeiro na
época ficava sabendo de tudo. E se conseguisse largar a turma do píer de Ipanema, recheava a
bagagem com discos dos artistas nacionais mais consagrados da época, além de seus gurus inter-
nacionais.Tudo muito misterioso, não? Bom... É preciso, então, contar a história direito. 67
Ainda quando Os Brasinhas eram os senhores de tudo e de todos no rock teresinense, na
virada de 66 para 67, e esse movimento se prolongou até os idos de 1972, quando a principal
banda minguou, aconteceu o rebento de um movimento musical transcendental e ultrajante, em
pleno outubro de B-r-o-bró em Teresina. Era a Tropicália. Curiosamente, esse movimento pouco
influenciou a nossa feitura roqueira, já que a mistura do fino e do brega, do iêiêiê com o bumba-
meu-boi, da guitarra com o atabaque, não foi bem sentida aqui, funcionando como um transforma-
dor dos artistas mais voltados à regionalidade da coisa-tropicália, ao invés de quebras de barreiras
e intersecções de linguagens. Duma forma mais direta, a Tropicália levou os regionais de Teresina
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

para um lado mais regional, e afastou os roqueiros daqui da mistura proposta pelo movimento.
Mas consideremos sempre a demora das coisas na vida da “Therezina” da época. Nascida
para a vida e morte sempre urgentes, a Tropicália demorou demais para reverberar até aqui, e só
chegou quando já tinha acabado no plano nacional, como a luz de uma estrela que morre, e que
chega até nós enquanto a estrela já definhou. Eram mesmo anos-luz de distância. O mais necessá-
rio de se notar é que o Movimento da Tropicália alterou profundamente o modo de fazer música
no país, e abriu espaço para artistas mais psicodélicos darem suas caras por aqui. Foi aí que a
galera de fora, e daqui, pirou ao som de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Rolling Stones, Pink Floyd,
Genesis, Led Zeppelin.
Então, dois caminhos eram bem distintos nessas novas páginas do rock teresinense. Um era
o caminho do regional, que se destacou e fez valer a sua voz, mas que era dissidente do rock,
voltando-se para o lado mpbístico da manifestação tropicalista. O outro era o lado visceral do
rock’n’roll, que se amalgamou com as guitarras mirabolantes e berrantes da porção rock’n’roll do
caldeirão da Tropicália, encarando a coisa como ‘it’s only rock’n’roll but we like it’.
Nesses dois caminhos, alguns nomes se repetem, e alguns são bem intrínsecos a cada parte.
Do lado do regional estão Geraldo Brito,Anna Miranda, Rubens Lima, Laurenice França, Cruz Neto,
dentre vários outros. Esses têm pequenas colaborações para o lado rock, que se complementaria
com a participação de Durvalino Couto, Edvaldo Nascimento e Edino Neiva. Esse trio seria o
alicerce-mor do rock na CidadeVerde e, por sua relação maior com o ritmo do 4x4 [curiosamente
o formato menos usado nos rocks na época], serão também o cerne dessa parte do livro.
Na virada da década, muitos artistas debandaram para o sul do País à procura do ‘vamos
ver o que acontece’, tentando se firmar como artistas e instrumentistas de renome. Dentre os
68 muitos, os que melhor se destacaram foram Renato Piau, guitarrista; Chico Louco, baixista; e Lena
Rios, cantora [que recebeu letras de Torquato para seu disco, Sem Essa Aranha, de 1972]. Muitos
outros foram no levante, mas forçando os que aqui ficaram a preencher uma lacuna de produtivi-
dade e criatividade. Essa manifestação acintosa de produtividade criativa teve um nascimento
extemporâneo, mas quase coletivo.As duas vertentes da música esperaram até 1973 para coloca-
rem as caras na rua e mostrarem o que vinham fazer aqui. Essa data foi a mesma do nascimento
do Festival Universitário, realizado na Universidade Federal do Piauí, e que abria espaço para as
manifestações culturais do local. Assim, nesse festival encontraram-se as duas turmas, ou pelo
menos partes delas, [e] que não se consideravam turmas, mas gentes de pensamentos parecidos

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


e vontade de fazer música.
Quem começa a contar essa história é Durvalino Couto, hoje publicitário, mas baterista de
mãos cheias.“Em 1973/74, eu, o Edvaldo e o Edino Neiva fizemos o primeiro grupo de rock que
levava o nome de ‘banda’. Foi a Banda da Cidade Verde, que se apresentou apenas umas três,
quatro vezes, mas foi um verdadeiro furor.A rapaziada enlouqueceu e daí nós nunca mais paramos
de tocar. O pessoal pioneiro não se interessou em desenvolver autoria. Foi a minha geração, eu e
Edvaldo, que começamos a fazer música própria”, explica ele, de forma breve.
A forma dessa primeira banda, que teve um caráter mais psicodélico e de produção de
material próprio, estava completamente inspirada em bandas como Pink Floyd e Led Zeppelin.
Representantes de uma outra turma, de uma outra forma de expressão e, acima disso, de outra
forma de justificar o envolvimento com o rock, a barra pesou muito mais para eles que para a
geração passada, na qual a Ditadura não via mal algum.
Face ao surgimento de músicas desafiantes, da vontade desses artistas de chocar e dizerem
o que pensavam, a Polícia Federal finalmente teve algum serviço por essas terras. Informação
difícil de ser arrancada de Edivaldo Nascimento, de nascença, ou Edvaldo Nascimento no batismo
artístico.Ainda envolvido com o rock nas suas mais diversas formas, tanto empunhando a guitarra
quanto organizando shows, foi nesse clima de promoter que tentei entrevistá-lo. Por mais de três
vezes ele me escapou por pouco, em meio a reuniões e compromissos. Por fim, durante um
grande evento de música pop na cidade, consegui arrancar dele uma entrevista, em meio a toda a
confusão que era o show de uma banda carioca no palco logo à nossa frente.
Se no samba, Julinho da Adelaide [pseudônimo de Chico Buarque] quebrava a cabeça da
ditadura com suas composições dúbias e ambíguas, aqui nessas ermas terras as composições de
artistas sem pseudônimo davam trabalho para passar pelo crivo das autoridades da época.“Quan- 69
Led Zeppelin
do a gente ia tocar, as músicas tinham que passar pela censura, mas com a gente nunca aconteceu
de ficar música vetada, graças a Deus... Mas teve uns amigos nossos, como o Cruz Neto e o
próprio Naeno, que tiveram músicas que foram censuradas naquela época e que foram vetadas
em apresentação no show. Às vezes por bobagem, uma frasezinha... Porque aquele era um mo-
mento muito delicado que a gente tava vivendo, né? Fim de Ditadura, começo de abertura demo-
crática... Então, foi muito doloroso esse período. E muito rico também, porque a gente tinha que
passar uma mensagem, tinha que dizer uma mensagem”, lembra Nascimento.
Essa necessidade de mensagem levou a um aprofundamento da possibilidade poética, já que

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


os artistas tinham que esmerar seu discurso para que ele passasse ileso pelo pente fino da
ditadura.“Nós fomos precursores desse movimento... Então, as pessoas ficavam admiradas com a
beleza poética que tinha o nosso trabalho, que não era uma coisa assim ‘boba’, era uma coisa que
tinha uma mensagem. Mas era com essa mensagem que a ditadura encucava e teve uma música
minha que falava assim ‘No meu sangue,Adrenalina’...Aí os militares queriam saber, na época, que
história era essa de adrenalina... E a gente disse que ‘não, adrenalina é aquele medo, assim quando
um cachorro corre atrás de você e você sente aquela coisa’.Aí foi que o cara liberou porque ele
pensava que adrenalina era coisa de sexo, mas nada a ver”, conta.
E, aí, era hora de desbravar tudo, todos os espaços. E no festival de música que a UFPI
promoveu, alguns nomes já se destacavam. “Eu lembro que nesse festival algumas pessoas já
apresentavam um material próprio, já vinha o Edvaldo Nascimento com as músicas dele, eu tam-
bém já trabalhava algumas coisas, o Cruz Neto. Mas o que mais me chamou a atenção foi a
participação do Edvaldo, que chegou meio tímido e, no ano seguinte, já estava com outras músicas
para apresentar”, conta Geraldo Brito, destaque da época também.
E assim como nos festivais nacionais, em que aTropicália não era bem aceita pelos defenso-
res da MPB tradicional, músicas que fugiam à proposta regionalista também não eram aceitas de
braços abertos aqui na capital.“Tanto que aqui tinha até uma geração minha com a galera que era
com músicas mais trabalhadas, tinha outra que era com música mais rock, com acordes mais
simples. Lá no sul tinha espaço pra todo mundo, mas aqui acabou gerando aquelas brigas de
festivais e brigas com esse negócio de ‘O que vale é o som regional, esse outro não está com nada,
com guitarras’ aquela briga”, confidencia Geraldo Brito, um dos poucos que transitava entre os
dois estilos. Mesmo com esse levante regionalista, não existia uma disputa como aconteceu no
próprio Rio, de passeatas e manifestações contra a guitarra elétrica. 71
No ano seguinte, em 1974, o festival se repetiu e, no fim dessa edição, que teve participação
de gente comoViriato Campelo, Lázaro, Laurenice França, Maria da Inglaterra e Rubens Lima, com
as músicas já em ponto de bala, foi formado um dos grandes marcos da música autoral desse
primeiro decênio do rock teresinense. Numa abordagem mais tropicalista, por essência e identi-
ficação, surgiu o grupo Nortristeresina.
Esse grupo-espetáculo Nortristeresina trazia, além das composições de Laurenice França,
Geraldo Brito, Rubens Lima, Lázaro e Pierri Baiano, inserções de textos de Osvaldo de Andrade,
Torquato Neto, Cassiano Ricardo, Chacal e Meneses de Moraes. Numa divulgação impressionan-
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

te, o Nortristeresina chegou ao II Festival Aberto de Londrina, no longínquo Paraná, ainda em


1974. O único problema é que a platéia queria escutar repente, cordel e violada, se deparando
com um trabalho mais elaborado para o lado do regional. Mesmo com essa supressão de expec-
tativas, o show foi muito bem recebido, mas teve vida curta na volta a Teresina.
Ao retornarem, o que era Nortristeresina virou Showpiau. Não foi bem uma transforma-
ção, mas sim uma inspiração, uma continuação.“Surgiu um movimento aqui em Teresina chamado
ShowPiau, que era um show que acontecia ali no Auditório do Herbert Parente Fortes, que fica
ali onde era o antigo DNER, na Avenida Miguel Rosa. Enfim, era uma coisa que se tornou um
movimento cultural daquela época, para as pessoas mostrarem o seu trabalho, tocar músicas de
sua própria autoria”, expõe Nascimento.
Criado por Arnaldo Albuquerque, José Raimundo Machado, Fred Maia e Jorge Rizzo, teve
sua estréia no Bar do Perninha, que ficava na rua Coelho de Resende, em 1975.A estrutura do bar
era muito limitada, e o show foi logo transferido para o auditório Herbert Parente Fortes, até a
reinauguração do Theatro 4 de Setembro, que aconteceu em março do mesmo ano.
O interessante do Showpiau era a forma como ele funcionava, se transmutando numa
mostra de compositores, com diversos artistas passando pelo palco do tal auditório.Anna Miran-
da, José Rodrigues, os participantes do Nostristeresina e a Bandinha da Cidade Verde. E aqui as
histórias se cruzam e se separam. Depois do Showpiau noTheatro 4 de Setembro em 75, cada um
dos participantes foi para o seu lado, com uma mistura bem mais regional, não abordada dentro
da proposta desse livro.
Após essa separação, a Bandinha da Cidade Verde continuou sua história, mesmo que por
pouco tempo. “A gente começou a fazer um trabalho de não-cover, vamos dizer assim, mas de
72 tentar compor e mostrar isso para as pessoas, por volta de 75, por aí.As pessoas ficavam malucas
com toda aquela guitarra distorcida, elas achavam assim uma loucura...”, explica Nascimento.
Cheia de ironias, essa banda tem uma trajetória que se inicia com ensaios nos fundos do 2º
BEC (Batalhão de Engenharia e Construção do Exército), incrustado nos limites da zona norte de
Teresina. Embora fosse a ‘boca do leão’, não se podia escolher muito onde ensaiar naqueles
tempos de 72 em diante. Se Os Brasinhas, e as outras bandas subseqüentes da primeira leva do
rock teresinense, se viravam com as garagens das casas para ensaiar, com a nova turma não era
muito diferente.“Era muito difícil fazer música em Teresina. Não tínhamos acesso a bons instru-
mentos e ensaiar era uma loucura. Havia a lei protecionista e burra do similar nacional, então,

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


comprar uma bateria Tama ou uma guitarra Fender Stratocaster era quase impossível para as
nossas condições. O pessoal mais antigo (Brasinhas, Metralhas, etc.) ensaiava na casa de um e de
outro, em garagens, etc. Muitas vezes também eles conseguiam ensaiar nos clubes sociais onde
tocavam bailes e tertúlias”, situa Durvalino.
Mas se o protecionismo nacional atrapalhava os roqueiros locais e a falta de locais para
ensaio era bem resolvida pela galera da Jovem Guarda, o mesmo não se pode dizer dos rapazes
que vinham começando a mostrar o rock por aqui no início da década de 70.“Eu, Edvaldo e Edino
chegamos a ensaiar por várias vezes lá nos fundos do 2º BEC, nos instrumentos de um conjunto
de baile que o BEC mantinha e que se chamava BEC Boys. Quem conseguia a autorização era
Edino Neiva, que tocava no conjunto. Me lembro que eu e Edvaldo (Edino era careta) fumávamos
um e depois adentrávamos o BEC com os olhos injetados e nossos cabelos enormes. Os soldadi-
nhos ficavam amontoados à porta da garagem e ficavam olhando e ouvindo a gente mandar ver.
Era uma loucura, porque isso foi no auge da ditadura militar. Inacreditável”.
O discurso poético de Durvalino Couto pode dar a impressão de que ludibria o que
realmente acontecia na época, mas, na verdade, traduz uma parte do que tudo aquilo foi e repre-
sentou. Os espaços eram limitados, não havia estrutura, nem física para os ensaios, nem instru-
mental, como o próprio músico declarou.
Mas essa questão do aproveitamento de espaços e de espaços disponíveis para ensaios e
shows se deu por outros fatores afins. O Theatro 4 de Setembro necessitava urgentemente de
uma reforma, pois já apresentava vários problemas, como o de estar bem aquém do que poderia
oferecer de verdade, em termo de estrutura. De acordo com o professor Cineas Santos, as
condições do 4 de Setembro eram bem precárias. “O Theatro 4 de Setembro estava um lixo,
cadeiras quebradas, era um cinema velho, poeira, o pior cinema de Teresina funcionava ali, e as 73
pessoas iam assistir a show lá, mas era muito ruim, muito desconfortável, não tinha ar condiciona-
do, era um lixo, um pulgueiro, a despeito disso as pessoas iam”, conta ele.
Além do Theatro, existiam espaços como a Concha Acústica de Teresina, que também
passou por maus bocados. “Aquela concha acústica ficou inútil em Teresina, subutilizada, e na
época era um espaço muito bom”, questiona Cineas. Mas essa busca por novos espaços para
apresentar material e composições levou a locais mais distantes do centro da cidade, que não
poderia ser [nem deveria ser] unanimidade no quesito cultura.“No fim da década de 70, o Parque
Piauí se transformou num pólo cultural com festivais, havia depois no Cristo Rei, um centro com
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

teatro, com cinema, havia outros pólos”, coloca o professor.


Essa análise dos locais Cineas Santos tem bem fresca na memória, mas quando a questão é
abordar a forma como esses espaços estavam sendo aproveitados, ele já se mostra distante.
“Curiosamente, na década de 70, eu não estava mais ligado em música, eu estava mexendo com
literatura, outras coisas e não acompanhei bem o que estava acontecendo, mas tinha aí umas
coisas, o Durvalino junto com o Edvaldo Nascimento, já era um pouco do reflexo da influência do
Torquato Neto, mas eu não acompanhei bem esse período”, revela.Tinha mais gente também.
Hoje administrador de empresas, músico, professor de música, violonista, Geraldo Brito
começou com os dois pés fincados no rock.“Eu me lembro quando eu toquei numa guitarra pela
primeira vez. Foi uma experiência, assim, fantástica. Durante muito tempo eu quis ter a minha
própria guitarra, mas só depois de muito ver ensaios e ir, foi que eu tive como tocar numa guitarra
pela primeira vez”, lembra ele, mesmo não sabendo precisar a data. No entanto, a atenção dada ao
rock’n’roll foi limitada quando Brito esbarrou com a música popular brasileira e o jazz.Ao ouvir
artistas como Baden Powell, Gil,Tom Zé e Caetano, um novo horizonte se abria diante dele.
“Eu larguei ali a Jovem Guarda um pouco e fui ouvir um violonista chamado Baden Powell,
o disco dele me interessou e eu comecei a descobrir os acordes dissonantes, aí fui crescendo e fui
enriquecendo muito, colocando em arranjos que a gente fazia, ouvindo essa coisa também que a
Gal estava fazendo”, contextualiza, citando a fase pós-Tropicália da artista. Esse ‘a gente’ a que
Brito se refere está diretamente ligado a todo o grupo que fazia parte da música regional de
Teresina, participava dos shows coletivos no Theatro 4 de Setembro e em outros espaços, e que,
assim, já se distanciava do rock.A outra ponta do caminho continuou a dar seus passos, sempre
comprometida com um caráter mais ligado ao rock.
74
Gilberto Gil
Teu pai nunca mais falou
She’s leaving home
leaving
[ou O passado é uma roupa que não nos serve mais]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo: Pink Floyd –WishYouWere Here

Proposto para contar a história dos primeiros dez anos do rock teresinense, de 1966 a 1976,
essas páginas carregam tudo que o tempo, as drogas [sejam elas quais forem/foram] e as ocupa-
ções da vida de ‘gente grande’ não apagaram. Isso é muito importante que seja dito. Da mesma
forma que é imprescindível dizer que estamos em 1974. E algumas coisas aconteceriam até o fim
desse período de 10 anos.
No cenário rocker mundial, artistas dos mais diversos estilos lançavam obras primas. Em
alguns casos, havia artistas em entre safra, como o Pink Floyd, que estava de recesso depois do
lançamento de Dark Side of the Moon, de 1973; e Wish you Were Here, de 1975. Outro grupo
progressivo que lançou disco nesse ano foi a banda Yes, ao liberar no mercado o álbum Relayer.
Estes artistas, dentre vários outros, influenciavam no tipo de som que os rapazes da segunda
geração rock teresinense queriam.
Na música popular brasileira, que se reformulava à força, abrindo espaço para os artistas
pós-tropicálica que conseguiram se sustentar em meio ao fim do levante artístico, o ano de 74
vinha farto. Nesse ano, Gal lançou o disco Cantar, uma virada em sua carreira. Num ano de larga 77
produção, o disco de Gal não nasceu sozinho. Junto com ele vieram os discos de Gilberto Gil,
Barato Total, e na tríade maior do movimento tropicalista, Caetano lança um Temporada deVerão
ao Vivo na Bahia, com a participação de Gil e Gal.
Essa efervescência pós-tropicalista na música popular brasileira refletia-se aqui com a mes-
ma demora que a Jovem Guarda levou para chegar aos nossos ouvidos. Com uma significativa
diferença. Não bastasse ser rock, não bastasse chegar atrasado, não bastasse ser tudo o que era,
a produção Tropicalista e a que veio depois do movimento era visada com muito preconceito na
cidade deTeresina.“No meu 1º show de rock, que foi super amaldiçoado aqui, foi assim um terror,
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

um terror.Todo mundo achava aquilo um absurdo, os filhos das chamadas ‘boas famílias’ se fossem
eram muito escondidos, entendeu? Não manifestavam nenhuma atração, mesmo que gostassem
daquilo, coisa que era caracterizada como rebeldia, né? Que isso é característica do jovem, mas
não se demonstrava”, afirma, veementemente, Marco Vilarinho sobre o primeiro show em que
esteve.
A pouca demonstração pública ficou escondida debaixo de algum véu. Essa é a conclusão
que se pode tirar dos depoimentos colhidos com os entrevistados. Nas palavras de Geraldo Brito,
Durvalino Couto e Edvaldo Nascimento, três dos vários que formaram o rock teresinense pós-
jovem guarda e pós-tropicália, órfãos de expressões outras, mas primos do psicodelismo estran-
geiro, os shows no auditório Herbert Fortes foram apenas o começo de um estouro difícil de não
se escutar. Mesmo debaixo de um véu.
Quem garante, ainda, é Marco Vilarinho, ao lembrar da forma como as pessoas se valiam
para freqüentar o 4 de Setembro.“Lá [Theatro 4 de Setembro] tinha essa abertura, só que quem
freqüentava era muito mal visto, era muita pouca gente que ia ao teatro naquele tempo, o teatro
passava praticamente o ano inteiro fechado porque não havia agenda. Então, havia um showzinho
ou outro, mas tudo muito, muito quase fundo de quintal...Assim, sabe?”, explica um quase injusto
Vilarinho, ao analisar friamente a realidade vista por ele. Esse véu declarado também alimentava
outras necessidades, como precisar se esconder atrás de versos enigmáticos para que só os
iniciados, e não a Polícia Federal, entendessem a verdadeira mensagem. Nem sempre funcionava,
mas...
“Mas as pessoas que estavam vivendo aquela coisa sacavam o que você tava falando. Então
foi um momento legal, cara. Eu acho que a gente tem que viver cada etapa, cada momento da sua
78 vida é importante, tem que ser bem vivida, vamos dizer assim. E além de ser bem vivida, você tem
que explorar aquilo do momento”, manda um corajoso Edvaldo Nascimento, sobre a necessidade
de enfrentar o novo.
Durvalino Couto era um que queria viver de música.Antes de escolhê-la como seu ganha-
pão, sabia que ela era seu refúgio maior. Nascido numa casa musical, com os irmãos escutando
Elvis e similares, foi com um sentimento ainda hoje não digerido em palavras que ele viu na música
um alicerce. “Quando eu tinha uns 15 anos surgiu em minhas unhas (dos pés e das mãos) uma
micose que provocava até mesmo a queda das unhas.Tive que fazer um demorado tratamento
com vários remédios, inclusive um de uso tópico que era marrom! Eu vivia com as mãos nos

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


bolsos e pelos cantos. Já imaginou? Um carinha novinho e com as unhas pintadas? Daí que eu ia
para os bailes e ficava perto do conjunto, com as mãos nos bolsos. Foi assim que, observando
atentamente, aprendi a tocar bateria, que é até hoje o instrumento da minha paixão e da minha
vida”. O início, poético se não fosse parcialmente trágico, abriu portas para encontrar os seus.
Com datas perdidas na memória e nos anos, Durvalino encontrou Edvaldo Nascimento, na época
ainda Edvaldo Nascimento. “O nome do cara é Edivaldo, com o ‘i’ no meio. Eu que tirei o ‘i’ pra
ficar mais eufônico. Edvaldo. Me arrependo, devia ter tirado tudo e o nome artístico dele seria Ed
Nascimento, não acha?”, brinca o hoje publicitário Durvalino.
Esse encontro, que aconteceu depois de 1972, já mostrava um Edvaldo Nascimento influen-
ciado por Mutantes e pelo ecletismo de Assis Davis, um dos principais incentivadores do seu
início na música. Irmão de Paulo e Fernando Chaves, componentes dos Metralhas, Edvaldo, ainda
criança, teve contato direto também com os artistas d’Os Brasinhas, e dentre eles, Assis Davis.
“Ele me encorajou a aprender a tocar guitarra, disse que eu tinha talento, que seria um guitarrista,
que podia fazer minhas coisas. Foi um cara que me fez crescer bastante”, relembra ele, saudoso.
Quando se deu o tal encontro entre Durvalino e Edvaldo, um tinha a vontade de tocar e o outro
o conhecimento. Juntaram tudo com a oportunidade que a Jovem Guarda já dava a outros estilos
e colocaram o bloco na rua.
Mas o bloco precisava de calma. Um rei acabava de ser deposto, outro pretendia seu lugar.
A transição, pacífica, revelou levantes de resistência em alguns momentos, logo dissolvidos pela
pressa com que Teresina crescia.“[O iê-iê-iê acabou] devido à decadência natural da Jovem Guar-
da.Teresina começou a crescer e aqueles bailinhos de fim de semana, tertúlias (e radiola na casa
da namorada) já não estavam com nada.A Tropicália acabou de botar a pá de cal na caretice e o
rock internacional invadiu de vez e tomou conta da galera. Começou-se a ouvir outras coisas 79
acervo Jornal O Dia

Edvaldo Nascimento
começou sua carreira no
rock durante os anos 70 e
é um dos poucos que se
mantém fiel ao estilo até
hoje.
além de Beatles e Rolling Stones. Surgiram The Who, Led Zeppelin,Ten Years After, Cat Stevens,
Jimi Hendrix, Janis Joplin,Yes e todo o rock sinfônico de Gênesis, Uriah Heep e milhares de outros
grupos. No Brasil, começaram a despontar figuras além de Chico, Caetano, Gil. Coisas como
Mutantes, Luiz Melodia, O Terço, o rock nordestino de AlceuValença, o rock paulista de Rita Lee,
Placa Luminosa, etc”, exemplifica o ainda hoje músico Durvalino Couto.Tudo isso serviu de ele-
mentos para a fundamentação da forma de compor o repertório e o material de suas primeiras
apresentações, que ainda vinham calcadas nos covers. “Nas primeiras apresentações fazíamos
cover de Deep Purple, Grand Funk Railroad, Black Sabath, etc. Nas últimas apresentações, lança-

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


mos a primeira música que compus com Edvaldo, que era uma marchinha de Carnaval que fize-
mos e foi cantada no Carnaval daquele ano por um bloco de doidões do Marquês.A marchinha
sugeria que enrolávamos baseados com o papel fininho que era usado como saco das legendárias
Pipocas Oriental, de saudosa lembrança. Na época era fácil enrolar um na rua, porque a cidade
tinha saquinho de Pipoca Oriental em todo lugar”, segreda ele.
A vontade de fazer suas próprias músicas, por sua vez, não surgiu como urgência artística
como se pode supor. A barra teve que ser forçada para que o receoso Edvaldo Nascimento
musicasse os versos de Durvalino e os colocasse à prova dos olhos dos que lotavam as apresen-
tações no Herbert Fortes.“Eu forcei muito a barra. Daí o Edvaldo viu que podia musicar minhas
letras e começou a gostar. Fizemos uma caralhada de porcaria até começar a acertar com ‘Minas
e Minas’,‘Mistério do Planeta’,‘Cerol na Linha’,‘Ulisses’ e muitas outras”, enuncia Couto.“Porque
foi todo um processo, vamos dizer assim, de amadurecimento daquela época, pela própria influên-
cia do Torquato, né? Porque o Torquato vinha passar as férias aqui em Teresina e trazia muita
informação. Jimi Hendrix, Janis Joplin, eu tive conhecimento do trabalho desses artistas através do
Torquato. E ele já era compositor naquela época, já fazia parte do movimento Tropicalista com o
Caetano, o Gil. E ele falava que a gente tinha que tocar nosso trabalho, compor, fazer música
própria, e foi a partir disso que o Durvalino foi partindo dessa conscientização, partindo do
Torquato que a gente começou a fazer um trabalho de não cover, vamos dizer assim, mas de
tentar compor e mostrar isso para as pessoas”, fundamenta Edvaldo.
Ainda assim, com um vigor diferente, a banda acabou-se, assim, por acabar. “A Banda da
CidadeVerde fez apenas três ou quatro apresentações. Isso é que é interessante porque o que ela
causou é infinitamente maior que a sua atuação de fato. Na época, nenhum de nós tinha instru-
mento próprio. Edino tocava nos instrumentos do conjunto de baile BEC Boys. Edvaldo não tinha 81
guitarra nem eu bateria. Esse é o motivo maior da irregularidade da banda em se apresentar.Acho
que ensaiamos mais do que nos apresentamos e quem mais nos assistiu foram os soldadinhos do
BEC... Não sei ao certo, mas acredito que tudo isso aconteceu entre o fim de 1972 e meados de
1973”, explica Durvalino. Isso explica a falta de registros fotográficos da banda, que foi efêmera,
mas marcante.

Um lugar do caralho
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

[ou Como se faz um show de rock?]

Pressões à parte, depois de muito ralar com as composições próprias, as viagens e os ensaios,
depois de dividir palco e atenção com outros artistas que faziam parte do cast dos shows no
Herbert Fortes e no Theatro 4 de Setembro e, ainda, com o fim da Bandinha da Cidade Verde, foi
a hora e a vez de um Edvaldo Nascimento, já em ‘carreira-solo’, se mexer para conseguir um
holofote só para si.A disputa não era apenas por reconhecimento ou fama, mas por um espaço
dedicado apenas a ele, mesmo com o acompanhamento de uma banda composta para esta nova
etapa. Assim, o show que aconteceu no Theatro 4 de Setembro foi o primeiro que pode ser
chamado verdadeiramente de ‘show de rock’ em Teresina. “Fizemos o primeiro show-solo de
Edvaldo Nascimento, o ‘Cerol na Linha’, e foi o primeiro show da minha geração a lotar o 4 de
Setembro por dois dias.A nossa banda já era formada por Robert, Carlim e Quinha na percussão,
sendo estes dois últimos irmãos. O Carlim tocava um puta baixo nos Cartolas, conjunto do
empresário Magalhães. O Robert tocava guitarra-solo junto com o Ed”, lembra Durvalino. Com
essa formação, e com o show à vista, a idéia era ensaiar. Mas onde?
“O Carlim conseguiu com o Magalhães que a gente ensaiasse e tocasse nos dias do show
com os instrumentos dos Cartolas, que era um conjunto de baile. Era o único de Teresina que
tinha baixo e guitarra Fender, bateria Pingüim, mas adubada e com pratos Zildjan e ainda um
sintetizador Moog. Fomos os primeiros a fazer show usando essa parafernália. Bom, o show foi no
Theatro que, nessa época, era bastante acessível à galera. Depois veio o bar Nós e Elis, do Elias
Prado Júnior, que morreu precocemente, mas foi um nome importante para a noite e, conseqüen-
temente, para a música de Teresina”, lamenta Durvalino.
82 E dá-lhe ensaio. E dá-lhe show marcante na vida desses dois amigos. “E a partir dali eu
comecei a tocar sempre as minhas músicas, sabe? As pessoas perguntam:‘pô, por que tu não faz
uma banda pra tocar modismos da época?’, e eu respondo: ‘porque não, cara, porque é meu
trabalho’. Sofri muito e sofro muito por isso, porque normalmente quando você tenta tocar suas
músicas as pessoas não entendem muito. Eu sempre primei por tocar sempre as minhas compo-
sições, tanto é que eu quase não faço ‘noite’, essas coisas de noite porque você abdica um pouco
de tocar o seu trabalho e eu sempre primei pelas minhas coisas”, ensina Edvaldo Nascimento.
Essa primazia em relação ao material próprio criou identidade e resistência. Com o passar
dos anos, e a chegada da década de 80, os espaços foram se fechando para o rock, ainda mais um

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


rock autoral. Quando era a hora de começar a tocar, depois que o Theatro ficou lotado e que deu
vontade de tentar mais, de ousar mais, de ir mais longe, para outros centros, outras praias, a nova
constante foi de portas se fechando...
“Queria viver de música, mesmo. Queríamos. Fizemos uma banda de baile, a Som Nascente:
eu, Edvaldo, G. Brito, Márcio Menezes na flauta,Teotônio no sax e Janete Dias cantando. [E com
ela] fizemos algumas festas legais no Círculo Militar para o Colégio Diocesano. Uma vez, numa
dessas festas, tocamos aquela música da Baby Consuelo – ‘Você pode fumar baseado / baseado no
que você pode fazer quase tudo...’ – e o presidente do Clube queria prender a gente, foi um
escândalo. Edvaldo tentou o Rio. Eu morei em São Paulo por três anos. Edvaldo chegou a fazer
uma banda com um filho do Erasmo Carlos. Eu em São Paulo me dediquei mais a um trabalho de
teatro de vanguarda. Mas somos muito ligados a isso aqui, eu não agüentei três anos e vim
embora. Queria viver de arte de uma forma geral, tanto assim que abracei também a causa do
teatro e fiz bastante teatro, aqui e em Sampa. Mas cidade grande é foda, meu”, entrega um resig-
nado Durvalino.
As perspectivas para essa música feita aqui seguem outras tendências hoje, e um fator
preponderante é a sorte.“Até hoje é difícil sobreviver de música em Teresina.As portas não estão
fechadas, o mercado é que é pequeno. Os meninos da Banda Acesso têm um público muito fiel,
mas é pequeno.As rádios daqui sabotam e não tocam a rapaziada. Eles querem jabá... Imperam a
burrice e a pequenez de idéias. O Teófilo faz é tempo que diz que vai tentar lá fora. Espero que ele
vá. O Rubinho está em Sampa, o Mirton também, mas já virou publicitário.A guerra lá é foda, meu.
Mas é importante tentar”, diz Durvalino, dando sua acalorada opinião.
Nessa discussão de espaços ou não, de homenagens a Assis Davis no Piauí Pop, de conquis-
tar espaços, respeito, lugar, de poder tocar, de fugir da ditadura militar [mais sobre isso no próxi- 83
mo capítulo], aconteceu a oportunidade de Edvaldo Nascimento e Durvalino Couto dividirem os
mesmo palco, com a banda Dinos, de formação composta por artistas da segunda geração da
música popular piauiense, como os dois já citados, mais Machado Júnior e Roraima.As apresenta-
ções aconteceram não só no Piauí Pop de 2004 e 2005, onde a banda foi lançada, mas em outros
espaços, como na comemoração do Dia do Rock de 2005. O som, no entanto, parece ser muito
diferente do que foi a construção da Bandinha da CidadeVerde, e acontecem inserções de poesia
e repertório baseado nas canções de Edvaldo Nascimento, um típico rock teresinense.
Essa continuidade no trabalho musical chegou apenas a Edvaldo Nascimento, que, somente
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

em 1995 lançou seu o primeiro disco-solo, chamado ‘Pedra Base’. Em 2000, lança o cd ‘Coração
Quente’ e em seguida seu segundo cd ‘Eu sou todo escuro e sou o clarão’. Novas manifestações
do rock teresinense só insurgiriam na década de 80, depois do primeiro Rock in Rio, em 1985.
Mas isso já foge da nossa alçada. É um próximo passo.

84
acervo Jornal O Dia

Durvalino Couto canta na banda Os Dinos, que uniu


novamente Edvaldo Nascimento e o poeta cantor.
Aqui, tem-se o artista em apresentação durante o
Piauí Pop, em 2005.
Desde que eu ttenha
enha
oR oc
Roc k’n’R
ock’n’R oll
k’n’Roll
[ou O mundo é um moinho]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindo: Jorge Ben – Porque é proibido pisar na grama

A situação enfrentada por essa geração, no período dos primeiros dez anos do rock teresinense,
assemelhava-se ao comportamento de guetos que os grandes movimentos musicais tiveram no
início da história da música jovem. A black music, o jazz, o soul, o rock e o blues eram todos
marginalizados. E dentro dessa cultura de gueto, as manifestações chamavam a atenção numa
relação diretamente proporcional com o tipo de reação que causavam na sociedade.“Era tudo na
surdina. Cabelo grande você não usava no colégio, usava cortado, não podia usar cabelo grande no
colégio. Além dos colegas, que eram de famílias mais tradicionais, os próprios pais diziam que
aquilo era coisa do demônio. Cabelo grande, essas calças muito coloridas, camisas que a gente
usava muito na época. Eu cheguei a usar quando meu pai viajava, era uma camisa toda quadricu-
lada, com um bocado de babado, entendeu? A gente usava, mas, quando ele chegava, aí tinha que
esconder, jogar fora, alguma coisa assim”, explica Vilarinho. Essa limitação da estética e da musica-
lidade parece que fez florescer a vontade de fazer mais.
1974 foi o ano do segundo festival de música da UFPI, ano de surgimento de diversos
artistas, e ano da continuação do preconceito contra a juventude roqueira.As razões, no entanto, 87
pareciam ser diferentes agora. É certo que o preconceito nunca deixou de existir, desde o início
d’Os Brasinhas, em 1966, até o fim dessa década, e estranhamente, até o fecho de um ciclo, em
1976. Mas o preconceito passou a assumir outras formas, e a ditadura em voga e bem atuante
achou um novo alvo ao seu alcance aqui em Teresina.
“Claro que sempre houve aquele tipo de gente para quem o rock’n’roll era uma coisa
demoníaca e que induzia os jovens ao comportamento agressivo, ao sexo e às drogas. O Rock
mudou a maneira de ouvir música, porque ouvia-se rock, no geral, BEM ALTO! Totalmente loud.
Havia muito preconceito quanto a tudo que veio a seguir, cabelos longos, roupas loucas, maconha,
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

sexo e pílula anticoncepcional. Foi mesmo uma revolução planetária de costumes. Houve repres-
são, alguns enlouqueceram, os pais mandaram para os hospícios, mas depois a coisa foi relaxando,
foram nascendo netinhos”, ironiza Durvalino. A bem da verdade, é preciso que se diga que a
primeira geração do rock teresinense não ‘arrumou confusão’ com as autoridades.
A estréia na ‘vida bandida’ foi com a segunda leva de roqueiros. “De vez em quando um
dançava. Dançava em casa, a mãe, o pai encontrava maconha, pílula na bolsa ou na mochila, esses
baratos. Ou dançavam na polícia, aí a coisa era mais feia, porrada, tapa na cara, telefone, e, em
alguns casos extremos, tortura braba. Eu e mais um grupo de rapazes e moças fomos presos
fumando maconha na coroa do Rio Poty, ali na altura do CFAP (Centro de Formação de Aspiran-
tes da Polícia Militar do Piauí). Meu pai foi me soltar lá na delegacia da Praça Saraiva de madrugada,
puto da vida.Aproveitou que era amigo do delegado e soltou todo mundo, ficou por isso mesmo,
não foi lavrado flagrante. A gente representava algum perigo para a sociedade, mas não éramos
terroristas e não andávamos armados. Não havia, pois, nada que nos fizesse mudar ou cortar o
cabelo, fazer a barba, entende? Às vezes lançavam uma piadinha ou xingamento na rua, mas não
passava disso.Também havia uma certa inveja porque a gente saía e namorava algumas meninas
lindas, etc.”, conta um orgulhoso Durvalino Couto.
Mas antes de uma análise superficial dos acontecimentos, como uma reação extremada ao
uso de drogas, ao sexo livre e aos costumes não convencionais, é preciso notar que foi com isso,
e a partir disso, que o famoso desbunde da década de 70 chegou ao Piauí. Era chegada a hora de
se despedir da inocência da década de 60, e encarar as transformações que a nova década trazia
e oferecia.A pílula anticoncepcional trouxe a possibilidade não do sexo antes do casamento, mas
do sexo livre, do experimentar, do conhecer. O objeto desejado é sempre a liberdade, mas as
88 interpretações eram completamente distintas.
Assim, a maconha, droga endiabrada que colocava a juventude a perder, era, para alguns os
jovens da época, uma porta para novas descobertas, os cabelos grandes e as roupas diferentes
eram formas de chocar a sociedade.Algo do tipo “eu deveria me vestir como você? Não mesmo!”.
Ou, como contou Torquato Neto, que viveu o desbunde tropicalista que terminou por se refletir
no Piauí, no texto ‘Na Segunda se volta ao Trabalho’, publicado em “Torquato Neto ou A Carne
Seca é Servida”, um compilado de textos de Torquato organizado por Kenard Kruel, em 2001.
“Pois eu vou contar uma história.
Sem pé nem cabeça: você sabe com quem está falando? Eu respondi que não e a autoridade

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


mostrou-se ofendidíssima. Foi por isso que explicou assim:
- Polícia.
Ora, eu agradeci, mostrei meus documentos, o cara conferiu que tudo era legal, e estava em
ordem e em seguida iluminou-se:
- Ora, bicho, esse teu cabelo está muito grande.
Aí eu fui alugar um[a] apartamento para morar. Quem não precisa de um? Quando a gente
mora só e tem quem convide, a gente aceita e evita o vexame. Mas quando a gente tem família, o
jeito é aquele mesmo: primeiro enfrentar os porteiros olhando desconfiadíssimos para a minha
cara enquanto entrega as chaves.Vai a descarta:
- Acho que nem adianta olhar. Parece que já está alugado.
Pelo telefone os caras não me vêem, de modo que a informação é batata.
- É conversa do porteiro.
Aí eu fui lá, acertar a transa, assinar os papéis e tal. Aí o cara olhou para a minha. Aí ele
conferiu muito e aí ele decidiu:
- Tem gente na frente.
Aí eu saí na rua. Primeiro na Tijuca, onde as pessoas se divertem olhando. Depois na cidade,
onde as pessoas me cercaram na Rua da Assembléia e gritavam corta o cabelo dele e tal.A gente
pensa: vou tomar muita porrada dessa gente. Eles olham com ódio para o meu troféu. Meu cabelo
grande e bonito espanta, espanta não, agride (a tal palavra) e eu me garanto que eu não corto.
História de cabelos...
Um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na Conde de Bonfim, cara de uns
quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, passa no seu fusquinhasinho e
quando me vê dá um berro: 89
The Beatles
- Cachorro cabeludo!
Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não?
Desci do ônibus e saí andando pela Gomes Freire.Vinha uma senhora gorda fazendo com-
pras com um garoto pequeno e um tipo – filho com jeitão de funcionário, sei lá de quê. De longe,
enquanto eu vinha, eles já sorriam e cochichavam tramando. Eu vi. Bem na minha frente os três
pararam e a vanguarda do movimento adiantou-se – era o garotinho:
- É homem ou é mulher?
Eu respondi.

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


- Mulher.
O rapazinho, o outro, gritou.Atenção? Gritou.
- Cala a boca, cabeludo desgraçado.
A mulher deu uma gargalhada e eu passei.
Inteiramente malucos, doidos varridos, doidos de pedra. Ou não (?).
Aí, crianças, a gente declara novamente: são uns malucos. São uns loucos. São uns totalita-
ristas: cabeludo não entra. São uns chatos, são loucos, totalmente loucos, e perigosos. É assim que
eles estão: doidos, malucos, loucos e perigosos. Ou não?” [13/12/71 – segunda-feira]
A mensagem deste texto, mesmo que longo e mesmo que poético em quase demasia, é
clara e direta: as pessoas demoravam a saber lidar com o novo, e, principalmente, viam os desbun-
dados como seres totalmente estranhos à sociedade normal. Mais do que na época da Jovem
Guarda, quando o choque cultural era pela quebra de costumes em níveis ‘aceitáveis’, nesse
levante a quebra de valores era para provocar o choque, a necessidade do choque para a saída do
marasmo, da mesmice, do pensamento comum. Ao menos era isso que eles queriam. Porque o
preconceito existia forte.Talvez mais forte ainda que na década de 60.Agora, era difícil existir uma
base protetora para esses garotos. Em troca, o desamparo. Desamparo da sociedade, dos pais e
até dos amigos. “Eu lembro que eu tinha uma amiga, era Solange o nome dela, ela queria ser
cantora, eu também queria ser cantor, mas ela tocava violão, eu também tocava, mas era só ilusão,
na verdade. Só que eu queria, eu gostava muito de cantar e queria ser cantor, mas havia uma
barreira muito grande, por questões religiosas, pra eu me aproximar daquele grupo, daquelas
pessoas. E eu lembro que uma certa vez, eu a vi, e naquele tempo os negros usavam aquele cabelo
que chamava balula, black power... E ela estava com um grupo deles num festival que houve lá na
Escola Técnica. Quando eu a vi no meio deles, aí, pela formação que eu tinha, é também como se 91
tivesse morrido assim uma pessoa, sabe? Tem muita gente da família dela que chegou mesmo até
a execrá-la assim, porque achava que ela estava perdida”, conta um hoje mudado MarcoVilarinho.
O texto deTorquato Neto, reproduzido neste capítulo, também dá essa prova do estranha-
mento geral que tudo ligado ao rock estava causando por aqui. Mas é engraçado, se não fosse
trágico, notar que falar o nome de Torquato Neto hoje é bem simples, mas naquela época, ele era
ignorado dentro da própria cidade-natal. Não por maldade, mas por falta de informação. “Na
época ele era popular, mas popular entre os artistas, pouca gente sabia quem era Torquato Neto,
nem a gente sabia que ele fazia todo esse movimento no Rio de Janeiro. Porque, quando se falava
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

em Tropicália, se falava em que? Em Caetano, Gal, Gil e na Bethânia.Aí falava um pouco no Tom Zé,
mas pouca coisa assim. Mas o Torquato Neto, eu mesmo nunca soube nem quem era, eu sabia que
ele existia, mas era limitado.Alguns artistas sabiam disso, a Lena Rios, que andava muito com ele.
Mas o povo, no geral, ninguém sabia quem era Torquato Neto, nem jamais vislumbrava o que ele
tinha feito, que ele tinha tido uma participação tão grande no movimento Tropical, na cultura
brasileira, ninguém sabia aqui no Piauí”, atesta Marco Vilarinho. Essa falta de conhecimento da
obra específica de Torquato não foi desculpa ou empecilho para que as manifestações diferencia-
das de cultura e ação se mostrassem no cenário local.
“É claro que toda mudança significativa de costumes vem agregada a valores morais e
filosóficos diferentes do estabelecido pelo status quo. Então, se eu amava e trepava com minha
namorada (no banco detrás dos carros ou, logo a seguir, nos motéis que proliferaram em Teresina
a partir de 1970), havia uma grande mudança de comportamento e nas relações familiares, ainda
que ela não engravidasse. Para a polícia e os órgãos de repressão da época, quem usava cabelos
grandes, ouvia rock e músicas dos Beatles, Stones & cia, era chegado numa ‘diamba’ [gíria para
maconha] e lia coisas estranhas como O Pasquim,A Flor do Mal, Rolling Stones, Opinião (jornais
alternativos à grande imprensa da época) e também autores como Jack Kerouac, Hermann Hess,
os poetas concretos e Fernando Gabeira, lia livros com títulos estranhos como ‘As Portas da
Percepção’,‘O Apanhador no Campo de Centeio’,‘On the Road’ e ouvia as loucuras da Tropicália
só podia ser comunista, subversivo ou simpatizante. Sendo assim, acredito que a gente represen-
tava risco à ordem e à moral, sim, senhor, embora não militássemos nas atividades políticas clan-
destinas, de onde vieram a surgir as novas lideranças, os novos sindicatos, as novas agremiações
políticas que geraram PTs, CUTs OABs e ABIs da vida. Demos a nossa contribuição, e foi tudo
92 feito com muito prazer, of course”, bate, Durvalino, no peito estufado.“A ditadura dos milicos não
tinha jeito mesmo. Tudo era proibido, qualquer manifestação era reprimida no nascedouro. As
atividades culturais eram sistematicamente sabotadas. O que fizemos foi uma cultura de resistên-
cia. Por isso, acredito que fizemos a nossa parte.A sociedade civil organizada venceu e a ditadura
acabou”, orgulha-se, ao completar.
Essa auto-afirmação de novos valores, de novas perspectivas, ou da urgência dos mesmos,
batia de frente com o que a cidade suportava. Dentre a classe musical, era maior a cada dia a
conscientização de que havia barreiras a serem vencidas. Mas, por outro lado, não existia [tam-
bém] uma discussão, por parte dos garotos da década de 70, sobre o que foram os anos 60 para

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


o rock em Teresina e o que os rapazes estavam fazendo. As análises, isoladas e superficiais, só
tratavam das diferenças mais diretas e inegáveis.
“Não, a gente apenas os [turma do iêiêiê] achava ultrapassados. Mas, ainda assim, eu e
Edvaldo tocamos várias vezes com Assis Davis”, coloca Couto. Nessa ligação de saber quem era
quem, o que cada um queria e para onde ia, os artistas da época aprenderam o que puderam com
quem já estava na luta. O choque parecia vir como desejo primeiro, mesmo que não fosse o
mesmo choque cultural, referido logo acima. Depois do estudo que comporia o arranjo, o resto
era adicionado.“Não sei se tocávamos para chocar.Acho que tocávamos para chapar, isso sim.A
galera ficava de olhos vidrados nos solos do Edino que eram bastante demorados. Os temas que
a gente tocava demoravam uns dez minutos ou mais. Claro que chocava alguns, mas chapava a
maioria”, explica Durval.
A chapação, por sua vez, não chegava à polícia, sempre atenta a qualquer movimento sub-
versivo, querendo saber, e muito, o que as letras e poemas daquela geração diziam. Como Edvaldo
Nascimento já afirmou, era preciso rebolar bastante pelas linhas para encaixar a idéia original
numa formatação agressiva apenas para os não iniciados. Era preciso jogo de cintura para driblar
a PF. “As pessoas que estavam vivendo aquela coisa podiam sacar o que você estava falando...
Então, foi um momento legal, cara... Eu acho que a gente ter que viver cada etapa, cada momento
da sua vida é importante, tem que ser bem vivida, você tem que explorar aquilo do momento...
Hoje nós temos a liberdade de expressão, mas a gente continua tendo a pobreza, a miséria, a
discriminação racial... Então, a gente continua batendo nessa tecla, de que as pessoas se conscien-
tizem, pra que isso não aconteça. Então, a gente já está focando mais nessa linha, né? De não-
guerra, essa coisa assim...”, aponta o guitarrista Edvaldo Nascimento.
93
Eu sei quem sou e aonde vvou
ou
[ou Mal começaste a conhecer a vida]

Assim, o preconceito continuava, os olhares continuavam, a idéia de subversão continuava, tudo


continuava e seguia como havia sido desde o surgimento dessa coisa que virou o rock na capital
do Estado.As influências iam e vinham, passavam, solidificavam, mudavam, mas a configuração de
uma cidade só, mas com duas caras olhando para o rock de maneiras bem distintas, não se
modificava. Desde 66, até 76, as visões se misturavam a apoios isolados de amigos ou familiares
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

mais distantes do conservadorismo da cidade, e que ficou bem marcado na declaração dos entre-
vistados por todo o livro, com a visão mais estreita da cidade, que limitava o rock a uma manifes-
tação artística de pervertidos.
Essa análise mais distante do ar de perfeição que costumou pairar sobre as entrevistas foi
meio quebrada de repente. “Vilarinho, é impressão minha, ou a história do rock teresinense é
meio mascarada? Existia, mas era muito marginalizada, as pessoas não queriam, foi uma coisa que,
realmente teve que vencer muitas barreiras pra poder acontecer?”, perguntei eu, na sala de
reuniões do jornal O Dia, a Marcos Vilarinho, que respondeu: “Muitas barreiras mesmo, porque
primeiro era um povo [de Teresina] que não se dispunha a quebrar esses padrões. Eu até louvo
muito os roqueiros daqui porque eles tiveram que enfrentar muitas batalhas, eles foram amaldiço-
ados, marginalizados mesmo, entendeu? Eles foram tidos como vagabundos, como pessoas que
não tinham nenhum objetivo na vida, que encaminhavam outros. Então, muitos pais, a maioria total
dos pais de família, não queria ter um roqueiro, um cara daquele cabeludo como companhia de
seus filhos e muito menos de uma filha”, expõe.
Continuo a perguntar. A sala não oferecia risco nenhum, não havia risco nenhum, nem a
quem ofender, mas o clima era pesado como se tratássemos de um tema delicado, e não de
manifestações artísticas.“Se esse medo acontecia com os pais dos adolescentes, no caso, com Os
Brasinhas não tinha muito isso, né? Todos os que eu entrevistei até agora afirmam que as famílias
apoiavam...”.Ao que Vilarinho retruca com reafirmação da ojeriza sofrida na época pelos artistas.
“Mas é justamente porque eram pessoas avançadas. Naquele tempo quem participava, que ficou
lá pelo mundo artístico, eram pessoas de poucas posses, eram pessoas que não tinham muito, elas
eram vistas na sociedade como [pessoas que] não tinham educação, que não tinham berço e
94 quem não tinham dinheiro. Então, eles faziam aquilo porque eram meio de ganhar dinheiro, mas
eles eram super mal vistos, o pai deles levava porque também não tinham nenhuma formação,
para os olhos da sociedade. Mas um pai que tinha um certo nome na sociedade, uma certa
profissão, uma profissão que diria que era ‘fulano subiu na vida’, jamais levaria um filho dele, jamais
admitiria que um filho dele participasse de um movimento musical”, completou o jornalista. Esse
pensamento generalista, no entanto, não encontra reforço em declarações de componentes d’Os
Brasinhas, que atestam o apoio de suas famílias nos capítulos anteriores.
Ainda assim, os dez primeiros anos do rock teresinense foram de luta e de conquistas,
caminhos abertos para quem vinha. E eles vieram.
Hoje é domingo, pede cac himbo
cachimbo
[ou Dia da Criação]

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


Para ler ouvindoThe Beatles –With a Little Help From my Friends

Domingo foi o dia do descanso, na crença católica apostólica romana, depois de Deus ter tudo
criado. Suponhamos, então, que o período que sucede a toda criação do rock teresinense fosse,
agora, o momento de descansar.
Não, os primeiros protagonistas do nosso rock não foram deuses, não há blasfêmia aqui.
No entanto, é salutar observar que eles ergueram monumentos, obras inteiras do nada, do árido
pó que sufocava as narinas de quem ouvia aquela música tão estranha saindo dos rádios. Era um
nada, um vão, um espaço perdido. Eles vieram para tudo construir, rompendo paradigmas, surpre-
endendo, derrubando preconceitos, ou enfrentando-os. Tudo do zero, tudo do nada. Do nada.
Méritos sejam dados, honrarias sejam feitas, só com essa pesquisa foi possível entender que muito
do que se faz hoje, do que já se tem, do que já se observa de mudanças, começou ali, pelos dedos,
esforços, ensaios, bailes, shows, cubas libres, baseados, baculejos, banhos de rio, na coroa, dias de
lua, amores, vontades, desejos e serenatas de todos esses rapazes.
O primeiro decênio do rock é dividido em duas fases claras: Os Brasinhas na primeira fase
e outros movimentos, como Nostristeresina e Bandinha da Cidade Verde na segunda fase desses 97
dez anos. Na primeira parte desses dez anos, totalmente inspirada na Jovem Guarda e no iêiêiê, o
que marca o movimento é a abertura forçada da cidade Teresinense para uma música tão diferen-
te como o rock.Tão diferente e tão nova que quando Os Brasinhas começaram, demorou para
que outra banda pudesse fazer tremer o império construído por eles. E ainda assim o tremor foi
quase imperceptível. Os Brasinhas eram o centro das atenções, a banda mais requisitada, a que
tinha um séqüito de fãs mais representativo... Nada pode tirar deles o ineditismo e a iniciativa de
trazer o rock para Teresina, embora, numa análise mais crítica, eles tenham sido apenas repetido-
res do que acontecia fora daqui.
deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]

Por outro lado, esse foi o principal mérito da segunda fase do início nosso rock, que já se
inspirava em outros movimentos, como a Tropicália e o rock progressivo. Essa segunda fase traz
músicos preocupados em compor suas próprias canções e mostrá-las em apresentações ao pú-
blico, seja ele qual for, diferentemente da turma da primeira fase, que tocavam apenas em festas
fechadas e bailes.
E foi assim que músicos como Geraldo Brito, Durvalino Couto e Edvaldo Nascimento
fundamentaram e sedimentaram um caminho que percorrem até hoje.
A principal lição deixada por esses artistas para quem veio depois deles é que fazer música
em Teresina é algo que precisa misturar muita força de vontade com muita paixão, já que os
empecilhos e dificuldades surgem a todo momento. As coisas já vêm abrandando, mas ainda
existe muito a se vencer.
Aqui, vê-se o vislumbre do fim de uma primeira fase. O sonho não acabava dessa vez. Na
verdade, acabava, e se transformava, quase que imediatamente em outra coisa. Os anos depois de
76 foram de entresafra, um período de obscuridade. Em 72, Edvaldo Nascimento começa a fazer
seu material próprio, e aí, junto com a Bandinha da Cidade Verde, e depois, sozinho, produz até
1982. Seis anos de hiato do fim do nosso decênio de estudo até aparecerem novos parceiros.
Depois disso apareceram outros grupos, como a banda Vênus, com o Robert Ferreira, começou
com um trabalho cover, mas, depois, gravaram produções próprias, a partir da entrada de Thyrso
Neto, que trazia suas composições para dentro da banda.
Mas isso já vai fora do nosso período de pesquisa. Isso já era música teresinense feita no
início da década de 80.
Olhando para trás é que se tem a idéia do que tudo foi.A criação de todos esses rapazes
98 se baseia no furo do bloqueio, na vitória à tentativa de manter tudo o mesmo. Uns pela vontade
de dançar pelos salões. Outros pela vontade de chocar e mudar pelo choque, pela imagem do
desbunde.
Mas Teresina sempre teve uma característica bem própria, pois ao mesmo tempo em que
essa cidade era tão rica em artes, ela tentava, a todo custo, sufocar esse talento natural. Uma luta
contra o seu destino, se ele existir. Era um levante, uma vontade de renegar a arte, preferindo dar
espaço às práticas já estabelecidas de ‘vencer na vida’. Existia todo um contingente de expressões
artísticas a serem mostradas, mas que essa aversão ao apoio às artes fez declinar. Um exemplo
dessas expressões era o folclore da cidade, que era bem construído e ligado à nossa população,

deusexmachina [quando o rock teresinense nasceu do nada]


mesmo que essa sempre assumisse uma postura distante, de não participação.
De acordo com os dados colhidos e das entrevistas concedidas, todas essas formas popu-
lares de cultura eram consideradas popularescas, marginalizadas, associadas às camadas mais
pobres da população teresinense.A cultura popular era considerada cultura popularesca, não era
bem vinda.
Nesses tempos, o tratamento dado a essas manifestações era de admiração à distância,
numa contradição de apoiar, mas sempre de longe; de aplaudir, mas sem querer se aproximar; de
dar vivas, mas sem querer aquilo perto de si. 1x0 para a resistência à cultura do povo, seja ela qual
for, seja qual for o modo de manifestação. Mas isso já é conversa para outro livro. Pode fechar esse
e tocar a vida.

99
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