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108 ‘ABUSSOLA DO ESCREVER Querfamos trocé-las, Entio, tivemos sucesso. Aqui, trago uma vez aquela fala consubstanciada em texto, mesmo que me pareea agora oop gosto de café requentado. Vejo-o como um escrito Prematurameng Nostdlgico. Mas, os novos tempos também sao vitalizados com texto z ; .Memérias de um orientador de tese: = ‘um autor relé sua obra depois de um quarto de século' a podemos aproveitar para fa corientagdes, que antes eram apenas orais. Acredito que essa € uma propa ara nos envolver na formagao de professoras e professores. Assim haja didlogos Claudio Moura Castro {re em Economia pela Universidade de Yale, USA; eee de Vanderbilt, BUA & doutor em Economia pela Universidade r residente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitdgoras, MG. . e-mail: claudiome@atiglobalnet Referéncias CHASSOT, atic. A ciénciaaavés dos tempos, So Palo [_soranzares desta coline entre se str de -. Sobre o ferramental necessério para o trabalho de | pet conser ou aia 25 ano atts. Além disso, escrever. Estudos Leopoldenses, v.32, (148):37-55,1996, esiame aioe ‘e comecar a remendar o texto. Mas 0 argumento sees & desplugados: uns © outros excludes. derante € que o teste do ensaio é a sua possivel atualidade © a Palavra como/vida, ano 6, n.(51):3-5, nov. 1997, ‘ evivencia dos problemas que descreve. Se 0 recauchutasse, 08 leitores Alfabeticagao cientifica: Questdes e desafios para a: saberiam onde esta o novo e onde esté o velho. Educagao, Ijut: Editora Unijui. (2.ed, 2001) 2000, j —. Sobre a arte de escrever didrios. Entrelinhas, ano ly ():11-15, mar. 2001. i FEYERABEND, Paul K. Matando o tempo Uma autobiografia. $00 Paulo: Editora UNESP, 1996, 198p. [Titulo do original italiano: du Oliveira (Org). A aventura sacielSgice: Ammazzando il tempo —un autobiografia. Gius. Laterza & Figli Spa, 198 TONES Edisonjde) ltd, pio, mprovin emda de esis socal Rie ano: Zaha, FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Paz ¢ 1 1978, p.307-326. No proceso de organizagdo deta coe ao ae . Eon la "ofessor Edson de Oliveira Nunes sobre a possibilidade de rey eee Reli com grande trepidagio o texto, confesso, morrendo ae fachar uma porcaria, Nao achei. Seré falta de modéstia ou objetivi oa decida o leitor, jé que a idéia de republicé-lo tampouco foi minha. 110 ‘AISSOLADO ESCREVER Certamente, hé trechos obsoletos, pela morte morrida de alguns temas contra os quais descarrego minha bilis. Assim foi com as chamadas “andilises de sistema” da época, uma farsa, pois nfo passavam de prescrigdes ingénuas fantasiadas de andlise. Ha um tema em que mudaram as etiquetas mas nfo mudaram os, problemas. Como nio havia doutorados, a discussiio se refere as teses, de mestrado. Naquele momento tais teses podiam ser to alentadas quanto uma tese de doutorado hoje. De resto, ja entio nfo tinham menos ambig&es ~ e em certos casos, méritos — do que doutorados na Europa e Estados Unidos. Talvez.o ponto mais curioso € que a redago precedeu a idade das trevas ideolégicas em que mergulhou a educagio e outras dreas sociais a partir do fim da década de setenta. O ensaio reage a um momento onde o pecado mortal das pesquisas na educacdo era a irrelevancia e falta de expressio dos problemas escolhidos para assunto das teses. Tomavam- se aspectos menores, testes de novos métodos de ensinar esta ou aquela disciplina, Ou descrigdes de assuntos ou pessoas irrelevantes. Mas, de repente, a ideologia desabou no pais. A teoria da dependéncia, a teoria da reprodugio, os economistas neomarxistas radicais, a teoria do imperialismo cultural e todas as outras explicagées conspiratorias da nossa realidade. E vinha tudo empapado em fervor ideolgico, em férmulas prontas e em explicagées simples — simples demais. Todas tinham um fundo de verdade, todas punham 0 dedo em problemas importantes. Mas ao transformarem-se em religiées fundamentalistas, perderam a capacidade de serem testadas ¢ de se auto- renovarem. Meus colegas da educagdo se enfureceram quando comentei publicamente que a temética havia saltado do tricé para a luta de classe, sem parar na educacdo, Para estas novas modas, meu ensaio pouco dizia, imagino, Tinha a falsa neutralidade do neopositivismo, Néio bradava contra tudo e contra as forcas opressoras. Sugeria ntimeros e estatisticas. Memos de um oetador di odor de tse: um autos ress obra depois de um quarto de século me M1 as pars Pouee que entendo, o vendavalideol6gico amainou por todas 'S partes —umas mais do que outras. Jd se pode falarem dados, evidéncia Girameros com impunidade.O discurso racionale a busca desapaixonada s aa 8 € a verificagio empirica esto deixando de ser crime contra Portanto, imagino que o ensaio é hi oje mais atual de vinte anos atras, Cabe ao leitor julgé-lo, ee Belo Horizonte, margo de 2001 112 |ABUSSOLADO ESCREVER ‘Memérias de ur orientador de tose: um auto el sus obre depois 113 de um quarto de século Memérias de um orientador de tese sinica. A experiéncia de orientagiio de tese pode ser altamente enriquecedora, mais do que compensando as atividades do cotidiano aqui descritas no mesmo tom professoral com que so declamadas aos alunos. Introdugao Este ensaio é uma tentativa de reflexdio sobre minha experiéncia como orientador de teses. O que segue é uma colagem de experiéncias pessoais e pequenos incidentes, entremeados em uma discussio de questdes substantivas e metodolégicas. Naquilo que se refere a esses problemas de contetido e método, as observagdes oferecidas contém um grau aprecisivel de generalidade. Todavia, no que se refere a estilos de atuago como orientador, cabe enfatizar o carter idiossinerdtico da experiéncia. Cada orientador tem seu estilo pessoal de trabalho. Seguramente, alguns sero melhores ou piores, 0 que inclusive pode depender do estudante, mas de forma alguma haveria modelos de atuagio Para tornar mais concreta a questéio, bem como para recorrer a pessoal que fossem tinicos ou necessariamente melhores. Dentre os uma 4rea que conhego melhor, centrarei a discussao nas teses em orientadores, ocorre tal variedade de personalidades ¢ estilos de trabalho. Educagao. Contudo, parece-me que em boa parte os resultados seriam que no haveria qualquer sentido em emular caracteristicas que sio _ aplicdveis a outras areas. puramente idiossincriticas. Contudo, dado 0 espirito deste ensaio, nfo houve qualquer tentativa de eliminar comentérios sobre situagdes em que componentes subjetivos podem prevalecer. destes graduados que conseguem terminar sua tese de mestrado, mais, inquietante ainda é a qualidade destes trabalhos. Nao me deterei aqui na > especulagdio do porqué do grande ntimero de desistentes; meu propésito € discutir problemas de qualidade. Nesta segiio nao pergunto como se escolhe um tema de pesquisa, simplesmente elaboro sobre 0 que no é uma tese. Um exame superficial de titulos de teses sugere a seguinte Classificacdo proviséria dos falsos caminhos observados: 1) propostas, Planos ou reformas de algum aspecto do sistema escolar; 2) teses [Alditicas,cujo objetivo & preparar um texto didético sobre algum assunto; |9) teses de revisdo bibliografica, nas quais se tenta reconstruir 0 esenvolvimento empirico ou tedrico de alguma rea; 4) teses tipo “Tevantamento”, nas quais se constatam ou se medem certos parametros H realidade; 5) teses teéricas, nas quais se tenta avangar a fronteira a0 WVel teGrico-analitica. Em oposigAo a esta lista, proponho uma alternativa A fidelidade aos objetivos e ao tom proposto para esta coletanea levam- ‘me amencionar que o seu organizador, em uma primeira leitura, considerou excessivamente normativo o presente ensaio. Voltei a lé-lo, e dei-me conta enti de que o tom normativo corretamente percebido por ele meramente reflete o cotidiano do orientador de tese — ou pelo menos do meu estilo de trabalho. Grande parte do tempo de orientacZo € consumido tratando de questées onde a inexperiéncia do aluno e as limitagées de tempo sugerem uma titica direta e Obvia: “Assim esté errado, por que nio tenta desta outra A forma...”, Nao vai af a implicagao de que se trate de um caminho de mao | ¢ a uma tese: 6) teses tedrico-empiricas, nas quais se relaciona algum. ‘Ao mesmo tempo, notou que faltavam exemplos, critica que sou contumaz em faze i bs iy ss lelo te6rico com observagdes empiricas. ‘a meus orientandos. 14 ABUISSOLADO ESCREVER ‘Meméris de um orentador de tse: um autor elé sua obra depois M5 eum quana de secu. A julgar pelo fato de que em todas estas categorias tem havido teses aprovadas, jd ficou claro que meu pensamento colide com aquele das bancas examinadoras dos cursos de Educag3o. Examinemos cada um dos t6picos: ‘um curso repetidamente ministrado, uma estratégia madura de transmissao deconhecimento. O curso de pés-graduaco é uma volta ao desconhecido, uma tomada de consciéncia da nossa propria ignorancia. E um desafio aquilo que criamos ou que pensivamos saber. Hé tanta destruigao quanto 1) Propostas ou planos ~ A nossa tradigo educacional glorifica o eriagiio num curso desta natureza e, portanto, nos parece pouco oportuno furor legislativo, pressupondo uma plasticidade do mundo real, _ esse exercicio de burilar exaustivamente a apresentagdo de alguma frea denunciada e negada pelas mais simples observacdes do que acontece a _ do conhecimento: isto € o que significa redigit um texto diditico, ‘nossa frente. Isso sugere o pouco oportuno que é gastar alguns semestres Lembro-me de consultas feitas a mim sobre uma proposta de do tempo de um aluno para repetir esse exercicio deseducacional de rganizar um roteiro de estudo de estatistica para alunos de pés- futilidade. E preciso conhecer a realidade, antes de tentar modificé-la. O ‘Nao tive o menor sucesso em dissuadir 0 cendidato a esse desafio de desvendar a realidade € precondig&o para o desenho de legislacao ou planejamento educacional com perspectivas de sucesso, Parto da premissa de que a formulaco de planos torna-se muito mais facil, uma vez compreendida a realidade, com suas Areas de plasticidade! © as dreas em que seria ingénuo ou inécuo tentar manipular o process educacional, E necessério quebrar a tradicio de redigir documentos em jargio legal, em que se descreve aquilo que gostarfamos que fosse realidade, sem qualquer respeito pelo que de fato € a realidade, pelo q € refratirio & mudanga e sem a astticia de descobrir os pontos em que 9 processo € manipulivel. 3) A revisao da bibliografia, entendo, é 0 primeiro ¢: pitulo de tese e niio a prépria. O curso de pés-graduagiio é um esforgo de Ralise e sintese, isto é, entender o legado do conhecimento e, em bguida, elaborar sobre ele, trabalhar de maneira ori iginal e inovadora essa heranga. Escrever uma tese de revisio de bibliografia ¢ limitar 80 de p6s-graduagio A primeira fase. E deixar aleijada ou mutilada Hidde andlise/sintese. Contudo, longe de mim estaria afirmar que nio lificuldades ou méritos nesta revisdo, nesta tomada de posigiio critica Pela minha frente ja desfilaram impavidas e invulnerdveis ag M relacio ao “estudo das artes”. Nada mais adequado e desafiador minhas criticas propostas para salvar os mais variados nfveis e tipos m aluno, mas apenas como exercicio no que estamos educagao. Lembro-me, por exemplo, de propostas para organizé Visoriamente chamando de fase analitica do curso. O resultado programas pré-escolares, incluindo, naturalmente, a minuta da legislaga exercicios raramente poderd passar de conhecimento requentado requerida, q igerido. Ha lugar para a revisio da literatura, equilo que em 2) A tese didética nfo 6 uma aventura de racioc{nio e de explora anBlesa se costuma chamar “survey”, Mas no é por acaso que mas sim um mero exercicio de redagio. Escrever bons textos didatico} 180s stio necessariamente escritos pelas pessoas de maior fungio de professores, no de alunos, enquanto nas universidades sao alung Fran autoridade no campo, nunca por principiantes. E raro o ‘que escrevem teses de mestrado. E se so alunos, estiio avangando "RSS ee conhecimento, agugando a sua capacidade de anélises; nao € ess jaa ue contibuiu nesta éea, Pode apenas ocorrer que o artigo momento de ensinar, de congelar 0 conhecimento, mas sim de desafid lim can Dortugués, mas devemos nos lembrar de que 0 mestrado de alargé-lo, O texto didatico € o resultado de um polimento sucessi ‘uso de “Tradutores ¢ Intérpretes' 116 A BSSOLADO ESCREVER 4) As teses do tipo “levantamento” merecem uma discussio cuidadosa. Dado o irresistivel atrativo do tema para um grande nimero de mestrandos, estas sio as chamadas teses “descritivas”. Todavia, evitamos aqui essa nomenclatura de inapelavel ambigitidade. Uma pesquisa normalmente envolve um exame de dados e observag6es. Como, nem sempre estas observagdes estao disponiveis em um formato adequado para a investigacZio contemplada, é necessério ir a0 campo coleté-las. Mas esta coleta nZo passa, ou no deve passat, de uma fase inicial da pesquisa, digamos, de um mal necessario. A experiéncia de colher dados é importante e enriquecedora, porém corresponde a uma fragzio bem modesta na formago pés-universitéria. Eo exame e a reflexdo sobre 0 nexo que hé entre esses dados que correspondem ao nobre processo da pesquisa cientifica. Preparar quest6es e aplicar questionérios, ‘examinar a distribuigio dos parametros ou das varidveis, nao passa de um preficio, uma preparagio que nao pode ¢ nao deve monopolizar a atencao do mestrando. Interessa 0 que vem depois da tabulagio das varidiveis. Interessa 0 sentido que faz o entrelagamento destas varidveis. Interessa-nos © como e o porqué. Contentar-se com menos é contentar- se com praticamente nada. Nesse ponto, minhas divergéncias com outros orientadores é mais forte. Uma tese que apenas chega ao umbral da anélise € uma tese incompleta; ni esté no ponto de ser defendida. Se o aluno nao tem a disposigao, gosto ou as qualificagdes para alguma coisa além de coletar dados, julgamos entdo que no é talhado para a pés-graduagio, destinada a elite cientifica da sociedade. 5) Chegamos agora as feses tedricas. As teorias, os modelos, os constructos, ou como quer que chamemos, sao 0 arcabougo légico que nos permite organizar e dar sentido &s nossas observagdes sobre o mundo real. Ocasionalmente ocorrem grandes saltos te6ricos, as “revelagées cientificas”, ‘mas o trabalho cotidiano do cientista “te6rico” consiste no aperfeigoamento ou redirecionamento do arcabougo conceptual através de formulagées mais, Mest der aero de amar ae eps 47 simples, mais elegantes ou que melhor descrevam a realidade. Agugar as armas analiticas corresponde a uma tarefa eminentemente nobre na produgao cientifica. Faré um espléndido trabalho aquele que consiga contribuir nesta firea. Em principio, este € um t6pico eminentemente nobre para uma tese. Porém, em oposigio a t6picos anteriores, que pecaram pelo excesso de modéstia, este impde um grande desafio, e um desafio que o aluno deverd realisticamente avaliar. Minha experiéncia pessoal com alunos de pés- graduago sugere que apenas um nimero extremamente reduzido deles deveria optar por este caminho. Em economia, alunos com um superlativo conhecimento de matemitica poderdo trabalhar num refinamento da expresstio simbilica de diversos aspectos do conhecimento econdmico. Mas, excetuando-se eas cuja expresstio matemética ja atingiu um clevado nivel, seria muito raro que um mestrando pudesse sair-se com sucesso em um experimento estritamente dedutivo. Aquilo que com ingenuidade vem sendo ‘chamado tese tedrica nfo passa de teoria de segunda mio. Se por tese te6rica entendermos discussées ou reflexes filos6ficas, doutrindrias ou ideol6gicas, safmos tanto do assunto deste ensaio quanto do contetido usual dos programas de Ciéncias Sociais. Nao estamos negando a procedéncia de teses desta hatureza, mas simplesmente afirmando que ndo se referem ao que estamos discutindo. Algumas vezes tive sucesso em dissuadir candidatos que se propunham a escrever 0 que pensavam ser uma tese teérica, A atragio da anélise de sistemas, nao obstante, se revelou em um par de vezes maior que meus poderes de persuasio. Traduzir duas ou trés versdes requentadas de andlise de sistemas, desenhar quadrinhos e setas com 0 nome do problema e das varidiveis que se deseja entender parece algum tipo de magia negra. Deve ser algo assemelhado a feitigaria ou umbanda, com efeito semelhante a escrever nomes em pepéis ¢ espetar alfinetes ‘em bonecos que representam inimigos. 6) O ceticismo que revelo com relagdo aos temas anteriormente mencionados ja deve ter claramente sugerido ao leitor que minhas preferéncias para assuntos de tese de mestrado recaem sobre os temas te6rico-empiricos ou indutivo-dedutivos. Nao se trata de capricho ou 18 ‘ABUSSOLA DO ESCREVER ativismo, mas sim do fato consagrado de que este € 0 caminho mais trilhado na evolugio da ciéneia e na expansio do conhecimento. Por sua indole, alguns so mais dedutivos do que indutivos, partindo de alguma formulaco te6ricae confrontando-a coma realidade, isto 6, com a observagao empitica, Outros siio de temperamento mais indutivo, partindo do exame das observagdes, ou mesmo da sua coleta, e dai prosseguindo para sua interpretagio; seu raciocfnio segue os meandros dos dados ¢ da realidade, eventualmente chegando ao corpus tedrico da disciplina. Mas é importante que se entenda, nao hi lugar para desavisados ou desprevenidos. O indutivismo puro, tal como o dedutivismo puro, so igualmente invidveis ou impossiveis. Aqueles que partem dos dados, jé partem procurando alguma coisa ¢ em absoluto desconhecem o repertério te6rico; e aqueles que partem de teorias no as tiraram do vacuo, mas sim de prévios confrontos com 0 real. Ha um escasso niimero de génios ¢ iluminados que ‘ransformam e revolucionam nossos paradigmas te6ricos, no outro extremo hi oexército dos proletarios da ciéncia que nada mais fazem do que produzir matéria-prima, em uma primitiva indstria extrativista, Nao nos interessa aqui qualquer destes dois grupos. Nosso modelo o grande contingente de pesquisadores que em sua atividade metédica e sistematica fazem avangar as fronteiras do conhecimento. Para os mais criativos, mais preparados ¢ experientes, estdo reservados avangos mais substanciosos. Mas niio € vio o trabalho dos principiantes, Nao é dificil nem impossfvel localizar éreas do conhecimento em que num exame da confluéncia da teoria com a realidade, do constructo com o protocolo, nao se possam antecipar contribuigdes respeitaveis ainda que modestas. E que isto nao seja entendido como um teste meciinico e mortigo de “modelos”. Pelo contrrio, trata-se da esséncia do pensamento cientifico, e, nas ciéncias sociais, do seu maior desafio. Propositadamente néio coloco as pesquisas hist6ricas em uma classe separada, Estarfio enquadradas na iiltima categoria, na medida em que perguntam © porqué ¢ 0 como de certos eventos importantes. Fatos desinteressantes no adquirem interesse por haverem ocorrido no passado, Alguns eventos so triviais tanto no presente quanto no passado. O [Mernrias de um orientador de ese: ur autor relé sua obra depots 119 ‘dem quarto de século © granscurso do tempo nos permite mais perspectiva ¢ objetividade, a0 mesmo tempo que aumenta a imprecisio ¢ a deficiéncia de informagdes; Gontudo, raramente adiciona relevancia a um t6pico. Paralelamente, jidmeros, nomes e datas s6 adquirem importincia, no presente ou no passado, na medida em que se eneaixam em uma estruture }6gica coerente teoricamente fértil. O levantamento de dados, de hoje ou de ontem, € “apenas o prinefpio. £ interessante ver esta mesma posigdo expressada pelo grande haturalista Von Martius, escrevendo em meados do século passado: Sobre a forma que deve ter uma hist6ria do Brasil (..). As obras até 0 presente publicadas (...) abundam em factos importantes, esclarecem até com minuciosidade muitos acontecimentos; contudo nao satisfazem ain- daas exigéncias da verdadeira historiografia, porque se ressentem demais de certo espirito de crOnicas. Um grande nimerode factos e circunstinci- as insignificantes, que com monotonia se repetem, ¢ a relaco minuciosa até o excesso de acontecimentos que se desvaneceram sem deixarem ves- {igios histéricos, tudo isso, recebido em uma obrs hist6rica, hi de prejudi- car o interesse da narragio e confundir 0 jufzc claro do leitor sobre 0 essencial da relagdo, O que avultaré repetit-se 0 que cada governador fez ou deixou de fazer na sua provincia, ou relacionar factos de nenhuma importincia histrica que se referem a administrago de cidades, munict- pios ou bispados, et. ou uma escrupulosa acumulagao de citagdes © au- tos que nada provam, e cuja autenticidade histrica é por vezes duvidosa’ = Tudo isso deverd, segundo a minha opinio, ficar exclutdo. [Em suma, ndo consideramos como temas adequados para teses de estrados (em cursos que se possam enquadrar no campo das ciéncias Sociais) os trabalhos de polimento de textos didéticos, os exercicios escolares de revisdo bibliogrifica, ou outras empreitadas, que deixem 0 ~ curso pela metade. ‘Tememos 0 excesso de ambigio daqueles que se etem em aventuras de formulagio te6rica ou metodol6gica. E "Como se deve escrever a hist6ria do Brasit”, Carlos Frederico Pr. de Martius, Revista | do Instituto Historieo, janciro de 1845, 120 -NBUSSOLADO ESCREVER finalmente, julgamos que esté na confluéncia da teoria com a realidade 0 foco mais fértil para os trabalhos de tese de mestrado. O evento traumatico da escolha do tema Sem diivida, a escolha do tema da tese € uma questo crucial. Uma escolha infeliz pode tornar a tese praticamente invidvel, insalvavel ou estéril como contribuigao em uma érea em que muito pouca exploragao. sistemética tem sido feita; portanto, uma drea onde € facil contribuir com trabalhos significativos. Uma boa idéia nao basta, ¢ as teses defendidas estio ai para melhor documentar esta assertiva. Mas, se nem {sto temos para recompensar as dificuldades de sua execugao, a situagio nos deixa poucas esperangas. As angiistias ¢ traumas observados nos estudantes, ao momento de escolherem seus temas, estZo 3 altura da importancia da ocasitio. Mas nao vai af dizer que as lamentagdes ¢ a agressividade errética entio geradas tenham qualquer funcionalidade na solugiio deste problema. Tampouco é cabjvel imputar culpa aos alunos pelos desacertos e pela infelicidade de suas escolhas. Tais erros podem em boa parte se imputar 2orientagdo académica e ao clima de opinido que prevalece no ambiente universitério freqiientado. Ha uma regrinha convencional que é perfeitamente apropriada, ‘como esquema mental para se discutir a escolha de um tema de tese — ou de qualquer pesquisa. Como todas as regras desta Area, sua validade se excessivamente genérica ¢ nada afirma sobre 0 contetido substantivo. E meramente um roteiro que sistematiza as deriva do fato de que ¢ discusses em torno do assunto. Uma tese deve ser original, importante ¢ vidvel. Cada um desses ctitérios aponta em uma diregdo. Nao hé qualquer dificuldade em encontrar temas que satisfagam a um ou dois deles. A dificuldade esté ‘em satisfazer aos trés. E se, em algum grau, os trés no forem satisfeitos, a tese serd um rematado fi E conhecido nos meios académicos Meméras de um orientadr de tse: um auto relé sua obea depois «de um quarto de século 121 4 “niversitarios 0 caso do professor cfnico que apés a elogliente " pretensiosa conferéncia de um colega jovem afirmou: “Tivemos hoje a satisfagd0 de ouvir muitas coisas importantes € muitas coisas novas, $6 Jamento que as coisas novas no sejam importantes e que as coisas “importantes nao sejam novas”, Um projeto de tese que buscasse descobrir o elixir da juventude buscasse medir a desereZo do ensino primério estaria tratando de um tema portante € vidvel, no trazendo contudo qualquer originalidade. Uma {ese sobre a cor da roupa que os alunos trajam para ir fazer exame vestibular "seria original vidvel, porém destituida de importancia, Vale a pena tentar caracterizar melhor o sentido das palavras *importancia, viabilidade” e “originalidade”. Cabe enfatizar inicialmente a ipossibilidade de defini-las de forma rigorosa. Paradoxalmente, alguns ‘conceitos mais essenciais a nortear o procedimento cientffico se revelam_ _Yergonhosamente vagos. As definigdes precisas e operacionais f qilentemente no sio possiveis naqueles conceitos que tm a ver com os 1 limentos basicos da ciéncia. As exigéncias de validade objetiva e de inigGes operacionais se aplicam de forma rigida apenas as fases mais iras do processo cientffico. Quando falamos de originalidade, por plo, no maximo podemos aspirar ao que é conhecido como validagfio ibjetiva, isto é, embora ocritério seja subjetivo, exige-se acoincidéncia Pontos de vistas ou percepgdes da parte de diferentes observadores. inal ento é o que todo mundo acha que é original. Mas quem é esse mundo"? Se todo mundo for realmente um grupo casualmente reunido, ‘da dificuldade de se obter consenso, este pouco significara. A validagio Intersubjetiva requer, pois, a formagdo, pelo menos hipotética, de um grupo Suja apreciagio do tema deva receber maior credibilidade. So em geral os, hamados “peritos” ou os patriarcas da matéria; espera-se que sejam pessoas Hja Competéncia pessoal e cuja experiéncia profissional os tenha permitido Sonviver mais e refletir mais sobre o assunto, Abrandamos o subjetivismo, Mas na verdade no conseguimos superar o fato de que importante € 0 que ‘Meméries de um orientador de tse: ur autor relé sun bre depois 123 122 ‘A BUSSOLADO ESCREVER ‘dem quarto de século O mérito portanto dessas regras nfo 6 oferecer receitas para 0 que se deve fazer ou deixar de fazer, mas sim servir como roteiro para organizar nossa busca de uma solu foram medidos, empresta originalidade a um esforgo inicial de pesquisa nessa directo, Espera-se que o supletivo seja um instrumento de mobilidade ascensional; os de baixo indo para cima, Estaro 03 candidatos realmente vindo de baixo? Quem faz. um curso por correspondéncia? Ser esse um instrumento de formagtio profissional? Ou uma maneira conveniente para jovens de classe média adquirirem hobbies ? Em geral, quanto mais testada uma teoria, menos os novos testes nos surpreenderdo e menor a probabilidade de que nos digam alguma coisa de novo. 1) Importancia: Dizemos que um tema ¢ importante quando est de alguma forma ligado a uma questo crucial que polariza ou afeta um segmento substancial da sociedade. Um tema pode também ser importante se est ligado a uma questio tedrica que merece atengio continuada na literatura especializada, A situag2o mais delicada e dificil teria a ver com os temas novos que a ninguém preocupam, seja te6rica ou praticamente, mas que contém o potencial de virem a interessar ou afetar muita gente. 3) Viabilidade: Dente os trés, este & seguramente 0 conceito mais tangivel. Dados 0s prazos, os recursos financeitos, a competéncia do futuro autor, a disponibilidade potencial de informagGes, o estado da, teorizagio a respeito, dé para fazer a pesquisa? O prazo pode ser insuficiente, © mesmo se dando com os recursos. Ao pesquisador pode faltar 0 preparo especifico naquele campo. Pode no haver uma sistematizago prévia do conhecimento na drea ou a teoria apresentar " insolvéncia metodolégica. Finalmente, os dados necessérios podem inexistir, ou mesmo, a sua coleta ser impossivel. O veredicto de > inviabilidade 6 mais fécil ser atingido com confianga, em contraste com "critérios de importincia e originalidade. Foi realizada uma pesquisa que verificou que estudantes do sexo masculino tendem a carregar seus livros junto aos quadris, seguros por apenas uma das mios, Jd as mulheres levam-nos com ambas as mos, cingidos junto ao peito. Original ¢ vidvel essa pesquisa pode ser. Sua relevancia, contudo, estd por ser demonstrada, Nao nos parece um tema prioritério na pesquisa educacional brasileira, Em oposi¢iio aos antropélogos que buscam o exético, estudantes de educagio se sentem irremediavelmente atraidos pelos estudos sobre sua propria profisso— querem saber como anda o seu préprio mercado de trabalho, em que consistem suas fungdes etc. Ao experimentarem um novo método pedagégico, por exemplo, querem saber 0 que os professores pensam dele. Ora, isso poderia vir a ser uma segunda ou terceira preocupagiio, em termos de importincia, O que realmente cabe saber primeiro é se os alunos aprendem melhor desta maneira. Em uma ocasido recebi uma proposta de tese na érea de nutrigao, na ‘Qual se previa um estudo experimental com mensuragdes no inicio e no fim de um processo de interveng3o no funcionamento de unidades familiares. Tratava-se de uma pesquisacom pré-escolares, visando a alterar /ébitos de alimentagao. Tal como estava desenhadbo, o estudo requereria elo menos quatro ou cinco anos, se estivesse em maios de pesquisadores ‘perimentados e com todos os recursos disponiveis. Para tornd-lo vidvel Jouve que transformé-lo em um estudo transversal, sem componentes Perimentais ou semi-experimentais, ou qualquer tipo de intervenga0, O ultado final, embora muito mais modesto do que a proposta inicial, "velou-se uma tese de mestrado particularmente interessante. 2) Originalidade: Um tema original € aquele cujos resultados tém 0 potencial para nos surpreender. O fato de nao haver sido feito nao confere necessariamente originalidade a um tema. Em muitos estados brasileiros em muitas ocasides foi medido o status socioecondmico-dos Universitdrios. A mensuragdo deste conceito em um estado que estivesse faltando nao ofereceria muita originalidade: sabemos que os resultados io nos vaio surpreender. Por outro lado, o status socioeconémico dos alunos do supletivo ou dos cursos por correspondéncia, porque jamais, A anélise ocupacional tem se revelado particularmente falida Caso das ocupagées mais complexas, que convencionalmente ‘Meméras de um ofientador de tse: um autor rele sua obre depois 15 124 ‘ABUSSOLADO ESCREVER ‘deum quart de século requerem escolaridade superior. De fato, 0 fracasso do método das | tirar alguma coisa que nao havia sido encontrada antes. Achar previsdes de mio-de-obra (manpower requeriments approach) em pouca experincia e com pouco esforco seré possivel descobrit coien boa parte pode ser atribufdo a insolvéncia da andlise ocupacional. E nova onde os outros nao descobriram é pueril, pretensioso e subertinie esforgo daqueles que anteriormente examinaram o tema, dentre as ocupagGes de nivel superior, ndo hé mais refratdrias a esta anilise do que aquelas que envolvem uma forte dose de administragao. Mas, como amainar o fervor de um aluno que se propée a anélise ocupacional de um diretor de escola? Como convencé-lo que tal pesquisa s6 produziré banalidades? As pretenses de um trabalho cientifico tém que ser dosadas de acordo com as possibilidades do autor nas circunstincias dadas. Isto no quer dizer que o trabalho tenha que ser concebido jé do tamanho certo e justo. No planejamento de uma pesquisa hé um perfodo inicial de » expansio, seguido por um outro de contengao ou corte; em termos da _ nomenclatura usada em estudos de criatividade, hd um periodo divergente, seguido por um outro convergente. Ha um perfodo em que todas as idéias sio acolhidas, todas as ramificagdes si interessantes € bem-vindas onde a autocensura ¢ limitagdes de tamanho so peias impertinentes. _Neste periodo, o enciclopedismo é bem-vindo, Um problema traigoeiro também de viabilidade esta em teorias, que aparentemente so simples e bem arrematadas mas que na realidade escondem enormes dificuldades. O Ministério da Educagio alegremente convida a todos para sondagens de mercado para ocupagées, profissionalizantes do 2* grau. Caveat emptor, somente os mais sofisticados em economia da educagio poderao perceber que estas, sondagens so inacreditavelmente dificeis. Os problemas tesricos ¢ ‘metodol6gicos para sua realizagio ainda nao foram resolvidos. ___Héentretanto um momento — que nao pode tardar muito — em que 8 pesquisa tem que adquirir foco, livrar-se dos desvios ¢ ramificagdes Menos importantes, chegando finalmente ao seu tamanho vidvel. Sentimentalismo com relagio ao que é jogado fora significa um duro Sacrificio no tratamento daquilo que fica. Essa é a hora de transformar 4m ex-futuro tratado definitivo em uma contribuigdo modesta. Ao mesmo fempo, significa trocar um sonho ut6pico por uma possibilidade tangivel. "esquisa nao se faz com sonhos e pretensdes, mas pela adig%io de tribuigdes pequenas mas sélidas e irreversiveis, Diario de um orientador Nesta se¢do passamos em revista um conjunto de situagées que freqlientemente se apresentam no processo cotidiano de orientagio de teses. a) A ambigdo excessiva: os tratados definitivos b) A histéria da humanidade como tema de tese Quase todos os autores de teses passam por uma fase em que s¢ | imputam a misstio de produzir o tratado definitivo sobre 0 assunto. como se @ hist6ria da ciéncia fosse passar a ser dividida nos perfodos “antes da minha tese” e “depois da minha tese”. O otimismo e a ambiclQ io sauddveis até 0 momento em que impedem um grau de ateng4o suficiente a cada um dos pontos a serem cobertos. Oerxcesso de ambicao na amplitude do objeto de estudo a ser tratado contra paralelo na dimensio hist6rica que principiantes tendem a dar Seus temas. O que nao deveria passar de uma tentativa parcimonios localizar 0 tépico no espago € no tempo termina em uma empreitada Gpettitahistéria da humanidade. Qualquer que sejao assunto, podemos 1, pempectiva de una erbuiggosgaioaivn 6 oomtngsnel Parciaes de Arist6teles ou Plato, referéncias sobre sua ocorréncia ee ee eee ae ia, talvez. em Sao Tomas de Aquino, o que disseram os 126 ‘NBUSSOLADO ESCREVER iluministas sobre 0 assunto, € por af afora. Nos exemplos mais tristes, essa historiografia da humanidade ocupa praticamente todo 0 prazo que estaria destinado & tese € preenche um niimero de laudas nas quais se pensaria que deveria estar o trabalho completo. Umatese deve revelar 0 dominio dos conceitos utilizados e um certo conhecimento da literatura técnica. O assunto no deve estar solto no espaco, mas colocado no seu contexto. Todavia, 0 dominio dos conceitos se revela no seu uso ao longo da andlise e ndo na infindavel seqléncia de definigdes de diferentes autores. Quanto ao conhecimento da literatura, espera-se competéncia ¢ nao erudicao. So aqui particularmente culpados 6s orientadores que tendem a valorizar as teses 0 tecido adiposo de citagdes © a exumagio hist6rica de autores que escreveram no passado sobre 0 assunto. Como regra geral, devemos entender que todos esses proleg6menos tém que se manter em uma posig20 modesta, tanto no esforgo de elaborago da tese quanto na voracidade de papel. Se pouco hé que dizer de substantivo, se hd poucos resultados a comentar, nfo € apresentando alentadas revisdes da literatura, “histérias da humanidade” ou capitulos metodolégicos que se vai atenuar o problema, Uma tese grande e sem novidade € pior do que uma tese pequena e sem novidades Uma histéria da educagao no Brasil esta por ser escrita. Nao se pense por isso que esse possa ser um tema de tese. Quatrocentos anos de hist6ria do Brasil diluem a criatividade do autor, a ponto de no sobrar nada substancial para a compreenstio de qualquer local ou momento. Em contraste, uma tese sobre a educagiio em Minas Gerais na década de vinte seria um estudo bem-vindo e vidvel. © que foi dito sobre a histéria da humanidade € também vélido Para os tratados de geografia ¢ as descrigdes minuciosas sobre o processo de amostragem, Nada mais tentador do que preencher espagos com mapas © as variadas estatfsticas contidas em um anuétio. Igualmente, quando amostramos, estamos interessados no universo. Nao cabe, portanto, descrever minuciosamente as unidades que compoem @ amostra, a ndo ser que isso possa definitivamente contribuir para uma melhor compreensdo de certos resultados. "Memérias de um orentador de tse: um autor re ua bra depois 127 de um quatto de século ¢) Das maneiras naturais de se dispor mal do tempo: excesso de dados e escassez de antilise A pritica da pesquisa indica que na maioria dos trabalhos existe uma seqiiéncia aceitavelmente previsfvel de etapas. Da mesma forma, a duraco de cada uma dessas fases, embora possa variar de pesquisa a pesquisa, segue uma distribui¢do que nada tem de castica. E bem verdade que qualquer tentativa de fazer com que um modelo de pesquisa ou uma série padronizada de procedimentos se imponha sobre as necessidades sentidas ao longo do trabalho é indevida, injustificivel e corresponde & uma compreensio errada do papel ou das fungGes dessas regras; contudo, hd algumas generalizages cabiveis. Toda pesquisa tem uma fase inicial na qual se definem seus objetivos, se examina a literatura pertinente e, enfim, se planeja o trabalho. Essa fase normalmente culmina com aquilo que chamamos termos de referéncia ou projeto de pesquisa, mas este documento deve ser entendido como um subproduto do processo de planejamento e da pesquisa e no como objetivo em si. Segue-se ento uma fase de ccleta de dados, sejam eles de primeira ou de segunda mio. A prOxima fase é 0 processamento dos dados, envolvendo ou nao computaci eletrdnica, de acordo com 0 ‘ipo de pesquisa. Vem entio a sua andlise ¢ interpretagao. Finalmente, vem a redagiio do trabalho, chamando-se a atengaio para o fato de que arte dela pode preceder o final da andlise. Finalmente, hé um period de revisdo que envolve a circulagdo do trabalho entre leitores, orientadores, criticos, amigos, etc. As revisdes de estilo e diivida quanto Aclareza tém que ser atendidas e a apresentacio fisicado trabalho cuidada. Podemos pensar em uma seqiiéncia correta de duragZo de cada ‘uma das fases, tal como ilustrado abaixo. Seqiténcia correta Snide) cota ‘asos vedgho | revsto 128 |ABOSSOLADO ESCREVER Ha contudo uma outra seqiiéncia que poderfamos chamar “natural” e que corresponde manifestagao de duas grandes forgas naturais: 0 alongamento das fases iniciais e o encurtamento das finais, este tltimo produzido pela inelasticidade dos prazos, conforme ilustragao a seguir. Seqiiéncia “natural” catrgao colt cac08 processaneno A fase de planejamento encontra seus obstéculos naturais na produgio do malfadado “projeto de pesquisa” e na procrastinagaio do inicio da pesquisa, gerada pelos dramas existenciais. Nessa fase, a pesquisa ainda no comegou; seu autor no sabe como iniciar e tem medo de fazé-lo. Daf sua tendéncia escapista. Continuar revendo a literatura é uma desculpa perfeita, havendo sempre um livro a mais para ser lido, mais um artigo que aparece de diltimo hora, etc. A redagiio do projeto é também traumitica. O aluno entende que af se deverd resolver uma série de problemas que na realidade constituem o objetivo da pesquisa e que nao poderiam ser atendidos antes. A coleta de dados 6 prejudicada por dois tipos de problemas. Freqlientemente, hd um erro no desenho amostral, no sentido de que é planejada uma amostra excessivamente grande. Esta amostra é grande tanto no que se refere a significdncia dos parametros e a sua representatividade quanto no tempo necessério para obté-la. Amostra ineficientes ou simplesmente grandes demais caracterizam a vasta maioria Devemos nos lembrar de que Darwin, apés ter todo o material de que necessitava para demonstrar suas idéias, decidiu completar mais ainda sua evidéncia através de ‘uma pesquisa sobre moluscos que consumiu cerca de dez anos. Somente depois desse estudo redigi 0 ensaio no qual expde sua teoria evolucionista. Esse escapismo parece ter sido determinado por causas emocionais e dividas religiosas. ‘Meri de ur aentador de tse: um autor rlé sua obra depois 129 ‘dew quart de secu dos projetos de tese. Em segundo lugar, o autor no é capaz de se antecipar 2 infinidade de pequenos problemas administrativos e logfsticos que ocorrem no curso da coleta. Todo otimismo com relagio a autorizagdes para entrar em escolas, fabricas ou repartig6es é totalmente infundado, Facilmente leva-se seis meses para tramitar uma permissio de entrevistar alunos de uma escola ou duas. No caso do uso de dados secundéios, aquilo que se pensava existir, muitas vezes nunca chegou a ser coletado. Entrevistadores de campo exibem uma assustadora taxa de desergdo € tém que ser substituidos ao meio do caminho. Freqiientemente, o tempo previsto para a coleta de dados amplia-se enormemente. O pesquisador termina entio tendo consumido uma fragio muito grande do seu tempo para coletar muito mais dados do que na realidade necessita. O processamento de dados quando € feito em computador oferece imensas perplexidades. O pesquisador niio conhece o que pode fazer 0 computador ¢ tampouco sabe dialogar com 0 programador. Assustado com um curso de “Fortran”, iniciado hd muito tempo, ele vé no ga todo o seu programa, receber‘ os resultados. Desaparecem os programadores, nao funcionam os programas preparados € 0 tempo passa, Fracassaram os pesquisadores por nio entenderem que © processamento eletronico ndio é um apéndice estranho ao seu trabalho, mas sim uma parte integrante. Quem deve conhecer toda a estatfstica envolvida é 0 pesquisador; o programador nio € professor de estatistica disfargado. Quem esti interessado cm usar um package estatistico é o pesquisador, que tem pressa, e no programador, que esta interessado em fazer o seu proprio programa com 0 gasto de tempo muito maior. programador uma tibua de salvagao e a ele entre todo seu trabalho, na ilusdio de que em poucos dias ‘Vem entdo finalmente a fase de andlise, j4 espremida e sacrificada no cronograma, uma vez que os prazos finais se aproximam. Acossado pelas adverténcias sobre prazos dos chefes de departamento, iludido pela pouca familiaridade com o que seja uma andlise, o pesquisador se limita 8s interpretagdes mais imediatas das primeiras tabelas em que pOe a mio. Ha dados demais e no ha tempo para manipuli-los. Ha muitas varidveis ¢ 0 tempo mal dé senio para examinar as distribuigdes de freqiiéncia de cada 130 ‘ABUSSOLADO ESCREVER [Memérias de um ovientador de tes: um autor relé sua obra depois 31 deum quate de séeulo, ‘uma. O que passa ento por anélise nada mais é do que a religiosa limpeza, Infelizmente, cada uma dessas partes corresponde a umactapa mais e mais analftica dos dados, sua depurago e arumago em categorias basicas. A hnobre, mais e mais criativa, ecom um potencial cada vez maior de valorizar relagdo entre paginas de textos e paginas de tabelas nos dé uma idéia da. Po trabalho. Com excegio da escolha do tema e do desenvolvimento de habilidade do pesquisador para extrair coisas interessantes e importantes. if a estratégia geral, as primeiras fases de um trabalho sio puramente dos dados. O autor se esquece de que nio sto 05 niimeros que dio sentido & ecinicas, nao contendo um grande potencial de afetar a natureza da interpretagdo, mas sim a interpretagiio que da sentido aos nimeros. "contribui¢do que se pretende do trabalho ~exceto nosentido de que algum Ainda mais premido pelos prazos, vem 0 momento de redigir ¢ grave cometido a principio pode por a perder todo o esforco. Com concluir o trabalho. A revisio da literatura foi feita e refeita ao inicio, ja ide generalizacdo, dirfamos que ha uma inconttvel tendéncia para que estando a estas alturas imaculadamente polida, o mesmo se dando com: § teses tenham dados demais e anilise de menos. descrigdo da amostragem e a metodologia. Mas a anilise, coitadinhajs atrofiou-se, perdeu a imaginagao; das expectativas grandiosas do come¢o no resta quase nada, 4) As ofensas & lingua patria: prova de redacio para o mestrado? A experiéncia de fazer um mestrado talvez tenha como grande nho pessoal um imenso aumento na capacidade para se fazer entender (Por escrito na lingua pétria. Possivelmente, os ganhos de conhecimento jadrea substantiva da tese ou acontribuigao para a humanidade daquele imento nao se comparem as melhorias na capacidade de expresso scrita. De um aluno que praticamente nada escreveu até entdo — quem abe uma carta para a mamie, um telegrama, ou um suado trabalhinho Me estgio — pede-se que produza uma obra que tenhainclusive o potencial le publicagio em forma de livro A redagio nfo deve ser entendida como um processo d congelamento grafico daquilo que parecia haver sido descoberto nia andlise. E muito mais. No processo de passar para o papel de for articulada e rigorosa, as idéias crescem, amadurecem, langam rafzes. que tfnhamos na cabega antes de escrever é uma pélida imagem, uma sombra mortiga daquilo que finalmente sai no papel. Mas isto nfo. Para se passar ao papel, ndo hé o que crescer. © processo de revisdo oferece um grande potencial enriquecimento. Assim, como massa de po, o trabalho tem que transmitidas por intuigZo, mas sim através da palavra ita. Se nas oragdes falta o sujeito, predicado ou outras partes, € stessirio indagar do aluno quais sejam. O contetido vem através da ~ Se esta é ininteligivel, obscura, ambigua ou desconchavada, deixa ©, quem sabe, inimigos. O esforgo artesanal de preparaco e cer mecanismos psicolégicos nos tomnam excessivamente aliados do nos trabalho. E preciso um pouco de tempo para perder parte do amor por ele, ara vé-lo com mais perspectiva ¢ mais espirito eritico. E é quan Ser apropriadamente transmitido o contetido. Dizer que est mal a adquirimos esta perspectiva que 0 trabalho pode ser melhor articulado ha raramente adianta, pois voltard igualmente insatisfatria na melhor defendido. ma Versio, obrigando o orientador a ler duas vezes a mesma porcaria. © que vemos entio nas formas espontneas de se dispor do tempoé EContragosto e praguejando, o orientador torna-se entdio um revisor de uma compressio progressiva de cada fase subseqiiente da pesquisa 0 ¢ de gramitica, perdido em meio a questdes de forma: “Se é isso 4 Voc queria dizer, por que no o disse em vez de escrever o que af ‘Meméras de um orentador de tee: um autre sue obre depois 133 132 ‘ABSSOLADO ESCREVER de um quarto de século esta?” As vezes nao sobra tempo nem paciéncia para as questdes de 1) O orientador como guia espiritual e consultor sentimental contetido. Além de professor de portugués, professor de estatistica e bibliotecsirio, o orientador tem outros tantos papéis no dominio afetivo. Preparar uma tese é uma experiéncia emocionalmente tensa para a maioria dos alunos. Além das crises normais geradas na condugiio da pesquisa, a mobilizagio psicoldgica para a preparagiio da tese pode desencadear crises maiores com origem em outras freas. Até desquites niio siio incomuns. De qualquer forma, 0 desafio e as dificuldades da tese podem criar inseguran¢a e grandes temores. ‘Seguramente, o aspecto mais cansativo e desalentador de orientar uma tese resulta da incapacidade e inexperiéncia do aluno em questdes de redagao. E surpreendente a diferenga na qualidade da redago entre 0 primeiro e o dltimo capitulo. Ultimamente, como solugio de desespero, adotei como critério para aceitar orientandos: uma prova de redagio, Para tornar mais incruenta a confrontagZo, esta passa um pouco disfargada como pedido de uma discussio inicial, por escrito, sobre 0 tema. Por motivos que psicdlogos amadores facilmente identificariam, as crises metodol6gicas ¢ os dramas existenciais sio acompanhados Apesar de que so capazes de colocar sujeitos ¢ predicados ¢ evitar | _por ferozes invectivas contra a universidade © a chefia dos frases de pé-quebrado, alguns sofrem de incontiveis tendéncias para a _ departamentos a que pertencem os zangados alunos. Quando vacilam adjetivagao rica, cireunl6quio, a hipérbole, e praticamente todos 0s recursos as teses ou claudica 0 ritmo de trabalho, isso se deve a algo estilisticos. Quando finalmente se entende a figura de estilo, jé se esqueceu a | profundamente sinistro sendo tramado ou a desmandos caéticos da idéia, Ha sempre uma maneira mais simples, mais direta de se dizer alguma ~ coordenaco do departamento. coisa, eestaé sempre evitada. Se hé uma palavramé age mei rane = Um pouco independentemente de suas qualificagdes na érea, ‘e com maior variedade de significados, por que nao usé-la Yé-se o orientador forgado a consolar, encorajar ou aplicar varios Alguns s6 conseguem escrever claro quando levados d exaust, modelos de sermao, improvisados de acordo como momento: algumas premidos por prazos improrrogaveis e totalmente desiludidos da sua | ddicas para nfio desanimar os que jé esto chegando ao fim, varias capacidade de manipular a lingua. E entiio que voltam apologeticamente | jWersdes para a necessidade de aprender a escrever; alguns sermoes ‘com um trabalho que relutam em entregar e se envergonham de havé-lo aregando a fé em que algum dia alguma coisa vai sair do computador. escrito. Ficam imensamente surpreendidos ao saberem que pela primeira {a outros indicando que um “chi” quadrado, um “T” ou um “E” nfo vez escreveram claro e bem. Trata-se af de um trabalho de catequese € ificativos niio indicam nem o fim do mundo nem 0 fracasso da doutrinagaio para o orientador, que finalmente descobre que o aluno sabe | @squisa. A primeira versio do capitulo de conclusdes requer um escrever mas que se envergonha de qualquer maneira direta de transmitit | srmao especial para acompanhar os comentirios do orientador uma idéia, Adicando que ali esta longe de haver qualquer conclusio e que nao problema se complica muito quando o pesquisador, além de nao | Konraver sn es, Recentemns Se ee ee eee saber escrever, nao admite a possibilidade de fazé-lo em forma simples. mized, antes. ee incendiou-se, ficando totalmente figuras, ninguém sabe o que esta querendo dizer. Se Ihe damos tempo, Widade a inha incapacidade para produzir a alocugio que a compreensio da idéia passa a ser agora obstrufda pela ornamentagio. E do momento sugeria ©) Do discurso de vereador ao discurso cientifico 1B4 BUSSOLA DO ESCREVER 8) Dos direitos e deveres do orientador Oorientador é um ser humano, com uma dose dada de paciéncia e tem portanto 0 direito de esbravejar diretamente com o orientando; no estilo que mais Ihe agrada ou alivia. Nao cabe & sua mulher, mas sim ag Préprio orientando a ingrata fungao de receber todas as tempestades provocadas pela sua inépcia. orientador deve permitir e estimular divergéncias de opiniai entre © orientando ¢ ele proprio. Sua fung2o nao é de catequizar o doutrinar, mas sim de levar sua critica ao extremo I6gico daquilo que. pode ser demonstrado factualmente ou teoricamente. O que pode ser demonstrado como errado esté, ipso facto, errado e cai fora. Se a logic fracassa, pela mesma raziio entra na censura. Todavia, se ha ut divergéncia de opinio ou de jufzo de valor, a atuagao do orientador s apenas no sentido de levar 0 autor a fazer conspicua a natureza subjeti ou valorativa da questo. Por persuasao ou por indole, orientadores variam em seus estilos de trabalho. Uns sio pacientes, outros afoitos; uns so benevolentes; outros zangados. Alguns vetam sucessivamente até que os aluno' consigam chegar finalmente por conta propria a solugao correta. Outros” quase chegam a fazer o trabalho do aluno. Naturalmente, alguns t6 mais tempo ou mais disposigio para gasté-lo com seus alunos. A pos-graduagao em educagéo no Brasil: pensando o problema da orientagao' Dermeval Saviani Professor titular da Faculdade de Educagiio da UNICAMP; doutorado em Filosofia da Educagao pela PUC-SP; livre-docente em Histéria da Educagao, pela UNICAMP: p6s-doutorado (“estigio senior”) nas universidades italianas de Padua, Bolonha, Ferrara e Florenca e presidente da Sociedade Brasileira de Historia da Educagio-SBHE. e-mail: dsaviani@obelix.unicamp.br Este trabalho se propée a apresentar as caracteristicas da p6s- “graduagio, de modo geral, como ponto de partida para situar a trajet6ria da pés-graduagdo em educagao no Brasil, desembocando numa breve Teflexdo sobre o problema da orientago como ponto nodal do sistema “de pés-graduagao, Para tanto, seguirei um roteiro em cinco momentos, “comegando por um t6pico introdutério que esclarece brevemente 0 _conceito de pés-graduacio na sua relagao com o ensinoe a pesquisa. No Segundo momento tentarei resgatar a histéria da pés-graduagao em “educagio no Brasil abordando inicialmente os antecedentes, em seguida importante que o aluno conhega antecipadamente as regras do jogo ¢ as idiossincrasias do seu orientador. © Este texto € uma versio ampliada da conferéncia proferida no Seminério ‘Comemajativo dos 25 anos do Programa de Pos-Graduagio em Educagao da UFSC, sob 0 titulo “A P6s-Graduagao em Educagio no Brasil: trajet6ria, situagao atual € Perspectivas”, publicada como artigo no niimero I da Revista Didlogo Educacional © do Programa de Mestrado em Educagio da PUC-PR.

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