Você está na página 1de 4
Toles (To lofe (=) Como se formassem uma empresa, criminosos ofertam “trabalho”, fazem sele¢dao de pessoal, pregam o crescimento pela eficdcia e reconhecem quem se destaca, dando sentido 4 vida de quem nada tem les nio tém carteira assinada. Hii muito tempo no possuem cempregos regulares. Sobrevi ‘vem & margem da sociedade. Muitos esto espera de qual- ‘quer oportunidade para ganhar dinhei- 10, mesmo que isso implique sair da legalidade, Homens assim — desem= pregados, com um historico de aban- dono social se sentindo inferiores Por nio conseguirem cuidar da fami- lia — sto aliciados pelo que se con- vvencionou chamar de crime organiza do, Diversos niio resister ao apelo final, facgdes como Comando Ver- melho (CV), do Rio de Janeiro, ou Primeiro Comando da Capital (PCC), de Sio Paulo, sabem como ace- nar com uma chance de melho- e, havia no- tado que a palavra “trabalho” era re- corrente nas conversas com 0s presi didrios. Alguns diziam que o desem- prego era 0 culpado por estarem en: carcerados. Sem dinheiro e amparo social, o que poderiam fazer? Outros alegavam que a criminalidade era a linica salda para virarem o jogo. Ou seja, por meio do erime diziam ter obtido melhores condigdes de susten- | tr suas familias encontrado um sen tido para suas vidas. Esses argumen- tos tém sua razdo de ser. Como ex- plica Deise, a sociedade capitalista determina que o trabalho esteja no centro da vida do individuo, Ele so- fem que a atividade criminosa foi compreendida exatamente como tra- balho, revelando que a criminalidade pode se organizar em tomo de um objetivo, com metodologia de recru- tamento e estratégias de promocio de pessoal. Algo comum a muitas em- presas, Um dos primeiros passos des- se “processo” & buscar novos alia- dos, Mas para isso € necessério en- contra os perfis mais adequados & natureza da atividade. Sio, em geral, pessoas com pouca escolaridade, bai- xa qualificagao profissional c dificul- dade de sobrevivencia (“compreendi- dda como resultado de falha individu al, como despreparo para o mercado formal de trabalho”, esclarece Deise. Além disso, & comum que se proc rem por individuos bem jovens. Mui tas vezes, a vida criminosa se inicia entre og nove € os 13 anos. f nesse periodo que acabam indo para as ruas, atris de algum rendimento para com- pletar a renda de casa. Desse modo, deixam a inocéncia da inflincia e as- sumem responsabilidades de adulto, “As criangas ficam suscetivels ¢ postas violéncia, Junto com o tra- balho infantil surge a necessidade de sobreviver nas ruas”, diz. Em sua p quisa, Deise acrescenta que as crian- ‘gas se inserem no processo de socializagio, no contato com 0 rar o padrio de vida. Mais 60 Q§ NUMEROS DA PRISAO —™%®, por meio do mereado que isso: demonstram que, se cumprirem direto as exigéncias do novo “empregador”, cles te- Ho também reconhecimento, algo que hes fiz falta no duro cotidiano que enitentam. Parte ddesse contingente acaba atris das grades. E ld, na prisio, dei x3 claro quanto o trabalho €eru- sistema prisional e na policia: cial para quem nada tem, Foi isso 0 que comprovou uum estudo feito pela psicdloga Deise Maria do Nascimento, da Secretaria de Seguranga Pibli- ‘cae Defesa do Cidaldo de San- ta Catarina, Durante dois anos, centrevistou € coletou dados de ‘viduos do presidio masculino de Flo riandpolis para pesquisar o significa do do trabalho para esse grupo. O le- vantamento foi realizado em um peri- ‘odo em que 0 PCC ainda nao era co- nhecido nacionalmente como ocorre hoje ~ naquela época, notério era o Comando Vermelho. Porém ja se sa ‘bia que o erime se organizava dentro ‘das prisdes. A anilise dos resultados mostra que € preciso dar mais atengo ppara o conhecimento sobre o crime, 0 universo prisional © a marginalidade, {que se impe a uma parcela cada vez maior da populagio como um meio de se constituir como sujeito, ainda que pelo trabalho ilega Penitencidrias ou similares no Brasil: 427, sendo 387 masculinas e 40 femininas. Total geral de presos no 419.551 mente se sentird bem e reconheceri seu papel no mundo se estiver traba- Ihando ~ ¢ consumindo, De acordo com essa analise, em um ambiente de desigualdades que submete as pes- soas a pesadas privagdes e as obriga ‘a uma dura e sofrida batalha didria de sobrevivéncia, & compreensivel que muitos acabem por enxergar na atividade ilicita uma forma de dar sentido a vida, “A questio de taba Ihar € ser produtivo € muito impor- tante, E sustentar a familia faz com que a pessoa tenha reconhecimento Essa necessidade também apareceu na pesquisa”, reforca a psicéloga 0 estudo de Deise analisou o sig- nificado do trabalho para quem esta na prisio, Ele identificou situagdes informal. Elas exercem ativi- dades como venda ambulante ‘ou com a prestagio de servi- {908 com fnfima remuneracdo. E para isso ocupam um expago perigoso: justamente a rua, Com freqdéncia, o ingresso no crime coincide com o ingresso no mundo do trabalho, Deise esclarece que ha situ: agdes em que o recrutamento ocorre de forma organizada, initrio da JurigalinfoPen junio de 2007. com grupos mais experiences orientando as escolhas. Eles iciam © novato ao Ihe atri- bbuir algumas fungdes. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite ilus- tram como se da parte desse proces- so, Permeada de girias como vapor (pequeno vendedor de drogas) © ge- rente (palavra usada nas favelas eari ‘cas para o brago direito do chefe do morro), a aprendizagem da vida c1 rminosa € gradativa, permitindo que (8 jovens compreendam a atividade tem toda sua extensio. Nas entrevis- tas de Deise, os presididrios que re- lataram ter entrado na criminalidade dessa maneira contam que comes ram com servigos de vigilincia (em alguns casos, fungio do olheiro ou “fogueteiro”) e que atingiram postos de chefia por méritos proprios, pela presteza e responsabilidade, por plo, Para os prsidrios, hé van- jens em fazer parte de um grupo tos, dizem por referéneias, seguindo modelos re~ presentados pelos chefes, e tiveram a chance de empreender aios mais ov sados. “Dentro desse ambiente, quar do surge alguém com mais ousadia, ele & logo identficado pelas lideran- fas. Também é reconhecido aquel {ue jé teve alguma experiencia, Um jovem que pezou uma arma é tido ‘como corajoso. F 0 diseurso da cor gem e da ousadia que mais aglutina pessoal, Nesse sentido, eriam-se ido- Jos”, afirma Deise, 'A prisio, como teforga o estudo, & também um espago de reerutamento, aprendizagem ¢ aperfeigoamento. E ‘comum que cheguem as cadeias pes soas pouco habilitadas para o crime. Em 2005, o Ministério da Justiga i formou que aproximadamente 66 mil presidiésios poderiam cumprir penas alterativas, E um nimero significa- tivo — estimativas de junho de 2007 apontam que hi 419.551 presos no sistema prisional ¢ na policia. Muita gente vai parar atris das grades por causa do "crime de bagatels”, uma cexpressio para designar 0 delito fei- to sem ameaga, sem atitude violent ‘ou agressio fisica e sem abalar 0 pa~ triménio da vitima, como os pratica- ddos pelos “ladrdes de galinha’”. No presidio, esses individuos so inseti~ dos em umm ambiente que os prepara ‘atuar de modo profissional no mun- do do crime. “As pessoas isoladas sio as mais facilmente recrutadas, A prisio é uma perversio ¢ clas preci sam a aprender ase relacionar de for- ‘ma mais violenta”, completa Deise © convivio com criminosos experi ” entes e famosos funciona como uma espécie de aperfeigoamento. Eles sio instrutores e “‘ransmitem © conhe- ccimento da vida marginal em diver- sas ireas, Os “recrutados” passamn a ter uma visto mais ampla das ativi- dades e estabelecem novos contatos {que servirio como referéncia apés a soltura, E tamibém receber os cédi- ‘gos de conduta)Existem regras den- tro da prisio, Uma delas determina aque nio se pode ficar com a mulher do outro. Quem obedece a essas nor mas sinaliza que sabe respeitar 0 ‘mundo do erime e tem potencial de ser lider. Como 08 eddigos s80 rigi- dos, a punigo segue © mesmo pa dri, Deslizes nio sio perdoados. elas entrevistas feitas por Deise nota-se a importincia da realizagio pessoal e profissional. Ao ouvir as historias dos reclusos, a psicdtoga da Secretaria de Seguranga Piblica de Santa Catarina captou que 0 ingresso no crime foi o meio encontrado para atender as necessidades de manuten- so da familia © poder oferecer con- forto @ seus membros. Ao ver que esse objetivo foi cumprido, o crim noso sente satisfagio pessoal e pra zet. “Essa questio de trabalhar ¢ ser Produtivo & uma questio muito for te’, esclarece. Por outro lado, ele pode obter a satisfagio profissional ao verificar que sabe fazer bem a ta- refa que Ihe foi apresentada pelos gru- pos que o recrutaram. Se trabalhar bem, pode ter uma carreira de suces s0-¢ até de repereussio na midia. Se assim for, entre os individuos com «que lida na vida eriminosa, ob peito, Desse modo, é valorizado. O rabalho” que arranjou para dar sus conforto 4 familia. garante mar sensagdes que nao Filmes como Tropa mostram “valores” tina conseguido atingir. Pela via do crime, como salienta Deis, ele via- biliza seus talentos, tem €xito, se sen te vivo e & dono de um espace. Ele ‘cupa um lugar na sociedade. Tal qual ocorre no mundo do tra batho, a atvidade eriminosa cobra sew {uinhio de responsabilidades. Ingres- 35 iio & to, complexo, sar nas fac mas viver nesses grupos ¢ sobrevie ver desse “trabalho” no tem nada de facil. Polo contririo. Isso exige fazer bons negécios, desenvolver es- tratégias, administar corretamente gzanhos ¢ estar atento & manutengio de equilibrio na conduta dos traba- Ihos, Segundo Deise, os ent dos foram undnimes em dizer que se ‘© criminoso abusar das drogas © gas tar em farras, por exemplo, i atrair os olhares da policia © dos rentes. Além disso, € preciso estabe Tecer uma relagio amistosa com seus de Elite (a esq.) e Cidade de Deus da criminalidade. Um deles é a ousadia. Pesquisa mostra que 0 ingresso no crime comega cedo pares e conquistar a confianga do gru- po. Como visto dentro da prisio, & vital demonstrar © conguistar resp to, "Construir uma trajetéria honesta no erime significa respeito, aceitacio f longevidade na atividade. O res- peito se reflete nas vezes em que'es- tio presos. Ser honesto, ter cariter, ter uma conduta corrota¢ fundamen tal para uma carreira longa no erime c garantia de tranqiilidade na cadeia Um comportamento ético significa respeitar & comunidade, ajudar as fa- ‘mili, no iniciartrabalhador no cri- me, ni dar calote, no delatar”, res salta Deise em sua pesquisa E importante observar que os pre sidirios entrevistados para esse es tudo no se colocam & margem da sociedade, E sim querem fazer parte dela, De acordo com Deise, apesar de terem o crime como ocupacao, iio se sentem como um grupo alter- nativo. Eles buseam um meio de in- sergio e expresso no modelo social Vigente, Para esses individuos, o ere te se couuna com o significado de trabalho, Ea atividade eriminosa que (05 humanizae os constitui como su- jeitos. Eles compreendem que 0 tra- balho & uma categeria fundamental de integragdo com a sociedade, todos devem produzir 0 proprio sus- tento, pois iss0€ condigdobisica para estar inserido poder se afirmar © se expressar no mundo” 'A pesquisa de Deis foi concluida seis anos antes da eclosio do nome PCC nas televisoes brasileira, quan do em maio de 2006 a facgdo parali- sou Sio Pavlo com a onda de violén- cae boatos que tomaram a cidade De la para ci, mudou algo? “AS or- ganizagdes eriminosas existe hi ‘ito tempo. Mesmo com a teenolo- ‘gia € a intemet, no me parece que ‘os métodos de recrutar pessoas te- ham se sofisticado. O que ocorre & que ficou mais explicito para 0 pi blico o modo como essas facgdes atu- am, Da para ver que eles se organi am”, comenta, E qual 0 papel dos especialistas diante desse cenério? Para a psicdlo- ga clinica e forense Maria Adelaide de Freitas Caires, presidente da ONG Agdo Cigncia e Satide Social, a pre- vvengio é essencial. “O crime organi- zado tem como alvo preferencial as criangas desmoralizadas socialmen- te”, afirma, Por isso, € preciso perce- ber quanto meninos ¢ meninas em dade escolar estio vulnerdveis. E isso vale para todas as classes sociais © para os estabelecimentos privados ou piblicos. Um exemplo: se o estudan: te ndo esti conseguindo ir bem na CehNCAF RORSNO-DlLog0-n'5- Dat? escola € nio se buscar as raizes de seus problemas — talvez uma crise na familia ~ de modo adequado, & pos sivel que ele, constrangido, se isole € deixe de interagir com 0 grupo. Po- deri se agregar com pessoas que se assemelham a ele por algum grau de exclusi, “Vitis fatores podem con- tribuir para que a crianga nio se sin- ta mais integrada aquela sociedade. esse modo, ela acaba por softer uma exclusio moral ¢ se toma vulneré- vel. Fica a margem € se dirige a ou- tras criangas marginalizadas”, diz. O resultado & que podem se voltar para © consumo de drogas ou serem re- cerutados para desempenhar ativida- des ilictas. Criminosos experientes tém capacidade de identificar esses individuos fragilizados. Caso de- monstrem alguma habilidade, como 4 esperteza, eles reconhecem essas ‘qualidades. “Sendo vulneriveis, es- ses jovens s1o envolvidos de modo sedutor”, acrescenta. Segundo Ade- lade, as pessoas vivem em uma cor- tina de fumaga, Problemas psicolé- gicos entre os jovens muitas vezes so tratados como questdes secundi- Tias pelos pais, educadores e profis- sionais das escolas, Por isso, ela co- loca especial empenho em projetos sociais para orientar educadores. “O conhecimento faz a diferenga, Tra- balho para capacitar os educadores para serem mais sensiveis as fases de desenvolvimento das criangas ¢ para petceberem como ocorre a soci- alizagdo desses jovens”, conta Na opiniio do professor José Car- os Gomes, responsiivel pelo niicleo de criminologia da Academia de Po- licia Civil do Estado de Sio Paulo, a criminalidade no & mais uma ques- ‘do apenas policial. O crime pode set visto e estudado sob a ética da arqui tetura, da saiide publica, da antropo- logia ‘e da psicologia. No primeiro caso, ele se estrutura em trés espacos (a-casa ou a familia, o “eativo volun- tirio”, que é para onde ele se dirige, © 0 “cativo involuntirio”, a prislo). Pode ser entendido como saiide pii- blica na medida em que se insere no tecido social, contaminando as célu- las sadias. E importante entender tam- bém que a industrializagdo e suas cconseqiiéncias sobre a sociedade tém uum peso sobre alguns aspectos da eri- minalidade, Com a industrializacio, a urbanizagio e a elevacdo nos ni- veis de pobreza, as pessoas tiveram de migrar para a periferia e favelas A desorganizagdo social levou a0 au ‘mento das necessidades sociais des- ses individuos. Mas sem mecanismos que pudessem ajudi-los, a eles se s0- maram frustragdo, opressio, miséria e desemprego. Por outro Jado, a exposigo ao urbanis- mo, gerou nessa parcela da populagdo uma crescente as- Piragdo de crescimento. Tudo isso, segundo Gomes, deve set levado em conta, “As fac- Bes nasceram nas prisées. Elas se organizaram primei- ro para melhorar as condi- es fisicas do cumprimento da pena. Hoje, sio estrutu: ras verticalizadas, com cupu- la inteligente, chefia interme- didria e grupos titicos op racionais que cumprem or- dens. E seu nivel de alic mento esti nas periferias explica, Em suas palavras, € pre ciso um envolvimento mut- tidisciplinar, de policiais a neurocientistas, de antrop6- logos a psicdlogos, para compreender melhor © mundo do eri= me. A psicéloga Adelaide concorda: “A formagdo cientifiea dos psieélo- gos é boa, mas falta uma sistemati zagio. Os que trabalham com grupos de risco devem se engajar em proje- tos multidisciplinares. O crime se or- ganiza em rede, diversifica sua ago est funcionando, enquanto cada um de nds se isola em sua propria cién: cia.” E Deise, a autora do estude so- bre os presidifrios de Santa Catari- na, alerta que ¢ necessério colocar atengdo sobre o significado do traba- Iho para a populacdo dos presidios © para os grupos de risco. “O desejo do trabalho esté instalado em todas as pessoas. Como realizar essa ne- cessidade sem que 0 individu caia na criminalidade? A psicologia tem de ajudar a buscar outras formas de lidar com 0 crime”, conelui .

Você também pode gostar