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“_ A TRINDADE jparocida oA ene ~ 3 y. S18 PAULUS Rus oar Tel APRESENTACAO Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Franga, win movimento de interesse voltado para os anti- gos escritores cristéios e suas obras conhecidos, tradicio- nalmente, como “Padres da Igreja”, ou "santos Padres”. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, deu origem a colecao “Sources Chrétiennes’, hoje com mais de 300 tétulos, alguns dos quais com vdrias edigées. Com 0 Concilio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja 0 desejoea necessidade de renovagao da liturgia, da exegese, da espiritualidadee da teologia a partir das fontes primitivas. Surgiu a necessidade de “voltar as fontes” do No Brasil, em termos de publicagao das obras destes autores antigos, pouco se fez. Paulus Editora procure, ‘agora, preencher este vazio existente em lingua portugue: sa, Nunca € tarde ou fora de época para se rever as fontes da fé crista, os fundamentos da doutrina da Igreja, espe: cialmente no sentidode buscar nelas a inspiracéoatuante, transformadora do presente. Nao se prope uma volta ao passado através da leitura e estudo dos textos primiticos como remédio ao saudosismo. Aocontrério, procura.-se ofere cer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo para que 0 leitor as examine, as avalie e cotha o essencial, 0 spirito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a tarefa do discernimento, Paulus Editora quer, assim, oferecer ao puiblico de lingua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do eristianismo primevo, uma série de titulos, nao exaustiva, cuidadosamente traduzidos e pre- parados, dessa vasta literatura crista do periodo patristico, APRESENTAGAO 6 Para ndo sobrecarregar o texto ¢ retardar a leitura, procurow-se evitar anotacdes excessivas, as longas intro ducdes estabelecendo paralelismos de versdes diferentes, rréncias aos empréstimos da literatura paxé, filo- s6fica, veligiosa, jurédica, as infindas contro determinados textos ¢ sua autenticidade. Proc zer com que o resultado desta pesquisa original se tradw. zisse numa edigéo despojada, porém, séria. Cada autor e cada obre terdo uma introducao breve com os dados biograficos essenciais do autor e um comen. tdrio sucinto dos aspectos literdrios e do conteido da obra suficientes para uma boa compreensao do texto. O que interessa ¢ colocar o leitor diretamente em contato com 0 texto. O leitor deverd ter em mente as enormes diferencas de géneros literdrios, de estilos em que estas obras fo redigidas: cartas, sermdes, comentérios btblicos, paréfra- ses, exortagbes, disputas com os heréticos, tratados teo gicos vazados em esquemas e categorias filosofieas de tendéncias diversas, hinos littrgicos. Tu necessariamente, uma disparidade de tratamento ¢ de sforeo de compreensao a.um mesmo tema. As constantes, © por vezes longas, citagdes biblicas ou simples transeri- ges de textos escrituristicos, devem-se ao fato de que os Padres escreviam suas reflexdes sempre com a Biblia numa das méi Julgamos necessdrio um eselarecimenta a respeito dos termos patrologia, patristica e padres ou pais da Igraja. O termo patrologia designa, propriamente, o est do sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela histéria antiga ineluindo tam- bém obras de escritores leigos. Por patristica se entende 0 estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas de pendi nultural, filosofico pela evolucdo do pensamento teoldgico dos pais da Igreja Foi no séeulo XVII que se criou a expressao “teologia APRESENTAGAO 0 (675-749), neste texto: eclesist dines da Igreja teratura gree ntesda Antiguidade, cwja ai apresenzagho 8 ria, ndo raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. For mados pelos melhores mestres da Antiguidade cldssica, poem suas palavras ¢ seus escritos a.servigo do pensamen: to cristo. Se excetuarmos algumas obras retoricas de carter apologético, oratério ou apuradamente epistolar, os Padres, por certo, néo queriam ser, em primeira linha, literatos, esim, arautosda doutrinae moralcristas. Aarte adquirida, néo obstante, vem a ser para eles meio para alcanear este fim. (...) Hd de se thes aproximar oleitorcom © coragéo aberto, cheio de boa. vontade ¢ bem disposto i verdade erista. As obras dos Padres se the reverterao, assim, em fonte de luz, alegria e edificagao espiritual” (B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, Paulus, 8. Paulo, 1988, AEditora INTRODUGAO’ O tempo decorrido do ano 400. 416, perfodo dedicado a elabocao deste monumento teolégicae filoséfico, que é 0 tratado De Trinitate, revela, por um lado, a profundidade do tema e, por outro, a seriedade com que o bispo de Hipona encarou seu projeto. E verdade que nao foram dezesseis anos’ dedicados apenas & construgdo deste mo- numento, pois, além de seus afazeres pastorais, sua pena incansavel estava a servico da fé catdlica, em sua defesa e ensino, mediante outros escritos.* Aobraestampa oretrato de homem pertinaz em suas investigagdes, mestre do hem escrever, fiel & Revelagio a Tradigao, eximio escafandrista nas fguas dos textos escrituristicos, esgrimista versdtil nas refutagdes dos eros, Revelando-se no apenas como tratadista de Deus, mas também alma de profunda piedade e de ardente caridade, as dissertagies estdo salpicadas de reflexdes piedosas, de veementes protestos de fidelidade a ortodoxia catélica, de amorosos, embora enérgicos, in- centivos ao abandono do erro, aos que per opinides demolidoras da unidade no mist Oeenfoque de varios aspectos do mist epoca, pois, os estudos de hoje talvez dispensassem dis- cursos tao prolixos. Tenha-se em conta, porém, os recur- sos de que se valiam os ensinamentos heréticos para impor seus prinefpios e enredar na trama de seus sofis- mas 05 fidis despreparados e, portanto, ameagados na pureza de sua f8. engas vi uno ¢ trino, impossivel de ser vislumbrado por ntesdefé, adauiria a darem pelos eaminhos da heresia, opugnando erengas j& arraigadas no espirito dos crentes. Olleque de doutrinas heréticas apresentava as varie- dades mais diversas, algumas partindo diretamente do mistério trinitario e outras considerando a pessoa de Cristo em suas relagies com o mesmo mistério, No século 1, erguendo o lema de Monarel mus (Temos faccdo dos manarquinianistas, Cristo era um simples ;presentava apenas 0 dinanismo de Deus para outra, era tao sé filho de Deus pela graca (adopcionistas). Os monarquianos modalistas asse- guravam a divindade de Cristo, mas somente como um rosto diferente de Deus; os patripassistas nao viam dife- renga entre o Pai eo Filho e receberam essa denominacao pela doutrina que defendiam, ou seja, atribuiam ao Pai os sofrimentos de Cristo. O sabelianismo se insurgiu contra 2 fé em trés pessoas, as quais serial ees diferentes para umaesséncia di considerava o Verbo encarnado como filho natural de Deus na natureza divina, e filho adotive na natureza humana, Negando a primeira parte d a anterior, ismo exeluia o Filho da esfera da divindade e 0 considerava apenas como filho adotivo de Deus, Com relagio & pessoa divina do Espirito Santo, levantaram-se prineipalmente os pneuméticos que Ihe negavam a divin- u dade e, conseqtentemente, apregoavam de com relacao ao Pai e ao Filho. As vozes dos defensores da ortodoxia levantaram-se em todos os momentos em favor da autenti com base nas préprias Eser Tertuliano, no século II ainda, colocou seu talento princi- palmente contra os modalistas com a obra “Adversus Praxeas” (Contra Praxéias). Clemente de Alexandria, fenes, Basilio foram também propugnadores imper- térritos da f6, sem esquecer Dionisio de Alexandria, no seu empenho em refutar a argumentagao dos sabelianos; eNovaciano, notavel pelo métodoe eleganeiana expo: do simbolo da fé, assim como santo Ambrésio. Na luta contra os arianos destacaram-se santo Atandsio e Santo Hildrio, O primeiro, no século IIT, bispo de Alexandria, foi co homem enviado por Deus para fazer frente aos {mpetos da hetesia, a qual enfrentou com energia mediante seus escritos apologéticos sobre a Trindade. O segundo, cha- mado 0 AtanAsio do Ocidente, celebrizou-se também nes- sa lt itate” — uma exposiedo rio, em estilo elegante e com firmeza de argumentagio. Essa luta, que se travava ha séculos, reclamava da Tereja uma pr e viesse par pont nas discussdes que se alongavem, tumultuavam 0 an- biente e confundiam 03 espfritos. Nada mais convincente do que a realizacao de um concilio universal, onde os pastores do rebanho de Cristo, dispersos nas diversas partes do mundo, se reunissem para expressar sua comt nhio ea unidade da fé. A grande assembléia realizou-se em Niegia, em 325, com a presenga de 318 bispos catélicos € 22 arianos. No final, foi apresentado o simbolo da fé, onde a profissao de fé no mistério da Trindade confessa a INTRODUCAO 12 existéncia de um s6 Deus em trés pessoas: Pai, Filho e Espirito Santo. Devido a uma doutrina errénea sobre 0 Espirito Santo, 0 segundo concilio ecuménico de Cons- tantinopla em 381 esclareceu o pensamento catélico como acréscimo de expressdes que elucidavam a questo. 0 simbolo da f, elaborado no primeiro concilio e completado no segundo é, por isso, denominado niceno-constantino- politano. ‘As definigdes conciliares nao foram suficientes para a extingdo dos movimentos heréticos. His porque Agosti- ho lancou-se & elaboragao de sua obra, contando certa- mente com a ajuda de muitos escrites ortodoxos anterio- res a seu tempo ou contemporaneos, e com as definigies dos eoncilios. Mas como ele préprio afirma na obra, a maioria desses tratados estavam redigidos em grego — obras, portanto, fora do aleance da Igreja do Ocidente dele proprio, que nao era muito versado nesse idioma. Havia assim uma ansia geral pelo aparecimento de um tratado que iluminasse mesmo de longe, os arcanos da verdade sobre o mistério do Deus uno e trino, explicasse 0s conceitos, mostrasse a concordancia dos textos eserituristicos, apesar de aparente contradicao, langasse luz sobre o mistério com argumentos de razdo, mais acomodados mentalidade humana, ¢ refutasse, com a Biblia na mao, as proposicdes heréticas apresentadas com subtileza para ocultar a falsidade.‘ Na investigagao da verdade, ao mesmo tempo que alga vos altaneiros em exposigdes brilhantes, curva-se perante 0 mistério insondavel quando percebe os limites da pesquisa humana e, longe de se arvorar em mestre infalivel, incita os leitores procura de outros esclareci- mentos, dispondo-se a corrigir o resultado de suas buscas, sse descobrirem que ele nao atingiu a verdade. 13 INTRODUCAO Estrutura da obra © tratado agostiniano sobre a Trindade consta de quinze livros, duzentos ¢ trés capitulos, quantro prélogos ¢ trezentos e sessenta e trés itens ou ntimeros. A carta 174, por decisdo do préprio Agostinho, antecede 0 inicio do tratado, Transcrevemos na integra essa carta, mais adiante. ‘Nos primeiros capitulos do I livro, 0 autor assenta 0 fundamento da construcdo que pretende erguer: a fé catélica no mistério trinitario, a qual assegura, conforme testemunho das Escrituras e da Tradicao: “que o Pai, 0 Filho e 0 Espirito Santo perfazem uma unidade di pola inseparavel igualdade de uma e mesma substancis Desenvolve,em seguida, as conseqiiéncias dessas afirma- ges argumentando sobre a consubstancialidade do Filho € do Espivito Santo em relagio ao Pai, assim como a inseparabilidade de operagées e a igual imortalidade. As implic&ncias do mistério do Verbo encarnado com o mis- ‘ério da Trindade nao contradizem 0 fundamento da fé catélica, pois as aparentes divergéncias sao explicadas pelas duas naturezas de Cristo (I Livro) ‘No segundo e no terceiro livros, aborda as missées divinas, estabelecendo antes as regras da hermenéutica, ou seja: por um lado, textos escriturfsticos atestam a unidade e igualdade de esséncia do Pai e do Filho; por outro lado, outros textos falam do Filhona forma assumi- da de criatura, Sao investigadas entao as aparigve Abraio, a Lot, a Moisés e a Daniel ¢ as manifes- 's mediante a nuvem e a coluna de fogo no deserto. Conclui sempre que essas visbes se verificarai mediante uma criatura corpérea. Para esclarecimento da verdade sobre as referidas aparigdes, Agostinho disserta sobre a causalidade das coisas, concluindo ser a vontade de Deus a lei superior de todas as coisas e ser a esséncia divina INTRODUCAO, u vel. As teofanias acontecem por meio de anjos a servico do Criador (II ¢ III Livros }, Disserta, depois, especificamente sobre a missio do Filho, cuja unica morte é remédio para a dupla morte do homem; e sobre a mediagao de Cristo para a vida, Apesar de enviados, o Filho e o Espirito Santo sao a0 Pai (IV Livro ). Apés apresentar os conceitos cia e acidente, o santo lembra nada se possa afirmar quanto aos acidentes — pois nele naoexistem, contudo, pode-se admitir nele a categoria de relagao. Com essa distingao, refuta o argumento dos arianos baseados nos conceitos de ingénito e gerado. Como conseqitén consubstanei reafirma a igualdade na Trindade, a Espirito Santo como Paieo Filho, douses (V e VI Livros }. ‘A afirmagao do apéstolo Paulo: “Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”, dé ensejo para dissertar sobre atese da unicidade da sabedoria na Trindade, assim como de unicidade de esséncia. Preocupa-o, em seg pergunta: “O que sto 03 trés?” E apresenta duas respos- tas: 0s trés so uma esséncia e trés substancias, para os gregos; e uma esséncia e trés pessoas, para os latinos. ido de se expressar dos latinos, conclui que se trata de recursos da linguagem éinadequada para exprimir o que nao foi Depois de acentuar mais uma vez a igualdade das trés pessoas, agora, por meio de um argumento de razao, 0 santo estabelece que, para a compreensao de Deus, deve-se deixar de lado qualquer imagem corpérea, ‘mas que 6e pode entender algo da natureza de De inteleccao da verdade, pelo conhecimento do Sumo Bem e pelo amor a justiga. O ca breve, poré Ao. 15 vivéncia do amor, no qual se percebe certo vestigio de Deus (VIII Livro). “Langa-se entao a procura de uma imagem de Deus até encontré-la na mente do homem, onde se depara com ‘e amor, com oqual o seu préprio conhecimento. Aprofundando a pesqui sa, descobre na mente uma trindade nportante: a éria, o entendimento e a vontade (IX e X Livros). jue dando um passo atras, mas justificando mento pela necessidade de exercitar a inteli- leitores, investiga depois a existéncia de uma imagem de Deus no homem exterior. E encontra a primei- a visio exterior das coisas, constituida pela visio do nada no olhar do vidente, © a 0 de ligacdo. As trés o sao da mesma substanc fagem, cujos elementos so da mesma substancia, constituida pela imagem do corpo a, pela informagio obtida pelo olhar do xo da vontade como tereeiro realidades, por Eneontra a segund: Prosseque a investigagio eobre a imagem de Deus no homem. Depois de estabelecer adiferenca entre sabedoria ., surge a descoberta de uma imagem, ainda erior, na ciéneia, embora prépria do homem interior. E enfoca 0 ass 6 comum e una em todos os erentes, e necesséria para a felicidad jem. A felicidade verdadeira tem a nota imortalidade, aqua 1m pode almejara aleancar vida, morte e ressurreigao do Verbo arnado (XII e XH Livres). ‘Chegando ao fim da pesquisa, encontra a imagem de Deus no homem segundo a mente, que se renova no conhecimento de Deus conforme a imagem daquele que o criou a sta imagem. Com a mente, o homem percebe a mvrRonucao, 16 sabedoria, contemplagao do eterno, Contudo, a Trindade, nesta vida, 0 homem a vé tdo-somente em espelho e em enigma, pois essa visio acontece por meio da imagem de Deus, gue é 0 préprio homem — semelhanca obscura © dificil dese discernir. Essa descoberta permiteexplicar de algum modo a geragao do Verbo divino, ou soja, mediante a geraciio da palavra em nossa mente. As tltimas refloxdes versam sobre a procedéncia do Espirito Santo, a qual € explicada como sendo 0 amor entre o Pai e 0 Filho (XIV ¢ XV Livros). A obra nas “Retratagaes” No ano de 427, Agostinho escreveu a obra “Re- tractationes” (Retratagées), em dois livros, em que revé afirmagées contidas em obras suas ja publicadas, os as quais julga necessario apresentar esclarecimentos out até corregdes. Com relagao a “De Trinitate” faz referéncia tras vezes. Bi-las: 1) “No livro XI (cap. 5 n, 9), quando tratava do corpo ‘vel, disse: Portanto, am4-lo, isso é loucura. Referi-me ‘40 amor com que se ama algo, a ponto de oamante pérsua folicidade na sua fruicdo, Poisnaoé sinal de loucura amar a formosura corporal para louvor do Criador.” ro (cap. 10, 17), quando disse: "Nao me recordo de uma ave quadmipede, porque nunca a vi Mas posso conte com facili 2)*Nomesmi indo outros dois pés aos que jd observei", ao dizé-lo, no me Jembrei das aves quadripes mencionadas na Lei (Lv 1 20). A Lei nao considera como pés, as duas patas poste- riores que permitem o salto aos gafanhotos, tidos como animais puros, Distingue-os dos volateis que nao saltam ” INTRODUCAO com 0 auxilio dessas patas, como os escaravelhos. ‘Todos esses volateis sao denominados quadripedes na Lei’ 3) "No livro XII (eap. 1 n, 15), 0 comentario das palavras do Apo outro pecado que o homem cometa, é exterior ao seu corpo” (1Cor 6,18), nao me agrada, Faspalavras:“Aquelequeseentregara fornicacao, peca contra o préprio corpo” (1Cor 6,18), néo se hao de entender no sentido de que aquele que comete esse peca- do, comete-o para ter as sensagies que 0 corpo percebe, de tal modo que nelas ponha seu tiltimo fim. Isso abrange muitos outros pecados além da fornieacio perpetrada mediante uniaoiilicita, da qualo Apéstolo fezreferéncia 20 dizer isso."° (Retra ef. IT 15,28) Essa obra, excetuando-se a carta que a encabega, comeca assim: Quem se entregar & leitura do que escrevemos sobre & Trindade... (Lecturus have quae de Trinitate disserimus). CARTA PROLOGO Carta 174 De Agostinio, ac beatissimo, muite amado e veneréval papa Aurdlio santo irmacecolega no sacerdécio, saudagao no Senhor,? Sendo aind: jovem, iniciei ae! meus livros sobre a Trindade, que ¢ 0 Deus bray seondidas on mesma furtado, antes de 03 sto, como erao meu dese) os separados,masemuma ubsequentes ligam-se aos completa, precedentes no transcurso da pesquisa, Como nao me foi el exocutar esses plan minha vontade, os volumes chegaram as maos de alguns), interroi 1s livros, pe amentar 0 fato em outros escritos, ¢ assim fosse tomado conhecimento, 0 quanto possi referidas livros me foram minei terminar com a ajuda de Deus tao Pel de nosso carissimofilhoeco-dideono, hegar as tuas miios ja corrigidos — nao tao hem como o desejava, mas de acordo com minhas possibilida- cARTA 174 20 des —, para iarem tanto dos que, levados por alguém, escaparam-me das maos. E dow izagio a todos os que queiram escuté-los, copid-los izar meu desejo, conser- vando 0 mesmo contetido, a minha exposi¢ao teria sido na medida queasdificuldades, que envolvem a explanagdo de assuntos tio profundos ea lade o tivesse permitido. 0 08 quatro ou, talvez, os idosprélogoseoduodécimo livro sem uma parte final consideravel. Se esta presente edigdo chegar-lhes as mos, poderdo fazer as correcdes, se ‘oquiserem ow puderem, Solicito, como medida de prudén- cia, que mandes transcrever esta carta & parte, antes do inicio de todos os livros. Adeus! Reza por m ‘Leiam-setombé 3 Notas complementares Introd: renprega da "Trindade" dado Anjo na praia 2 11: Contnbato tasido 3 doutsinatriniténia da Igneja si charitatem vides) (VI, 8,12) “Lembre-me eu d eca-te a tir ame-te a tis Faze-me crescet™ e reforma-me por inteiro” inerim tui, intelliga) ta, do) (XY, 28,51) LIVROT reeiva espécie de indiv is, para se aplicarem rel, que 6 Deus. Onerados, porém, mam com todo atrevimento s uv fecham a simesmososcaminhos da in do nao se corrigirem de suas falsas afirmagées, a modifi- carem 0 que defendem.? Esse 6 0 mal dos trés grupos de individuos aos quais, me referi ou seja: os que enfocam o tema de Deus como ‘uma substancia corpérea; os que 0 abordam conforme os seres espirituais, como a alma; e os que no obedecem a neahur dos dois critérios ¢ emitem opinides falsas a respeito de Deus. Estao eles tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos nao apéiam, nos senti- dos corporais nem no espirito criado; nem no proprio Criador. Quem julga, por exemplo, que Deus é branco ou Touro, engana-se, ainda que de qualquer maneira encon- tremos esses acidentes no corpo. Quem considera que Deus agora se esquece e depois se lembra, ou tém outras opinides semelhantes, esté totalmente em erro, ainda que de qualquer forma, essas faculdades se encontrem na alma. Quem, porém, pensa que Deus é dotado de tal forca que tenha gerado a si mesmo, incorre em maior erro ainda, ja que Deus nao somente nao ¢ assim, e tampouco uma criatura espiritual ou corporal, Nio hi eriatura alguma que seja capaz de gerar a si mesma para existir. 2 Com a finalidade de purificar o espfrito humano de semelhantes erros a santa Escritura, acomodando-se aos pequenos, nao evitou expressies designando esse genero de coisas temporais, mediante as quais nosso entend mento, como que alimentado, pudesse ascender por de- graus, As coisas divinas e sublimes. Por isso, empregou palavras tomadas das coisas corporais a0 falar de Deus ;plo, quando diz: Protege-me & sombra de 16,8). E apropriou-se também de muitas expressées referentes ao espirito para significar aquilo que, embora nao seja desse modo, era preciso que fosse dito assim, como: Eu sou um Deus ciumento (Bx 20,5), € 25 128 também: Pesa-me de ter feito 0 homem (Gn 6,7). Em se tratando de coisas inexistentes, a Escritura nao registrou expresso alguma que envolvesse locucdes figurativas ou encerrasse enigmas. Dal, que se perdem em afirmagies vase perniciosas os que se afastam da verdade, abracando aquela terceira espécie de erro, Conjeturam a respeito de Deus elementos que nao se encontram nele mesmo, nem em criatura algumas. Com elementos préprios das criaturas, a Escritura na costuma compor como que jogos infantis, com a intengdo de que os sentimentos dos simples sejam estimu- Iados, como que passo a passo, & procura das coisas superiores, no abandono das inferiores.* O que, porém, € dito com propriedade somente a respeito de Deus e que no se encontra nas criaturas, Eseritura rara- mente registra, como 0 que foi dito a Moisés: Fu sow o que sou, e também: Aquele que é, enviou-me a vds (Ex 3,14). ‘Ainda que 0 verbo “ser” seja empregado também em relagio ao corpo e a alma, a Escritura nao o empregaria, quisesse dar a essas palavras um sentido tod ial, a0 se referir a Deus. Do mesino modo quando 0 Apéstolo diz: O tinico que possui a imortalidade, 0 senhor dos Senhores (Tm 6,16). Visto que se diz. a alma ser imortal, como de fato 6, a Eseritura nao diria: “O uinico”, sea verdadeira imortalidade nao fosse a imutvel, da qual nenhuma criatura é dotada, jé que esta imortalidade per- tence somente ao Criador. O mesmo dé entender 0 apés- tolo Tiago: Todo dom precioso e toda dddiva perfeita vere doalto, descendo do Pai das luzes, no quai nao ha mudan. ‘ga nein sombra de variagao (Tg 1,17), Hatambemoque diz, Davi: E camo uma vestidura, twas mudas e ficam muda- das; tu, porém, és sempre o mesmo (SI 101,27-28). 3. Desse modo torna-se dificil intuir e conhecer plena- mente a substancia de Deus,® que faz as coisas mutaveis EavRo 26 semmudanca emsi mesmo, cria ascoisas temp, qualquer relacao com o tempo. Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para podermos contemplar inefa- nente o rel. Ao nao conseguirmos ainda essa purificacao, alimentamo-nos da fé, somos conduzidos por caminhos mais pr: chegar a compreender a Deus.*Nesse sentido, afirmou 0 Apéstolo que todos os tesouros da sabedoria e da ciéncia 40 escondidos em Cristo (C12,3), mas apresentou-o 208 que, embora rena: e animais, e p ssim, apresenta 0 Cristo nao com o poder divino pelo qual éigual ao Pai, mas, na fraqueza humana na qual foi erucifieado. Diz tex mente: Pois eu ndo quis saber outra coisa entre v6s a ndo ser Jesus Cristo, e,Jesus Cristo erucificado. E, prossegu entre v6s cheio de fraqueza, receio e temor 3), B mais adiante: Quanto a mim, irmé vos pude falar como ahomensespirituais, mas tao-somen- te como @ homens carnais, como a crianeas em Cristo, leite, n to sdlido, pois nao 0 podieis suportar. Mas nem mesmo agora o podeis (1Cor 31-2) um insulto. Pre acreditar nao terem 0 que dizer os que isso dizem, antes de se consi a si mesmos in de compreen- der o que lhes ¢ dito. As vezes, lhes apresentamos certa argument: te o que pedem quando in- bre Deus, pois eles nao tém eapacidade de compreendé-lo — nem nds talvez. tenhamos para com- -lo, Somente expomos alguns argu- mentos que demonstram a sua ineompeténcia e inido- em 0 que exigem. mo nae ouvem aguilo que desejam — ou pensam que agimos com asbicia para oeultar nossa incapacidade, 15 pessoas aT 2a talvez que agimos com maldade, por Ihes invejarmos competéncia —, indignadas e confitsas, afastam-se de capinoLo2 O procedimento neste estudo sobre a Trindade 4. Considerando o precedente, com a ajuda de nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreende. remos a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade é um s6 ¢ verdadeiro Deus, ¢ quao retamente se diz, se cré e se entende que o Pai, 0 Filho e © Espirito Santo possuem uma s6e mesma substancia ow esséncia.® Assim nao poderdo afirmar, por assim d que enganamos os adversérios com Mas que se convencam pela prépria experiéneia de que existe aquele sumo Bem, s6 visivel as mentes muito puras. E se eles ndo podem compreender, é porque o limi da inteliga mana nao 6 eapaz de se fixar nessa luz sublime, se nao for alimentado pela justica fortalecida pela f. eiramente, porém, 6 preciso demonstrar pela autoridade das santas Bscrituras, a certeza de nossa fé. Em seguida, se Deu: qu 1 esses garrulos raciocinadores? — mais eheios de si do quecapazes, o—,afim de que encontrem uma doutrina da qual nao possam duvidar. Sendo quiserem se convencer, queixem-se antes d idade de suas mentes do que da verdade, ou mesmo da nossa argumentacdo. Se neles ainda restar ossas pretensies. Livko1 28 dos fidis, existente na Igreja, de modo que uma piedade auténtica cure a mente doentia incapaz de perceber a verdade imutavel, ¢ leve a evitar que a temeridade desre grada os faca emitir opinides maldosamente falsas, Nao mecansarei de procurar, se iver alguma diivida;endome envergonharei de aprender, se cair em algum erro.’ ruLos Pacto do autor com os leitores 5. Todo aquele que ler estas explanagées, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe lado a lado comigo; quan- do duvidar como eu, investigue comigo; quando reconhe- cer que foi seu o erro, venha ter comigo; se o erro for meu, chame minha atengio.* Assim haveremos de palmilhar juntos o caminho da caridade em diregao aquele de quem esta dito: Buscai sempre a sua face (Sl 104,4). Faco este acto piedosoe seguro na presenca do Senhor nosso Deus, com todos aqueles que lerem nao somente este tratado, mas todas a3 minhas outras obras, principalmente no tocante & unidade da Trindade, que é 0 Pai, 0 Filho 0 Espirito Santo. Por certo nenhuma outra questao existe que oferega mais risco de erros, mais trabalho na investi- gacdo e mais fruto na descoberta."” Aquele portanto, que aoler, disser: “Isto ndoestébem explicado, pois no entendo”,culpeo meu modo deexpres- sar, nao porém, a minha fé. Poder-se-ia com efeito dizer gumas coisas com mais elareza; contudo, ninguém ja mais falou a ponto de todos o compreenderem, em tudo 0 que diz, Quem nao estiver de acordo com o que digo, procure examinar outros autores mais versados nesses assuntos, jd que ndo compreende a minha explicagao. Se 29 38 isso acontecer, feche meu livro ou, se achar melhor, porha-o de lado, e dedique seu tempo e esforgo na leitura dagueles escritores que lhe sfio mais compreensiveis, Nem por isso, contudo, julgue ele que eu deva me calar por ndo conseguir explicar t4o expedita e claramen- te como os autores que compreende. Nem tudo 0 que est escrito, chega a circular nas maos de todos. Pode aconte- cer que algumas dessas pessoas venham a ter em maos pelo menos estes nossos livros, © que tenham capacidade para entendé-los, sem ter podido dispor de outros mais, claros. Por isso, & vantajoso que diversos, assim como os mesmos assuntos sejam tratados por varios autores em diferente estilo, ndo, contudo, com fé diferente. Desse modo, chegardo ao conhecimento de muitos leitores a uns de um modo; a outros, diferentemente. E se alguéim se queixar de nao compreender minha explicagéo, porque nunca foi capaz de entender acerea desses assuntos, embora tratados diligente e profundamente, faga votos no seu intimo e dedique-se mais ao estudo para ticar algum, proveito em vez de pretender me fazer calar corn suas lamentagios e eensuras. Aquele leitor que disser: “Estou compreendendo que se diz, mas nao esta apresente a sua explicagao, se 0 quiser, Caso, motivado pela caridade e a verd: conhecimento — se ainda estiver eu vivo — estarei co- Ihendo frutos copiosos deste meu trabalho, Se nao Ihe for possivel trazer ao meu conhecimento, da alegtia e prazer se fizer a observaciio aos que puderem me corrigir. Deminha parte, medito na lei do Senhor, sendo dia e noite (SI 1,2), pelo menos em todos os momentos em que me & possivel. Para que nao venha a esquecer minhas conside- rages, confio-as pena esperando da divina miserieérdia 2 perseveranga em todas as verdades que eu considerar LivRor 30 como certas. Se, porém, cair em erro, ele me esclareceré (F13,19), seja mediante inspiragoes ¢ admoestagies inti- mas, seja por meio de sua palavra manifesta, seja ainda através mn 08 irmaos. Isto pk sta determinacaoe este desejo confio-os a0 seu poder, pois ele éotinico capaz de guardar oquemedeuedecumpriroque prometeu 6. Penso com raziio, que alguns mais tardos de inteli- géncia vao opinar, em certas passagens de meus livros, que eu disse fo disse o que disse, Quem ignora que 0 erro alheio nao nos deve ser atribuido? Esses tais pareciam seguir-me, mas nao me tendo compreendido, desviaram-se para alguma falsida- de, enquanto eu me via obrigado a caminhar por densos e ‘obscuros caminhos." De modo semelha: 0 descaro de atribuir aos santos autores dos Livros sagra- dos 0s muitos e variados erros dos hereges, que se empe- mham em defender suas falsas e enganadoras opinioes ¢ je das mesmas Escrituras, Alei de Cristo, com delicadissima autoridade, isto é, a caridade, admoesta-me e cu homens julgam que em meus livros defendi algum erro que nao defendi, se 0 suposto erro desagradar a este € agradar aq eu prefira ser repreendido pelo cen- sor da suposta falsidade a ser louvado por um adulador.!? ejacriticado pelo pri é censurado; no entanto, nem eu serei louvado com razio 1 — pois me atribui uma opiniao contraria & verdade —, nem a prépria afirmacdo serd elogiada com raziio; pois ofende a verdade. En nomedoSenhor, pois, demos inicioa obra que nos propusemos empreender. an 9647 capiTuLos Doutrina da fé catéliea sobre a 7. Todos os do Novo'Testamento,¢ perfazemumaunidaded de uma tinica e mesma subst: jade da Trindade. Contudo, a Trin: nom [oi crucificad terceiro dia, nem subitt aos somente o Filho. A Trindade nao deseou sob a forma de pomba sobre Jesus batizado (Mt 3.1 ascensio do Jai fogo, que vieram sada um deles; mas so irito Santo (At2,2-4). A Trindad pavirdo nem no dia de Pentecostes depois da fda seme- jonte quando com ele estavam nem quando soou a vor que dizia: Ew o gloré m queo Pai eo Filho so insepardveis em si, 830 nsepardveis em suas operagies.1° Esta é minha fé, pois esta ¢ a fé catdlica, Lavo 82. caPITULOs Questionamentos sobre a unidade na Trindade € as operagdes insepardveis 8, Algumas pessoas ficam confusas quandoouvem falar que Deus Pai, Deus Filho ¢ Deus Espirito Santo, ou seja, a Trindade, nao sao trés deuses, mas um s6 Deus. procuram entender como isto seja possivel, prineipalmen- te quando se diz. que a Trindade atua inseparavelmente em tudo 0 que Deus faz. No entanto, a voz do Pai, que se ouviu, no é a voz do Filho; somente o Filho nasceu, padeceu e ressuscitou e subiu ao eéus; e somente o Espi- Fito Santo aparecett em forma de pomba. Querem com: preender como aquela voz somente do Pai, pode ser operacao da Trindade; como aquela carne, na qual somen: teoFilhonasceu, a mesma Trindade a criow; como aquela forma de pomba, na qual somenteo Espirito Santo apare ceu, tenha sido operacao da Trindade. Caso as operagies nao fossem insepardveis, mas 0 Pai fizesse uma coisa, o Filho outra, e o Espirito Santo outra; ou se operassem algumas vezes em conjunto, tras vezes em particular cada uma; niiose poderia afirmar a inseparabilidade da Trindade. Preocupa-os também 0 fato de que o Espirito Santo estejana Trindade e nao foi gerado nem pelo Pai nem pelo Filho, mas é 0 Espirito do Pai e do Filho. Essas pessoas levam-nos ao cansago com suas perguntas. Se nossa fraqueza receber ajuda do dom de Deus, daremos explica ‘gées, como pudermos, nao caminharemos porém, com aquele que se corréi de inveja (Sb 6,23). Se afirmarmos que tais questées nao soem preocu- somos arrebatatos pelo afa de investigar a verdade,” e os amigos suplicam, pelo direito da caridade, que lhes comuniquemos o que puder- 33 5888 mos descobrir. Nao quero dizer que ja tenha aleancado a meta ou seja perfeito, pois, se 0 apéstolo Paulo diz nao a ter aleancado, muito menoseu que estou longe delee como que sob seus pés. Discorrerei, noentanto, conformeminha cadénciae, se me esqueco do que disse atras e volto ao que JA disse, prossigo conforme meu propésito a fim de obter ‘ prémioda vocagao do alto. Aqueles a quem a caridade me obriga a servir, desejam que lhes manifeste quanto tenha andado neste caminho, aonde pretendo chegar eo que me resta de caminho até o fim E mister, porém, e Dous me concederd que, servindo aosleitores, eu mesmo faca progressos e, aoresponder 20s que perguntamn, eu mesmo encontre o que procuro, Assu- mieste trabalho, por ordem e com a ajuda do Senhor nosso Deus, nao tanto para dissertar com autoridade sobre assuntos que conheco, mas para os conhecer eu mesmo, mediante uma piedosa dissertagao.”* CAPIRULO6 Consubstancialidade do Pai e do Filho. Imortalidade da Trindade. O Fitho é também criador. A deidade do Espirito Santo e a igualdade com 0 Pai eo Filho 9, Aqueles que afirmaram que nosso Senhor Jesus Cristo nao é Deus, ou que nao ¢ verdadeiro Deus, ou que nao é um 6 Deus com o Pai, ou que nao é imortal por ser mutavel sejam convencidos de seu erro pelo clarissimo testemunho e pela afirmacao unanime dos Livros santos, dos quais jalavras: No prinetpio era o Verbo, € 0 Verbo estava em Deus, eo Verboera Deus. Esta claro que 6s reconhecemos 0 Verbo de Deus como o Filho tinico do Pai, do qual se diz depois: &’0 Verbo se fez carne e habitou Livaor 34 entre nds (Jo 1,1-14), em referéncia ao naseimento pela sua encarnagéo, ocorrida no tempo, tendo a Virgem como mae, Nessa passagem, o evangelista declara que o Verbo nao ésomente Deus, mas consubstancial ao Pai, pois, apés dizer: E 0 Verbo era Deus, acrescenta: No principio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito do que existe (So 1,2-3). Diz tudo, de modo a i tudo o que foi eriado, ou seja, todasas criaturas. Consta ai claramente que nao foi eriado aquele por quem tudo foi criado, E se nao foi criado, nao 6 criatura, e se nao é criatura, 6 eonsubstancial ao Pai, Toda substancia que nao é Deus, é criatura, e a que nao écriatura, Deus. Ese © Filho nao é consubstancial ao Pai, é uma substancia criada; e se é uma substancia criada, todas as coisas ndo wram feitas por ele. Ora, esté escrito: Tudo foi feito por ie; portanto, ¢ consubstancial ao Pai. Assim, nao é so- mente Deus, mas verdadeiro Deus. 10, O mesmo afirma com clareza o apéstolo Joao na sua carta: Nés sabemos que veio o Filho de Deus e nos dew a inteligencia para conhecermos 0 verdadeiro Deus. E 76 esta srdadeiro Deus, no seu Fitho Jesus Cristo Este é 0 Deus verdadeiro e a vida eterna (1 Jo 5,20) Podemos também tirar a conclusao de que nao se re somente ao Pai aquelas palavras do Apéstolo: O tinico que possui a imortalidade (Tm 6,16) Deus, que é a propria Trindade." Jamais a vida eterna pode ser mortal com alguma Filho de Deus, porqueé Vida eterna, esta incluidotambém, como Pai, na citag lidade, Nos, participantes de sua vida eterna, tornamo. mnortais, conforme nossa condigao. Mas uma coisa é fomos feitos participantes coisa somos nés que viveremos para sempre por forca dessa ois, 0 Apsstolo tivesse dito: “O 36 eau Pai, (em vez de: Jesus Cristo) —0 Benditoe tinico Sobera- icoqque possui ,, mostrard nos tempos estabelecidos...”, nem assim se poderia conchuir que o Filho esta excluido. lho também nao se separou do Pai ao falar pela wria (pois 6a Sabedoria de Deus): Eu sozinho fiz todo o giro do mundo (Belo 24,8). Com mais razio, portanto, nao é Iicito que se entenda s6 do Pai, excluindo Iho, quando se disse: O tinico que possui a imortalida Jd que a afirmagao ¢ esté: Guarda 0 mandamento imaculado, irrepreenstvel, até a aparigéo de nosso Senhor desus Cristo, que mostrard nos tempos estabelecidos, 0 bendito € tinico Soberano, 0 Rei dos reis e Senhor das senhores, 0 tinico que possui a imortalidade, que habita uma luz inacesstvel, que nenhum homem viu, nem pode ver. A ele, honra.e poder eterno! Amém (1Tm 6,14-16). Nessas palavras, nao hé mengao propriamente dita do Pai nem do Filho nem do Espirito Santo, mas do bendito e Linico Soberano, o Rei dos reise Se 1ores, 0 que corresponde ao tinieo e verdadeiro Deus, propria Trindade. 11. Ando ser queas palavras seguintes pudessem torcer a interpretagdo dada, pois disse: Que nenkum homem ode ver, porque poderiam ser entendidas como srentes a Cristo na sua divindade, a qual os judeus nao viram, embora tenham visto 0 seu corpo e 0 tenham crucifieado, Mas a divindade nao pode ser vista de modo algum por othos humanos;2" pode, porém, ser vista com aqueles olhos de quem j4 nao sao homens, mas super- homens. Portanto, com toda razio d proprio Deus-Trindade quando ests dit Soberano, referindo-se t aparicdo de nosso Senhor Jesus Cristo nos tempos esta’ O tinico que possui « imortalidade, era como se dissesce: ico que faz maravithas (S171,18). Livkor 36 Desejaria saber a quem os adversarios atribuem as referidas palavras: pois se apenas ao Pai, como pode ser verdade 0 que o proprio Filho diz: Tudo aquilo que o Pai faz, 0 Filho o faz igualmente? (Jo 5,19). Qual é o prodigio entre os prodigios, sendo ressuscitar e dar a vida aos mortos? Pois,o mesmo Filho diz: Como o Pai ressuscita os mortos ¢ os faz viver, também o Filho dé a vida a quem quer (Jo5,21), Como dizer que somenteo Pai faz prodigios, se essas palavras nao dao lugar a que se entenda que é 1u apenas o Filho, mas 0 Deus tinico ¢ verdadeiro, ou seja, o Pai, o Filho ¢ o Espirito Santo? 12, Além disso, quando o Apéstolo dix: Para nés, contudo, existe um s6 Deus, 0 Pai, dequem tudo procedee para quem 16s somos; € um 86 Senkor, Jesus Cristo, por quem tudo existe ¢ por quem nds somos (1Cor 8,6), quem ha que duvide de ele falar de todas as coisas criadas, do mesmo modo que Joao: Todas as coisas foram feitas por ele? (So 1,8). Pergunto também: a quem se refere quando diz. em ‘outro lugar: Porque tudo é dete, porelee nele; a ele a gloria pelos séculos! Amém (Rm 11,36). Se essas palavras fazem referéncia ao Pai, ao Filho e ao Espirito Santo de modo a atribuir a cada Pessoa uma das expressGes: Dele ao Pai, ele ao Filho, nele ao Espirito Santo, fica claro que o Pai sm 6 Deus, pois o Apéstolo acreseenta no singular: A ele a gldria pelos sécilos. Por onde se vé que usou esse sentido, também ao dizer: Oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciéncia; nao do Pai, do Filho e do Espirito Santo; mas,da riqueza, da sabedo- riae da ciéncia de Deus. Como sao insonddveis seus jutzos e impenetrdveis seus caminhos! Quem, com conhe- ceu 0 pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu consetheiro? Ou quem primeiro the fez.o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e nele. Ale a gloria pelos séewlos dos séculos! Amém (Rm 11,33-36), 37 6.213 Se, portanto, os adversdrios querem entender essas palavras como referentes somente ao Pai, como entender que todas as coisas foram feitas pelo Pai, como é dito aqui; e que tudo foi feito pelo Filho, como ¢ dito na carta aos Corintios:£ um so Senhor Jesus Cristo por quem saotodas as coisas; e como se é no evangelho de Joao: Tudo foi feito por meiodele? Se umascoisaa foram feitas pelo Pai, outras pelo Filho, conelui-se que nem tudo foi feito pelo Pai, tampouco tudo pelo Filho. Se tudo, porém, foi feito pelo Pai e tudo pelo Filho, as mesmas coisas feitas pelo Pai foram feitas pelo Filho. Portanto, 0 Filho é igual ao Pai, a atuagao do Pai e do Filho ¢ inseparavel. Com efeito, se 0 Paicriouo Filho, que nao oi feito pelo préprio Filho, nem indo foi criado pelo Filho; mas a verdade é que tudo foi feito pelo Filho. Entao concluimos que o Filho nao foi criado, mas que com 0 Pai fer tudo 0 que foi feito. Tanto que 0 Apéstolo nao omitiu o Verbo ao dizer de modo bern claro: Ble tinha a condigdo divina e néo considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente (F12,6); e chamando ao Pai, de Deus, como vemos nesta outra passagem: A cabeca de Cristo é Deus (1Cor 11,3). 13. Sobre o Espirito Santo, recotheram-se também teste- munhos abundantes dos quais fizeram uso todos os auto- res que antes de nés escreveram acerca destas matérias, nos quais se prova que o Espirito Santo é Deus e nao criatura, E se nao é criatura, é néio somente Deus — pois ‘os homens foram também chamados deuses (S1 81,6) — mas Deus verdadeiro. I, portanto, igual em tudo ao Pai e ao Filho, consubstancial e cooterno na unidade da ‘Trindade, ‘Acitagao, onde aparece com maior clareza o Espirito Santo nao ser criatura, é aquela onde nos é dadoo preceito de nao servirmos a criatura, mas ao Criador (Rm 1,25). Quanto a0 modo de servielo, difere porém, do revelado no uot 38 preceito de servimos uns aos outros pela caridade (GI n grego se designa com o verbo douleuein, deuses o culto devido somente a Deus. © culte a Deus € proclamado nas palavras: Adorarés 0 Senhor teu Deus, somente a ele servirds (Dt 6,13) Ao empregar o termo latretiseis, 0 texto grego ¢ mais to. Se esse culto & criatura nos & proibido, pois est eserito: Adorards 0 Senhor teu Deus, e somente a ele servirds, e 0 Apéstolo maldiz os que cultuam a criatura e aservem, endo ao Criador, conclui-sequeo Espirito nao écriatura. Ele,ao qual todos os santos prestam aquele culto, no dizer do Apéstolo: Os verdadeiros cireun somos nds, que servimos ao Espirito de Deus (F13,3). Bem reg esignados pelo termo lacretiontes, mm exemplares mesmo nos latinos assim se lé: Que s 8; © assim se encontra tai maioria ou quase em todos os eédices gregos. Bm algu latinas, porém, 0 texto nao é: Servimos ao Es de Deus, mas: Servimos a Deus, no espirito, Osque erram a esse respeitoe se recusam ase dobrar acaso, versdes diferentes nos eddices c vras: Ou ndo sal Santo, que estd em vds e que recebostes de Deus? (1Cor 19) Que n nsatez e sacri ousar dizer que 0s membros de dizem, templos de uma criatura inferior a Cristo? Em outra passagem 0 Apéstolo diz: Vosso bros de Cristo (1Cor 6,15). Se, porém, Cristo sao templos di Santo, 0 Espirito Santonio € uma criatura, pois, aquele de quem nossos corpos so templosé mister que devamos a adoragio devida somente n relagdo as pala- smplo do Es} 39 Deus, queem grego é designada com otermolatreta. Por isso acrescenta: Glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo (1 Cor 6,20). capinuLo 7 Sentido da afirmagao: 0 Filho € inferior ao Pai e a si mesmo 14. Com esses ¢ semelhantes testemunhos das divinas Escrituras, com os quais como disse antes, 05 autores que erros dos hereges, comprova-ce a unidade ¢ a i professada pela nossa {6.% Mas devidoa encarnacao do VerbodeDeus, realizada de nossa salvacdo ¢ para santos insinuam e am, que o Pai é maior que o os homens errarem pela descuidada investiga. ‘aoe pela falta de consulta a todo o conjunto das Eseritu- ras. E por isso, transfer smacies acerca de Cristo.Jesus: porque escrito ¢ o disse o proprio Senhor: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28), A verdade, porém, mostra que neste sentido o Fi ior a si mesmo, Como nao ha de ser inferior a simesmoaquele que “esuaziou-se de si mesmo, eassumiu a condie@o de servo? (Fl 2,7). Recebendo a forma de servo, nao perdeu a forma de Deus, na qual era igual ao Pai. Portanto, revestido da forma de servo, niio ficou privado Livkor 40 da forma de Deus, pois, tanto na forma de servo, como na forma de Deus, ele é 0 Filho Unigénito de Deus Pai, igual ao Pai na forma de Deus, e mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, na forma de servo. Nesses termos, quem ha que nao eompreenda que na forma de Deus, ele é superior a si mesmo e, na forma de servo, € também inferior a si mesmo? Por isso, a Escritura afirma, no sem razio, ambas as, coisas, ou seja, que o Filho ¢ igual ao Pai e o Pai é maior que o Filho, Nao ha, pois, lugar a confuisao: é igual ao Pai pela forma de Deus, éinferior ao Pai pela formade servo." Esta regra, para resolver o assunto em pauita, com base em todos o¢ Livros sagrados, é tomada de um capi Jodacarta de Paulo, onde essa distingao aparece com toda clareza, Diz assim: Ele tinha a condigao divina, ¢ ndo considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se de si mesmo, e assumiu a mndi¢do de servo, tomando a semelhanga humana, tido pelo aspecto como homem (Fl 2,6-7). O Filho de Deus 6, portanto, igual ao Pai pela natureza, inferior pela condi- gio exterior. Na forma de servo de que se revestiu, & inferior ao Pai; na forma de Deus que ja possuia antes de assumir nossa condigio, é 60 Verbo pelo qual todas as coisas foram forma de servo, “nasceu de mulher, sob o império da Lei, para remir os que estavam sob a Lei” (Gl 4¥ qiientemente, na forma de Deus eriouohomem, deservo fe7-se homem. Pois, se somente o Pai, tivesse criado o homem, nao estaria escrito: Fagamos 0 homem & nossa imagem e semelhanca (Gn 1,20). Desse modo, pelo fato de a forma de Deus receber a forma de servo, ele é a0 mesmo tempo Deus e Homem. Fao mesino tempo Deus, porque era Deus quem a recebeu; ao mesmo ‘tempo homer, porque recebeu a condigéo humana. No fato de assumir nao ha conversiio ou mudanga de condi- 4a 85 cdo: nem a divindade modifica-se ao tornar-se criatura, nem a criatura tornou-se divindade, deixando de ser criatura® capiruLos Sujeigdo do Fitho ao Pai. A entrega do Reino ao Pai. A contemplagao prometida. Espirito Santo e a nossa felicidade 15. Asentenga do Apéstolo: F quando todas as coisas the tiverem sido submetidas, entao 0 proprio Filho se subme- terd uquele quetudo the submeteu (1Cor 15,28), foi escrita, segundo a opinido de alguns, para que ninguém julgasse que 0 aspecto exterior de Cristo, recebido da eriatura humana, se haveria de transformar depois na propria divindade, ou expressando-me melhor, na deidade,® que nao é criatura, mas a unidade incorpérea da Trindade, incomunieavel, consubstancial a si mesma e cocterna Outros contrapdem afirmando que as palavras: Eo proprio Fitho se submeterd aquele que tudo Ihe subme- teu, devem ser entendidas eomo @ mudanga e conver so futuras da criatura na prépria substéncia ou esséncia do Criador, ou seja, que a substancia que fora da criatura se transformaré na substancia do Criador. Pode-se acei- tar essa interpretagao com a condigao de gue tal trans- formacao ngo se tenha verificado no tempo em que 0 Senhor dizia: O Pai ¢ maior do que eu, palavras que ele pronunciou nao somente antes da sua ascensio ao eéu, mas também antes de padecer e ressuscitar dentre os mortos. Os que opinam que a substancia natural hé de se transformarem substancia da deidade, julgam que issose LivROI 42 dard de} , quando ele entregar o Reino a Deus Pai (1Cor 15,24), apoiados nas palavras: Entdo 0 préprio Filho se submeterd aquele que tudo lhe submetew, como se dissesse: entao o proprio Filho do homem e a naturez: humana recebida pelo Verbo de Deus se transformard na natureza Ihe submeteu todas as coisas E por isso também, de acordo com a referida opiniao, 0 Pai é maior do que a forma de servo recebida da Virgem Maria, Ese al ii nao podem negar que permanecia ainda a natureza de homem, quando dizia antes da paixao: Porque o Pai é maior do queeu. Dai duvida que, conforme o que foi di maior que o Filho na forma de servo, mas o Filho é igual Paina de Deus. td submetido”, evidentemente excluir-se-d aquele que tudo the submeteu (1Oor 15,27),ninguém pense quese had a0 Filho, de modo que seja o préprio Filho que tenha submetido tudo a si mesmo. O Apéstolo, escrevendo aos filipenses, esclarece seu pensamento, ao dizer: Mas a nossa cidade estd nos eéus, de onde também esperamos samente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurard 0 nosso corpo humilhado, conformando-o a0 sei glorioso, pela operagao que the dé poder de submetera si todasas coisas (F13,20-21). A atuagao do Pai © do Filho é, pois, inseparavel. Alias, nao submeteu a si todas as coisas, mas foi o Filho que as submeteu a ele © ao The entregar 0 reino, anularé todo principado, toda potestade e todo dominio. Com efeito refere-se ao Filho a sentenga: Quando ele entregar 0 reino a Deus Pai, depois de ter destrufdo todo Principado, toda Autoridade, todo Poder (Cor 15,24). 0 que entrega 6 aquele que destréi. 43 5 16. Naodevemos aceitar que Cristo ao entregar oreinoa Deus Pai, dele ficard privado. Assim acreditaram eertos ‘s Pai, iw a si mesino, pois € Deus com o Pai. Jinados a divergir de tudo sao traidos pelo termo ai empregado: até. Pois, em seguida ito: E preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo de seus pés (1Cor 15,25 como se depois de colocar os pés, deixasse de reinar. Nao entendem essas palavras, que tém idéntico sentido a estas: Inalterdvel estd o seu coracdo, no temerd, até que veja os rersdrios confundidos (Sl 11,8). Nao se conelua, pois, que se encherd de temor, depois de ver confundidos seus adversérios. 0 que, entio, significa: Quando entregar o Reino a Deus Pai? Acaso Deus Pai nao tem Reino? A razao dessa exp: ndiear que todos os justos, nos qual mediador de Deus e dos homens, Cristo Jesus, reina pela f, serao levados & contemplagio que 0 Apéstolo descreve como face a face, quando disse: Quando entregar 0 Reino a Deus Pai, ou seja, quando conduzir os crentes & contem- lado de Deus Pai. Pois, assim diz o Senhor: Tudo me foi ntregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senao 0 Pai, € ninguém conhece 0 Pai, sendo 0 Filho ¢ aquele a quem o Filho o quiser revelar (Mt 11,21). O Pai seré revelado pelo Filho depois de ter destrufdo todo Principe: do, toda Autoridade, todo Poder (1Cor 15,24), isto 6, depois que nao mais for necessario governar essas co por seus semelhantes, isto é, pelos principados, autorida- des © poderes angélicos. Com nao pouca propriedade podem-se-Ihes aplicar as palavras dirigidas a esposa: Nés te faremos umas cadeias de ouro, marchetadas de prata, estando 0 rei no seu diva (Ct 1.10-11, na versio da LXX), ou seja, enquanto Cristo permanece em seu segredo. pois, uossa vida estd escondida com Cristo em Deus; quando tagarelas. Quando se diz: Entregard.o Reino a D Cristo nao se excl Livaor 44 Cristo, que € vossa vida, se manifestar, entao v6s também comele sereis manifestadosem gloria (C13,3-4). Antes que isso aconteca, vemos agora em espetho e de maneira confusa, isto é em semethancas; depois veremos face a face (Cor 13,12). 17. Essa contemplacio é-nos prometida como término de todos os nossos trabalhos e perfeita plenitude da alegria, Visto que ja somos filhos de Deus, mas o que nés seremos, ainda nao se manifestou. Sabemos que por ocasiao desta manifestagao seremos semelhantes aele, porque o veremos tal como ele é (1.0 8,2). Chegaré a realidade das palavras dirigidas a seu servo Moisés: Eu sou 0 que sou. E assim dirdsaos ithos de Israel: Aquele que , enviou-mea vés(Ex 3,14), pois n6s ocontemplaremos na vida eterna, O mesmo disse Cristo: Ora, a vidaeterna éesta:que eles teconhegam ati, o Deus tinicoe verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). Cumprir-se-ao essas palavras quando vieroSenhore puser asclaraso que esté oeulto (Cor 4,5), quando se desvanecerem as trevas da mortalidade e corrupeao. Esse dia seré nosso amanhecer, ao qual 0 salmista se referiu: De manhé, te apresento as minhas preces e espero (81 5,5). E a esta contemplacao que se referem,conforme entendo, as palavras: Quandoentregar 6 Reino a Deus Pai, ou seja, quando 0 mediador dos homense Deus, Cristo Jesus, conduzir a contemplagao de Deus Pai os justos, nos quais agora reina, pela vida de f6. Se me equ sso, corrija-me quem tiver melhor conhecimento; quanto a mim nao encontro outra solucao, Nao estaremos no encalgo de nada mais quando chegar- mos @ essa contemplagao. Agora ela nao existe ainda, embora nossa alegria esteja na esperanca. Ver o que se espera, néo é esperar. Acaso alguém espera 0 que jé ‘¢ esperamos 0 que ndo vemos, é na esperanga que o ‘aguardamos (Rm 8,24.25). Cumprir-se-4 0 que esta escri- 45 sata to: Encher-me-ds de alegria na tua presenca (SI 15,11) Essa alegria sera completa, pois nada mais haverd para se desejar. Ser-nos-4 mostrado 0 Pai, e isso nos bastaré. Assim o entendeu Filipe, quando disse: Mostra-nos 0 Pai e isto nos basta. Ble nao entendera, porém, que poderia dizer também: “Senhor, mostra-nos a ti mesmo, e isto nos basta’, Para chegar a essa compreensao, 0 Senhor lhe respondeu: Ha tanto tempo que estou convosco tu nao me conheceste, Filipe? Quem me viu, vit Pai. E como quisesse queodiscipulo vivesse pela fé, antes de contempla- Jo, acrescentou: Nao crés que estou no Pai eo Paiem mim? (Jo14,8-10). Pois,enquanto habitamos nestecorpo, estamos fora da nossa mansao, tonge do Senhor, pois caminhamos pela fé, ¢ néo pela visto (2Cor 56.7). ‘A contemplagdo é a recompensa da fé, Com vistas & recompensa, nossos coracdes sio purificados pela esta escrito: Purificow seus coragdes pela fé Pode-se alegar outro argumento que prova a nece: da purificagao dos nossos coragées; é aquela sentenca: Bem-aventurados os puros de coragao, porque vertio a us (Mt 5,8). Que essa seja a vida eterna, di-lo Deus no minha salvagao (SI 90,16). Quer ou -n0s 0 Iho, quer: ‘mostra-nos o Pai, 0 pedido encerra o mesmo significado, pois um nao pode ser mostrado sem 0 outro, Sao portanto um, como ele disse: ew ¢ 0 Pai somos tum (Jo 10,30). Coneluindo: devido & inseparabilidade, as vyezes, ésuficiente nomear apenas o Pai ou s60 Filho, para indicar quem nos encheré de alegria na sua presenca. 18a, Também nao se ha separar, de ambos, o Espirito Santo, ou seja, o Espirito do Pai e do Filho. Este Espirito Santo é denominado com propriedade Espirito da Verda- de, oqual o mundo nao pode acolker (Jo 14,17), Portanto, a plenitude de nosso gozo —e maior do que ele néo ha — Livaoy 46 consiste em gozar de Deus Trindade, & cuja imagem fomos criados.*" Porisso, se somente ele bastasse para nossa fe basta, porque ¢ inseparavel do Paie do suficiente som e do Espirito Santo e basta somente 0 inseparavel do Pai ¢ do Esptrito Santo, © gue significam estas palavras: Se me amais, observareis os meus mandamentos, e rogarei ao Pai e vos dard outro Pardclito para que convosco permaneca para sempre,o Bspiritoda Verdade, queo muna acother (Jo 14,15-17), isto é, aquele que s20 0s amantes do mundo? Pois, 0 homem animal nao aceita 0 4 Espirito de Deus (2Cor 2,14) Mas as palavras: ¢ eu rogarei ao Pai, ¢ ele vos dard outro Pardelito, po Espirito Santo, como se somente quando vier o Espirito da Verdade, ele vos conduzira & verdade plena (do 16-13). Prescinde-se entio di do proprio Filho, como se ele ndo ensinasse toda a verda- de, ou que 0 Espirito Santo viesse suprir o que o Filho no éde ensinar? Digam, portanto, seo quiserem, que 0 ‘spirito Santo é maior que o Filho; eles que costumam, iderar que o Espirito Santo menor que o Filho. Sera que pelo fato de nao ter sido dito: “somente ele”, ou: ningguém ser verdade”, esses adversérios concordarao que com o Esp também ensina? O Apéstolo teria exeluide 0 conhecimento das coisas referentes a Deus, quando disse: da mesma forma, 0 que estdé em Deus, ninguém conhece, senéo o Espirito de Deus (1Cor 2,11)? Por forga dessas palavras, esses perversos ousaram afirmar que somente Santo ensina ao Filho o que esté em Deus, como Jor ao inferior; ¢ também porque o préprio Filho a7 9.8 Ihe atribui tanto poder, quando diz: Mas porque vos disse isso, a tristeza encheu 08 vossos coracdes. No entanto, eu vos digo a verdade: é do vasso interesse que eu parta, pois se eu ndo for, 0 Pardelito néo vird a v6s (Jo 16,6-7). desigualdade do Verbo de Deus e do quis significar que a presenga do Filho do Homem, junto doles seria comoum obstéculoa que viesseaquele que nao Iheera inferior, — ndo se tinha aniquilado, recebendo a condigdo de servo como 0 Filho o fizera (FI 2,7). Convinha, portanto que essa condigao de servo desa- parecesse de seus olhos, pois vendo-o assim, acreditavam que Cristo era somente oque viam. Dat, oSenhor dizer: Se me amdsseis, alegrar-vos-fets por eu ir para o Pai, porque 0 Pai é maior do que eu (Jo 14,28) preciso que eu va para 0 Pai, porque, vendo-me assim e julgando pelo que aparece, pensais que sou menor que o Pai; e atentos ao aspecto de criatura ¢ & condicao assumi- da, nao chegais a compreender a que existe entre mim eo Pai”. A mesma coisa quis dizer, mediante as palavras: Nao me retenhas, pois ainda ndo subi ao Pai (Jo 20,17). O sentido do tacto como que delimita oconhecimento, E Cristo nao quis que a intenco do coracdio se fixasse nele de modo @ pensarem que era apenas o que viam. A ascensio a0 Pai, porém, mostraria que era igual ao Pai, e entao, seria o objeto daquela visio que nosbasta. As vezes, esté afirmado a respeito do Filho ser ele quem nos basta, Livro 48 € 6 prometido apenas a recompensa de sta visdo ao nosso amor e desejo. Assim ele disse: Quem tem os meus manda- mentos ¢ os observa é que me ama; € quem me ama, serd ‘amado por meu Pai. Eu o amarei ¢ a.ele me manifestarei (Jo 14,21). Mas nessa passagem, pelo fato de ele nao dizer: “manifestar-the-ei 0 Pai” estara excluindo o Pai? Pelo contrério, como ele mesmo disse: eu e 0 Pai somos um (Jo 10,30). Quando se manifesta o Pai, manifesta-se também o Filho que esta nele; e quando se manifesta o Filho, manifesta-se também o Pai que esta nele. E assim, como, quando diz:aele me manifestarei, subentende-se também © Pai, e quando a Escritura afirma: Quando entregar 0 Reino a Deus Pai (1Cor 15,24) nao esta excluido o filho. Portanto, quando levar os crentes & contemplacao de Deus Pai, leva-los-A & contemplagao de si mesmo, aquele que disse: ¢ a ele me manifestarei. FE: mais: tendo-lhe perguntado Judas: Senhor, por que te manifestards a nds endo ao mundo?, respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardard minha palavra e aele viremos e nele estabelece- remos morada (Jo 14,22-23). Bis porque nao se manifesta sozinho ao que o ama: porque vem a ele junto com o Paie nele estabeleceré morada, 19. Julgar-se-d talvez. que, ao estabel morada 0 Pai e o Filho naquele que o amam, fica exclufdo dessa mansio 0 Espirito Santo? O que disse ele acima, sobre 0 Espirito Santo? Nao foi: O Espirito da verdade que 0 ‘mundo nao pode acother, porque nao 0 ve nem o conhece: nds 0 comheceis, porque permanece convosco est em. vs? (Jo 14,17), Assim, ndo pode ficar excluido aquele de quem se disse: permanece convosco e estd em uds. A nao ser que haja alguém tao equivocado a ponto de pensar que, vindo oPaieo Filho fazerem morada em quem oama,o Espirito Santo se afastara, como quecedendo hugar aos superiores. 49 9.19:1020 A esta suposigéo inspirada pela carne opie-se a Escritura quando diz anteriormente: E rogareiao Paieele vos daré outro Pardelito, para que convosco permaneca eternamente (So 14,16). Logo nao se afastara com a vinda doPaie do Filho, mas permaneceré eternamente com eles na mesma mansio, pois, o Espirito Santo nao vem sem 0 Paie o Filho, nem estes virao sem o Espirito Santo. Para insinuar a Trindade, ainda que seja atribuindo separada- mente certas coisas a uma das Pessoas divinas e certas outras & outra Pessoa, nao se deve entender como se as Pessoas estivessem separadas entre si. Visto que 0 Pai, 0 Filho e o Espirito Santo ndo possuem na Trindade senao uma 86 e mesma unidade, uma s6 e mesma substancia e uma s6 e mesma deidade. o Aeentrega do Reino ao Paie o fim da mediagao 20. Cristo entregaré o Reino a Deus Pai, nao excluindo a mesmo, nem o Espirito Santo, quando conduzir 03 a contemplacdo de Deus, fim de todas as boas # ropouso sempiterno ¢ gozo que nunca nos ser tirado. indica essa garantia com as palavras: Mas eu vos verei de novo se alegraré e ninguém vos tirardé a vossa alegria (Jo 16,22), vosso coragé Uma imagem desse gozo foi-nos oferecida por Maria sentada aos pés do Senhor, atenta as suas palavras. Livre de toda ocupacao e de certo modo arrebatada perante a verdade, o quanto possivel nesta vida, prefigurou a reali- dade futura e eterna. Marta, sua irmao, estava atarefada no trabalho, embora titile bom, mas transitério até vir 0 50 perdura; quanto a Maria, repousava na palavra do Senor. Por isso, a Marta, queixosa de que sua irma nao a estava ajudando, o Senhor respondeu: Maria escolhen a melhor parte, que nao the serd tirada (Le 10,39,42).2° 0 Senhor nao afirmou ter sido mé a parte de Marta, mas disse ter sido étima a parte escolhida por Ma nao The sera tirada. A parte de Marta, a servico da indigé wr tirada quando terminar a indigéncia. A recompensa de uma boa acdo transitéria 6 0 repouso perene. Na contemplacao, Deus sera tudo em todos (1Cor 15,28), porque fora dele nada mais se poder desejar,e nos bastard sermos iluminados por ele e dele gozarmos. E 0 que suplica aquele que o Espirito inspira com gemidos inefaveis (Rm 8,26): Uma 6 coisa peco ao Se- nhor, esta solicito: 6 que eu habite na casa do Senhor to. os dias da minha vida, para gozar da suavidade d ntemplar 0 seu templo (SI 26,4), Jontemplaremos, pois, a Deus Pai, Filho e Espirito Santo, quando o mediador de Deus e dos homens, 0 homem Cristo Jesus, entregar o Reino a Deus Pai (1'T'm 2,15). Entdio nao mais rogara por nés, como nosso media dor e sacerdote, o Filho de Deus e Filho do Homem. Mas quanto a ele, enquanto sacerdote que é — revestido da forma de s tndo Ihe submeteu e a quem tudo submete. Desse modo, como Deus, mantém-nos sujeitos aele, E enquanto sacer- dote, submete-se a ele conosco (Cor 15,24-28). Por isso, sendo 0 Filho, Deus ¢ Homem, com uma esséneia como Deus, eoutra como homem, écomohomem, no Filho, mais diferente na esséneia que o Filho, no Pai. Assim como a carne com relagdo & minha alma: € maior a diferenga na substncia entre minha carne e minha alma, embora existentes em um sé homem, do que a alma de outro homem com relagao a minha, 51 21. Portanto, quando entreg: seja, quando os erentes e os que vivem da fé, pelos quais agora roga como mediador, cle os levar & contemplagao, pela qual suspiramos e gememos, quando passarem 05, trabalhos os sofrimentos, apés ter entregadoo Rei aD as Pai paragées. C figuras, mas claramente vos falar do Pai ao mais haveré comparagées, porque a visao serd “face a face”. Este € 0 significado eo Mas claranvente vos fatarei do Pai. Como se dissesse:“Manifes- tar-vos-ci claramente o Pai”. Manifestarei, disse ele, por ser 0 Verbo de Deus. A seguir, diz ainda: Nesse dia, pedireissem meu nomee nao vos digo que rogarei ao Pai por vd, pois 0 préprio Pai vos ama, porque me amastes € crestes que vim de Deus, Sai do Pai e vim ao mundo; de novo deixo 0 mundo e vou para 0 Pai (So 16,26-28). O que quer dizer: Saf do Pai, sendio que me manifes- tei, nao na for Pai, mas em out na inferior as tura? Eo que significa: Vim a este mundo, senao que manifestei aos olhos x dos pecadores, que amam este mundo, a condi¢ao deservo que ree; me? Qu ntida de: de novo deixo 0 mundo e vou para o Pai, senao que retiro da vista dos mundanos o que viram? E o sentido destas palavras: vow par o Pai, nao €:“Ensino aosmeusseguidores que me dev iderar como igual a0 Pai?” Osque nissocréem, serao considerados dignos de serem conduzidos da fé & realidade, isto 6, a prépria visdo daquele de quem esta escrito que entregard o Reino a Deus Pai Os figis remidos pelo seu sangue sio os cidadaos desse Reino, pelos quais agora interpela; mas Id, onde & igual ao Pai, juntando-os a si, nao mais rogaré ao Pai por eles. Assim ele o disse: Pois 0 proprio Pai vos ama. Aqu Livro 52. onde é inferior ao Pai, ele roga; onde 6 igual a0 Pai, ouve com 0 Pai, elo! o das palavras: pois o prdprio Pai vosama, 0 Filho nao é separavel do Pai, Pelo contrario, as palavras dao a entender 0 que antes observei ¢ insinuei muitas vezes, ou seja, que geralmente ao ser citada uma das pessoas da Trindade, subentendem-se as outras duas. Assim, as palavras: Pois 0 préprio Pai vos ama, compre- endem também o Filho ¢ 0 Espirito Santo. F no porque no nos ame agora aquele que no poupou seu proprio Filho, entregando-o & morte por todos nés (Rm 8,32), mas, porgue nosama tal como seremose naa.como agora somos. Os que ele agora ama, conserva-los-4 para a eternidade, Isso acontecers quando entregar o Reino a Deus Pai aquele que agora roga por nés; entiio nao mais rogaré, porque o préprio Pai nos ama. Como merecé-lo senao pelo mérito da fé, que nos leva a acreditar na promessa antes de vermos a realidade? Por ela chegsremos 2 clara v ele nos ama para que sejamos tais como ele quer que sejamos: nfo nos odeia como somos porque somos maus; masexorta-nose ajuda-nos para nioquerermos ser sempre maus, caréruLo 11 Inferioridade e igualdade do Fitho nas Escrituras 22, EstaéanormaparaacompreensiodasEscrituras no tocante ao Filho: distinguir 0 que elas dio a entender conforme a sua condigao de Deus, na qual ¢ igual ao Pai; © 0 que declaram conforme a sua condigao de servo, na inferior a0 Pai. Desse modo, nao ficaremos pertur- bados perante as sentencas dos Livros santos, aparente- mente contrérias e contraditorias entre si 58 ne Na forma de Deus, 6 igual ao Pai e ao Espirito Santo, pois nenhuma das Pessoas é criatura, como jé demonstra- mos; na condigdo de servo, é inferior ao Pai, pois ele afirmou: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). B inferior ‘também a si mesmo, pois dele esta escrito: Aniquilow-sea si mesmo (F1 2,1) inferior ainda ao Espirito Santo confor- me disse: Se alguém disser uma palavra contra 0 Filho ser-the-d perdoado, mas se disser uma blasfémia contra o Espirito Santo, nao lhe serd perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro (Mt 12,32). B ele exercita seus poderes em nome do Espirito Santo, de acordo com a afirma¢ao: Contudo, se ¢ pelo Fsptrito de Deus, que eu expulso os deménios, entaoo Reinode Deus ja chegou a vs (Le 11,20). Diz também por meio de Isafas, em palavras que ele recitow na sinagoga, mostrando, sem qualquer sombra de dtivida, que a ele se referiam: O Espirito do Senhor esta sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os Dobres; enviou-me para proclamar a remissiio dos peca dos, ete, (Le 4,18.19). Considera-se enviado para cumprit a missdo, porque o Espfrito Santo esti sobre ele Na forma de Deus, criou todas as coisas (Jo 1,3); na condigao de servo, nasceu de uma mulher, sob a Lei (GI 4,4). Na forma de Deus, ele ¢ 0 Pai so um (Jo 10, condigao de servo, ndo veio para fazer sua vontade, mas @ sida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,28); na condigao de servo: Minha alma estd triste até a morte, ¢: Pai, se é possivel, que passe de mim esie cdlice 26,38.39). Na forma de Deus: Este ¢ o Deus verdade vida eterna (1Jo5,20); na condicao de servo: Foi obediente até a morte, e morte de cruz (F128). Livro 5 capirULo 12 a entrega do Rein isto e 0 juizo Daquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos d nemo Fitho, somenteo Pai (Mc 13,39). Eleignoraoquenao quer dar a conhecer, isto 6, jgnorava-o, para m: Jo aos disefpulos. Assim se deu com Abraao, a quem foi ito: Agora, sei que temes a Deus (Gn 22, ‘agora te dei a conhecer”, pois provado na tentacao, ele mesmo passou a conhecer que temia a Deus. O Senhor re Jos no tempo oportuno, 0 segredo sobre o dia e a hora, Falando desse futuro como que do pas: lisse: Nao mais vos chamo de servos, porque 6 servo nao sabe 0 que o seu amo faz; mas eu vos chamo de amigos fooqueouvide Pai, ew vos dei a conhee (Jo 15,15) Oque ainda nao fizera, mas porque certamente falou como se jd tivesse feito. Poia, a eles mesos, Ihes declarou: Tenko ainda muito a vos dizer, mas néo podeis agora compreender (Jo 16,12). Ei est compreendido: daquele dia ¢ hora. No mesmo sentido, disse 0 Apéstolo: Pois nao quis saber outra coisa entre ods a ndo ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (1Cor 2,2). Dirigia-se aos que nao ti- nham capacidade de compreender as coisas sublimes sobrea deidade de Cristo. A eles diz um pouco depois: Nao vas pudle falar como a homens espirituais, mas tao-somen te como a homens carnais (1Cor 3,1). Ignorava, portanto, junto deleso que nao poderiam compreender sobre os seus va apenas 0 que convinha que ra95.14 sor meio dele. Finalmente, sabia junto aos perfeitos 0 que ignorava junto aos imperfeitos. Por isso diz: E da sabedoria que falamos entre os perfeitos (1Cor 26) Esse modo de falar, alegando ignordncia, usa-ce quando se quer ocultar alguma coisa, assim como se diz, que uma fossa é cega, quando ele est escondida. A Escritura, no seu modo de expressar, acomoda-se costumes humanos, pois fala a criaturas humanas. 24, Conforme a forma de Deus, esta escrito a respeito do Filho:Antes de havercolinas, eu jd tinha nascido(Pr 8,25), ou seja, antes de todas as criaturas mais sublimes. Esta escrito 6, antes de todos os tempos e de todas as coisas temporais.. Conforme a forma de servo, consta: O Senkor me possuiu noprinetpiode: 0s(Pr8,22). Conforme a forma de Deus, disse: erdade; na condigao de servo: Bu sot 0 caminho (Jo 14,6). Sendo 0 primogenito dentre os ‘mortos (Ap 1,5), tragou para o Reine de Deus ea vida eter- nao caminho da sua Igreja, da qual 6a cabeca para levar ‘a imortalidade todo o corpo, pois foi criado para isso, no {nefpio dos eamninhos de Deus, quando eviou 0 mundo. Na natureza divina, é 0 Princfpio que nos fala (Jo no qual prinetpio, Deus eriou océu ea terra (Gn 1 na natureza de servo, porém: espaso que sai do seu tdlamo (SI 18,6), Na natureza divina, ¢ o primogénito de toda criatura, ele & antes de tudo'o tudo nele subsiste; na natureza humana:ele éa Cabeca da Igreja, que éseu. corpo (C11,15.17.18). Na natureza divina, ¢ 0 Senhor da gloria (1Cor 2,8), o que demonstra que ele glor pois, aqueles que predestinou, também os chamo chamou também os justificou, e 0s que justificou, também os glorificou (Rm 8,30). Dele se afirma que justifica 0 impio; dele esta eserito que 6 justo e igualmente aquele 0 uvRor 56 que justifica (Rm 3,26). Se, portanto, os que justificou, também os glorificou, oque justifica e glorifica é,conforme disse, o Senhor da gléria. Na natureza humana, porém, respondeu aos disefpulos preocupados com sua recompen- sa: Sentar t minka direita out minha esquerda, néocabe a mim concedé-lo; mas é para aqueles aos quats meu Pai 0 preparou (Mt 20,23). 25. O que o Pai preparou, preparou-o também o Filho, porque é um com 0 Pai (Jo 10,30). J& demonstramos que na Trindade, segundo o testemunho de muitas passagens das divinas Bscrituras, o que se afirma a respeito de todas as pessoas, diz respeito a cada uma, em virtude da atuacao inseparével da tnica e mesma esséncia. Assim, ele diza respeito do Espirito Santo: Quando eu for, envid- lo-ei a vgs (Jo 16,7). Nao disse: “enviaremos”, mas “envid- lo-ei”, como se somente o Filho sem o Pai o haveria de enviar. Mas diz em outro lugar: Estas coisas vos tenhodito estando entre uds. Mas o Pardclito, o Espirito Santo que 0 Pai enviard em meu nome, é que vos ensinard tudo (Jo 14,25-26). Nesta passagem, fica parecendo que o Filho nao o enviard, mas somente o Pai. Mas, tanto nesta citagho como na outra, quando diz: mas aos que meu Pai o reparou, ele dew a entender que com o Pai prepard os assentos de gloria para quem determinar. Mas alguém poderd acrescentar: na passagem onde fala do Espirito Santo que ha de enviar, esta claro que nao exclu o Pai; e na outra passagem (Jo 14,26), ficou patente que o Pai enviar, néo excluindo o Filho. Aqui, porém, diz com toda elareza: nao cabe a mim. concedé-lo (Mt 20,23), se somente o Pai tivesse preparado. Maséjustamen- te o que preestabelecemos, como palavras proferida con- forme a sua condigao de servo. Assim, a afirmacao: Nao eabea mim concedé-lo, ha de se entender como se dissesse: 81 “Nao é competéncia do poder humano concedé-lo”, enten- dendo-se 0 “dar”, como o poder divino, no qual é igual a Deus. Nao cabe a mim concedé-lo, ou seja, “nao 0 dou em virtude do poder humano”, mas aos que o Pai o preparou (Mt 20,23): mas has de compreender que se tudo 0 que 0 Pai tem é meu (Jo 16,15), este poder também € meu e, assim, junto com o Pai, 0 preparei”. 26 26, Pergunto agora: qual é 0 sentido desta sentenga: se alguém. néo ouvir minkas palavras, eu nao o julgo (Jo 12,47). Talvez tenha dito: ndo o julgo, com 0 mesmo sentido que naquela outra afirmagdo: ndo cabe a mim concedé-lo, Mas, ao que vern em seguida: Nao vim para julgar 0 mundo, mas para salvar 0 mundo, acrescenta imediatamente e diz: O que rejeitae ndo.acolheas minhas palavras tem seu juiz, Aqui todos entenderfamos que ele se refere ao Pai, se ndo tivesse acrescentado e dito: A palavra que proferi é que o julgaré no ultimo dia. Portan- 10, ser que nem o Filho julgara, pois disse: eu ndo 0 julge e nem o Pai, mas sim, a palavra que o Filho proferiu’ Escutemos ainda as palavras que seguem: Porque néo falei por mim mesmo mas o Pai, que me enviou, prescre- veu-me o que dizer e de que falar, ¢ sei que seu preceito é vida eterna, O que digo, portanto, eu o digo como Pai me disse (Jo 1247-50), Se, portanto, o Filho nao julga, mas quem julga 6 a palavra proferida pelo Filho, e se a palavra proferida pelo Filho julga, nao é enquanto fala por si mesmo, mas o Pai, que oenviou, é que the deu o mandato sobre o que dizer e do que falar. Conclui-se dai que quem julga € 0 Pai, cuja palavra € 0 Filho, porque o Verbo do Pai é0 proprio Filho, Nao existe diferenga entreo ordem do Pai eo Verbo do Pai. Verbo (palavra)e ordem (mandato) tém o mesmo sentido, ‘Vejamos sea afirmagao: Eu néo falei por min (So 12,49) possui o mesmo sentido desta outra: nasci por mim mesmo”, Pois seo Verbo do Pai fala, ele fala por si mesmo, por ser 0 Verbo do Pai Na maior parte das vezes, que 0 Senhor diz: 0 Pai me ara fazer compreender que o Pai ogerou, no no sentido de o Pai lhe ter dado algo como a alguém , sem contudo nada possuir. Mi fica ter sido gerado para ser (0 Filho de intece com a criat quem uma coisa ¢ ser e outra ter. O Filho de Deus, antes assumir a natureza humana — 0 Aquele que é—éoque tem. Aquele versiculo diz isso claramente — para quem de compreender: Assim. como o Pai tema vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si de se encarnar e juem tudo foi fei 's palavras: dew ao Filho ter a ‘ignificam: gerou o Filho que 6 a v 10 0 Verbo de Deus 60 esse Filho de Deus é Deus verdadeiro, ¢ a coisa que a mesma Palavra, que é 0 Verbo e ordem do Pai Pai’, Ora, o Verbo do P: 59 wer rigor, havemos de entender: “Bu naojulgarei, mas julga- reit” O sentido deve ser este: “Eu nao julgarei pelo poder humano, pois sou Fitho do Homem; mas julgarei pelo poder divino, pois sou Filho de Deus”, E caso pareca rio: “Bu ni oque dizor das palavras antes eitadas: minha doutrina nao é minha Jo 7,16)? Como pode ser “minha” e ao mesmo tempo “nao minha”? O Senhor nao disse: “Essa doutrina nao é mi- ahi ra doutrina nao é minha, como a dizer: “sua” e ao mesmo tempo: “nao sua”. Exsas palavras 56 podem ser verdadefras, entendendo “sua” num sentido, ¢ “néio sua”, ‘tro sentido. Ou seja: “sua” conforme a condigdo divina: conformea condigao humana, Quando diz: ha, mas daquele que me enviou, preciso valer-nos do préprio Verbo, Pois a doutrina do Pai 60 Verbo do Pai, o qual é 0 mesmo Filho Unigénite. estas palavras: Qi nao éem mim. que cré (Jo 12,44)? Como pode seria ipo nao crer? Como entender palavras tao contraditérias e opostas como estas: Quem enviou? A solugio est4 em entendermos deste modo: Quem eré em mim, nao eré no que ve. 1ss0 esperanca nao repouse numa criatura, Mas eré naquele que se uniu # natureza humana, na qu: a olhos humanos. Purificou assim os nossos coragves pela fé, para podermos contemp! Desse modi edizendo: ndoéem mim.que ele ndo deu a entender que estd separado do Pai, ou seja, daquele que o enviou; mas sim, que se cresse nele, do mesmo tnodo como se eré no Pai, a quetn é igual. Bo que ele diz clara n Deus, crede também em mim (Jo 14,1), ou seja, assim como credes em Deus, crede também em mim, porque eu. eo Pai LivRot 60 somos usm 36 Deus. Mas como que desviando de sia fé dos homens, disse na passagem citada: ndo eré em mim, mas em quem me enviou. Contudo, nao se excluin a si mesmo, como ofazem outro lugar: nao cabe mim concedé-lo, mas € para aqueles aos quais meu Pai o preparou (Mt 20,23). Greio que fica assim esclarecido como se ha de enten- der as duas sentengas em questao." O mesmo se diga daquela outra frase: ew ndo jugarei (Jo 12,47), pois, certamente, ele julgard os vivos e os mortos (2 Tm 4,0). ‘Mas como nao seré pelo poder humano que hé de julgar, chama a atengdo para a sa divindade, eleva ao alto oa coragdes dos homens, visto que foi para os elevar que cle desceu. capituLo 1 Operagées de Cristo nas duas naturezas, Ainda Cristo ¢ 0 juizo 28. Se ele no fosse ao mesmo tempo Filho do Homem, pela forma de servo assumida; e Filho de Deus, por causa da forma de Deus, na qual existe, o apéstolo Paulo ni teria dito, falando dos principes deste mundo: se 0 tives- sem conhecido, nao teria crucificado o Serthor da gloria (Cor 2,8). Com efeito, foi crucificado na condicao de servo, e contudo ele era o Senhor da gléria. Esta ¢ conseqiéncia do empréstimo feito & natureza humana:" que Deus soja homem e queohomem seja Deus. Maso que € dito em relago a um e outro, todo leitor prudente, 4 gente piedosoha de entender, com a ajuda do Senhor. [4 dissemos que, conforme a natureza pela qual é Deus, ele glorificaos seus, conforme essa condigio, écertamen- te o Senhor da gloria. Afirmamos, porém, com proprieda- de, que o Senhor da gléria foi crucificado, nao no poder da 61 1338 divindade, mas na fraqueza da carne (2Cor 13,4). Assim come dissemos que na natureza de Deus ele julga — ou seja, pelo poder divino e nao pelo poder humano—, como homem também hé de julgar, assim como foi crucifieado 9 Senhor da gléria. Assim o diz claramente: Quando 0 Filho dohomem vierem sua gloriae todos os anjos com ele, entdose assentard no tronoda suagldria, Eseraoreunidas em sua presenca todas as nacies (Mt 25,831.82), ¢ as demais coisas que se dizem, nessa citagao, até a sentenca final, eos judeus, por permanecerem na sua maldade hao deser punidosnesse juizo, como esta escri olhos em ‘Como bons e maus hao de contemplar ojuiz dos vivos e dos mortos, 05 maus, sem dhivida, ndo poderao vé- nao ser na forma em que é Filho do homem — nao porém humilhado, como quando foi julgado, mas na majestade forma divina em que é igual ao Pai, pois nao sio puros de coragao de: Bem-aventurados os puros de coractio, porque verdo a Deus (Mt 5,8). E esta visio, prometida aos justos como o maior galardao, sera “face a face” (1Cor 13,12), e dar-se-a quan- do ele entregar o Reino a Deus Pai. Nesse Reino, ele quer dar a entender estar incluida a visio de sua condig&o divina, apés ter submetido todacriatura a Deus, inclusive aformaerm queoFilhode Deusse tornou Filho do Homer. Conforme essa forma, entao, o proprio Filho de Deus se submetera aquele que tudo Ihe submeteu, para que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,24-28), Seo Filho de Deus, como juiz, aparecesse aos impios na forma em que é igual ao Pai, quando vier para julgar, ‘que estaria prometendo de incomum aos que 0 amar, quando diz: Eu 0 amarei e a ele me manifestarei? (Jo 14,21), Portanto, o Filho do homem julgard, nao pelo seu poder humano, mas pelo poder pelo qual é Filho de Deus. Livro Por outro lado, 0 Filho de Deus ulgaré nae aparece formaem que é igual ao Pai, mas na forma em que do Homem, 29. Podem-se dizer, portanto, ambas ascoisas:o Filhodo Homem julgaré e o Filho do Homem nao julgara. 0 filho ‘do Homem julgaré para assegurar a verdade do que di quando o Filho do Homem vier, entio sua presenga todas as nagées (Mt 25,31 Homem nao julgara para ser verdade o que disse: eu nao ‘procure e julgue (Jo 8,50), Portanto, eomo ha de aparecer no juizo nao na forma de Deus, mas na forma de homem, esta interpretacio, Paianinguém julga, masconfiou ao Filho todo julgamento. Pode-se confirmar essa afin ras qute ja comentamos, ou seja:tambem co ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,22.26), pa indiear ‘Filho, ou.com aquelas outras palavras do Apéstolo, que diz: por isso, Deus 0 sobreexaltou gran dementee oagraciou com o Nome que ésobre todo nome (PL Essas sao palavras referentes ao Fillto do Homem, itado dentre os mortos, em sia qualidade de Filho de Deus Aquele que na condigdo divina é igual ao se esvaz receber a forma de servo, nesta mesma forma de servo age, sofre e recebe o que o Apéstolo observa ¢ foi obedi de cruz! Por isso, Deus 0 sobreexaltou granden agraciou como Nome que & sobre a0 nome de Jesus, se dobre todo joetho dos seres celestes, dos terrestres e dos que Deus, 0 Pai, toda lingua confesse: Jesus é 0 Senhor (Fl Javras esclarecem sentido do 1528.90 Se tivesse dito conforme 0 sentido da seguinte afirmacio: Concedeu ao Fitho ter @ vida em si mesmo, nio teria dito: O Pai a ninguém julga. Pelo fato de 0 Pai tor gerado um Fi igual a ele, o Pai também julgaré. Portanto, conforme as iiltimas palavras, no juizo, aparece na forma de Deus, mas na forma de Filho do Homem, Nao quis significar que nao fara julgamento, que entregou ao Filho todo julgamento, pois dele se diz: ha quem procure a minha gléria (So 8,50); sstas plard o Painojuizodos vivos edos mortos, mas todos verao 0 Filho”. C bém Filho do Homem, podera ser isto pelos impios, os quais verao a quem transpassaram (Ze 12,10). 30. Para que nao estejamos apenas a conjeturar ao invés s a explicita eevidente. mesmo Senhor, com a qual poderemos comprovar o mot vo de stia afirmagao:0 Pai a ninguém julgard, mas confiow a0 Fitho todo julgamento (Jo 5,22). E que o Juiz aparecer na forma de Filho do Homem, que nao ¢ a forma do Pai, masnado Filho, isto 6, nao na formaem queé igual a0 Pai, mas na qual é inferior ao Pai, ¢ assim se laos bons ea0s maus, Diz, pois, um pouco adiante: Em verdade, em. verdade vos digo: quem escuta a minha palavra e cré naquele que meenviou, te ae nao vera ju mas passou da morte tw £24), Esta vida eterna a visdo da qual os maus Prossegute em seguida: En digo: Vem a hora —e é agora —e avoe do Filho de Deus, eosque dot Eisto se refere aos hom ouvindo sua encarnagao, créem que ele & 0 Filho de Deus, ou seja, Livro! 64 acolhern-no como feito homem por eles, inferior ao Pai pela natureza humana, e créem que é igual ao Pai na natureza divina, E continua 0 texto, confirmando o que acabamos de dizer: assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,26). Alude a seguir, a visio de sua claridade, da qual se revestird no juizo, visdo que sera comum aos impios e 08 justos: ele lhe dew o poder de julgar, porque ¢ Filho do Homem (So 5,2. Creio que nada hé mais evidente. Pois, sendo o Filho de Deus igual ao Pai, nao recebe o poder de julgamenta, mas 0 tem com o Pai, em segredo. Mas como é Filho do Homem, recebe-o para que bons ¢ maus © contempler como juiz. A visdo, portanto, do Filho do Homem ser manifesta também aos maus, mas a contemplacho da forma de Deus, somente aos puros de coracao, porque cles verdo a Deus, ou seja, manifestar-se-4 somente aos bons, a cujo amor ele fez. essa promessa (Mt 5,8). Veja agora 0 que diz em seguida: néo vos admireis com isto. O que nos protbe ele de admirar, senao do que se admira todo aquele que nao entende, isto é, de ter dito que © Pai the concedeu o poder de julgamento, porque é Filho do Homem, quando esperavam que dissesse: porque é 10 de Deus? Mas como os impios nao podem contem- plar o Filho na forma em que é igual ao Pai, é mister que justos e impios contemplem ojuiz dos vivos e dos mortos, quando, na sua presenga, serdojulgados. Diz pois: Nao: admireis com isto: vem a hora em que todos 08 que repousam nos sepuleros, ouvirdo a sua vos e sairdo: 08 que tiverem feito o bem, para uma ressurreigdo de vida; os que tiverem praticadoo mal, para uma ressurreigao de conde. nagao (Jo 5,28-29). Para isso, era mister que recebesse aquele poder, porque & Filho do Homem, ¢ todos os ressuscitados 0 ptidessem ver na forma em que pode ser visto por todos; 65 asst a uns, para a condenagdo e a outros, porém, para a vida eterna. Eo que é a vida eterna sentio aquela visao nao concedida aos impios? Que te conhecam « ti, 0 Deus tinico e verdadeiro e aquele viaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). E como os justos conhecerao Jesus Cristo, sendo como Xinico Deus verdadeiro, que se manifestaré a eles, e como no se deixard ver pelos condenados na forma de Filho do Homem? 31, Deus é bom na visao em que apareceré aos puros de coraco, pois est escrito: Qudo bom é o Deus de Israel para os retos de coragéo! ($1 72,1). Quando, porém, os maus virem o Juiz, nao Ihes pareceré bom, porque na sua presenga nao estarao de coragao alegre, mas todas as tribos da terra bateriio no peito (Ap 1,7). Nesse ntimero 4 compreendida a multidao de todos os maus e Por isso, ao jovem que o chamou bom Mestre e lhe pediu orientacdo para aleancar a vida eterna, ele res| deu: Por que me perguntas sobre o que é bom? Bom é wn 86: Deus (Mt 19,17). N yr chama bor do seu tesouro tira coisas boas; mas o homem m tesouro tira coisas mas (Mt 12,35). O jovem procurava a vida eterna, e a vida eterna consiste naquela contemplagao em que se vé a Deus, nao por castigo, mas para o goz0 eterno. Mas como ignorasse com quem estava falando, considerando-o apenas um filho do homem, o Senhor diz: Por que me perguntas sobre ‘que é bom? Queria dizer: Por que me perguntas sobre 0 que é bom nesta forma em que me vés e me chamas bom Mestre, olhando apenas o que te é visivel? Esta forma de filho do homem, esta forma foi assumida, esta forma parecer no juizo tanto para os justos como para os impios. Ea visdo desta forma ndoseré um bem paraos que fazem o mal. Além dessa, existe ainda a visio da minha uivaol 66 forma prépria, na qual, quando nela estava, nio conside- reioser igual ao Pai, como algo aqueme apegar ciosamen- te, mas esvazici-me dela para assumir esta (Fl 26-7) Portanto, 0 Deus tinico, Pai, Filho ¢ Espirito Santo, apareceré para 0 goz0 que nao seré tirado dos justos. Suspira por esse goz0 aquele que dia: Uma sé coisa pega ao Senhor, este solivito:é que habite na casa do Senkor todos 0s dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor (Sl 26,4). Esse tinico Deus 6, pois, 0 tinico bom, ja 1e ninguém 0 vé para a dor eo pranto, mas somente para a salvacdo e alegria verdadeira. Se és capaz de me enten: der bem, ¢ nessa forma divina que eu sou bom; se, porém, somente na forma humana por que me perguntas sobre 0 que é bom? Pois se te encontras entre aqueles que verdioa quem transpassaram (Ze 12,10), essa visio servir-lh de desgraca, pois é uma visdo que se identifica com um castigo 's conchui-se que é esse 0 sentido provavel da sentenca proferida pela Se nhor: Por que me perguntas é bom, somente Deus, porque é essa visao de Deus que nos dard ensejo para contemplarmos a esséneia de Deus, imutavel e invisfvel aos olhos humanos, prometida so- mente aos ju io que 0 apéstolo Paulo desereve comoum faced face(1Cor 13,12). Acla refere-seoapéstolo quando diz: seremos se tal qual & (140 3,2). Sobre ela proferia, isa peco av Senhor... (S1.26,4),¢ a respeito dela 2.0 proprio Senhor: Eto amarei ea ele me mani jo 14,21). B essa a visio de Deus para a qual nos preparamos somente pela fé, purificand scoragdes, para sermos os felizes puros de coracdo, que veréo.a Deus (Mt5,8). Como diversas outras passagens foram escritas estao abundantemente disp Escrituras, qualquer lhes hé de dirigir 0 othar do amor 67 para a aleangar, Ela 6 o nosso sumo bem; para alea somos admoestados a fazer todo o bem que fazemos."® Mas quanto aquela visio do Filho do Homem que foi profetizada para quando, na sua presenca, se reunirem, todos os povos que the dirao: Senhor, quando foi que te imos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber, essa visio nao ser um bem para os impios que iro para o fogo eterno, nem mesmo ser o sumo bem para 08 Justos, Pois o Senhor ainda os chamana depois disso para a posse do Reino que lhes esta preparado desde o inicio do mundo, Assim como dira aos primeiros: Ide para o fogo eterno, dira para os outros: Vinde, benditos de meu Pai, recebei por heranca o Reino preparado para vés (Mit 25,34- 41), Como os impios irao para o fogo eterno, 05 justos irao ara a vida eterna. Eo que é a vida eterna, sendo que eles conhecam a ti, 0 Deus tinico e verdadeiro e aquele que aste, Jesus Cristo? (Jo 17,8.5). Trata-se agora daquela claridade de que falou ao Pai: com a gloria que eu tinha contigo, antes que 0 mundo existisse (Jo 11, Entéo, entregaré o Reino a Deus Pai (1Cor 15,24. para que o servo bom entre no gozo do seu Senhor (Mt 25,21.23),¢ liberte das perfidias dos homens aqueles que Deus possui nooculto de sua face. Serao esses pérfidos que se perturbardo ouvindo aquela sentenea, enquantoojusto no se atemorizara aoescutar esse som terrivel (SI 11,7) s agora se protege no tarbenéculo, ou seja, na reta \guas(Sl sto &, das caltinias dos hereges. Todavia, qualquer outro modo de entender estas palavras do Senhor: Por que me perguntas sobre o q bom? “O Bom é um s6: Deus”, nao se desvia da sf doutrina, contanto que nao se considere a bondade do Pai maior que a da esséncia do Filho, pela qual ele 60 Verbo de Deus, por quem todas as coisas foram feitas. C atenhamo-nos nao apenas a uma 86 interpretagdo, mas uvRot 68 apoiemo-nos em todas as que houver. Pois os hereges podero ser conveneidos com tanto mais forga, quanto mais saidas se abrirem para serem evitadas as suas ciladas.™ Entretanto, 0 que ainda devemos considerar, exige agora novo exérdio. LIVRO II — A igualdade na Trindade —Nas misses do Fitho e do Espi no so inferiores ao Pai — Inseparabilidade de operagies na Trindade Santo, 08 enviados PROLOGO 1. Quandoos homens investigam sobre Deuse aplicam- se & compreensdo da Trindade, dentro das limitagoes humanas, experimentam sérias dificuldades, seja por causa do olhar da mente que empreende a penetragao de luz inacessivel, seja devido aos muitos ¢ variados modos de expressao das Eserituras sagradas, perante as quais a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar, jluminada pela graca de Cristo. Aqueles que chegam a uma certeza, apés dissiparem todas as suas duividas, devem desculpar com indulgéncia os que ainda vagueiam na investigacao de tao grande mistério. Mas ha duas coisas dificilmente toleraveis no erro humano, Sao elas: a presuincdo, antes de eer esclarecida a tinacao no erro, fruto da presungdo, aps a manifestacdo da verdade. Se Deus, como suplico e , me defender e me proteger, com o escudo da sua 13)¢ coma graga de sua misericérdia, desses dois defeitos, frontalmente hostis @ procura da verdade e a pesquisa nos Livros santos, néo serei indolen- tena investigagdo da essénciadivina, tanto pelas Escritu- ras, como pela via das coisas criadas Ambas as fontes sao oferecidas a nossa consideragio coma finalidade de que o amemos ao investigarmos, pois Lav u ele mesmno inspirou as Fserity vacilarei em emitir minha opiniao, a qual mais desejo seja apreciada pelosde re eo, doque temo seja alvoda mordida dos perversos. Pois a muito modesta e formo- sissima caridade compraz-se com alegria no olhar da vordade sdlida, Prefiro ser eriti rum, a ser louvado pelo que erra ou adula, Quem amaa verdade 1ndo se atemoriza perante ocritico, pois ele ou critica como © amigo, ou como o inimigo. Se insultar como inimigo, tolerar-se-4; porém, se se enganar como amigo, mereceré ser doutrinado e caso nos ensine, mereceré ser escutado. Mas o que louva, errando, confirma 0 nosso erro; € 0 adulador incita-nos mais ainda a0 erro. Portanto,corrij ‘me o justo e repreenda-me; 0 éleo, porém, do pecador néo ungiré minha cabeca. ($1 140,5) capiTuLo1 A doutrina sobre o Filho de Deus em duas regras. ‘Trés goneros de expresses 2, Ha uma regra canénica,’ disseminada nas Escritu- ras e adotada pelos doutos intérpretes catélicos das mes- mas Escrituras, & qual nds nos atemos com firmeza para compreender como 0 Filho de Deus ¢ igual ao Pai na condicao divina que possui;. inferior a0 Pai, na humana que assumiu (Fl 2,6.7). B como nessa natureza humana, ele ¢ inferior nao somente ao Pai e ao Espit Santo, mas também a si mesmo;ndo pelo que foi, mas pelo que €, pois, ao assumir a forma de servo, nao perdeu sua forma divina, de acordo com osensinamentos das Escritu- n 12a ras que ja mencionamos no livro anterior. H, porém, em diversos oraculos divinos, certas expresses que oferecem ambigdidade com relagao & regra a que se refere: se aquela pela qual entendemos que o Filho € inferior na forma de criatura assumida; ou se & outra, pela qual ‘entendemos que o Filho nao ¢ inferior ao Pai, mas igual, embora seja Deus de Deus, Luz de Luz. Dizemos, com efeito, que o Filho 6 Deus de Deus, mas dizemos que 0 Pai é simplesmente Deus, ¢ nao Deus de Deus. Psté claro, portanto, que o Filho tem alguém de quem procede e do qual ¢ Filho; o Pai, porém, nao tem um filho do qual proceda, mas apenas do qual é Pai. ‘odo filho recebe do paioser, 6 ilhocom relagao a seu pai; nenhum pai recebe do filho o ser, mas é pai com relacao ao filho. 3. Ha, com efeito, passagens nas Escrituras sobre o Pai eo Filho que revelam a sua unidade e igualdade de cia, como: Eu eo Pai somos um (Jo 10,30) :eletinha a condigao divina, ¢ nao considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente (Fl 2,8), © outras semelhantes. Hé outras, porém, mostrando que o Filho é inferior ao Pai pela condigao de servo, isto 6, por ter assumido a substancia de criatura mutavel e humana, como: porque 0 Pai é maior do que ete (Jo 14,28) e: porque 0 Pai a ninguém. jo. ‘mas confiow ao Fitho todo julga- lentemente éacrescentado win Homem (Jo 5.21), Outras passagens no entanto, née revelam nem a inferioridade nem a igualdade, mas ape- nas afirmam sua procedéncia do Pai: assim comoo Paitem im concede ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,26) e:0 Filho por si mesmo nada pode fazer, mas 86 aquilo gue vé 0 Pai fazer (Jo 5,19). Se esta uiltima afirmagao quissesse dizer que o Filho é menor na, forma assumida de criatura, teriamos que concluir que o u R Pai tove de ser o primeiro a andar sobre as aguas (Mt 14,26); ou a abriros olhos de algum outrocegodenascenga com saliva e barro (Jo 9,6.7); ou a fazer as demais coisas que 0 Filho encarregado fez entre os homens. $6 assim poderia ele ter feito essas coisas, pois disse que o Filho nada poderia fazer, se nao visse o Pai executé-las. Quem é vitima de desvario tal, que assim pense? Resta, portanto, admitir que. Senhor assim afirmou ara significar que a vida do Filho é imutavel como a do Pai, mas que o Filho é do Pai; e que ha inseparabilidade de operagies entre o Paieo Filho. Masa atuacdo do Filho 6 daquele de quem possui o ser, isto €, do Pai;ede tal modo 0 Filho vé o Pai, que pelo fato de vé-lo, por isso mesmo, é Filho, Nao ha diferenca entre ser do Pai, isto 6, nascer do Paie ver o Pai, ou vero Pai atuar, atuandojuntocom oPai; mas nao por si mesmo, pois, nao se gerou a si mesmo, Portanto, aquilo que vir 0 Pai fazer, isso o faz também 0 Filho (Jo 5,19) significa que 6 do Pai. Nao se pode fazer comparacao com o pintor que reproduz figuras tais como as vé pintadas por outro; nem com a mao que reproduz as letras ditadas pela mente; masconforme disse: tudo o que 0 Pai faz, o Filho o faz igualmente (Jo 5,19). Ao dizer tudo e igualmente, indica a inseparabilidade e a igualdade de operagao entre o Pai eo Filho, mas é do Pai que recebe sua acao. Eis porque o Filho nada pode fazer por si mesmo, a no ser o que vé o Pai fazer. Devido a essa regra, segundo a qual ensinam as Eserituras que um nao é inferior ao outro, mas revelam apenas quem procede de quem, alguns entenderam que 0 Filho ¢ inferior ao Pai, Entretanto, alguns de nossos escritores nao bastante doutos, nfo eruditos nesses as- suntos, quando tentam aplicar aquelas palavras a Cristo, conforme a condigao de servo, confundem-se, ao pereeber ‘que nao sao seguidos pelos homens de reta razao. Para que isso nao acontega, devemos nos ater aquela regra 13 24 nesse sentido de queo Filho nao ¢ inferior ao Pai, mas vem. do Pai, Aquelas expressées mencionadas acima nao ates- tam desigualdade, mas sim geracao? capinuLoa As duas regras e « compreensio sobre 0 Filho 4. Como comecei a dizer, ha certas expressies nos Livros santos, de tal modo formuladas que dificultam a percep¢o sobre o que se referem. Nao se tem certeza se dizom respeito ao Filho como inferior ao Pai pela natureza humana assumida, ou se a ele como igual ao Pai, embora indiquem que ele procede do Pai. Parece-me que, se 0 sentido é ambfguo dificultando a explicacao ou a diferen- ciagao podem, no entanto, ser entendidas sem maior perigo, tendo como base qualquer das regras, Por exem- plo, a afirmagdo: minka doutrina nao & minha, mas daguele que meenviou (Jo7,16). Pode ser aplicada a forma de servo, como j4 discorremos no livro anterior (I, cap. 12,23-27) e também a forma de Deus, na qual é igual 20 Pai, embora proceda do Pai. Comefeito, na forma de Deus, nao é uma realidade ser Filho e outra ter sua vida, pois 0 lho é propria vida. Nao é também uma realidade ser Iho e outra ser doutrina, pois o Filho é a propria doutrina. Assim como a afirmacao: dew a vida ao Fitho (Jo 5,26), deve-se entender como: “Gerouo Filho que éa vida”, assim a sentenca: “deu ao Filho a doutrina”, temo sentido de: “Gerou o Filho que é a doutrina”. Por isso, quando 0 Filho diz: minha doutrina nao é minke, mas daquele que me enviow, deve-se entender como se dissesse: “Eu nao existo por mim mesmo, mas por aquele que me enviou”. capinvLo 8 Outra regra para a doutrina sobre o Esptrito Sau lorifieara por 2 vos anunciard (Jo 16, 13.14: pensa s como este 0 € do Pai. Com efeito, seja inferior, mas que a re que o Espirito § izer: Nao falara de ido (Jo 16,13), Esta sentenga anto procedi % 3546 ‘Mas deque modo o Filho procededo Paie também, como © Espirito Santo procede do Pai, dissertaremos em outro lugar se Deus me conceder eo quantome ajudar, assim como sobre a razio de ambos nao serem chamados Filhos, nem gerados, mas primeiro ser chamado Filho unigénite; ¢ 0 Espirito Santo nem filho nem gera‘ se fosse gerado, seria também Filho (ef. liv. XV, cap. 25,4.5). eapiTuLos A glorificagao do Fitho pelo Pai néo prova a desigualdade 6. Estejam agora e puderem, os que, com a pretensao de demonstrar que o Pai é superior a0 julgaram servir-thes de argumento o Pai, glorifica-me (So 11, oglorifica. Ser4, por isso, maior que o Filho? Se o Espirito Santo glorifica o Filho, porque receberd do Filho, e dele receberd, é porque tudo aquilo que o Pai tem, ¢ dele também (Jo 16,14). Assim esta claro que, quando 0 tito Santo glorifica o Filho, 0 Pai que glorifica o Filho. Deduz-se dai que tudo oqueo Pai tem, nao é somente do Filho, mas também do Espirito Santo, pois o Espirito Santo tem o poder de glorificar 0 Filho, 0 qual o Pai glorifica (Jo 8,54), Assim, se aquele que glorifica, é maior doque aquele a quem glorifies, concordem os adversirios que sejam iguais os que se glorificam mutuamente, Esté escrito que o Filho glorifica 0 Pai, pois diz: Fu te glorifica- rei na terra (Jo 17,14), Procavenham-se, pois, de incorrer em erroaopensar que o Espirito Santo é superior aos dois, porque glorifica o Filho, a quem o Pai glorifica, pelo fato de nio se encontrar nenbuma citacao onde o Espirito Santo seja glorificado nem pelo Pai nem pelo Filho. LuvRo tt 6 CAPITULO A missdo do Filho e do Espirito Santo. A missio do Filho por si mesmo, A missao do Espirito Santo 7. Convencidos de seu erro em relagio a esse ponto da doutrina, os adversérios apresentam outro argumento dizendo: Aquele que envia é maior do que 0 enviado; portanto,o Pai é maior do queo Filho— pois o Filhovarias vezes assevera ter sido enviado pelo Pai. E também ¢ ele maior do que o Espirito Santo, pois Jesus disse a sou respeito: que o Pai o enviard em meu nome (Jo 14,26). Espirito Santa é inferior a ambos, porque o Pai o envia, como ja lembramos; eo Filho também o envia ao dizer: se eu for, envid-lo-ci a v6s (Jo 16,7)! Nesta questao, pergunto primeiramente de onde e para onde o Filho foi enviado, Diz o Filho: Saf do Paie vim ‘ao mundo; de novo deixo 0 mundo e vou para 0 Pai (Jo 16,28). Portanto, sair do Pai e vir a este mundo é ser enviado, O que significa entdo o que o mesmo evangelista escreve a seu respeito: Estava no mundo e 0 mundo foi feito por ele, mas o mundo nao o conheceu? (Jo 1,10). Bem. seguida: Veio para oqueera seu (ib, 1,11). Com efeito, veio para onde foi enviado. Ora, se foi enviado a porque saiu do Pai e veio aeste mundo, e se mundo”, foi entao enviado aonde ja se encontrava. Alias, siopalavras de Deus registradasnas profecias: Porventura ndoenchoeu océuea terra (Sr 23,24), Se dizem referéncia 20 Filho (alguns afirmam que este tenha falado aos profetas ou pelos profetas), aonde foi envidado sendo aonde jé se encontrava? Estava presente em todas as partes aquele que disse: Porventura néo encho ew o céu ea terra? Sea sentenca faz referéncia ao Pai, onde podia ele estar, sem seu Verbo, ¢ sem suia Sabedoria que atinge fortemente de uma extremi- dade & outra, ¢ dispde todas as coisas com suavidade? (Sb | 578 1 8,1). Mas nao podia estar em todas as partes sem seu Espirito, Assim, se Deus esta presente em toda parte também al esto seu Rspirito. Assim, aquelesalmista que nao encontrou um lugar aonde ir, ao se afastar da face de Deus, diz: Se subo ao céu, tu Id estds; se me prostro nos infernos, neles te encontras presente (Si 138,8). Querendo dizer que Deus esté presente em todas as partes, citou antesoseu Espirito, ao dizer: Para onde irei, a fim de ficar longede teu Espirito? E para onde fugirei da tua presenca? iL ) 8. Com base nessas citagées, pode-se perguntar: se 0 Fithoe o Bspirito Santo sao enviados aondejé seencontra- vam, como se ha de entender essa missdo do Filho e do Espfrito Santo? Poisa respeito do Pai,em parte alguma se Je gue tenba sido enviado. A respeito do Filho, o Apéstolo de fato esereve: Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus e seu Fitho, naseido de muther do sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei (G1 4,4- 5), Disse ele: Enviou o sex Filho, nascido de mulher. Todavia nenhum catélico ignora que, com esse termo — ‘a privagio da virgindad. mas indicar apenas a diferenca de sexo, conforme o modo hebraien de se expressar.* Assim, quando diz:enviow Deus 0 sew Filho, nascido de mulher, indica com toda clareza que 0 Filho foi enviado ao lugar onde nascou formado de mulher. Portanto, enquanto nasceu de Deus, encontrava- se jA neste mundo; porém, enquanto nasceu de Maria chegou a este mundo como enviado. Por isso, ndo pode ser enviado pelo Pai sem o Espirito Santo, no somente porque esté insinuade que, quando o enviou, ou seja, quando o fez nascer de mulher, nao o fez sem o Espirito Santo, mas também porque o Evangelho testemunha, manifesta e evidentemente, que a Virgem que pergunta- va: Como é que vai ser isso?, 0 anjo respondeu: O Espirito LivRon 8 Santo viré sobreti, ¢0 poder do Altissimo vai te cobrir com sua sombra (Le 1,384.35). E Mateus escreve: Achou-se ito Santo (Mt 1,18). Além disso, no profeta Isaias, o proprio Cristo fala deste modo sobre sua fatura chegada: E agorao Senhor Deus meenviou com seu Espirito (Is 48,16). I que alguém nos force a dizer que o Filho foi ‘mesmo, pois a concepeao eo parto de Maria sao operactes da Trindade que, pela sua acao criadora, tudo eriou. Ora, como 0 Pai o teria enviado, se ele a si mesmo se enviou? Respondo solicitando, primeiramente, que me di- ‘gam, se puderem, como o Pai santificou, seele prépriose santificou? Pois, ambas as coisas afirmao mesmo Senhor, a0 dizer: Aquele que o Pai santificou e enviou ao mundo dizeis:"Blasfemas!”, porque eu disse: sou Filho de Deus Jo 10,36). Kem outra passagem, diz: E por eles, amim mesmo ‘me santifico (Jo 17,19) Pergunto ainda, como 0 Paioentregou, se ele proprio se entregou? Pois,o Apdstolo afirma ambas ascoisas:quem nao poupou o seu préprio Fitho, eo entregou por todos nds (Rm 8,32), Eem outra passagem, o mesmo diz sobre o Salvador: elemeamoue seentregowcsi mesmo por mim (G12,20).Creio que eles responderao, se conhecerem bem esas palavras, queéumaséa vontade do Paie ado Filho, insepardveissao suas operagdes. Se, portanto, concordam que a encarnacioe ‘0 nascimento no seio da uma Virgem, em que est com- preondida a misséo do Filho, foram realizados de modo inseparavel, através de uma e mesma operacdo do Pai e do Filho, nao se pode (ampouco excluir dessa operagao o Espi tito Santo, pois esta escrito com toda clareza: achow-se grévida pelo Esptrito Santo (Mt 1,18). Se prosseguirmos na investigacao, talver fique mais claro o que estamos indagando: como Deus envion seu 9 59 Filho? Ordenou-lhe que viesse, e ele logo obedecendo, veio; suplicou-o de vir, ou somente 0 exortou? Seja como for, 0 corto é que a vinda se fer pela palavra; ¢ a Palavra de Deus é 9 mesmo Filho de Deus. Por isso, quando 0 enviou pela Palavra, ocorreu que ele foi enviado pelo Pai e seu verbo, Portanto, o mesmo Filho foi enviado pelo Pai € 0 Filho, porque o Verbo do Pai é 0 proprio Filho. Quem haverd que abrace tao sacri chegue a pensar que o Pai fez tao-somente seu verbo temporal, a fim de que o seu eterno Filho fosse enviado e aparecesse no tempo, revestido da carne? O certo é que o priprio Vorbo de Deus, que estava desde o prinefpio junto de Deus e era Deus, isto 6, a propria Sabedoria de Deus que existia fora do tempo, nesse mesmo tempo, manifes- tou-sena carne. O certo é quecle devia aparecer na carne, no tempo, mas no préprio Verbo de Deus que estava desde © principio junto de Deus e cra Deus, e na prépria Sabe~ doria de Deus que existia sem o tempo. Assim, como sem ‘qualquer infeio do tempo, no princépio existia 0 Verbo e 0 Verbo era Deus, do mesmo modo sem qualquer relagio com o tempo, nele o Verbo e, nese tempo, Verbo se fez carne e habitou entre nds (Jo 1,14 ‘Ao chegar a plenitude do tempo, enviow Deus 0 Fitho, naseido de mulhor(G14,4), 00 seja, criado no tempo para surgir entre os homens como Verboencarnado. Oque estava no Verbo sem 0 tempo, foi criado. Pois a ordem dos tempos na eterna Sabedoria de Deus, carece de tempo. Quando o Pai eo Filho agiram paraqueo Filho aparecesse ‘na cane, foi chamado “enviado” aquele que apareceu na carne, tendo sido enviado por aquele que nao se revestiu da carne, Pois, as coisas que se fazem no exterior perante 0s olhos corporais, tém sua origem na disposigao interior da natureza espiritual ¢ so por isso chamadas suas, projegdes ou “enviadas”, Contudo, a pessoa que recebeu a condi¢do humana é a do Filho, nao a do Pai.® LiVRO I 80 como Filho ho, afirma- Por isso, quando o Pai invisivel em unia também invisfvel, tornou visivel 0 mesmo se que ambos 0 enviaram. Se, entretanto, 0 Filho ao se tornar visivel deixasse di wistvel eom 0 Pai, ou seja, sea esséncia invisivel, do Filho se mudasse e se transfor: masse toda em criatura viaivel, dir-se-ia que o Filho seria apenas enviado, e nao estaria mais na posicao de quem envia junto com 0 Pai. Tendo, porém, assumido a condigio humana, e tendo permanecido imutavel a sua condicao divina, 6 evidente que o Pai e o Filho invisiveis, ambos fizeram o que apareceu no Filho, ou seja: 0 mesmo e 0 préprio Filho invistvel foi enviado pelo Pai invisivele pelo Filho igualmente invisivel. Por que entao ele diz: nao venho por mim mesmo? (Jo 8,42). Isto o afirma conforme a sua condicao de servo, da mesmo modo como disse: eu a ninguém julgo (So 8,15). 10. Se, portanto, denomina-se o Filho — 0 Enviado —, pelo fato de se ter tornado visivel numa criatura corporal aquele que sempre permanece oculto na sua natureza espiritual para os olhos dos mortais, torna-se fécil entao entender por que o Espirito Santo é também denominado “enviado’. Pois ele tornow-se igualmente, no tempo, uma espécie de criatura na qual péde se revelar visivelmente. sso quando desceu por sobre o proprio Senhor na figura corpérea de uma pomba (Mt 3,16); ou quando dez pos a ascensio, no dia de Pentecostes, veio, ds repente, um rufdo semelhante ao soprar de impetuoso vendaval e apa inguas de fogo que foram pousar sobre cada um dos apéstolos (At 2,2.3), Essa operacao visivel, oferecida aos olhos dos mortais, denomi- nou-se misao do Espirito Santo, nao porque se tenha ‘manifestado em sua esséncia, que é invisivel e incomuni- cavel eomo a do Pai e a do Filho, mas para que os coragies dos homens, comovidos por tais sinais exteriores, se 81 5.10-8.11 voltassem — através da manifestagao temporal daquele que veio—, para a eternidade oculta daquele que sempre esta presente. caviTuLo 6 Sobre as epifanias do Esptrito Santo 11. Em passagem alguma est escrito que Deus Pai seja maior do queo Espirito Santo, ou queo Espirito Santo seja menor do que o Pai. Isso porque a criatura assumida, em que o Espirito Santo se manifestou, nao foi assumida como 0 Filho do homem a assumiu, quando nela se manifestou a pessoa do Verbo de Deus, A encarnagio d se, nao para o Filho do Homem possuir 0 Verbo como 0 possuem os santos e sabios, mas sim para possuir como nenhum de seus companheiros (Hb 1,9).? Tampouco, por- que o Verbo viesse com mais plenitude ou para possuir uma sabedoria mais sublime que os demais santos, mas por ser ele o préprio Verbo. Uma coisa é 0 Verbo na carne, outra coisa é 0 Verbo feito carne, ou seja, uma coisa é o Verbo no homem e outra © Verbo feito homem. O termo “carne” é empregado no ntido de “homem”, quando se diz: e 0 Verbo se fez carne (Jo 1,14), etambém:e toda carneveré asalvacdode Deus (Le 8,6). Carne indica aio homem, nao sem alma out sem. inteligéncia; mas “toda a carne"; equivale a: “todo mem’ forma humana no seio da Virgem Maria. O Espirito Santo nao santificou a pomba nem 0 vento nem o fogo e nem os uniu eternamente asi e A sua pessoa, de modo a perfazer Livro 8 com ele uma unidade e uma forma, a nao ser que seq dizer que a natureza do Espirito Santo é de tal modo mutavel e transformével que ele se transformou nas figuras mencionadas, como a gua se converte em gelo. Essas figuras apareceram quando foi oportuno, como um gesto de servigo da criatura a seu Criador, obedecendo a.um sinal de quem permanece imutavel em si mesino, com 0 finalidade de significé-lo e mostré-lo, Assim, fol oportuno para 0s mortais, que realidades mudadas e transformadas tivessem um significadoe revelassem algo diferente, Por isso, embora aquela pomba seja denomina- da Espirito Santo (Mt 3,16), e se tenha dito a respeito do fogo: E apareceram umas como linguas de fogo, que se distribuiram e foram pousar sobre cada um deles, comecaram a falarem outras linguas, conformeo Espirito ‘Santo 08 impelia que falassem (At 2, © Espirito Santo, por esse fogo assim como pela pomba, no podemos, contudo, chamar o Espirito Santo de Deus- pomba, nem Deus-fogo, do mesmo modo como chamamos © Filho de Deus e Homem, E nao podemos tampouco denominé-lo dese modo quando o Filho é chamado Cor- deiro de Deus no dizer, nao somente de Joao Batista: Fis © Cordeiro de Deus (Jo 1,29), mas também de Joao evangelista, o vidente do Cordeiro imolado do Apocalipse (Ap 5,6). Pois a visio profética nao se mostra aos olhos ;porais mediante formas corpéreas, mas se mostra 20 espirito, pormeiodeimagensespirituaisde serescorpéreos. ‘Todos os que viram a pomba e o fogo viram-nos com se foi visto pelos olhos ou pelo espirito, tendo em conta as palavras empregadas. Nao esté dito: “Viram Iinguas divididas como de fogo”, mas: pareceram-lhes. Nao tem o mesmo significado: “pareceu-me" e “vi”. Nessas visdes espirituais de imagens corpéreas, costuma-se dizer: “pa- receu-me a mim e vi"; porém, nas manifestadas por 83 figuras corpéreas percebidas pelos olhos, no s dizer: “pareceu-me a mim, mas simplesmente: “vi”. Pode haver discussao sobre como foi visto aquele fogo: se com 0 olhar interior no espirito, ou se com os olhos corp Com relagao pomba, como esté escrito, desceuem figura corporal; e ninguém duvida que tenha sido vista com os olhos, Se dizemos queo Filho éapedra pedra, porém, & Cristo (1Cor 10,4), nao podemos dizé-lo esse mesmo sentido que o Espirito Santo é pomba ou fogo.A pedrajéexistiacomocriaturae, pelasuacontextura, foi aplicada a Cristo por ela significado, do mesmo modo como a pedra, que servira de travesseiro a Jacé e por ele foi ungida, tendo servido para significar a presenga do ‘Senhor (Gn 28,18). igualmente como sediz.que Isaacera Cristo por ter levado sobre os ombros a lenha para 0 sacrifivio (ib. 22,6). Nessas realidades jd existentes, este- ve oculta uma agio signifieativa, o que nao acontece com ‘@ pomba e 0 fogo que se manifestaram em certo momento para figurar aquelas realidades. Considero que as figuras da pomba e do fogo so mais semelhantes & chama que aparece a Moisés na sarca (Ex 3,2) ¢ aquela coluna que acompanhava 0 povo no deserta (Ex 13,21,22) e aos raios e trovies, por ocasiao da promulgacao da Lei no monte Sinai (Ex 19,16). A figura material desses elementos surgiu com uma finalidade representativa e passageira, capircLo7 Di sidas sobre as aparigées divinas 12, Devido a essas formas corporais, que serviram pat significar o Espfrito Santo, e que tiveram uma existénci passageira para impressionar os sentidos humanos, afir- Livro 84 ma-se que ele também foi enviado. Nao se pode dizer, porém, que por isso ele seja inferior ao Pai, como se diz. do Filho na forma de servo. Esta foi inerente & unidade da pessoa, ao passo que aquelas figuras corporais aparece- ram de modo transsitério para demonstrar 0 que era preciso, e logo depois deixaram de existir. Por que entao nao se diz que o Pai foi enviado através daquelas figuras corporais: fogo da sarga, coluna de nu- yer ou de fogo, relampagos na montanha, ¢ outros fend- menos, quando, segundo as Escrituras, falouw aos patriar- cas, se era ele que se manifestava através desses tipos de criaturas e aquelas formas corporais, apresentadas a08 olhares humanos? E se era o Filho que se manifestava mediante esas, figuras, por que se chama enviado, apenas depois que nasceu de mulher, conforme diz 0 Apéstolo: Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus 0 seu Filho, nascido de muther (G14,4), se antes jé havia sido enviado a0 aparecer aos patriarcas mediante aquelas formas mutaveise eriadas? Se nao se pode dizer com propriedade que o Filho foi enviado senaio quando o Verbose fez carne, por que se diz que o Espfrito Santo foi enviado, se na houve encarnagio? E aquelas realidades visiveis encontradas na Lei e nos Profetas, néo se mani- festavam nemo Pai, nem o Filho, mas: por que se diz agora ser ele enviado, se j4 antes fora enviado mediante aquelas figuras? 13. Nessa questao tao complexa, a primeira coisa a investigar, com a ajuda de Deus, seré se 0 Pai, o Filho, © Espirito Santo apareceram aos patriarcas nessas for- ‘mas criadas; se alguma vez apareceu o Pai, outroso Filho, outras © Espirito Santo; e se apareceu alguma vez 0 Deus uno sem distingao de pessoas, ou seja, a prépria Trindade. 85 mss Qualquer seja o resultado dessa investigacao, seré preciso examinar em seguida se, para aquela finalidade, foi formada uma criatura na qual Deus, se assim julgou ‘oportuno, se mostrava de fato aos olhos humanos; ou se os anjos, jé existentes, cram enviados para falarem nome de Deus, assumindo alguma forma de criatura corpérea, em aparéncia visivel necesséria para a sua misséo; ou se, por um poder a eles concedido pelo Criador, transformavam convertiam em figuras acomodadas e aptas para sua atuacdo, o proprio corpo sutil, ao qual nao esto sujeitos, mas governam.* Examinaremos finalmente, o que determinamos in- vestigar, ou seja, se o Filho e o Espirito Santo foram antes, enviados —e se foram enviados —, qual a diferenca entre aquela missio e a que lemos no Evangelho, ou se nenhu- ma das pessoas foi enviada, a nao ser o Filho, quando nasceu da Virgem Maria; e 0 Espirito Santo, quando aparece em forma visivel seja de pomba, seja de linguas de fogo capiruLos Toda a Trindade é invisével 14, Nao demos importancia aqueles que, inspirados nas coisas carnais consideraram mutavel e visivel a natureza ea Sabedoria do Verbo de Deus o qual, permanecendo em simesmo, tudo renova, ea quem chamanos Filho tinico de Deus. Entregaram-se & investigacao das coisas divinas com 0 coragio empedernido e com mais atrevimento do que 0 espirito religioso, Sendo a alma uma substancia espiritual ¢ tendo sido criada nfo por outro, mas por aquele que tudo criou, embora mutavel, nao é visivel Estes principios eles os aplicaram ao Verbo e & Sabedoria LivRon 86 de Deus, por quem tudo foi feito e que é nao somente invisivel, mas também imutavel; dotes estes que a alma nao possui. Esea imutabilidade divina é meneionada na Escritura, ondese lé: permanecendo em si mesma, renova toda as coisas (Sb 7,27). Eeles, tentando sustentar o malogro de seu erro com testemunhos das divinas Escrituras, alegam em sua defe- sa a sentenga do apdstolo Paulo e atribuem somente a Pai, excluindo o Filho e o Espirito Santo, o que é afirmado sobre o Deus tinico, ou seja, a Trindade: Ao Rei dos éculos, ao Deus incorruptivel, invisivel e tinico, honra e gloria pelos séculos -ulos (1T'm 1,17); e, em outro lugar: 0 Bendito ¢ unico Soberano, o Rei dos reis ¢ Senhor dos semhores, o tinico que possui a imortalidade, que habita uma luz inacessivel, que nenhum homem vit, nem pode ver (ib, 6,15,16). Creio que jd dissertei o suficiente sobre como entender esas citagées.” capiTULos As trés pessoas sio imortais e invisiveis 15. Aqueles que atribuem essas verdades apenas 20 Pai, com exclusao do Filho e do Espftito Santo, afirmam que o Filho 6 visivel tanto na carne assumida da Virgem, como J 0 era antes em si mesmo. Pois, dizem eles, o Filho ‘apareceu aos olhos dos patriarcas. H se Ihes disseres: “Se o Filho é visivel em si mesmo, sera também mortal em si mesmo”, querem que somente ao Pai sejam aplicadas as palavras: O sinico que possui a imortalidade (\Tm 6,16); e se lhes disseres que, se o Filho é mortal pela carne assumida, devem concordar que pela mesma razao tam- bém seja visivel. Mas eles respodem: Nao dizemos que 0 Filho seja mortal somente depois da encarnagao, mas 87 98 assim como jé era antes visivel, também era mortal. Ora, dizem que 0 Filho ¢ mortal devido & carne, mas nao é somente 0 Pai, excluindo o Filho, que possui a imort is o Verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas, possui igualmente imortalidade. Nao é pelo fato de se ter revestido de carne que perdeu a imortalidade, pois isso no & alma humana, quando morre 0 corpo, conforme disse Senhor: Nao temais os que ‘matam 0 corpo, mas nao podem matar a alma (Mt 10,28). Deveriam defender que o Espirito Santo também assumiua carne, ¢ isto, certamente, os deixaria um tanto confixsos. Pois, se o Filho é mortal porque se revestiu de carne mortal, como poderao crer que apenas 0 Pai, com ‘exclusio do Filho edo Espirito Santo, possui a imortalida- de, se 0 Eepfrito Santo nao assumiu a carne? E se 0 Espirito Santo nado possuiaimortalidade,o Filho tampouco 6 mortal por se ter revestido da carne. Se, porém, 0 Espirito Santo ¢ imortal, conelui-se que ndo se referem somente ao Pai as palavras: 0 dnico que possiti a imorta: lidade Julgam poder demonstrar desse modo a mortalidade doFilhoantesda encarnacéo, alegando queamutabilidade pode chamar-se de algum modo mortalidade, no mesmo se jue se diz.que a alma morre; nao porque mude ou se transforme em um corpo ou em alguma outra substancia, mas se considera mortal porque tudo 0 que esta agora de modo diferente do que esteve antes, se considera mortal pelo fato de existir em substancia agora diferente da de antes, deixando de ser 0 que era. Dizem eles: antes de o Filho de Deus nascer da Virgem Maria, apareceu aos patriarcas ndo numa mesma figura, mas sob miltiplas aparéncias; ora de umn modo, ora de outro, € assim to 1 em si mesmo, ja antes de se encarnar,esua esséncia era visivel aos olhos mortais; logo € mortal, porque foi mutavel. E dizem a mesma coisa a uvRott 88 respeito do Espirito Santo que apareceu ora como pomba, ora como fogo. Coneluem, por isso, que néo a toda a ‘Trindade, mas somente 20 Pai se aplicam as palavras: Ao Deus incorruptivel, invistvel ¢ tinico, e: Bendito, 0 tinico que possui a imortalidade, que habita uma luz inacesst bel, que nenhum homem viu nem pode ver (1Tm 6,16). 16. Deixando de lado, portanto, esses adversérios que, nao chegando sequer a compreender a esséncia invisivel, da alma, tornaram-se mais incapazes ainda de conhecer aesséncia invisivel da alma, tornaram-se mais incapazes ainda de conhecer a esséncia de um s6 ¢ nico Deus, ou seja, do Pai, do Fithoe do Espirito Santo, a qual permane- ce nao somente invisivel, mas também imutavel, e que, por isso, possui a verdadeira e auténtica imortalidade. Nés, porém, que afirmamos que nem o Pai nem o Filho, nem o Espirito Santo, jamais apareceram aos olhos corpéreos, a nao ser na figura de um ser eriado submetido ao seu poder, continuemos na investigacdo dentro da paz catélica no esforgo tranqiilo, dispostos a nos corrigir se formos chamados & atencao, fraterna e honestamente, ¢ mesmo a sermos mordidos pelo inimigo, se ele estiver com averdade. E vejamos se Deus, sem distingao de pessoas, apareceu avs patriarcas antes da vinda de Cristo na carne; ou se alguma das trés pessoas da Trindade; ou se uma apés outra, coin que por turno.!? cs fruL0 30 Aparigo « Addo, Visto de Abraao 17. Primeiramente, pelo fato de estar escrito no Génesis que Deus falou com 0 homem por ele formado do limo da terra, e deixando de lado o sentido figurado para apoiar- 59. 0637 mos a credibilidade do fato no sentido literal, parece que Deus falou com o homem revestindo-se de uma aparéneia humana. B claro que nao o diz explicitamente 0 Livro sagrado, mas se percebe pelas cireunstancias da leitura, prineipalmente quando narra que Adao ouviu a voz de ‘Deus que passeava a tarde no paraiso, dizendo-lhe: Addo, onde estds? Aoqueele respondeu: Ouvi a tua vozeescondi- me de teu rosto, porque estou nu (Gn 3,8-10). Atendendo-nos @ letra, nao vejo como nao entender esse passeio e essa conversa a néo ser sob aparéncias humanas, Nao se pode dizer que somente se ouviu a voz, onde diz. que Deus passeava, on que aquele que passeava no local nao estivesse visivel, pois esta escrito que Adaose escondeu do rosto de Deus. Quem era ele? 0 Pai, o Filho ou 0 Espirito Santo? Ou seria talver a propria Trindade indivisa que falava ao homem na aparéncia humana? Nunca se percebe que a Escritura faca passagem de pessoa a pessoa. Assim, parece ter falado ao primeiro homem aquele que disse: Faga-se a luz e: Faca-se 0 firmamento(Gn 1,3.6), ¢ as demais obras em cada um dos dias. Ecomumentender-se terside Deus Pai quedizia que se fizesse o que Ihe aprouve fazer. Ora, tudo ele criow pelo seu Verbo, o qual, como sabemos pela regra ortodoxa de fé, é seu Filho tinico. Se, portanto, Deus Pai falou ao primeito homer, passeava no paraiso aoentardecer e o pecador escondeu-se de sua face no meio do arvoredo, por que nao aceitar que ele mesmo tenha aparecidoa Abraiioea Moisés a outros quem Ihe aprouve, através de uma criatura mutavel e visivel sub- metida & sua vontade, permanecendo ele imutavel € invisivel em sua esséncia? Mas pode ocorrer que a Es- critura, sem dar a perceber, tenha passado de pessoa para pessoa e, a0 narrar que o Pai disse: Faca-se a luz ¢ as Gemais coisas que afirma terem sido feitas pelo Verbo, esteja indicando que 0 Filho é que falow ao primeiro Livro 90 homem, embora nao dé expli aos capazes de entender. .Oos claras, mas o insinue 18 Quem tivermeios para aprofundar esce segredo com a forga da inteligéncia, de modo a ser-Ihe evidente que 0 nao somenteo Filho ot o Espirito Santo, possa ou nao, ‘olhos humanos através de uma criatura visivel, prossiga em suas investigagdes, se puder, a ponto de de expore explicar esses assuntos. Na opinigo, tal assunto permanece obscuro no que diz respei- toaotestemunho da Escritura, segundo oqual Deus falou com ohomem. Pois, naoesté muitoclaro se Adaocostuma- va ver a Deus com os olhos corporais, j4 que existe controvérsia sobre o modo como seus olhos se abriram, a0 saborear o fruto proibido (Gn 3,7); por quante os seus olhos. ios antes de 0 ter experimentado, Se a Escritura, de fato, insinua a existéncia de um local como paraiso terreno, diria sem temeridade que Deus podia ali passear gob uma aparéncia corporal. Pode se dizer também que o homem ouvia apenas a vox.sem ver forma alguma. Embora esteja escrito: Addo escondew-se desua face, nao se poderé coneluir que costumasse ver sua face, se pensdssemos—naoque que temia ser visto por aquele cuja voz ouvira e cuja presenca sentira passeando no paraiso? Pois, Caim tam- bém disse a Deus: Zsconcler-me-ei de tua face (Gn 4,14), nem por isso somos levados a concluir que ele costumasse ver a face de Deus com 08 corporais, em alguma forma visivel, embora tenha ouvido a voz de quem o interrogava ¢ lhe falasse sobre seu crime. B dificil explicar, endo temos esse propésito no momento, 0 modo como Deus se fer. escutar por ouvidos humanos, principalmente quando falava ao primeiro hi ‘mem. Contudo, se apenas se ouviatn vozes e sons, através dos quais se manifestava aqueles primeiros homens uma a1 10,1839 presenca sensivel de Deus, nao sei por que nao admitir ali a manifestagao da pessoa de Deus Pai, quando sabemos que a mesma pessoa se manifestou numa voz quando Jesus, no monte, aparecen transfigurado aos trés dise{pu- los (Mt 17,5). E de outra vez, quandoa pomba desceu sobre © Batizado (ib. 3,17), e ainda naquela outra ocasiéo quan- doclamou ao Pai pela sua glorificacao e lhe foi respondid Eu o glorifiquei e glorificarei novamente (Jo 12,28). E certo que nao poderia ser ouvida a vor sem a cooperagao Santo — pois sabemos que a ‘Trin- iodo inseparavel —, mas ali se ouvia uma ‘voz que demonstrava apenas a pessoa do Pai. Do mesmo modo, foi obra de toda Trindade a forma humana tomada noseio da Virgem Maria, sendo, porém, a pessoa enearna- daapenasado Filho, posto que a Trindade invisivel atuou, somente na pessoa visivel do Filho." Nada nos impede de considerar aquelas vozes ouvi- das por Adao como proferidas nao pela Trindade, mas por uma pessoa manifestando amesma Trindade. Comefeiti somos lovados a aceitar como vor somente do Pai, 6 Filho amado(Mt3,17), porque Jesus irito Santo nem se pode crer ouentender que seja seu filho. B onde se ouviu: Ew o glorifiquei e glorificareé novamente, reconhecemos somente 0 voz do Pai, Foi a resposta ao pedido do Filho: Pai, glorifica teu Fillo, o que se pode atribuir somente a Deus Pai e nao ao Espirito Santo, do qual nao era filho. No texto, porém, onde esta escrito: F disse o Senkor Deus a Adao, nada se pode dizer, ser for entendido como palavras proferidas pela prépria Trindade. 19. O mesmo acontece onde esta escrito: E disse o Senhor a Abrado: “Sai da tua terrae de tua parentela eda casa de teu pai”. Nao esta claro ai se aos ouvidos de Abraao chegou apenas a vor ou se teve alguma visio, Um pouco depois, yaoi 92 hé palavras mais claras: Eo Senhor apareceu a Abradoe disse-the: “Fu darei esta terra aos teus descendentes” (Gn 12,17), Nao explicita, porém, em que forma o Senhor apareceu: se foi o Pai, o Filho ou o Espirito Santo, A nao ser que se pense ter sidoo Filho alhe aparecer, porque nao estd escrito: "E Deus lhe apareceu”, mas: E 0 Senhor the apareceu. Pois, este titulo de Senhor parece ser atribuido com mais propriedade ao Filho, no dizer do Apéstolo: Se bem que existam aqueles que sao chamados deuses, quer no céu, quer na terra —e hd, de fato, muitos deuses ¢ senhores — para nds, contudo, existe um s6 Deus, 0 Pai, de quem tudo procede e para quem nés somos, e um s6 Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nés somos (1Gor 8,5-6). ‘Mas em muitas passagens, Deus Pai é também cha- mado Senhor, como, por exemplo: 0 Senhor disse-me: "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (Si 2,7), ¢ em outro lugar: Disse o Senhor ao meu Senhor: “Senta-te & minha direita S| 109,1). O proprio Espirito Santo é também chamado Senhor, como diz.o Apéstolo; pois o Senhor é 0 Espirito, E evitando que se pense ser uma referéncia 20 Filho, deno- minado Espirito pela sua natureza incopérea, o texto nerescenta: ¢ onde se acha o Esptrito do Senhor, ai este a liberdade (2Cor 3,17). Nao ha diivida de que o Pspirito do ‘Senhor soja o Espirito Santo.” pouco é evidente se apareceu a Abraiio uma das pessoas da Trindade ou seo proprio Deus Trindade, nico Deus, de quem esté escrito: Adorards o Senhor teu Deus e somente a ele servirds (Dt 6,13). Abraao viu, sem dtivida trés homens debaixo do carvalho de Mambré, aos quais, ‘uma ver convidados e aceitos como seus héspedes, ser Ihes de comer. Todavia a Escritura, no comeco da narra- desse episédio, nao diz: “Apare he trés ho- as: aparecew-the o Senhor. B,86 a0 explicar como © Senhor Ihe apareceu, fala em trés homens, 08 quais 93 naz0 Abraao convide no plural e hospeda. E depois fala no singular, como se apenas estivesse falando com um. E ainda, a0 Jhe prometer que Sara tera um filho, é um 86, 0 qual a Escritura denomina Senhor como no comeyo da mesma narrativa: 0 Senhor apareceu a Abrado. Assi Abrado faz o convite a um, contudo, lava os pés e acompa- nha como se fossem trés homens. Fala-Ihes, porém, como se fosse com o Senhor Deus, quando Ihe é prometido um filho, ou quando Ihe é comunicada a iminente destruigao de Sodoma (Gn 18). ceapiruLo Dissertagdo sobre a mesma visto 20. Esta passagem da Escritura exige uma investigacio profunda e demorada. Se, pois, um 36 homem tivesse sido visto, 0s que afirmam que o Filho era visivel em sua esséncia antes de nascer da Vitgem, levantariam a voz dizendo queesse homem era oFitho, pois.arespeito do Pai, dizem eles, esta escrito: ao tinico Deus invisivel (Tm 17). Mas, poder-se-ia perguntar-Ihes como antes de se revestir da carne foi visto em figura de homem, se Ihe foram lavados os pés ¢ alimentou-se com manjares huma- nos? Como pode isso acontecer quando ainda tinka a condigao divina, e ndoconsiderow o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente? Acaso, pois, tinka se esvaziado de si mesmo e assumido a condigao de servo, tomando a semethanga humana, e achado em figura de homem? (F1 2,6-7). Sabemos que isso somente aconteceu depois do parto da Virgem. Como, portanto péde aparecer ‘a Abraao como homem, antes que iss0 acontecesse? Acaso aquela aparéncia nao era verdadeira? ‘Tudo isso poder-se-ia perguntar, se tivesse aparecido a Abratio um 86 homem, que pudesse ser considerado 20 94 como 0 Filho de Deus. Como, porém, apareceram trés homens, e nao se menciona que um deles fosse superior ia, pela idade ou pela forga, por que nao perceber af insinuada visivelmente a igualdade da Tri dade, mediante criaturas visiveis?* A mesma e idéntica substincia em trés pessoas? cariruro 12 A visdo de Lot 21. Para evitar que alguém pense que um dos trés era superior ¢ que este seria o Senhor e Filho de Deus, ¢ os outros dois seriam seus anjos, pois, sendo trés 03 que par Abrado fala apenas com um, a Eseritura sa gradavem contradizer seus pensamentos eopinides quan- do diz logo depois, que dois anjos vieram ter com L pessoa dos quais esse vardo justo, que mereceu ficar livre das chamas de Sodoma, fala a um s6 Senhor. Pois, a Escri tura prossegue dizendo: E 0 Senhor retirou-se depois que assim falou com Abrado, e Abrato voltow para sua casa. A tarde, chegaram os dois anjos a Sodoma (Gn 19,1-19), Devo investigar aqui com atencio o que determinei demonstrar. Abraao certamente falava com trés, mou Senhor a umn deles no singular, Talvez diga alguém: nhecia a um dos trés 08 outro porém, como seus anjos", O que dizer entao do que afirma ‘a Eseritura: E 0 Senhor retirou-se depois que assim falou com Abraao, e Abraaovoltou para sua casa, (Gn 18,33). A tarde, chegaram os dois anjos « Sadoma. Por acaso, se retirara aquele que entre os trés era reconhecido como seguir:A tarde, chegaram os dois anjosa Sodoma, quando Lot estava assentado as portas da cidade, B ele, tendo-os 2 visto, levantou-se e foi ao seu encontro, e prostrou-se por terra, e disse: Vinde, vos pego, senhores, para a casa de v0s80 servo (Gn 19,1.2), Esta claro que foram dois os anjos e que foram convidados no plural e chamados senhores, com toda a reveréncia, julgando Lot talvez, que fossem homens, 22, Mas surge aqui uma nova dificuldade: se no fossem reeonhecidos como anjosde Deus, Lot naose teria prostado por terra, Por que, entao, eomo se fosst gesto de urbanidade, convida-os a entrar e thes oferece alimento? Seja 0 que for o que se oculta, prossigamos agora ao que nos propusemos. Aparecem dois, ambos si0 chamado sio convidados no plural e no plural Lot fala com os dois até o momento da safda de Sodoma, Em seguida, a Eseritura diz: Ko tiraram de casa @ 0 puseram fora da cidade; e ali the falaram, dizendo: “Salva a tua vida; nao olhes para trése ndo paresem parte alguma dos arredores deste pats; mas salva-te no monte, para que nao perecas com os outros”. B Lot disse-thes: “Rogo-te, mew Senor, visto que o feu servo achou graga diante de ti ete. Gn 19,1758) Por que Ihe disse: Rogo-te, meu Senhor, se ja se afastara aquele que era Senhor e enviara seus anjos? Por que disse: Rogo-te, meu Senhor, e nao “Rogo-vos, meus senhores”? Ese sua intencao foi d um que a Escritura diz: E Lot disse-thes: Rogo-te, meu Sen sto gi graca de ti? No plural nao esto compreendidas duas pessoas? E quando os dois, mados fossem urn, ndo se subentende um Senhor Deus, de uma s6 esséncia? Mas que duas pessoas esto af subentendidas? As do Pai e do Filho, ou as do Pai spirito Santo, ou as do Filho e do Espirito Santo? Considero mais verossimil a iltima hipétese. Foi dito: “terem sido enviados’, —o que se afirma do Filho e uvRot 96 do Espirito Santo; visto que a Escritura jamais afianga que o Pai tenha sido enviado. cAPITULO 12 Visco da sarga ardente 23. Quando Moisés foi enviado para libertar do Egito 0 povo de Israel, assim narra a Escritura, o Senhor lhe ter aparecido: Moisés apascentava as ovelhas de Jetro, seu sogro, o sacerdote de Madid;e tendo conduzido o rebanho ara 0 interior do deserto, chegou ao monte de Deus, ao Horeb. Eo anjo do Senhor aparecew-the numa chama de fogo que sata do meio da sarea, e Moisés via que a sarca ardia, sem se consumir. Disse, pois, Moisés: “Irei e verei esta grande visdo, e verei por que causa ndo se consome a sarga”, Mas 0 Senhor, vendo que ele se movia para ir ver, chamou-odo meio da sarca, edisse: “Moisés, Moisés”. Bele respondeu: “Aqui estou”, E 0 Senhor disse: “Nao te aproxi- mes daqui: tira as sanddlias de teus pés porque o lugar em que estds € terra santa”. E acrescentou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abrado,o Deusde IsaaceoDeusde-Jacs” (x3, 1-6). Amesma personagem é aqui chamada, primei- ramente, anjo depois Deus, Serd por ventura um anjo, o Deus de Abraio, o Deus de Isaac © 0 Deus de Jacé? Aquele Anjo pode ter sido perfeitamente 0 préprio Salvador, do qual diz o Apéstolo: os israelitas pertencem os patriarcas e deles descende 0 Cristo segundo acarne, queé, acimade tudo, Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5). “Aquele que ¢ acima de tudo, Deus bendito pelos séculos”, pode ser entendido aqui, sem seincorrer em absurdo, como o Deus de Abraaio, o Deus de Isaae e 0 Deus de Jacé. Mas por que teria sido chamado anteriormente anjo do Senhor, ao aparecer no meio das chamas que saiam da sarga? (Ex 97 1328 Talver, porque era um dos muitos anjos, que por disposi- cdo divina representava a pessoa do seu Senhor? Ou seria porque assumiu a aparéneia de alguma criatura para aparecer de modo visivele fazer ouvir palavras adaptadas 0s ouvidos humanos e indicar assim a presenga do Senhor, por meio da criatura? E caso fosse um dos anjos, quem poderia afirmar, com verossimilhanga, que foi-lhe confiada a misao de anunciar a pessoa do Filho, ou a do Espirito Santo ou a do Pai, ou mesmo a pessoa Trindade,!° que ¢ um s6 Deus de modo a ter podido dizer: Eusowo Deus de Abrato, o Deus de Isaaceo Deus de Jacé? jo podemos dizer que o Deus de Abraao, o Deus de Isaaceo DeusdeJacéssejao Filho de Deu :n se atreverd a negar que o propria Trindade — que aceitamos e cremos como o tinico Deus —~ soja o Deus de Abraao, 0 Deus de Isaace o Deus de Jacé. Nao ¢ o Deus dos patriareas, somente quem nao é Deus, Portanto, nao somente o Pai é Deus — 0 que todos, mesmo os hereges aceitam —, mas também o Filho, oqual assim devem confessar, queiram ou niio, pois diz.0 Apés- tolo: o Cristo que acima de tudo é Deus ben aéewlos (Rm 9,5);e também o Espirito mesmo Apéstolo: glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo, ¢ pouco antes: ou ndo sabeis que o vosso corpo é templo do Espirito Santo, que estd em vis e que recebestes de Deus? (1Cor 6,10.19). E os trés so um s6 Deus, conforme ensina a fé catélica Nao ¢ ficil, pois, determinar nessa ocasido (Ex 3,2), quala pessoa da Trindade —se uma delas, ou se a propria Trindade — estava af representada por um anjo, caso tenha sido mesmo um anjo, Se porém, para aquela cireunstancia, foi assumida a forma de uma eriatura para poder aparecer aos olhos humanos e se fazer ouvir a seus ouvidos, e foi chamado VRO IE 98. anjo do Senhor, e Senhor e Deus, enti nio se pode entender que esse Deus seja 0 Pai, mas sim o Filho ou 0 Espirito Santo, Embora nao me recorde que o Espirito fanto seja chamado anjo em alguma passagem da Escri- tura, pode-se assim entender pela sua atuacao, pois assim estd escrito a seu respeito: 0 Espirito de anunciaré as coisas futuras (Jo 16,13). Além disso, 0 termo grego “anjo” traduz-se em latim por “mensageiro” Do Senhor Jesus Cristo, lemos dlaramente que o profeta © chama Anjo do grande conselho (Is 9,6). B 0 Espirito Santo, assim como o Filho de Deus, 6 Deus e Senhor dos anjos, capiruLo A viséo na coluna de nuvem e de fogo 24. Na saida dos filhos de Israel do Egito, esta escrito: E © Senhor ia adiante deles para lhes mostrar ocaminho, de dia numa coluna de nuvem, e de noite numa coluna de fogo, para thes servir de guia num eoutro tempo. Nunca se retirou de diante do povo a coluna de nuvem, durante 0 dia, nem a coluna de fogo, durante a noite (Bx 13,21.22). Quem duvida que Deus, nessa passagem, tenhaaparecido 0s olhosdos mortais servindo-se deumacri rea, dele dependente, e nao em sua prépria esséneia? Mas 'm nao esta claro se era o Pai ouo Filhoou o Espirito Santo ou a propria Trindade, Deus uno, que se manifes- tou. Tampouco nada esclarece, na minha opinifio,o texto que dia: E eis que a gloria do Senhor aparece no meio da nuvem. E 0 Senhor falow a Moisés, dizendo: Eu ouvi as murmurragdes dos filhos de Ierael ete. (ib. 16,10-12). 99 14.26-15,25 capitulo ws A visdio no monte Sinai As nuvens, as vezes, relampa- gos, trombeta e fumaca no monte Sinai, a Escritura diz: Todo 0 monte Sinai fumegava, porém Deus descera sobre ele no meio do fogo; ¢ dele, como de uma fornatha, se elevava fumo, e todo 0 monte causava terror. Eo som da trombeta ia aumentando pouco a pouco, e se espathava mais ao longe, E Moisés falava, e Deus respondia-the (Ex 19,18-19). F logo apés ter sido dada a Lei em d mentos, diz: E todo o povo ouvia os trouées e 0 som da trombeta, ¢ via relémpagos e 0 monte fumegando. Bum pouco depois: O povo, pois, ficou longe: e Moisi mou-se da escuridéo, em que Deus estava, eo Senhor disse a Moisés... ete. (ib. 20,18-21) O que dizer dessa citagdo? Creio que nao ha ninguém tao insensato a ponto de acreditar que a fumaca, as nuvens e a escuridio e ontros fendmenos i a esséncia do Verbo e da Sabedoria de Deus Cristo — ou do Espirito Santo. Nem mesmo os arianos rmar isso a respeito do Pai, Portanto, tudo foi feito com a ajuda da criatura a servico do Criador & dos humanos para atender de modo conveniente naquela circunstancia. A nao ser que 0 pen- samento carnal porque esta escrito: e Moisé's aproximou: se da nuvem em que Deus estava, julgue que o povo via a nuvern e que Moisés, com olhos carnais, via dentro da nuvem o Filho de Deus, 0 qual os hereges, em seus devaneios, afirmam ter sido em sua esséncia. ‘Moisés teria visto, sem diivida,com osolhos fi pudesse ser vista com esses olhos nao s6 a sabedoria de Dens, que é Cristo, mas a sabedoria de qualquer homem sabio. Pelo fato de estar escrito a respeito dos ancidios de Israel queviram o Deus de Israel, equedebaixode seus pés 25. Quando faz referénci avon 100 estava como que uma obra de pedra de safira, que se parecia com 0 céu, quando estd sereno (Ex 24,10), seremos levados a crer que o Verbo, a Sabedoria de Deus, ocupou ‘espago em lugar terreno em sua esséncia, a qual se es tende de um extremo ao outro e tudo dispde com suavida- de Sb 8,1)? E que o Verbo de Deus, por quem todas as coi sas foratn feitas (Jo 1,3), 6 de tal modo mutavel que ora se contrai, ora se dilata? Que o Senhor purifique os cora deseus fiéis de tais pensamentos! Pois, como varias vezes {ja dissemos, todas essas coisas visiveis e sensiveis nos sio ‘mostradas por meio de alguma criatura submetida ao Criador, para significar a presenga de Deus invisivel ¢ ivel, nao s6 do Pai, mas também do Filho e do Espirito Santo, do qual, pelo qual e no qual so todas as, coisas (Rm 11,36). Pois, desde a criacao do mundo, pelas criadas podemoschegar aoconhecimentod. je Deus, do seu poder e de sua divindade (ib. 26. Pelo que diz respeito ao assunto que agora desenvol ‘vemos, com relagaoa todos aqueles acontecimentos que se mostraram de modo tao terrivel aos sentidos dos mortais, ignoro se era o Pai, o Filho ou Espirito Santo quem falava. Contudo, se permitido conjeturar sem temeréria afi maga, mas com humildade ¢ hesitacdo, ese se pode supor ter sido uma pessoa da Trindade, daria preferéncia a0 Espirito Santo. Pois, quando a Lei foi entregue em tabuas depedra, a Escritura diz.que foi escrita pelo dedo de Deus (EX 31,18); ora, com essa expresso sabemos que o Evan- gelho designa o Espirito Santo (Le 11,20). Além do mais, cingiienta dias transcorreram do sa- crificio do cordeiro e da celebragao da Pascoa até odia em que esses fatos comegaram a acontecer no monte assim como cinqienta dias se passaram da paixao do Senhor e de sua ressurrei¢ao até 0 dia em que veio 0 de Dens. E na sua 101 15,20:1627 vinda, narrada nos Atos dos Apéstolos, ele apareceu em Iinguas de fogo que se distribuiram ¢ foram pousar sobre cada um deles (At 2,1-4), Este acontecimento se asseme- Iha ao do Exodo, onde esta escrito: Todo 0 monte Sinai famegava porque Deus tinha descido sobre ele no meio do fogo. E um pouco depois: O aspecto da majestade do Senhor, como fogo ardente sobre 0 cimo do monte na presencados ilhos de Israel. F, talver, tudoisso aconteceu por que nem o Pai e nem o Filho poderiam ali se apresen- tar sem o Espirito Santo, por quem convinha ser escrita a Lei. Sabemos, no entanto, que Deus apareceu néo na sua easéncia, que permanece invisivel ¢ imutdvel, mas por meio da aparéncia de uma criatura. Com a minha eapaci- dade, porém, nao chego a perceber por meio de algum sinal, qual das pessoas da Trindade apareceu, capiruLo 16 A.aparigao de Deus a Moisés 27. Hé outra passagem da Escritura que costuma eon- fundirmuitas pessoas, onde esta escrito: E 0 Senhor falow a Moisés face a face, como se fala a um amigo; ¢ um po depois diz.o proprio Moisés: Se eu, pois, achei graca na tua presenga, mostra-mea tua face, paraew te conhecereachar graca diante de teus olhos, e para ter certeza de que este é Oo teu povo; emais adiante disse Moisés ao Senhor: mostra mea tua gloria (Ex 33, 11.18.18). O que significa isto? Pelo fato de que em todos esse acontecimentos se pensasse que Deus era visto na sua esséncia, aqueles desgracados hereges aereditavam que o Filho de Deus era visivel em si envio mediante uma realidadecriada. E lendo que Moisés entrara na nuvem, parecia-lhes que tinha entrado a fim de que — mostrando-se 20s olhos do povo apenas um LuvRo 102 nevoeiro espesso — ele, no entanto, dentro da nuvem, ouvia as palavras de Deus como que contemplando sua face. Por que est eserito: Fo Senor falava.a Moisés face «a face, como quem fala a um amigo. Mas aqui lemos que ele proprio diz: Se eu, pois, achei graca na tua presenca, mostra-me a tua face? (Ex 88,13). ‘Moisés percebendo de fato, o que via corporalmente ¢ implorava agora uma verdadeira visdo espiritual de Deus. Com efeito aquelas palavras, produziam-se em vores, ¢ de tal modo eram moduladas que pareciam as de umamigofalandoa um amigo, Mas, quem pode vera Deus Pai com os olhos do corpo? E quem pode ver com esses mesmos olhos aquele que no prinetpio era 0 Verbo, ¢ 0 Verbo estava em Deus, eo Verbo era Deus, por quem todas as coisas foram feitas? (Jo 1,13). E quem pode ver o Espirito da sabedoria com os olhos corporais? O que significa, pois: mastra-me tua face para eu te conhecer, sendio: mostra-me tua esséncia? Se Moisés ndo tivesse dito essas palavras, poder-se-ia desculpar aqueles insensatos que, devido as palavras e aos gestos antes referi- dos, pensam que a esséneia divina se manifestou a seus olhos. Como, porétn, ja se demonstrou aqui de modo convin- cente, que nao The foi concedido, embora o desejasse, quem ousaria asseverar que, por meio das sobreditas formas aparecidas visivelmente, tenha sidocontemplada aesséncia de Deus, endo uma criatura, a servigo de Deus?” eapiruto 17 A visto das costas de Deus. A fé na ressurreigao de Cristo, Ainda a visto dos patriarcas 28. Eo Senhor disse em seguida a Moisés: Nao poderds vera minha face, porque 0 homem nao pode ver-mee viver. Eedisse mais: Ris um lugar juntode mim, etuestards sobre 103 728 aquela pedra. B, quando passaraminha gloria, ew te porei no aito da pedra-e te cobrirei com a minha direita, até que tenha pasado. Depois tirarei a minha mdo, ¢ tu me verds ppelas costas; mas 0 meu resto nao. poderds ver (Ex 33,11- tas palavras costumam ser interpretadas, com muito fundamento, como prefiguragao da pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo — as costas significando sua carne, naqual nasceu da Virgem, morreu eressuscitou. Denomi- na-se parte posterior seja por causa da posterioridade de sua condigao mortal, seja porque se dignou assumi-la quase no fim dos séculos. Sua face, porém, é a condicio divina, na qual nao considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente (Fl 2,6), a qual condiga ninguém pode ver e continuar vivendo, Pode chamar-se também parte posterior porque, depois desta vida — na qual peregrinamos em diregao ao Senhor (2Cor 5, qual, 0 corpo corruptivel pesa sobre a alma (Sb 9,15) —, 6 face « face, como diz 0 Apdstolo (1Cor ‘A respeito desta vida 6 que rezam os salmos: Sim, inda: Por que nenhum vivente é justo na tua pres Nesta vida, conforme Joao: O que nds sere? se manifestou. Sabemos que por ocasido desta manifesta- cao seremos semethantes a ele, porque 0 veremos tal qual € (1. Jo 3,2), ou seja, depois desta vida, quando tivermos pago tributo a morte e recobido a ressurreicao prometida. Enquanto peregrinamos, se nos aprofundamos espi- ritualmente na Sabedoria de Deus, pela qual todas as coisas foram feitas, morreremos para os afetos carnais e, considerando morto para nés este mundo, morreremos também para este mundo e poderemos dizer com 0 Apés- tolo: O mundo estd crucificado para mim e eu para 0 mundo (G16,14), A respeito dessa morte diz.outra vex: Se morrestes com Cristo para oselementos do mundo, porque yRO I 14 6 sujeitais, como se ainda vivésseis no mundo? (C12,20). ‘om razao, portanto, ninguém pode ver a face, isto &, a manifestagao da Sabedoria de Deus e viver. Esta é, pois, a beleza por cuja contemplacao suspira todo aquele que se empenha em amar a Deus com todo o coragao, com toda a alma, com todo 0 entendimento. E para chegar aessacontemplagio, procura também edificar seu préximo e amé-lo como a si mesmo, pois, desses dois, mandamentos dependem toda a Lei ¢ os profetas (Mt 22,37-40). E isto esté também prefigurado no proprio Moisés. Depois de dizer peloamora Deus queoinflamava: Se eu, pois, achei graca na tua presenca, mostra-me tua face paracu teconhecer eachar graca diante de teus olhos, acrescentou logo por amor ao préximo: Para que eu saiba que este povo ¢ teu (Ex 33,13). Essa 6, portanto, aquela beleza que arrebata em desejos toda alma racional, dese- Jos tanto mais ardentes quanto mais puros, tanto mais puros quanto mais espirituais, tanto mais espirituais quanto mais mortos para as coisas carnais."* Mas enquanto “peregrinamos longe do Senhor ¢ ca- minhamos a luz da fé e nao pela visio" (2Cor 5,6), vernos as costas de Cristo, ot seja, sua carne, & luz da mesma fé, permanecendo no sélido alicerce da fé simbolizado pela podra, isto é, Igreja catdlica, da qual esta eserito:e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt 16,18) 0 ¢ com mais seguranca a desejaremos ver, quanto mais profundamente reconhe. cermos nas suascostas—ou seja,na sua carne—oquanto ele nos amou por primeiro, 29. A féna ressurreicao dessa carne nos salva ejustifica Se cre) "u coragtio que Deus 0 ressuscitou dentre os ‘mortos, serds salvo (Rm 10,9);¢ ainda: O qual foi entregue las nossas faltas eressuscitado para a nossa justificagao (ib. 4,25). Por isso, o mérito de nossa fé é a ressurreigao do | 105 1728:90 corpo doSenhor. Quesua carne tenha morrido no martirio da cruz, até sous inimigos créem, mas nao créem que tenha ressuseitado. Né |, erendo com toda firmeza a contemplamos como que permanecendo na solidez da pedrae, com a esperanca fundamentada na adocdo, espe- ramos a redengio de nosso corpo (Rm 8,23). Isso, porque esperamos que se verifique nos membros de Cristo, que somos nés, 0 que sabemos pela fé jé ter-se realizado nele, que é nossa Cabega. Dai fato de ele nao querer, a nao ser quando tiver passado, que vejamos suas costas, ou seja, para que creiamos na sua ressurreicao. O termo hebraico “pascoa” significa “passagem”. Por isso, 0 evangelista doa diz: Antes da festa. da Pascoa, sabendo Jesus que che- gouasua horade passar deste mundo para o Pai (Jo 13,1). 30. Os que eréem na ressurreigdo, mas nao esto na Igreja catélica, é sim em alguma heresia ou cisma, véem as costas de Cristo, porém, nao de um lugar junto a ele. B © que significa as palavras pronunciadas pelo Senhor: Eis um lugar perto de mim, e tu estards sobre aquela pedra? (Ex 93,21). Qual o lugar terreno que est junto do Senhor senao o daquele que The est contiguo espiritual- mente? Mas, que lugar nao esta perto do Senhor, ja queele tinge fortemente de uma extremidade a outra e dispde todas as coisas com suavidade (Sb 8,1), e do qual 0 ou é seu trono ea terra, oescabelo de seus pés, e que disse de si mesino: Que casa € essa que vés edificareis para mim, e que lugar é esse do meu deseanso? Todas as coisas nao as feza minha méo? (Is 66,1. Neste caso, 0 lugar perto dele, no qual se permanece sobre a pedra, é a Igreja catélica, onde aquele que cré na ressurreigao vé com vantagem a Pascoa do Senhor, ou seja, a sua passagem e suas costas, isto é, seu corpo" £ tu estards, diz a Bseritura, ‘aguela pedra, quando passar a minha gléria. Com efeito, no momento em que LvROI 108 passou a gloria do Senhor na sua glorifieagio, quando pela ressurreigao subiu ao Pai, nés firmamo-nos sobre a pedra, Eo proprio Pedro firmou-se para pregar com seguranca— ele que trés vezes negara antes de se firmar. Ja estava colocado no alto da pedra por predestinacao, mas nada via dovido & mao do Senhor colocada sobre ele. Havia, pois, contemplado suas costas, mas o Senhor ainda nao havia passado da morte para a vida, ainda nao fora glorificado pela ressurreicao, 31. Segue-se no Exodo: Eu te cobrirei com minha méo direita, até que tenha pasado; depois tirarei a minha ‘mao, e tu me verds pelas costas (Ex 33,22). Por ai muitos israclitas, prefigurados em Moisés, ereram no Senhor depois de sua ressurreicao, como se costas, recorda, nesse sentido, a profecia de Isaias coragéo deste povo, eendurece-the os ouvidos, ¢ fecha-thes os othos (Is 6,10). Finalmente, nao é fora de propésito aplicar-Ihes as palavras do salmo: Porque a tua mao pesava sobre mim, dia e noite (S131,4). De dia, talvez, por nao o terem reconhecido a0 fazer milagres; de noite, pela morte apés a paixdo, quando o consideravam aniquilado € destruido como um homem qualquer. Mas depois que passara e puderam ver suas costas, ao ouvirem, na pregacio de Pedro, que era conveniente ‘que Cristo morresse ¢ ressuscitasse, sentiram 0 coragio transpassado pelo arrependimento. Verificou-se entao nos batizados 0 que est escrito no principio desse mesmo salmo: Bern-aventurado aquele cuja inigitidade foi per- doada e cujos pecados so apagados (S| 31,1). Por isso, depois das palavras: Tua mao pesave sobre mim, como se © Senhor passasse e retirasse a mo para poderem ver suas costas, vem a voz do arrempendido e confesso, rece bendo a remissao dos pecados pela fé na ressurreicao: 107 mss Converti-me para ti na aflicdo, como atravessado por um espinho, Eu te confessei 0 meu pecado ¢ nao ocultel a minha culpa. Bu disse: Confessarei ao Senhor a minka iniquidade, ¢ tu perdoaste a malicia do meu pecado (Sl 314-5). No entanto, nao nos devemos deixar envolver pela espessa nebulosidade da carne a ponto de pensar que 0 thor é invisivel, mas que suas costas séo iveis na sua condi¢ao de servo. Longe de nos, porém, pensar 0 mesmo com relagao & natureza divina, ou que 0 Verbo de Deus Sabedoria de Deus tenha rosto ¢ costas como 0 corpo humano, ou que seja mutavel na forma ou no movimento, om relagao a lugar e a tempo. 82, Portanto, se naquelas vozes, de que fala o Fi nas outras manifestagées corporais, aparecia o Senhor Jesus Cristo, ou em umas se manifestava Cristo, como vunstncia de certas passagens;ou em outras n os textos citados, pode concluir que Deus Pai nao tenha aparecido aos patriarcas, sob alguma figura. Com efeito, muitas visdes aconteceram naqueles tempos sem indicagao precisa se era o Pai ou Filho ou Espirito Santo, Por alguns in: provaveis, porém, seria muita tomeridade afirmar que ‘Deus Pai nunca apareceu aos patriareas ou aos profetas, por meio de formas vis(veis. Sustentaram essa opiniao 0s, ‘que niio chegaram a compreender o que esta escrito sobre aunidade da Trindade: Ao Rei dos séculos, ao Deus incor ruptivel, invistvel e dnico (Tm 1,17), €: Aquele a quem nenhum homem viu nem pode ver (Ib 6,16). Sao palavras que a fé eatdlica auténtica refere a suma esséncia, divina e imutavel, Pai, Filho e Espirito Santo, o Deus tinio. ‘As visies narradas, pois, aconteceram por meio de uma criatura mutavel depedente de Deus imutavei, para LivRon 108 manifostar a presenca de Deus nao na sua esséncia, mas de modo figurativo, conforme exigéncias das circunstan- cias e dos tempos eAPITULO 18 A visdo de Daniel 83. Ignoro como os nossos contraditores interpretam a aparigio de Daniel, em que viu o Anciio dos dias, do qual © Filho do homem, que assim se dignou ser por amor de nés, recebeu o reino; daqueles, pois, que lhe diz nos salmos: Tu és meu filho, eu hoje te gerei; pede-me, e eu te darei as nagdes em heranga (SI 2,7.8), € 0 qual sujeitou todas as coisas debaixo de seus pés (SI 8,7). Se portanto, © Pai, entregando o reino, ¢ o Filho recebendo-o, aparece- ram a Daniel em forma corporal, como entéo dizem eles que 0 Pai nunca apareceu aos profetas e que ele 60 Xinieo invistvel, que nenhum dos homens viu e nem pode ver? (1Tm 6,16). arigio: Estavaewatentoa que via, até que foram postos uns tronos, e a Anciéio dos dias sentou-se; a sua veste era branca como a neve, ¢ 08 eabelos de sua cabeca como a pura la; 0 seu trono era de chamas de fogo, eas rodas deste trono um fogo ardente. De diante dete saa um impetuoso rio de fogo; eram milhares de mithares 0s que 0 serviam, ¢ mil milhées os que assistiam diante dele. Assentou-se para julgar, e foram abertos os livros ete. E um poueo depois: Eu estava, pois, observando estas coisas durante a viséio noturna, e eis que vi uma personagem que parecia 0 Filho de homem, que inka comas nuvens do céu, eque chegow atéo Ancido dos dias; eo apresentaram diante dele. E ele deu-the o poder, a honra e 0 reino; e todos os poves, tribos e linguas 0 109 1931 serviram; o sew poder & um. poder eterno que néo the sera tirado;e 0 sew reino ndo serd jamais destruido (Dn 7,9-14). Eis o Pai entregando ¢ o Filho recebendo 0 reino sempiterno eambos est em forma visivel na presenga do profeta, Portanto, ndo é uma crenca infundada que Deus Pai costumasse aparecer desse modo aos mortais. 34. A nao ser que alguém diga que o Pai ndo é visivel porque apareceu em sonhos ao profeta, e que o Filho e 0 Espirito Santo sao vis aparecido a Moisés ‘em estado de vigilia. Como se Moisés tivesse visto o Verbo ea Sabedoria de Deus com olhos fisicos, ow como se acaso pudesse ser visto o espirito humano que vivifica a carne, ou oser corpéreo denominado vento. Assim sendo, muito menos pode ser visto o Espirito de Deus quetranscendeas mentes de todos os homens ¢ anjos, pela inefavel supe- rioridade de sua esséncia. Ou haveré alguém que incorra ‘em erro tal que ouse dizer que o Filho e o Espirito Santo sio visiveis aos homens em estado de vigilia, mas que 0 Pai se manifesta apenas em sonhos? Por que aplicar somente ao Pai as palavras: o qual nenhum dos homens vin e nem pode ver? (1Tm 6,16). Quando os homens estéo dormindo, deixam de ser ho- ‘mens? Aquele que pode criar semelhanca de corpo para se manifestar em sonhos por meio de visves, nao teria poder para formar uma criatura corporal para semanifestar aos que'velam? Atenhat a corteza de que a esséncia divina, pela qual Deus € 0 que ‘emsonhos mediante nenhums formacorporal,etampouco 2 alguém em estado de vigilia. Isso com respeito nao 10 Espirito Santo. es queseentusiasmam comas visdesemestado ja e créem que 0 Pai nao aparece aos olhos humanos, mas somente o Filho ou o Espirito Santo — deixando de lado 0 grande méimero de testemunhos dos apenas ao Pai, mas também ao Filh Aqu LivRO I 110 Livros sagrados suas mniltiplas interpretagBes, a partir guém de so juizo deve afirmar que a pessoa do Pai jamais se manisfestou aos olhos dos que esto dos por meio de uma figura corporal —deixando de lado, como disse, esses testemunhos, pergunto: O que dizem de nosso pai Abraio, ao qual, em estado de vigilia e enquanto servia, aparecerarn ndo um ou dois, mas trés Jovens, dos quais nenhum era superior aos outros, nenhum mais nobre, nenhum mais poderoso, tendo a Escritura dito de inicio: e o Senhor apareceu a Abrado? (Gn 18,0), 35. Foi nossa intengao investigar primeiramente, con- forme a triplice distribuigdo de assuntos, seo Pai, o Filho ouo Espirito Santo, ou se o Deus tinico, isto é, a Trindade sem distingdo de pessoas, apareceu aos patriarcas por meio de formas criadas. Depois de consultar os testemu- thos que nos pareceram suficientes em citagdes das san. tas Escrituras e uma reflexao desinteressada e cautelosa dos mistérios divinos, pelo que julgo, nada nos permite afirmar sem temeridade, qual das pessoas da Trindade apareceu aos patriareas ¢ profetas, a niio ser que ocasio- nalmente 0 contexto da leitura ofereca alguns indicios provaveis. ‘Contudo,a natureza ou a essénciaoua substancia,ou como quer quesechame oserde Deus, pelo qualeleéoque 6, nao pode ser visto corporalmente, Mas por meio de uma criatura acle sujeita, deve-se crer quenaosomente oFilho ou o Espfrito Santo, como também 0 Pai podem manifes- tar-se aos sentidos humanos em figura ou semelhanca corpérea, Depois desta eonelusao, para nao alongar demais este segundo livro, tratemos das outras questies nos livros que vémn a8 LIVRO IIT — As aparigdes de Det seriam mediante formas criadas ou por meio de anjos? - Aesséncia de Deus é em visivel. PROLOGO 1 quiser: prefiro antes fati 1ro que sera ido por outros. Os que nfio ym convene cia, consigam-me livros que tragam interrogagies @ 3 preciso atender, pois esto ivros que correspondam com & qui cerros de homens earnais ¢ grosseir ‘eu me absteria deste se trabalho de di pudesse dar descanso & r também, que os trata duzidos mos tante familiarizados com considerar 13 para ler e entender obras sobre tais temas, Entretanto, pelo pouco qi alerde tradu- goes dos ref 13 nao duvide que neles poderiamos lade tudo o que estou pesquisando grega a ponto de nos Livro 1H 2 Entretanto, nao posso resistir ao pedido dos irmaos que me pedem de escrever. Fazem-no com direito, pois tornei-me seu servo. Na a caridade como uma biga? Confesso que, a0 escrever, aprendi muitas coisas que ignorava. Assim, este meu trabalho nao deve parecer 6 necessdrio a muitos estudiosos e sobretudo aos numero- 505 indoutos, entre os quais me coloco. Apoiando nos. tratados escritos por outrose que tivemos a ocasiaode ler, espero poder, com piedade, pesquisar e dissertar sobre a Trindade — Deus tinico e sumo bem —contando com sua inspiracdo para a pesquisa ¢ com sua ajuda para a disser- taco. Entao, os que puderem e quiserem, que possam ter onde estudar sobre este assunto, se jé néo possuirem oderao obras a esse respeito. B easo ja 0 posauirem, encontrar certos ensinamentos com tanto maior fa de, qui ito em maior nuimero existirem, 2. Desejodeveras que, para todos os meus escritos, haja nao s6 um leitor piedoso, mas também um eritico impar- cial. Contudo estes so os que mais quero e oxalé a ‘magnitude da questao em estudo encontre tantosinvesti- adores quantos so os contestadores. Entretanto, assim nao quero um leitor que tudo aceita, nao quero também um eritico convencido de si mesmo. Que o primei- ro no estime mais a mim do que a fé catéliea, eo segundo ndo ame a si mesmo, mais do que a verdade catolica. ‘Como digo ao primeiro: “Nao te entregues aos meus escritos como se fossem as Escrituras candnicas; eré nestas sem hesitagéo mesmo quando nao chegares a compreender o que acreditas; com respeito a meus escri- tos digo: nao deposites toda a é quando nao tens certeza, us prstgo, 28 ‘a ndo ser que passes a ter essa certeza”, A meus criticos: “Nao te ponhas a corrigir meus escritos levado pela tua opiniao ou por preconceitos, mas apoiado na leitura das Sagradas Escriturasou.emrazdesbem fundadas, Se neles encontrares algo de verdade, essa verdade nao é minha, ‘mas compreendendo-a e amando-a é tua e minba; e se alguma falsidade encontrares,o erro é meu, mas evitan- do-0 fazes que ele nao seja nem teu nem meu 3, Este terceiro livro comegard onde o segundo termi- nou. Tinhamos chegado aquele ponto em que querfamos demonstrar que o Filho nao ¢ inferior ao Pai pelo fato de este enviar, e aquele ter sido enviado; e que o Espirito Santo tampouco é inferior a ambos pelo fato deo Bvange- lho dizer que foi enviado pelos dois. Propusemo-nos inves: tigar onde estava o Filho quando para aqui foi enviado, posto que veioa este mundo e jaestave no mundo (Jo 1,10), conde estava o Espirito Santo, pois: O Espirito do Senhor enchew.o universo; e, como abrange tudo, tem conhecimen- to de tudo o que se diz (Sb 1,7). Queriamos saber também pelo fato de, do reeén aparecido aos olhos hum: pode dizer 2 mesma coisa com relacao ao Espirito Santo wral de uma pomba (Mt 3,16) eem linguas de fogo (At2, a eleso ser enviado ¢ sair do inv a visio dos: mortais, revestidos de alguma forma corpérea; o que nao aconteceu com o Pai, que somente enviou, mas nao foi enviado. Em seguida, foi questionado por que nao se diz. que 0 Pai foi enviado, uma vez que ele se manifestou aos olhos dos antigos em figuras corporais. Se é0 Filho que entio se manifestava, por que se chamou enviado somente depois, quando chegada a plenitude dos tempos, naseeu de mu- que apareceu na forma cor LavRO It iu Ther (Gi 4,4), visto que antes ja fora enviado ao aparecer em formas corporais? B se nao se pode chamar enviado com propriedade, senfio depois que o Verbo se faz, carne (Jo 1,14), por que se 1é que o Espirito Sante foi enviado e, no entanto, nao se encarnou? Se, porém, nas antigas manifestagées nem o Pai nem o Filho se manifestavam, mas apenas 0 Espirito Santo, porque este agora se diz enviado, se antes se revelou sob aquelas aparéncias? Tudo isso questionavamos. Em seguida, subdividimos e estabelecemos trés as- suntos a fim de explané-los com a maxima diligéneia. Um deles j4 foi enfocado no segundo livro; lancar-me-ei em seguida a dissertar sucessivamente sobre os outros dois. (Cf. Il, 7,13. nota 9). Ja investigamos e explicamos que naquelas formas corpéreas e visdes de outrora aparece nao somente o Pai, ndo somente o Filho, nem somente 0 Espirito Santo, mas o Senhor Deus indistintamente que € a Trindade, ou ainda alguma pessoa da Trindade, insinuada no texto da leitura, por certos indicios circuns- tanciais. capirvto1 Exposigéo dos assuntos* 4, Examinemos, em primeiro lugar o tema a ser expla- nado a seguir. Na divisio dos assuntos que fizemos, perguntavamos em segundo lugar se somente para deter- minada finalidade formava-se uma criatura por meio da qual Deus, quando 0 julgasse oportuno, manifestava-se aos olhos humanos, Ou se anjos, que j4 existiam, eram enviados para falar em nome de Deus, assumindoa forma corporal prépria de eriatura corpérea, paraodesempenho de sua misao; ou se mudavam e transformavam & von us 145 de 0 préprio corpo — ao qual nao esto sujeitos, mas os dominam —, em figuras adaptadas e aptas para sua atuacao, em virtude do poder a eles concedido pelo Criador. Resolvida essa parte da questo, o quanto Deus me conceder, passaremos por fim a investigar 0 que nos propusemos como meta das pesquisas, ou seja, se o Filho eo Espirito Santo jé foram anteriormente enviados. No ativo, qual adiferenca entre tal missaoeaquela igelho? Ou entio, se nenhum deles foi enviado exceto o Filho quando se encarnou da Virgem Maria, ¢ 0 Fspirito Santo quando apareceu na forma vi- sfvel de pomba ou em linguas de fogo (ef. 1. I, cap. 7. 1 5. Mas confesso que excede os limites da minha aplica- doo investigar se os anjos, conservandoaespiritualidade de seu ser e atuando em virtude dela, secretamente, servindo-se de elementos inferiores dotados de corpos mais coneretos, como que de uma veste a qual mudam e transformam em figuras materiais, essas também rea averdadeira qua foi transformadaem deiro pelo Senhor (Jo 2,9); ou se os anjos transforn préprios corpos a sua vontade, adaptando-se as cireuns- tancias de seu ministério.* Qualquer seja a solugao, nao diz ela respeito ao assunto em pauta. Sendo eu um ser humano, nao posso compreender essas coisas experimentalment 08 anjos que as fazem e compreendem melhor do que nés e também até que ponte eu posso mudar meu corpo por forga da prépria vontade, tanto com respeito a mim mesmo, como em relagdo aos outros. Contudo, o que eu creio a respeito dos, mesmo anjos, pela autoridade das Escriturasdivinas, no énecessdriodizé-lo agora, para nao ser obrigadoaapresen- tar prova: tornar longo demais o discurso sobre um assunto nao exigido pelo que nos propusemos. 1 a 6 6 Agora ¢ preciso considerar se eram os anjos que tinham dominio sobre aquelas figuras corporais que apa- reciam aos olhos humanos e sobre aquelas vozes que soavam aos ouvidos, quando # eriatura sensivel a servigo de Deus se transformava conforme Ihe convinhade acordo com as circunstancias, como esta escrito no livro da Sabedoria: Porquanto a eriatura, servindo-te a ti, seu Criador, torna-se violenta para atormentar os injusto: torna-se mais benigna para fazer ber aqueles que en confiam. Por isso ela, transformando-se em toda a sorte de gestos, obedecia & tua generosidade que tudo sustenta, acomodando-se ao desejo dag (Sb 16,24.25). Bo poder da vontade divina que por meio da criatura spiritual opera todas as manifestagdes sensiveis e visi- veis da criatura corporal. Onde, pois, ao querer agir, no mostra a sabedoria de Deus onipotente a sua eficiéncia que atinge fortemente desde urna extremidade a outra e dispoe todas as coisas com suavidade? (ib. 8,1). capiruLo2 A vontade de Deus ¢ a mudanga dos corpos. Exemplos 7. A ordem natural d4 origem a metamorfose ¢ & mutabilidade dos corpos e, embora obedega & vontade de Deus, sua acdo rotineira deixa de motivar a admiracao. Assim so as mudaneas efetadas em periodos mais ou menos longos, no céu,na terra e no mar, como o nascimen- toe 0 desaparecimento de seres ¢ outros fenémenos. Hi outras transformagdes que, embora préprias da mesma ordem natural, so menos costumeiras, devido aos pro- longados intervalos de tempo exigidos. Estes aconteci- ua Lars mentos, ainda que a muitos causem admiracao, esto ao aleanee dos investigadores deste mundo e tornam-se menos dignos de admiracao, devido ao fato de se terem, repetido na caminhada dos povose pelo ntimero crescente de pessoas que aleangam tal eonhecitnento. Pertencem aessa espécie de acontecimentos: 0s eclip- ses do sol e da lua, os astros que aparecem raramente, os terremotos, os partos monstruosos de animais e casos semelhantes, que nao acontecem sem a Deus, mas passam despercebido para a mai s0a5. [350 levow a vaidade dos fildsofos a atribuirem esses acontecimentos a outras causas— verdadeiras ou proxi- mas a verdade —, ao nao poderem perceber a causa superior a todaselas, ou seja,a vontade de Deus; ou ainda a atribuirem a causas falsas sugeridas nao por uma investigagao dos seres corporaise de suas mudancas, mas por erros ou hipdteses. 8. Ilustrarei com um exemplo, se 0 conseguir, para esclarecer melhor o que afirmei. Existe certamente no corpo humano certo volume de carne, uma espécie forma, ordeme distingao de membros, numa constituigao sauda- vel. F este corpo é animado por uma alma racional.* Esta alma, embora mutavel, tem a capacidade de par relativamente da Sabedoria imutavel, de modo a que sua participagdo seja nele mesmo como esta escrito no salmo a respeito de todos os santos, com os quais, como pedras eterna. Assim canta o salmista: Jerusalém, que esta edificada como uma cidade, com suas partes bem unidas nele (SI 121,3).' Nele significa aqui a uniao da alma com ‘© bem sumo e imutavel que é Deus, sua sabedoria e vontade, em enjo louvor exclama o salmista em outro lugar: Tu as mudas, e ficam mudadas; tu, porém, és sempre o mesmo ($1 101,27-28). 118 capinuLos Continuagao do tema anterior Imaginemos um horem sébio cuja alma racional jé participa da verdade imutavel e eterna, a qual ele consul- taem todas as suas agoes e nada faz sem estar consciente ausua luz da sua liceidade para assim agir retamente, com sujeigdo e obediéncia, Este homem, seguindo os ditames da justiga divina, a qual escuta no seu intimo com os ouvidos do coracao.ea qual obedece, esgota suas energias noexereicio de obras de miserieérida e contrai uma enfer- midade. Se, apés as consultas, um médico dissesse que a causa da doenca é deficiéneia de humores e outro dissesse que 6 0 excesso de humores, um atinaria com a causa verdadeira eo outro erraria, mas ambos acertariam com relagdo As causas pr ‘seja, as funcoes corporais, ‘Se houvesse, porém, uma pesquisa proftinda sobre a causa daquela deficiéncia e se se deseobrisse ter sido 0 excesso de trabalho voluntério, ter-se-ia chezado a uma causa superior, originada na alma, que comanda o corpo na sua atividade. Mas ainda nao seria essa a causa primeira. Esta estaria na Sabedoria imutavel, a cujo servigoestariaa almadesse homemsébio,oqual, obediente acle, poramor, de modo inefavel, assumira aquele traba- Tho voluntério. Assim, descobrir-se-ia que a verdadeira causa residia na vontade de Deus, causa primeira da a. Suponhamos agora que no trabalho beneficente 10 aquele homem s4bio eontasse com a colaboracao pied de ajudantes sem que tivessem esses sua mesma boa disposigao de estar servindo a Deus, mas sim com a intengao de receber a recompensa de seus desejos carnais oude evitar males corporais. Suponhamos ainda que esse homem sabio utilizasse animais, caso 0 exigisse a execu- a0 do trabalho. Ora, emboraos animais sejam dotados de 9 B49 alma irracional movimentam-se sob o peso dos fardos sem relagao alguma com a bondade da obra visada, mas guiados somente pelo instinto natural de ter prazer e de evitar dores. Suponhamos, finalmente, que aquele ho- mem se utilizasse de seres inteiramente carentes de ibilidade, necessarios para levar a cabo a boa obra, ;0, 0 vinho, 0 oléo, roupas, dinheiro, livros e coisas semelhantes, ‘Todos estes sores utilizados na obra, animados ou inanimados, movimentam-se, sofrem alteragSes, reno- am-se, desapareceme restabelecem-se e, de um modo ou ofrem mudaneas por forca do lugar e do tempo. Agora pergunto: a causa de todos esses fe mutaveis nao seria a vontade de Deus in vel? Por meio de uma alma justa, em que habita a Sabedoria, Deus langa mao de todos esses seres: pessoas més, animaisirracionais, eriaturasinanimadas, seja qual for a intencao e incentivo que tiver para agir, mesmo de seres destituidos de sensibilidade. Aquela alma boa santa, submetida a ele reuniue utilizou a todos para uma finalidade piedosa e religiosa A vontade de Deus a cause tiltima das mudangas que, amododeexemplo, dissemos sobre um homem otado de corpo mortal, mas,ja em parte vidente de Deus, pode-se aplicar a uma casa onde haja uma comuni- dade de pessoas com ele; a uma cidade e mesmo a todo 0 universo, se o governo ¢ a administracao dos assuntos terrenos estiverem confiados a homens sdbios, santa € perfeitamente submetidos a Deus. Mas como isso ainda nao acontece, é mister que sejamos provados nesta pere- uvRomr 120 grinacdo da vida mortal ¢, mediante as adversidades, sejamos educados na virtude da mansidao e da paciéncia; e assim possamos ter o pensamento fixo na patria supre- celeste, para onde peregrinamos Na patria celestial, a vontade de Deus faz dos ventos sens anjos e do fogo ardente seus ministros (SI 103,4). Ele como de um trono sublime, santo e misterioso, preside os seres espirituais na maior paz e amizade, unidos que esto em uma 6 vontade numa espécie de fogo espiritual da caridade. E dai, como de sua casa e de seu templo, a vontade de Deus se difunde nas mudaneas ordenadas das iaturas, Primeiramente, nos seres espirituais, logo depois nos corporais ¢ conforme a decistio imutavel de sua vontade utiliza-se de todos os seres, corpéreos e incorpéreos; de todos osespiritos racionaise irracionais; dos que séo bons pelasua graca e dos maus pela propria vontade deles. Mas assim como os seres mais simples e inferiores siio governados ordenadamente pelosmais subtise fortes, assim todos os corpos 0 so por um espfrito vital, Por sua vver.o espirito da vida irracional é governado pelo espirito racional de vida; aquele que se torna desertor e pecador é ultrapassado por esse espfrito racional de vida quando piedoso e justo; e este por éua vez por Deus. E assim toda criatura ¢ dirigida pelo seu Criador, do qual, pelo qual ¢ no qual foicriada e subsiste(C! 1,16). Conseqiientemente, avontade de Deus é a causa primeira e suprema de todas, as formas corporais ¢ de todas as suas mudancas. Nada, pois, acontece de modo visivel e sensivel, nesta vastissima iensa reptiblica da eriagio que no seja ordenado ou permitido pelo palicio interior, invisivel e inteligivel do sumo Imperador, de acordo com a ineffvel justiga dos prémios e castigos, das gracas e recompensas.* 10. © apéstolo Paulo — ainda sob o fardo do corpo, corrupeao e peso da alma (Sb 9,15), embora visse parcial- 11 4105118 mente ¢ de maneira confusa (1Cor 13,12), desejando partir e ir estar com Cristo (Fl 1,23), gemendo interior: mente e suspirando pela redencao de seu corpo (Rm 8,23) —, pade contudo, pregar o Senhor Jesus Cristo por v de viva voz e através de suas cartas, e outras vezes, pelo sacramento do Corpoe Sangue do mesmo Cristo. Denomi: namos Corpo e Sangue de Cristo nao. lingua do Aps nem os pergaminhos, nem a tinta, nem os sons proclama- dos pela sua lingua, nem os caraeteres escritos nos perga- minhos, mas aquilo que, produzido dos frutos da terra e ‘consagrado por uma prece mistica, reeebemos segundo os ritos, para nossa satide espiritual, em memoria dos soft mentos do Senhor suportados por nés. ste tao grande sacramento torna-se Visivel pelas maos dos homens, para ser santificado pela acio invistvel do Espirito de Deus. Ble a tudo isso por meio de mudaneas corporais, atuan- do primeiramente sobre as faculdades invistveis dos mi- nistros, ora agindo sobre 2 vontade deles, ora sobre a disponibilidade dos espiritos invisiveis submetidos a ele. Por que se ha de admirar que Deus, com relagio as criaturas do eéu, da terra do mar e do ar, tome as coisas sensiveis e visiveis que quiser, para se figurar manifestar, conforme julgar oporttino, nao, porém, reve- lando-se em sua esséhcia, a qual imutavel, intima e misteriosamente mais sublime do que todos 0s espiritos que criou? cal Los 0s milagres nao sao obras habituais Lia. E pelo poder divino, que governa todas as criaturas espirituais e corporais, que em certos dias de todos os anos, as aguas do mar sao atraidas e transbordam sobre uivRo Ut 122. a face da terra, Mas quando isso acontecem pela oragio do santo profeta Elias, apés uma ininterrupta e longa seca, que ceifou a vida de muitos pela fome e, quando a atmos: fora desprovida de umidade nao dava sinais de futuras chuvas, ¢ interveio o poder divino com chuvas copiosas © imediatas, foi um sinal de que o fenémeno se dava ese distribuia pela forca do milagre (IRs 18,45). Deus é 0 autor dos relampagos e trovoes habituais. Mas quando no monte Sinai aconteceram de modo inusi tado, sem que as vozes deixassem de se ouvir devido a0 ruido generalizado, mas para que 0s preceitos divinos fossem proclamados por meio desinais inequivoeos, entao também ai se pode concluir que esses fatos eram milagro- sos (Bx 19,16) Quem faz elevar-se a umidade aos cachos de uva através da raiz da videira e produz 0 vinho, senao Deus ‘dé o crescimento, quando o homem planta ¢ rega? na indicagio do Senhor, a qua se co .0 de modo instantaneo, até insensatos concordam que houve intervencao direta do poder divino(Jo2,9). Quem cobre os arbustosde falhagem eflores, senao Deus? Contudo, quando floresceua vara do sacerdote Aardo, fai a divindade que se faz ouvir deste modo inusitado ao homem que duvidava (Nm 17,8). Para a geragio e formagio de todas as arvores e dos corpos de todos 08 animais a matéria-prima da terra é a mesma. Mas quem a faz a nao ser aquele que ordenou que a terra a produzisse? (Gn 1,24). E quem com sua palavra governa @ administra tudo o que criou? Mas quando transforma a ™ {tureza fazendo da vara de Moisés uma serpen- te, instantanes e rapidamente, entao se diz que houve milagre (Ex to é, mudanga do ser, mas inusitada, Quem, pois, vivifica todos os seres viventes, senao aquele que, atendendo a necessidade do momento, dew uma vida aquela serpente? 128 onibate caPituLo6 A irregularidade do milagre 11b, E quem restituira a vida aos eadéveres, quando o8 sm, a nao ser aquele que da a vida aos corpos nos titeros maternos, para o nascimento dos mor- modo regular, por assim di- s as profundezas para a super- ficie, da superficie para as profundezas, dizemos que € natural. Quando, porém, tais acontecimentos se apresen- tam aos obsevadores em desusada mudanca para servir de aviso aos homens, entio, os denominamos milagres. capitulo? Milagres e magia 12. Peresbo aqui a pergunta que poderia ocorrer &s inteligéncias débeis: por que podem esses bém ser feitos através de artes magicas?” Pois os magos do faraé produziram também serpentes ¢ coi Ihantes (Ex 7,12). Mas é ainda mais digno de admiragao ‘como péde falhar o poder dos magos, que foi capazde fazer aparecer as serpentes, mas nao se manifestou, por exen plo, no aparecimente das pequeninas moscas. Tratava-se de mit mosquitos que afligiram 0 soberbo povo egipcio na terceira praga (Ex 8,13) Quando os magos falharam, disseram: O dedo de Deus estdé aqui (Bx 8,15). O que da a entender que nem mesmo 08 anjos rebeldes e as potestades aéreas, lancadas, fora das moradas da pureza eterna e sublime as profundezas tenebrosas, como para um cércere “sui LIvRO NIE 124 generis”, por cujo poder as artes magicas fazem alguma coisa, nada podem realizar se nao Ihes for dado do alto 0 poder necessario. Esse poder é outorgado as vezes para enganar os que querem enganar, como foi dado contra os egipcios ¢ mesmo contra os proprios magos, para que, iludidos em seu espirito, parecessem ser objeto de admiracao, quando na realidade foram vencidos pela verdade de Deus. Ou- tras vezes, esse poder é concedido como admoestagdo aos figis, para que nfo desejem fazer tais coisas como 0s exemplos a nds referidos pela autoridade das Escrituras; ou ainda, para que os justos tenham oportunidade de provar e manifestar sua paciéneia. Com efeito, foi pela enorme forga de milagres visiveis que J6 perdeu tudo 0 que tinha, seus filhos e a propria satide (J6 Le 2). 0 Criador eas artes mdgicas 13, Nao devemos acreditar que a matéria das coisas isiveis obedeca & vontade dos anjos decaides. Obedece a is, do qual procede esse poder na medida que julea ops yermanecendo ele imutavel no seu trono eleva doeespiritual, Adgua, ofogoea terra server aos impuros ‘ondenados e com esses elementos podem eles fazer co que querem, enquanto lhes for permitido por Deus. ‘Aos anjos maus nao se pode dar o nome de eriadores, pelo fato de terem feito ras e serpentes, quando os magos desafiaram Moisés, 0 servo de Deus, pois eles nao as criaram. Encontram-se ocultas nos elementos corpéreos domundo umascomo que sementes de todasas coisas que vyém nascer com um corpo visivel. Umas sao perceptiveis a nossos olhos como quando se trata de frutos ¢ de seres 125 518 animados; outras, porém, so sementes ocultas com as quais a agua, por ordem de Deus, produziu os primeiros peixes e aves; © a terra, as primeiras plantas ¢ os primei- ros animais no seu género. Ainda nao foram criados desses sémens tantos seres a ponto de se esgotar a sua forga fecundante, Muitas vezes, faltam as condicées ade- quadas de temperatura que favorecam sua eclosdo,e suas ‘espécies vem entao Assim, a peg tada na terra com os devidos cuidado: arvore, A delicada se diminuto, mas perceptivel, do mesmo género, A semente, porém, desse grdo, embora nao 0 possamos ver com os, olhos, podemos, no entanto imagina-la, Se ndo houvesse uma forea nesses elem e ia muitas vezes, tos, nfo na da terra, como acontece, com 0 que ai nao foi semeado; e nem nasceriam tao numerosos animais sem a cépula de machos e fémeas, tanto na terra como na agua; os quais, contudo, erescem e copuilando do novas crias, ainda que tonham nascido da cépula de seus pais. As abelhas concebem nao pela uniao sexual, mas recolhendo com a bocao sémen espalhado pelo chao. Ocriador dassementes, invisiveis 6 também o criador de todas as coisas, pois tudo oque nasce e se mostra a nosso rocebe de sementes invisiveis o principio de seu desenvol ereceb com as regras do principio da criacao. Assim como nao denominamos 0s pa homens e nem dizemos que as agricultores dos frutos da terra, embora Deus atue interiormente, humanos exteriores para criar essas coisas, do mesmo modo nao se podem conside- rar eriadores 08 anjos, sejam os bons sejam os maus, se devido a subtileza de seus corpos ¢ sentidos conhecem as razdes seminais desses elementos que nos sao desconhe- LivRo mt 126 cidas ¢ as distribuem ocultamente de acordo com as temperaturas adequadas, Favorecemassim a geragao dos seres e aceleram seu crescimento. ‘Mas nemos anjosbons podem fazer essascoisasanao ser por ordem de Deus; nem os maus as fazem por maldade, a nao ser na medida que Dous 0 permite, A alicia do iniquo torna perversa a propria vontade, n nao recebe um poder superior a ndo ser por justica, para castigo préprio ou de outros; ou para a punigae dos maus a gloria dos bons. 14, 0 apéstolo Paulo, distinguindo a agio de Deus, que intrinsecamente cria ¢ produz, do trabalho das eriaturas que atuam extrinsecamente, assim afirma, servindo-se daatividade agricola como comparacao: Eu plantei, Apolo regou, masera Deus quem fazia erescer (1Cor 3,8). Portan- to, como na vida somente Deus pode elevar nossa alma pela justificagdo, enquanto no exterior os homens podem pregar o Evangelho—e snte os bons por meio da verdade, mas também 0s maus ocasionalmente (Fl 1,18) — assim é Deus quem eria ocultamente as coisas visiveis. E assim como se utiliza da agricultura para que a terra produza, Deus, na natureza das coisas por ele criadas, vale-se d ies exteriores dos bons ou dos maus, as diferent Por tudo isso, nao € certo dizer que os anjos maus, invocados nas artes magicas, tenham sido os criadores das serpentes; assim como nao ¢ exato afirmar que homens maus sejam os criadores dos frutos da terra, jam estes 0 resultado do seu trabalho, 15. Podemos dizer o mesmo do patriarea Jacs. Nao foi a criador das cores no seu rebanho pelo fato de ter posto varas listradas diante das fémeas nos bebedouros no momento da concepeao (Gn 30,25-43). Nem as ovelhas wt an foram criadoras da variedade de cores de seus cordeiros pelo fato de a visio em diversas cores ter-se entranhado nas suas almas ao deparar as varas de cores variadas, as quais, pela sua diver: mado pelo espirito, igualmente influenciado, Assim se transmitiram as cores & vida embrionAria dos fetos, Leis naturais fazem com que se influenciem mutuamente a alma no corpo otto corpo na alma, leis estas existentes de modo imutavel na sab Deus, impossivel de se cireunscrever em qualquer espaco ou lugar. Sendo a Sabedoria, nao deixa, contudo, de atuar em tudo que é sujeito A mudanca imutavel, j4 que por ela tudo foi criado.!® © fato de terem nascido ovelhas de ovelhas e nao varas, foi obra da inteligéncia imutavel e invistvel da sabedoria de Deus que tudo criou, O fato, porém, de que a cor se tivesse transmitido aos cordeiros concebidos, devidoa variedade de coresdas varas, foi obrada alma das ovelhas prenhes, influenciadas exteriormente pelos olhos wortadoras de uma regra para a forma- dodo feto, que obedeceu & sua natureza, regra esta alas da pelo poder misterioso do seu Criador. Muito, porém, js falou e ereio ndo ser necessério e sensivel da substancia e seu modo de ser, seu ntimero e sett peso, fatores que determinam sua existéncia en reza, devem-nos a Vida Inteligente e Imutavel, que trans- cende todo o criado e atinge até os confins da terra ar 0 fato referente a Jaes ea seu rebanho, para que se entenda que, se ohomem que ode denominar criador das cores nos cordeiros e cabritos, nem o poder a alma das maes que transmitiram a variedade de cores pela concepgio de 128 acordo com sua natureza. Muito menos se podem denomi- nar criadores das ras e das serpentes os anjos maus, que se serviram dos magos do faraé para as fazer. capiruLos Deus, causa primeira e universal 16. Uma coisa 6, pois, criar e governar a criagiio como de um centro intime e sumo de todas as causas, 0 que pertence somente a Deus; outra coisa é realizar uma sxternamente de acordo co to, desta ou criou. Todos os seres ja forarn criados originaria e primor- dialmente com determinada estrutura de elementos pre- istos e predispostos que se manifestam ao surgirem as oportunidades. Assi as maes ficam gravidas de seus filhos, assim o cosmos esta gravido de causas germinais.® Tais causas sdo criadas pela esséncia divina na qual nada nasce, nada morre, nada comeca, nada deixa de existir. ente o8 anjos maus, mas também os homen rais, podemcontudo ser empregadas de acordo com asleis da natureza. Assim, 0 que esta escondido no seio da compe e de certo modo surge ao exterior, para o desenvolvimento das medidas, dos mimeros e dos pesos que dele receberam ocultamente 0 qual dispde todas as coisas com medida, mimero e peso (Sb 11,20).!¢ 17. Nao se pense diferentemente a respeito dos animais pelo fato de pertencerem a outra ordem ¢ terem um 129 9.68 espfrito de vida com possibilidade de desejar o que esta de de rejeitar o que os prejudica, Veja-se a propésito 0 que muitos homens sabem: que a8 iquidos, em determinadas circunstancias, enterrrados, pulverizados ou misturados, provocam o nascimento de certos animais. Quem ousi arrogar-se 0 tit os homens mais perversos podem saber de onde estes ou aqueles vermes ou moscas nascem, por que admirar se 08 anjos maus conhecem, pela subtileza de seus sentidos, os germes maia ocultos dos elementos de onde possam nas- cer ras e serpentes eas fazem aparecer, nao eriar, usar de certos artificios e aproveitando as eportunidades ambientais e propicias? ‘Nao chegam, entretanto, a causar admiragio as coi- sas que os homens fazem E 0s que se admiram do répido crescimento dessas ras e serpentes, surgiram de modo instanténeo, reparem como aque- les corpos s’0 produzidos pelo homem de acordo com faculdades humanas. E 0 que faz com que os mesmos corpos se cubram de vermes em menos temp -se dessas cireunstancias com a mesma dificuldade ‘com que lhes falta subtileza a seus senti 8 powea mobilidade corporal que leva os seus membros terrenos e indolentes agir. Dai que, 8, 0 fato de aproveitarem as causas préximas dos el fécil para realizarem tais obras com 18. Noentanto, ocriador de todas essas formas é somen te aquele que é sua causa primeira. Pois ninguem o pode sendo quem tem em sas maos, como eausa primeira, a medida, 0 niimero e © peso de todas as coisas. E esse é somente 0 tinico Deus Criador, por cujo poder os anjos in 130 fazem o que Ihes é permitido, mas nao podem fazer o que no Ihes é coneedido, Nao ha outra explicagao para o fato de os magos nao terem conseguido fazer aparecer as pequeninas moseas; embora o tivessem com relagao as is € serpentes, ou seja, porque se fez sentir o poder de Deus por meio do Espirito Santo, o que os proprios ma reconheceram ao dizer: 0 dedo de Deus esta aqi © que os anjos podem fazer por sua natureza eo que odem, em virtude de uma proibicao divina, ¢ 0 que nitide mesmo na sua condieao natural, ao 6 dificil verificar, ossivel, a nao ser por forca daquele dom divino do qual faz mencao 0 Apéstolo, a0 dizer: « outros & dado o discernimento dos espiritos (Cor 0). Sabemos, pois, que o homem pode andar, poderia se nao the fosse permitido; mas nao maus podem fazer certas coisas, se lhes for permitido pelos espiritos superiores a eles, a mando de Deus; outras coisas nao podem, também se thes for permitido por esses, espiritos. permite aquele do qual se origina seu modo natural de agir,e o qual com freqtiéneia nao permite que o5 anjos fagam muitas coisas, inclusive Ihes tenha concedido 0 poder. capfn10 10 Acriatura na funcdo de figura. A eucaristia 19. Os fendmenos que se sucedem no transcurso ordina- rio dos tempos na ordem natural, tais como o surgimento eo.acaso dos as geragées ea morte inumeraveis variedades de sementes e germes, e as nuvens, a neve eas chuvas, 08 relampagos e trovoes, 1019 © 0 granizo, os ventos e 0 fogo, 0 frio e o calor outros semelhantes, tém sua causa primeira na vontade de Deus. O mesmo se diga dos fenémenos que ocorrem raramente na mesma ordem natural, tais como 08 eclip- ses, oaparecimento de astros desconhecidos, os monstros, 08 terremotos e outros semelhantes, de alguns dos quais 0 salmo faz mengdo, ao dizer: 0 foxo, 0 granizo, a neve, 0 vento impetuoso (Sl 148, lagres ou sinais,¢ que ‘a anunciar algo 20s nossos sentidos da parte de Deus, ainda que a pessoa de Deus néo esteja manifestada nesses fatos em que 0 Senhor Deus nos anuneia sua veres na pessoa de um anjo, outras ver ndiog a de um anjo,embora esteja a servico dele. se revela em figura que vezes um corpo ja existente, manifestacio; outras vezes for despoja logo apés 0 cumnprimento da missao. Assim acon- tece também quando os profetas fazem aeus ordculos: algumas vezes proferem as palavras de Deus em nome proprio, conforme Ihes foi permitido: disse o Senor, ou: isto disse 0 Senhor (Jr 31,1.2) e expressées semelhantes. Outras vezes, sem esses preambulos, revestem-se de certo modo da propria pessoa de Deus, como nesta senten: ca: Eu te instruirei, e ensinarei-te-ei o caminko que deves seguir (S131,8). Desse modo, nao somente com palavras, se 20 profeta a pessoa de Deus para significé-la e dela se servir no ministério da uv n 132 profecia. Assim representava pap. de Deusagu que dividiu seu manto em doze partes, das quais entregou dez a0 servo jo que deveria se tornar rei (IRs 11,30.31). Umas vezes, para expressar o mesmo significado, fj assumida alguma coisa distinta do profeta e que existia entreas coisas terrenas, como aconteceu com Jaeé ao desper- tar apés a visio, considerando a pedra que tinha sob sua cabeca, comosagrada(Gn28,18).Outras vezessiofabricadas figuras das quais, uma tém certo tempo de serpente de bronze levantada no deserto (Nm 21,9),¢como sao também os livros escritos; outras vezes desaparecem a0 se terminar a fincdo, como acontece com o piio destinado a ser consumido no sacramento. !* 20. Mas essas obras séo do conhecimento dos homens, por serem obras suas, e podem merecer honra como coisas, religiosas que siio; néo podem, porém, merecer admiragio como se fossem milagres. O que ¢ feito, no entanto, por meio de anjos, quanto mais dificil e desconhecido, mais causa admiracao, embora para eles sejain agées conheci das ¢ faceis por Ihe serem préprias. Um anjo do Senhor fala a Moisés como se fosse a propria pessoa de Deus, de Jace (Ex » port, j antes: Apareceu-the 0 anjo do Senkor (ib. te, um homem fala na pe povo, eeu te advertirei: 6 Israel, se me ouviss. nhor, teu Deus ($180, anjo(Ex 7,10). E ainda que o homem ca- mplespedraserviu como finalida- (Gn 28, 18: 0 sono de Jacé, em Betel) ire a ago do anjoe a aco do homem. A do anjo desperta a admiracao além da percepeao, enquanto a do homem somente suseita a per- de simbéliea de Deu: 138 cepeio. Talvez, o significado de ambas sejao mesmo, mas os sinais sao diferentes. E como se o nome de Deus estivesse escrito a ouro ou & tinta, Ora, se o cure é mais precioso e a tinta mais vil, em ambos os casos, porém, 0 significado é 0 mesmo. Embora tenham tido o mesmo simbolismo: a vara de Moisés, transformada em serpente, e a pedra de Jacé, onde adormeceu, esta é mais significativa do que as serpentes dos magos. Com efeito, a uncaio da pedra repre- senta a Cristo na earne mortal, na qual foi ungido com 0 éleo da alegria de preferéncia a seus compank 44,8). A vara convertida em serpente por prefigurava 0 mesmo Cristo, mas feito obediente até A morte de cruz (Fl 2,8). Por isso, ele mesmo disse: Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessdrio gue seja levantado o Filho do Homem, a fim de que todo aguele que crer tenha nele a vida eterna (Jo 3,14.15). ‘Assim, os que olhavam para a serpente levantada no deserto nao pereceram pelas picadas das serpentes (Nm 21,9). Pois ao dizer do Apéstolo: Nosso velho homer. foi erucificada com ele, para que fosse destruido este corpo de pecado (Rm 6, Aserpente simboliza a morte, introduzida no mundo pela serpente do paraiso (Gn 3,5). E costume assim nos expressarmos, usando uma figura de retérica, em que se emprega a causa peloefeito, Portanto, a vara transforma: da om serpente € Cristo destinado & morte.” Quando a 1a Cristo ressuscitado fim dos tempose ési -auda da serpente que Moisés segurou coma mao para que cla voltasse a ser vara (Bx 4,4). Quanto as serpentes dos magos, mortos deste mundo, os quais, se no ererem em. -trarem em seu corpo como que por ele devorados, nao poderao ressuscitar com Cristo. uivaout 1 Apedra deJacé, comoja foi dito, representa algomais sublime que as serpentes dos magos, embora o feito dos ‘magos teaha causado mais admiragao. Contudo, isso nao impede a compreensio dos sinais, pois como jé dissemos, € como ser o nome de um homem escrito com ouro, e o de Deus, com tinta, 21. Quanto as nuvens e ao fogo, qual o mortal que possa saber como 08 anjos as formaram ou assumiram, para significar o que anunciavam? Ainda que se admita que o Senhor ou o Espirito Santo tenha se manifestado median- te essas figuras corpéreas, ninguém o sabe ao certo. Aasim é 0 que se passa com 08 neéfitos."® ‘que se coloca sobre o altar e é consumido na celebracao do mistério de piedade, ignorando onde e como foi origi riamente realizado, Nem realizam o motivo de ser recebi do numa finalidade religiosa. E se nao aprenderem por experiéncia propria ou alheia, caso nao vejam essas espé. cies sendio quando oferecidas e distribuidas nas celebra- es sacramentais — a ndo ser que alguém com suma autoridade Ihes ensinar de quem 6 corpo e aquele sangue — pensardio que 0 Senhor apareceu aos olhos dos mortais naquelas mesmas espécies e que foi do lado sangue Considero, de muito proveito lembrar a debi- lidade de minhas forcas e advirto a meus irmaos de se recordarem das suas, para evitarem que a frac capacidade para penetrar com meus olhos, nem esclare- cer com seguranga de raeiocinio, nem compreender com a forca da inteligéncia a ponto de poder falar, como se fosse um anjo, um profeta, ou um apéstolo, sobre o modo 05 anjos realizam tais prodigi trono misterioso do seu sublime império 08 faz, por meio 135 de seus anjos — e até por meio dos anjos maus — seja perimitis mandando, seja obrigando-os, Assim diz a Escritura: Porque 0s pensan timidos, e incertas.as nossas providéncias; q rrompe, torna pesada a alma, ¢ esta morada terrestre abate o esptrito que pensa muitas coisas. E com dificuldade compreendemos 0 que hi na terra, & com trabatho descobrimos o que temos diante dos olhos. Quem Firmado, porém, no Espirito de Deus, que nos foi enviado dos eéus, ena sua graga derramada em nossa nteligéncia, ouso dizer confiadamente que nem Deus Pai, nem seu Verbo, nem o Espirito Sai 10. um sé Deus, esto olhos hun isas que sto mutiveis, embora nao visiveis, como sao os nossos pensamentos, a tudo o que é visivel esta sujeito & mudanca, Eis porque a substancia juco que podemos entender sobre o Pai, to Santo, como nao é de modo algum e que nao seja de forma alguma visivel por si mesmo, Livro 1 136 ou As apar santos pairiarcas. Dificuldades sobre o assunto. Apari¢ao de Deus a Abrado e Moisés. Resumo do livro e assunto do seguinte 22. Fica portanto esclarecido que, quando Deus se mani- ava de acordo com sua vontade e as diversas tancias, todas as aparigdes aos patriarcas aconteceram por meio de elementos criados. Se desconhecemos como Deus atuou ao se servir dos anjos que Ihe serviram de ministros sabemos, contudo, que foram efetuadas meio de algum anjo, Afirmamos isso, nao seguin prépria opinido, para nao parecermos muito entendidos, mas de acordo com nosso conhecimento relativo, outorga~ do por Deus, conforme a medida da fé (Rm 12,3), em virtude do qual eremos, e por isso falamos (2Cor 4,13). Existe, com efeito, a autoridade das Escrituras nossa inteligéncia nao se deve desviar, assim como nao deve, deixando de lado osélido fundamen. todaPalavrade Deus, precipitar-se pelos despenhadeiros de suas conjeturas, onde nao ha o comando do pré sentido humanoenem resplandece a lara luz da verdade. ‘Ao demonstrar a diferenca entre a economia do Novo e do Antigo Testamento, conforme a congruéncia dos sécullos e dos tempos, ha um testemunho muito evidente na carta aos Hebreus esclarecendo que 0s anjos foram os autores nio somente daquelas acdes visiveis, mas tam- xém das palavras, Assim esta escrito: A qual dos anjos disse ele jamais: Senta-te a minha direita, até reduza os teusinimigosaescabelo de teus pés? Porventura, nao sao todos eles espiritos servidores, enviados ao servica dos que devem herdar a salvagao? (Hb 1,13.14), Essa sentenca revela nao somente que todas aquelas feitas por meio dos au foram feitas a nosso favor, isto é, do pove de Deus, que 137 niga recebeu a promessa da vida eterna em heranga. Assim esta igualmente escrito na Carta aos Corintios: Estas coisas thes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrugdo; ands que nosencontramos no fim dos tempos (Cor 10,11). Em outro lugar, mostran- do com conseqiiéncia e clareza como naqueles tempos a avra foi dirigida por meio de anjos, e agora por meio do 0, dia: Pelo que importa, observemos tanto mais cuida dosamente osensinamentos que ouvimos para que nao nos transviemos. Pois, se a palavra promulgada por anjos entrowem vigor, equalquer transgressdo.ou desobediencia recebeu justa retribuigéio, como escaparemos nés, se negli- genciarmos tao grande salvagao? E como se lhe pergun- tassemos de que salvagio se trata, diz assim em seguida, indicando que se refere ao Novo Testamento, ou seja, a palayra dirigida no mais por meio de anjos, mas pelo Senhor: Esta comegou a ser anunciada pelo Senhor. Depois, foi-nos fielmente transmitida pelos que a ouviram, testemunhando Deus juntamente com eles, por meio de sinais, de prodigios e de vdrios milagres, e pelos dons do Espirito Santo, distribuidos segundo a sua vontade (Hb 2,1-4), 23. Mas, alguém poder perguntar: Por que esté escrito: disse 0 Senhor a Moisés, e nao: disse um anjo a Moisés? Respondo: quando, no tribunal, o oficial de justia pri nuncia palavras do juiz, nao fica consignado nas atas: “O oficial disse”, mas: “O juiz disse” *” Assim também, quan- do fala osanto profeta, embora digamos: “O profeta disse’ queremos dizer que sio palavras do Senhor. E se disser- mos: “O Senhor disse”, nao elin damos a entender quem falou por meio dele. Alias com muita frequéncia a Escritura mostra queoanjoéoSenhor mesino falando o anjo, esta dito do mesmo modo: “O wr disse", como jd demonstramos. Mas por causa avo mt 198 daqueles que, quando a Escritura fala em anjo, querem entender 0 Filho de Deus, denominado anjo por um profeta, pelo fato de anunciar sua vontade ¢ a do Pai, eu quis aduzir o testemunho claro dessa carta, onde nao esta escrito: “por meio do anjo", mas: por meio de anjos” (Hb 2,2), 24, Bstévao, nos atos dos Apéstolos, narra os fatos no mesmo estilo dos livros do Antigo Testamento, quand: diz: Irmaos e pais, escutai! O Deus da gloria apareceu a nosso pai Abrado, ainda na Mesopotiiia (At 7,2). Para evitar a interpretagao de que o Deus da gléria tenha ‘aparecido na sua esséncia aos olhos dos mortais, d seguida que um anjo apareceu a Moisés: Moisés fugive fot iver no estrangeiro na terra de Madié, onde gerou dois filhos, Decorridos quarentaanos, aparecewlheum anjono deserto do monte Sinai, na chama de uma sarga ardente. ‘Moises ficou admirado com esta visdo. Como avangasse para ver methor, fez-se ouvir a voz do Senhor: Eu sou Deus de teus pais, o Deus de Abrado, de Isaac e de Jac. ‘Todo trémulo, Moisés néo ousava olhar. Entao disse-Ihe 0 Senhor: Tira as sanddlias de teus pés etc. (At 1,29-38). Nesta passagem, chama anjoo Senhor ao mesmo Deus de Abrado, de Isaace de Jacé, como esté escrito em 25, Alguém diré talvez que o Senbor apareceu a Mo’ por meio de um anjo; e a Abrado, pessoalmente, por si mesmo? Nao perguntemos a Estévao; interroguemos 0 proprio livro, de onde Bstévao tirowesta narrativa, Acaso, porque esta escrito: e disse o Senhor Deus a Abrado (Gn 12,1), € um pouco depois: e o Senhor Deus apareceu a Arai (ib. 17,1), vamos concluir que as aparigoes ndo se deram por meio de anjos? Como em outro lugar diz de ‘modo semelhante: E 0 Serhor apareceu a Abratio no vale de Mambré, quando ele estava sentado & porta de sua cia, no maior calor do dia, acrescenta, porém, a seguir: 139 izes E tendo levantado os olhos, apareceram-the trés homens (Gn 18,1.2), Jé comentamos dio (cf Il, 10,19 € 11,20). Como, pois, 0s meus opositores, renitentes em se levantarem das palavras para o sentido, ou em se despenharen nte do sentido para as palavras, poderdo explicar que Deus aparecetu na pessoa dos trés homens, se nao reconhecem que essas personagens eram anjos, conforme no-lo ensina o context? Acaso, pelo fato de naosedizerqueumanjolhef eeu, atrever- se-fo a afirmar que « Moisés a aparigdo ¢ a voz era por meio de um anjo, jé que assim esta escrito, mas a Abraio foi Deus na sua esséneia que apareceu e falou, pois nao se faz nenhuma menc&o de anjo? Mas o que diriam se nao se suse de anjo, mesmo na visio de Abraao? Pois assim reza.a Escritura aodizer que opatriarca se dispésa imolar iho: Passado isto, tentou Deus a Abrado, ¢ disse-the: ao, Abrado! Ble respondeu: Aqui estou. E Deus disse ia Isaac, teu fitho tinico, a quem amas, evaiiuterra da visto, ¢ ai 0 oferecerdis em holocausto sobre um dos montes, que eu te mostrar. Esta c meneao de Deus ¢ nao de anjo. Mas um pouco depois a Eseritura diz: F estendeu a méo, e pegou no cutelo, para imolar seu filho. E eis que 0 anjo do Senhor gritou do c dizendo: Abraéo, Abraéo! E ele respondeu: Aqui estou. {0 anjo) disse-the: Nao estendas a tua mao sobre 0 endo Ihe facas mal algum (Gn 22,1.2; 10,12). ‘© que respondem a isso? Dirao, talvez, que Deus wandou que imolasse Isaac e que o anjo o proibiu, obede cendo o patriarea a0 anjo que o poupa contra o preceito de Deus que ordenara a imolagio? F risivel ¢ abaurda est interpretacao. A Escritura, porém, nao da lugar a esse grosseiro ¢ LAVRO MT uo mim, sende por amor aquele que ordenara imolar? O Deus de Abrado é idéntico ao anjo, ou é Deus que lhe falava por meio do anjo? Veja a seqiiéncia, Embora esteja claramen- te enunciado o anjo, considere 0 que o texto acrescenta Abrado levantou os olhos ¢ viu atrés de si um carneiro preso pelos chifres entre os espinthos e, pegando nele, 0 ofereceu em holocausto em lugar de seu fitho. E chamou aquele lugar:0 Senhor viu. Donde até ao dia de hoje se diz: O Senhor apareceu no monte (ib, 22,13,14), Assim como ‘um Ppouco antes Deus dissera por meio do anjo: Agora conheci que temes a Deus, Nao se entendam estas pala- vras como se entao Deus tivesse conhecido, mas no senti- do de que ele fez com que Abraao ficasse ciente das forcas deseu coragao, a ponto de estar dispostoa imolarseu filho \inico para obedecer a Deus. Trata-se de um modo de expressar em que se toma a causa pelo efeito, como quando se diz. que 0 frie ¢ indolente, porque nos torna preguigosos. Assim, foi afirmado que Deus conheceu, porque fez Abraao conhecer; o qual ficaria desconhecendo a firmeza de sua £6, se nio tivesse passado por aquela prova. Por isso, Abradio denominou aquele lugar:o Senhor viu, isto 6, porque se deixou ver. Pois, est escrito em continuagao: donde até hoje se diz: 0 Senhor apareceu no jonte. O anjo é aqui chamado Senhor, por qué? Porque 0 Senhor fala por meio de um anjo. Na seq oanjo fale ein tom profético e manifesta que Deus fala por ele, a0 dizer: E segunda vee chamou o anjo do Senkor a Al do céu, dizendo: Por mim mesmo jurei, diz 0 Senhor: porque fizeste tal coisa e néo poupaste teu filho tinico por amor de mim, ete, (ib. 22,15.16). Bssas palavras: Isto diz © Senhor, mostram aquele por quem 0 Senhor fala € costumam ser usadas também pelos profetas. 0 Fitho de Deus que dizia do Pai: diz 0 Senhor, sera ele apenas um anjo do Pai? Nao percebem os adversérios que, no caso afirmativo, complicam-se no referente 20s 14 igs trés homens que apareceram a Abrado, dos quais foi dito proviamente: E 0 Senhor aparecew-lhe? (Gn 18.1). Por serem denominados homens, nao seriain talvez anjos? que leiam Daniel onde esta posto: Eis que Gabriel, aquele varao... (Dn 9,22). 26. Mas, por que nao me ponho loge a fechar suas bocas com outro testemunho evidente e de pes trata de anjo no singular nem de homens no plural, mas simplesmente de anjos, por meio dos quaisnéo se trasmi uma palavra qualquer, mas foi dada a prépria Lei? Ora, guém certamente duvida tenha ela sido outor; Deus a Moisés, para submeter o povo de Israel, € que 0 tenha sido por anjos. Eis como fala Estévao: Homens de dura cerviz, ineireuncisos de ouvido e coragao, vds sempre istis ao Espirito Santo! Como foram vossos pais, tais 108 pais ndo perseguiram? na vinda do Justo, aguele ese homicidas, wis que (At 7,51-53). Ha testemunho mais evidente do mento p o por sua autoridade? Pelo ministério ‘anjos, pois, a Lei foi dada ao povo, mas por ela se preparava e se pr sada do Senhor Jesus Cristo, representado de maneira admirdvel ¢ inefav pessoa dos anjos, por cujo ministério o povo recebia a Lei, Porisso, diz o Bvangell m Moises, hat decrer em mim, porque foi a mew respeito que ele escr (Jo 5,46). Portanto, por meio de anjos o Senhor entao falava; por meio de anjos, igualmente o Filho de Deus, futuro mediador entre Deus e os homens, da descendéncia de Abraao, preparava a sua chegada, para encontrar os que oreceberiam, confessando-se culpados, pois que IL 142 observada fizera deles transgressores. Dai, 0 dizer do Apéstolo aos galatas: Para que entao ¢ Lei? Foi posta por causa das transgressbes, até que viesse a descendéncia, a quem tinha sido prometida a promessa, e foi promulgada por meio de um Mediador (Gl 3,19), isto 6, promul pormeio de sua propria mao, Pois, ele nao nasceu por condicao natu- ral, mas por seu pr Atesta outra passagem que o Apéstolo nao se refere aalgum mediador dentre os anjos, mas ao proprio Senhor Jesus Cristo na sua condicao mortal a qual se dignow revestir: Ha um s6 Deus e um si Mediador entre De homens, um homem: Cristo Jesus (1Tm 2,5). Dat, aquela carne ¢ padecer, ¢ de Lei pela boca dos anjos ‘Nas pessoas dos anjos estavam representados o Pai, oFilhoeo Jgumas vezes 560 Pai, outras, 0 Espirito Santo ou o Filho e, finalmente em outras, Deus sem distinglo de pessoas, que apareciam em formas visiveis e sensiveis, servindo-se de uma criatura, nai sua esséncia, a qual, para ser contemplada, é preciso purificar os coragées por meio dessas realidade: 03 olhos véem e os ouvidos escutam, ois ressuscitar, e que 27. Na minha opiniao, considero suficiente o que foi discutido e demonstrado até aqui, de acordo com nossa capacidade, ¢ 0 que nos propusemos mostrar neste livro, Constou, pela probabilidade de meus racioeinios de eria- tura humana ou, melhor, oquanto pude, ¢ pela autoridade inconsussa dos testemunhos divinos das santas Escritu- izia que Deus aparecia aos antigos jes da encarnagao do Salvador, aquelas vozese aquelas figuraseram obras de anjos. Ora falassem M3 nat ou fizessem algo em nome de Deus, como mostrami costume entre os profetas, ora assumissem a forma de alguma criatura que nao lhes era propria, mediante a qual Deus se mostrava simbolicamente aos homens. A Escritura nos ensina com muitos exemplos que este ui 0 de simbolo nao foi omitido sequer entre os pr 1s agora considerar se o Senhor, ao nascer da ‘0 Espirito Santo, ao deseer na forma corporal de 16) e manifestar-se no dia de Pen- es depois da ascensao do Senhor, em Tinguas de fogo no meio do rufdo de um vento impetuos0 (At 2,1-4), 8e ‘© Verbo mesmo de Deus que apare nt Espirito do Pa pela qual Mas sim, de se manter nelas. Trata-se, pois, de ver que diferenca existe entre as manifestagdes de que acabamos de falar € as propriedades do Filho de Deus e do Espirito Santo, apesar da intervenedo de criatu ‘Trataremos essa questo em outro volume, o que seré mais comodo. e do Filho que apareceu em sua esséncia ualdadeecoeternidade com um e outro. LIVRO IV —Expli wa morte pelos pecadores: um sinal de seu amor; sua vinda na carne: uma oferta de meios de salvagao). —Atinica morte de Cristo, salvacao dupla para ohomem. -— Dissertagio sobre o mimero seis. — Cristo, tinico Mediador —Igualdade e desigualdade do Filho e do Espirito Santo, PROLOGO A ciéncia de Deus 1, Ogénero humano s6i ter em grande estima a ciéncia das coisas da terrae as do céu. Levam, entretanto, grande vantagem aqueles que preferem o conhecimento de si mesmos ao dessas ciéncias. E mais dignadelouvora alma que tem consciéncia de sua debilidade do que aquela que nao a tendo esquadrinha o curso dos astros com afa de novos conhecimentos; ¢ mesmo no caso de os eonhecer, ignore qual o caminho da salvacao e da verdadei ranca. Aquele, porém, que inflamado pelo ealor do Espiri- to Santo, ja despertou para Deus e reconheceu no amor divino sua prépria vileza, desejando encontrar o caminho para ele, e nfo podends, reflete sobre si mesmo sob as divinas luzes, encontra-se a si mesmo ¢ percebe que & propria debilidade nao pode ser comparada & pureza de Deus. Por isso, considera-se feliz ao chorar e suplicar a0 Senhor que dele se compadeca mais e mais até conseguir dospoja-lo de toda miséria. E ora com confianga, apés receber gratuitamente o penhor da salvacio mediante 0 ador e procede e chora, a ciéncia ndo incha, porg edifica (1Cor 8,1). Antepds a Ciéneia & ciéneia; preferiu conhecer sua prépria limitacdo a conhecer as barreiras do mundo, os fundamentos da terra e 0 cimo dos céus. Ciéncia, foi dominado pela nostal 2 nostalgia do perog: chegar & sua patria para junto de seu bendito Criador ¢ Deus. Senhor meu Deus, se como membro do género hun no e da tami dé-me de teu pao para o partir com os em fome nem sede de justiga (Mt 5, ram-se saciados e vivend Saciaram-se com as proprias ilusées e nao com a tua rrdade, da qual se desviaram recusando-a, para sucum- biresn na vaidade. Certamente, eu tenho experiéncia de quantas fantasias é capaz de criar ocoracaohumano! Ora, 0 que é meu coracao a nao ser um coragio humano? Mas eis 0 que pego ao Deus do meu coragéo: nao permita que nestes meus escritos nenhuma de minhas fantasias substitua a certeza ea sélida verdade; mas que pois conside- por meio de mim, Assim, a aura da sua verdade se derrame sobre mit, esteja excluido para longe de seus 30,23) e que mesmo de longe tente voltar pelo caminho tracado pela divindade de seu Unigénito através de sua humanidade. Enquanto me € Heito quero beber dessa Verdade na qual nada vejo de mutavel, nem quanto ‘a0 espace nem quanto ao tempo, como acontece com os corpos; nem mutiavel quanto ao tempo, ¢ com re! \gar, como acontece com os pensamentos de nossa men- te; nom exclusivamente mutavel quanto ao tempo, sem imagem alguma de lugar, como sa00s raciocinios de nossa intelig a7 w Com efeito a essséncia de Deus, pela qual ele existe nada tem de mutavel, nem em sua eternidade, nem sua verdade, nemem sua vontade, Porque nele a verdade 6 eterna, e eterno 0 seu amor; nele o amor 6 verdadeiro e verdadeira a sua eternidade; nele a eternidade ¢ amar e amével a sua verdade.* no conhecimento da propria fraqueza, O carnado, luz em nossas trevas 2, Ainda que exilados do gozo imutavel, nao fomos le exeluidos e privados a ponto de ni podermos procurar a eternidade, a verdade ea fe nas coisas mutaveis © temporais, pois ndo queremos morrer, nem set enganados, tampouco ser pertubados, Deus nos envia sinais adequados ao nosso carater de peregrinos os quais nos advertem que nao se nvereer-nos a nds mesmos do quanto Deus nos ama para nao perdermos 0 \os levar pela de: nossos méritos, dele nos afastdssemos e mais desfaleces- sem as nossas forcas. ‘Tratou-nos pois de tal modo que pudéssemos progredir pela cua fortaleza na virtudeda ca- ridadee esta se aperfeicoasse na fraqueza da hum Eo que esta indicado no salmo, onde se 1é: 0 Deus, tu enviaste uma chuva gratuita sobre a tua heranca; e, estando esta extenuada, a reanimaste (S\ 67,10).*Chuva, RoW 148 gratuita” quer dizer a sua graga, concedida gratuitamen- .0 em atencao a nossos mereeimentos; dai a nacdo “graga”.* Ele no-la dew néo em atencao a nossa dignidade, mas porque foi de sua vontade. Cientes disso, depositaremos em nds toda confianea, pois isto signi fica tornar-nos fracos. Contudo, fortalece-nos aquele que se a0 apéstolo Paulo: Basta-tea minha graca, pois é na fraqueza que a forca manifesta todo 0 seu poder (2Cot 12,9). Era mister que os homens se convencessem do quanto Deus nos amou e do que éramos quando nos amou: para que nao nos desesperen para nao nos ensoberbecermos. O Apéstolo eselarece essa passagem, ao dizer: Mas stra seu amor para conosco pelo fato de Cristo 135 € “o que Quanto mais, enido, agora, justificacos por seu sangue, seremos Por ele salvos da ira. Pois, se quando éramos conciliados com Deus pela morte de sew Filho, muito mais agora, uma vez reconciliadas, seremos salvos pela sua vida (Rin 6,8-10). Eem outro lugar: Depois disto, que nos resia a dizer? Se Deus est conosco, quem estar contra nds? Quem ndo u proprio Filho, € 0 entregou por todos n6s, 10 nos haverd de ‘agraciar em tudo junto com ele? (ib, 8,31.32). O que ands éanunciado como realidade, aos antigos justos o foi como #6 thes mostrasse a fraqueza 3. Bum s6 0 Verbo de Deus que tudo eriou e que é a verdade imutavel. Por isso, nele, prineipalmente e de modo imutavel, esto todas as coisas, nao somente as que agora existem nouniverso, mas as que existiram eas que existirdo. Melhor dizendo: nele nao existiram, nem exis- tirdo, mas apenas existem;e tudoévida,etudoé unidade, fe quanto mais unidade, mais perfeita é a vida. Desse 9 1324 modo, tudo por ele foi eriado, ¢ tudo o que existe é vida nele, mas a Vida nao foi criada, pois no principio o Verbo nao foi eriado, mas era Verbo junto de Deus 0 Verbo era Deus, e tudo por ele foi eriado (lo 1, teriam sido feitas por ele, se ele nao existisse antes de todas as coisas e se nao fosse a Vida ineriada Entre as coisas criadas por ele, também o seu corpo, que ndoé a Vida, nao teria sido feito por ele, se nele jé nao fosse vide, antes de ser feito. O que foi eriado, ja era vida nele, nao uma vida qualquer, pois a alma é a vida do corpo, mas foi criada, e por issoé mutavel. E quem acrion, sendo 0 Verbo imutavel? Pois, tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito de tudo 0 que existe, Portanto, 0 que foi feito, jaera vida nele, e nao qualquer vida, masa vida era a luz dos homens: luz das inteligéncias racionais, as quais estabelecem a diferenca entre os homens ¢ os animais ¢ pelas quais s4o homens. Nao era, portanto, uma luz rea, comoa luz dacarne,a que brilhanocénowa que 6 acosa nas fogueiras da terra; nem a luz dos seres humanos ou dos animais, inclusive dos menores vermes, Todos esses seres veem essa luz corpérea, mas aquela Vida era a luz dos homens, ¢ nio esti longe de nds, nela tomos a vida, o movimento e 0 ser (At 17,27.28 capituLo2 Aeencarnagao e 0 conhecimento da verdade 4. Ea luz brilha nas trevas, mas as trevas néio @ apreenderam (Jo 1,5). As trevas sao as mentes dos ho- mens insensatos, cegadas pelas mis concupiscéncias ¢ pela infidelidade. Foi para as curar e sarar® que o Verbo, pelo qual tudo foi feito, se fee carne e habitow entre nds (So 1,14), Pois nossa iluminacao é urna partieipagao no Verbo, uvro rv 150 isto 6, aquela vida que éa luz dos homens." A imundicie de nossos pecados tornava-nos menos idéneos ou totalmente indbeis ae ficados. Ora, a tinica purificacao eficiente para os iniquos 08 soberbos ¢ o sangue do justo ea humi Deus. Para chegarmos & contemplagao de Deus —- 0 que nao podemos conseguir pela natureza — deviamos ser pi cados por aquele que se fez.o que somos por natureza, © 0 que somos pelo pecado. Com efeito, nao somos Deus por natureza; somos homens; e nao somos justos devido ao pecado. Assim, Deus feito homem justo, intercede junto a Deus pelo homem pecador. Se o pecador nao se coaduna com o justo, ha contude harmonia entre o homem e homem, Acrescentando pois a nossa semelhanga de sua humanidadeoFilhode Deusdespiu-nos da dessemelhana de nosso pecado, E tornando-se participante de nossa mortalidade, fez-nos participantes de sua divindade.” A morte do pecador, merecida pela condenagio, foi expiada pela morte do justo, dadiva de sua misericérda, Assim, a simplicidade de Deus harmonizou-se com nossa duplicidade. Em toda uniao, ou se for melhor dizer, er toda harmonia na criacao, é de imenso valor essa conor. dancia, conciliagao ou correspondéncia, ou que se empre- gue outro termo mais adequado que signifique a relacio do uno com 0 duplo. Quis referir-mne com essa concordan cia ao que os gregos denominam “armonia”, termo este que 86 agora me ocorre. Mas néo Aiscorrer sobre a importancia dessa concordaneia do sim- ples com o duplo, a qual se eneontra em nds e forma pa de nossa natureza. E por quem foi em nés inserida, senao por aquele que nos eriow? E-nos tao infu que até os ignorantes a percebem quando ouver cantar. Pois ela harmoniza as vozes agudas graves de tal modo que na sua falta, muito se ofende nao somente a arte, da qual no ha muitos peritos, mas 36 entido da audigao. Para demonstré-lo lado essa harmonia pode facilmente ser pereebida pelo proprio cuvido de quem conhece a arte de tocar um monocérdio, caPiTULos Atinica morte de Cristo e nossa dupla morte ¢ ressurreiggo 5. Urge explicar agora, na medida que Deus 0 permitir, como o 0 Senhor Jesus Cristo se harmoniza 1 a nossa duplieidade e como nos dispée para a salva- edo. Nenhum cristo duvida que nés morremos na alma e no corpo: na alma, pelo pecado, e no corpo, como pena do pecado e, portant causa do pecado. A ambas as realidades, ou seja, & alma e ao corpo, tornavam-se neces- sarios o remédio e a ressurreicdo para renovar pi melhor o que se deteriorara. ‘A morte da alma é a impiedade e a morte do corpo a corruptibilidade, pois causa a separacao da alma de seu corpo. Assim como a alma pelo abandono de Deus morre, também o corpo morre pelo abandono da alma. A alma torna-se insensata, e ocorpo, exinime, A alma ressuscita pela peniténcia e no corpo ainda mortal a renovacio da vida tem inicio pela fé, pela qual se ac Rm 4,5), fortalece-se e cresce dia a dia pelos bons costumes, & medida que mais e mais se renova o homem interior (2Cor 4,16). ‘0 corpo, porém, que é o homem exterior, quanto mais duradoura sua vida, mais e mais se corrompe pela idade, pelas doencas ou devido aos sofrimentos, até chegar as tiltimas, por todos denominada, como morte. Sua ressur- uvRoiy 152 reigdo, contudo, é adiada para o fim dos tempos, quando nossa justificagdo aleancar a plenitude de modo inefével. Entao, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal qual é(1Jo 3,2). Mas agora, enquanto o corpo corruptivel, € um peso para a alma (Sb 9,15) e a vida humana é tentagdo continua sobre a terra (J6 7,1), nenhum vivente 6 justo na presenca de Dous (SI 142.2) em comparagao & justiga, que nos equipararé aos anjos e a gloria que se revelara em nés. Sobre a diferenca entre a morte da alma e ado corpo, niio ha necessidade de invocar muitos testemunhos, ‘a mostrou o Senhor numa tinica frase, quando diss; Deixai que os mortos sepultem seus mortos (Mt 8,22). 0 corpo morto deve ser sepultado, mas ele quis dar a entender que os sepultadores estavam mortos na alma polo pecado e sua infidelidade. Sao despertados dessa morte quando ouvem: O tu, que dormes, desperta e levan- ta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminard (E5,14). O Apéstolocensura tipo semelhante de morte aofalar sobre uma vitiva: Mas aquela que s6 busca prazer, se vive, Lid esté morta (1m 56). Por isso, costuma-se dizer da alma antes impia, agora santa, que ressuscitou da morte la justiga da fé eest4 viva. O corpo, porém, ha demorrer \8o somente pela separagao da alma, o que acontecer4, ‘mas pela sua extrema fraqueza decarnee sangue,confor- me uma passagem da Escritura. Fo Apéstolo quem diz: O corpo este: morto pelo pecado, mas o espirito é vida pela justica (Rm 8,10). Ora, essa vida 6 resultado da fé, pois 0 justo vive da f6 (ib. 1,17), Mas, o que diz ele em se: E se o Espirito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dard vida também aos vossos corpos mortais, através de seu Espirito que habita em v6s” (Ib 8,11). 6. Portanto, & nossa dupla morte nosso Salvador aplica sua tinica morte ¢ para levar a efeito nossas duas ressur- 158 a6 reigdes, antepds e prop6s como sacramento ¢ exemplo sua inica ressurreigao" Pois ele nao foi pecador e impio para necessitar de renovacao em seu homem interior, como se seu espirito fosse morio e qui vida da justica por ima espécie de peniténcia. Revestido, porém, da carne mortal e morrendo apenas como homem como homem ressurgindo, sua tinica morte ajustou-se a nossa dupla morte, visto que nela se realiza o sacramento do homem interior ¢ o exemplo de homem exterior. Com efeito, foi para servir de sacramento a nosso homem interior e para significar a morte de nossa alma que se levantou wa cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me abendonaste? (S1 21,1 ¢ Mt 27, ‘A essa vor. ajustam-se bem as palavras do Apéstol Sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destrutdo este corpo de pecado, ¢ assim nao sirvamos mais ao pecado (Rm 6,6). Ora, a crucificagao do homem interior éconstituida pela dor da peniténciae pela salutar mortificagao da continéncia, E por essa morte que se destréi a morte da impiedade na qual Deus nos deixou. Portanto, por essa crucificagao é aniquilado o corpo de pecado, para que nao entreguemos nossos membros 20 pecado como armas da injustiga (ib. 6,13). Pois, se 0 homem interior se renova dia a dia, é poraue era velho antes da renovacao. No interior, com e! que diz o mesmo Apéstolo: Despojai-vos do homer velho € revesti-vos do novo, o que em seguida exp! iss abandonai a mentira e falai a verdade (Ef 4,25). Com: porém, abandonar a mentira seno no interior, para que habitar possa no monte santo de Deus aquele que fala a verdade no seu coragdo? (SI 14.1.3) A ressurreiedo do corpo do Senor diz respeito ao ito da nossa ressurreigaio interior; 6 o que est explicito quando ele disse &quela mulher depois da res- sun ‘Nao me toques, pois ainda néo subi ao Pai 154 n esse mistério as palavras do itastes com Cristo, procurai as 'sdo alto, ondeo Cristoestd sentado te direita de Deus. Pensai nas coisas de Deus (Cl 8,1-2). Nao reter a Cristo 9 modelo da morte de nosso homem exterior, pois tendo em vista essa morte, exoriou seus servos a nao temerem oa que matam ocorpo, mas nao podem matar a alma (Mt 10,28). Por isso, diz 0 Apéstolo: Completo na minha carne o que fatta das tribu lagdes de Cristo (Cl 1,24). E ao modelo da ressurreieao de nosso homem interior relaciona-se a ressurrei de Cristo, pois disse aos apéstolos: Te Deu toda integridade ficou demonstrada a realizacio daque- las palavras em que, exortando os seus, dissera: Nem um 86 cabelo de vossa cabeca se perderd (Le 21,18). Com efeito, por que diz ele primeiramente: Nao me 6 ainda nao subi ao Pai (Jo 20,17), € se deine ear pelos discipulos antes de subir ao Pai, senao porque nna primeira vez, a-se 0 Sai interior e depois se apresentava o modelo do homem exterior? Havera alguém tao ignorante e t a verdade que chegue a dizer que se deixou tocar pelos homens antes de subir ¢ pelas mulheres tao-somente depois de subir? ‘Tendo em vista esse modelo de nossa futura ressur- seigéio no corpo, na qual Cristo nos precedeu, € que diz 0 Apéstolo: Como primicias, Cristo; depois, aqueles que pertecem.a Cristo (1Cor 15,23). Falava, pois, nessa passa- gem da ressurrei¢do do corpo; , como confirmagio, diz bém: Transfigurard o nosso corpo humilhado, confor- ‘mando-o a sew corpo glorios 21) Portanto, a tiniea morte de nosso Salvador serviu de remédio para as nossas duas mortes. E sua tinica ressur- reigdo garantiu-n 8 ressurreigdes, pois seu Corpo em ambas as realidades, ou seja, na morte e na ressurrei- cao, foi apresentado como o remédio adequado ao sacra- mento do nosso homem interior e ao modelo do homem exterior. cap LO 4 Perfeigao do ntimero seis. Ctrewlo sendrio do ano, 7. Arelacio de um para dois tem sua origem no trés. Com ofeito, um mais dois sao trés, mas o to’ ditos mimeros faz-nos chezar a seis, jé que um mais dois, porque ¢ completo em suas partes. Ene artes: a sexta ¢ a terceira partes e a metade, e nele nao existe outra parte equivalente a estas. Sua sexta parte ¢ do; ate: juivale a duas; e a metade, a trés. Oum, o dois eo trés . ‘A Sagrada Escritura insinua essa perfeigao prinei- palmente pela fato de Deus ter feito todas as suas obras seis dias e no sexto dia ter criado o homem & sua imagem (Gn 1,27). exta era do género human 0 Filhoe se fez filho do homem para nos de Deus. Ainalmente vigora essa er ‘os anos em milénios, quer acompanhemos, como divinas Escrituras, as fases dos tempos memordveis © insignes. Desse modo, a primeira era abrange de Adao a Noé; a segunda, até Abraao; e assim por di

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