A Psicologia Junguiana Aplicada em Instituições
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A Psicologia Junguiana Aplicada em Instituições - Luís Gustavo Vechi
1
PARA COMEÇAR
Neste livro, desenvolvo um tema que há muito me acompanha na prática profissional e na produção intelectual, ou seja, o tema das instituições¹ (VECHI, 1995, 2002, 2003, 2004a, 2004b, 2008; VECHI; CHIROSI; PRADO, 2017).
1.1 A psicologia junguiana e o estudo de formações coletivo-sociais
Embora tenha feito estudos sobre religiões e ciências, entre outros, Jung preocupou-se menos com o nível macro
das sociedades e os sistemas simbólicos destas do que com símbolos no nível micro
da pessoa (JONES, 2003). Jung considerou, em muitos momentos de sua produção, o social impedimento para o desenvolvimento do indivíduo (ZINKIN, 1998a).
Desse modo, ainda há um incipiente emprego das contribuições da psicologia analítica nos estudos de formações sociais e culturais, como as instituições (BOWLES, 1990; BROWN; CORLETT, 1996; JONES, 2003; MITROFF, 1983; SAMUELS, 1995, 2002; ZINKIN, 1998a, 2000). Essa afirmação é especialmente válida, se for considerado o espaço já conquistado pela Psicanálise (BLEGER, 2003; GUIRADO, 2004, 2006; KAËS, 1991) no campo de estudo institucional.
Apesar da restrita publicação junguiana a respeito das formações coletivo-sociais, houve espaço para a produção especificamente sobre instituição. Labriola (1999) sistematizou a produção de autores institucionalistas e a psicologia analítica. Salvador (1995) fez um estudo de uma instituição com base no referencial de Jung. Apesar das contribuições desses estudos, eles se diferenciam da proposta deste livro, que é a de sistematizar um método para a pesquisa em instituições.
Houve também espaço no contexto junguiano para a produção sobre grupo. Whitmont (1964, 1991) teorizou sobre o trabalho em grupo pelo enfoque de Jung, assim como Boyd (1991), Boyd, Kondrat e Rannells (2016), Fiumara (2006), Freitas (1995, 2005), Hobson (1964), Simão e Freitas (2020) e Willeford (2006).
Singer e Kimbles (2004a, 2004b), ao introduzirem o conceito de complexo cultural, criaram uma vertente de estudos junguianos sobre formações coletivo-sociais.
O estudo de complexos culturais na Austrália e na América Latina foram objeto de publicações organizadas por Singer (2011, 2012). Esse autor (SINGER, 2020a) também abordou diferentes aspectos da interface entre psique e cultura norte-americanas, por exemplo, a mudança climática, o preconceito racial, a biomedicina, a imigração, entre outros. Singer (2020b) organizou publicação sobre complexos culturais em Taiwan, Japão, Coreia e China.
Brewster (2020) propôs o estudo das questões raciais nos Estados Unidos mediante conceito de complexo racial, que foi estabelecido em diálogo com o conceito de complexo cultural.
Tancetti e Esteves (2020), com o conceito de complexo cultural, investigaram o racismo brasileiro, e Silva (2019) fez recentemente uma ampla revisão e discussão sobre esse constructo teórico.
Freitas (2009), sem lançar mão do conceito de complexo cultural, fez extensa revisão do pensamento junguiano acerca do tema cultura.
Bassil-Morzow (2014), pela perspectiva da psicologia junguiana, sem enfocar especificamente o tema da instituição, discutiu as formações coletivo-sociais num sentido amplo, considerando diferentes ideologias políticas, sistemas sociais, movimentos de massa, entre outros tipos do que a autora denominou autoridade
.
Essa autora teorizou a respeito do papel do arquétipo trickster na promoção de mudança no contexto social marcado por formações coletivo-sociais que buscam a repetição de uma normalidade homogênea e da semelhança em detrimento da diferença.
Nesses termos, examinou ainda a questão da formação da identidade pessoal e seus conflitos decorrentes do encontro e, muitas vezes, do atrito entre as formações coletivo-sociais e o âmbito pessoal. A autora demonstrou como esse processo envolve a participação do arquétipo trickster.
1.2 Os propósitos deste livro
O presente texto, com o tema das instituições, tem três propósitos: o primeiro propósito é sistematizar um método² de pesquisa com base na psicologia junguiana. O segundo é adaptar esse método ao estudo de instituições. O terceiro e último propósito é demonstrar a aplicação desse recurso metodológico na pesquisa de uma instituição. Este livro contribui, assim, para o desenvolvimento de um campo ainda incipiente na produção junguiana, ou seja, o da teorização e pesquisa sobre formações coletivo-sociais como as instituições.
Para o desenvolvimento deste texto com esses propósitos, foi preciso considerar que a obra de Jung é rica e multifacetada, o que permite a identificação de possibilidades múltiplas para a construção do enfoque pretendido neste livro. D’Lugin (1982) e Jones (2001) apontaram que a amplitude dessa disciplina e a revisão recorrente dos conceitos realizada por Jung nas várias obras que publicou trazem dificuldades para a tarefa de se utilizar esse referencial teórico com precisão.
Foram feitas escolhas na revisão dos conceitos junguianos que subsidiaram as articulações teórico-conceituais necessárias para cumprir os propósitos deste livro. Isso quer dizer, por exemplo, que, das diversas possibilidades de aplicação teórico-conceitual dessa escola psicológica, selecionei a hermenêutica junguiana como pilar principal do método de pesquisa que proponho. Certamente, há outras inúmeras possibilidades de emprego do referencial junguiano e, assim, de sistematizar métodos, sob a égide dessa escola de pensamento, com diferentes características daquelas que sistematizei.
Assumo que este livro é também reflexo das minhas premissas pessoais ao considerá-las condicionantes das escolhas deste texto e das proposições feitas neste. Encontro a seguir respaldo em Jung (2002b, p. 89, § 150) para assumir esse condicionante na produção intelectual deste texto.
[...] em todas as áreas do conhecimento há premissas psicológicas, as quais testemunham decisivamente acerca da escolha do material, do método de elaboração, do tipo de conclusões e da formação de hipóteses e teorias. [...] até mesmo o que chamamos nossas melhores verdades são afetadas [...] pela ideia de uma premissa pessoal.
Outro esclarecimento se faz ainda necessário no que concerne à consecução dos propósitos deste livro. Utilizei-me do pensamento junguiano sem encastelá-lo
, pois o relacionei ao campo de pesquisa das instituições e com outros autores de orientações teóricas diferentes. A maneira interdisciplinar
como me apropriei da psicologia analítica tem o potencial de trazer contribuições para a difusão e o reconhecimento da validade do pensamento de Jung, além de evidenciar o potencial de interlocução dessa disciplina com as demais áreas do conhecimento (SAMUELS, 1995, 2002).
A perspectiva interdisciplinar é um aspecto presente na produção junguiana (SERBENA, 2020), além de ser necessária, quando se admite a unilateralidade de qualquer recorte sobre a realidade, como esclareceu Jung (1991e, p. 153, § 421):
Eu acreditava estar trabalhando cientificamente, no melhor sentido do termo estabelecendo, observando e classificando fatos reais, descrevendo relações causais e funcionais, para, no final de tudo, descobrir que eu havia me emaranhado em uma rede de reflexões que se estendiam muito para além dos simples limites das Ciências naturais, entrando nos domínios da Filosofia, da Teologia, das Ciências das religiões comparadas e da História do espírito humano em geral.
A interdisciplinaridade do texto deste livro encontrou respaldo na atitude científica de Jung, que, de acordo Mello e Damião Júnior (2001, p. 7), Defendia a complexidade do psiquismo e a multiplicidade de facetas deste, logo, a convivência na co-disciplinaridade psicológica (divergente) e a parcial integração-comunicação dos conhecimentos
.
O convite ao diálogo com outras disciplinas em um trabalho em psicologia junguiana deve-se, em grande medida, ao fato de que Jung formulou uma concepção de ser humano que revela grande complexidade e compreende uma pluralidade de aspectos
(FREITAS, 2005, p. 11).
Após anunciar os propósitos deste livro, esclareço que ele está organizado em quatro partes subsequentes. No segundo capítulo, sistematizo o método de pesquisa baseado na psicologia junguiana, para, no terceiro, aplicá-lo ao estudo de instituições. No quarto capítulo, exemplifico o emprego desse método na pesquisa de uma instituição específica. No quinto e último capítulo, faço as reflexões finais para finalizar o livro.
¹ Este livro é uma versão revista e ampliada da tese de doutorado A Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung no Estudo de Instituição: uma proposta teórico-metodológica, que defendi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 2008.
² O termo método é entendido como uma estratégia de pensamento na produção de conhecimento que estabelece um recorte possível de leitura da realidade. Esse termo será desenvolvido nos capítulos seguintes (GUIRADO, 2006; PEREIRA, 1991; REY, 2002).
2
O MÉTODO JUNGUIANO DE PESQUISA
Neste capítulo, sistematizo uma proposta de método de pesquisa baseado na psicologia junguiana. Para realizar essa tarefa, sistematizo os pressupostos ontológicos e epistemológicos, bem como os procedimentos da hermenêutica de Jung.
2.1 O termo hermenêutica
Desde o século XVIII, a prática hermenêutica foi estabelecida como uma disciplina antiga e que estava originalmente dedicada à interpretação de textos religiosos antigos, como a Bíblia. Aquela foi primeiramente um método para a descoberta da correta interpretação num conjunto de diferentes versões para o mesmo texto (ROWAM, 1981).
No século XIX, com o teólogo alemão Schleiermacher, a hermenêutica foi ampliada para estudar outros objetos, tais como textos não sagrados, outros artefatos culturais e, até mesmo, o ser humano. O filósofo Wilhelm Dilthey propôs a hermenêutica como o método próprio das ciências do espírito em oposição ao das ciências da natureza (CLARKE, 1996).
Com o desenvolvimento da hermenêutica, a compreensão tornou-se a meta fundamental para se investigar o objeto estudado; não se trata mais de buscar uma verdade, mas de desenvolver um entendimento possível do objeto em estudo (BERNSTEIN, 1983).
A hermenêutica é um caminho de produzir conhecimento que valoriza a compreensão, que, por sua vez, é entendida como [...] um processo criativo que não apenas reproduz, mas também cria alguma coisa [...].
(JUNG, M., 2002, p. 8, 15-16). Nesse sentido, o material que é examinado e o examinador, com todo o seu afeto, conhecimento ou falta dele, e as influências culturais e históricas, estão [...] envolvidos na compreensão
(BURKE, 2003, p. 135).
Na Psicologia, Mais de uma vez, Jung se referiu à hermenêutica como a arte da interpretação textual e, em 1916, se serviu desse termo para indicar o método usado por ele para decifrar o significado simbólico das fantasias de seus pacientes
(CLARKE, 1996, p. 73). Por muitas razões, é possível dizer que Jung foi um hermeneuta com os pacientes dele, com o estudo das filosofias ocidentais, com a alquimia medieval ou com o estudo dos textos e das tradições do oriente (CLARKE, 1996).
A hermenêutica junguiana foi aplicada por seu autor em duas direções que se complementaram. A primeira direcionou-se ao microcosmo interno da psique, enquanto a segunda, ao macrocosmo dos produtos simbólicos e dos sistemas de crenças dos quais faziam parte a gnose, a alquimia medieval, a teologia cristã, o ocultismo e as teses filosóficas do oriente (CLARKE, 1996).
Esta hermenêutica é estratégia de leitura da psique e da realidade, e como tal é método para a condução de pesquisa psicológica. A hermenêutica em questão vai ao encontro da perspectiva de método qualitativo em Psicologia tal como definida por Rey (2002).
Concordo com Guirado (2006), Pereira (1991, 1998) e Rey (2002) ao afirmarem que o método científico se refere ao caminho escolhido para abordar o tema e os objetivos de uma pesquisa. Esse método explicita a estratégia e os procedimentos utilizados para chegar às respostas de um estudo o qual, por sua vez, se pauta por uma epistemologia e uma