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Helena Bomeny
Maria Claudia Coelho
João Trajano Sento-
Sé
Introdução
Este artigo apresenta resultados obtidos no projeto de pesquisa “A Violência nas Escolas do
Rio de Janeiro: dimensões do problema e percepção pela comunidade escolar”,
desenvolvido no período de agosto de 2006 a julho de 2008 pelos autores deste artigo, com
o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ).
O tema da violência nas escolas tem despertado interesse entre especialistas de campos
distintos e tem sido uma questão também tratada em diversos países, sobretudo a partir do
final dos anos 1980. Em parte, o interesse decorre do fenômeno da massificação do ensino e
da universalização do acesso à educação. No Brasil, a escola pública que, historicamente, foi
elitista, incluindo uma parcela da população muito menor do que a que deveria incluir,
passou, desde meados de 1990, a receber progressivamente mais e mais crianças em idade
escolar, a ponto de, em 1998, contar com 98% da população atendidos pela rede pública de
ensino. O que a maioria dos países desenvolvidos resolveu até a segunda década do século
XX, o Brasil dava sinais de resolver no início do novo século. A equação desafia porque a
inclusão em massa não significou a permanência ou sequer o êxito no desempenho dos
educadores em educar e dos alunos em aprender. Mas esta é outra questão.
Ao lado do macro processo de inclusão escolar, a sociedade brasileira assistiu nas últimas
três décadas à escalada da violência provocada, no parecer de especialistas como Alba
Zaluar, pelo crescimento do tráfico de drogas e pela ausência do Estado nas zonas mais
vulneráveis da habitação popular, reduto mais afetado pela concentração dos negócios do
narcotráfico. A extensão do problema chegou às escolas e encontrou na deterioração da
rede pública um ambiente propício à sua expansão. Com o apoio da UNESCO foi realizada
uma primeira pesquisa de nível nacional divulgada no Brasil, coordenada por Miriam
Abramovay da Universidade Católica de Brasília e por Maria das Graças Ruas, da
Universidade de Brasilia. O livro foi publicado com os resultados nacionais, e pode ser
encontrado em versão eletrônica na página da UNESCO do Brasil (Abramovay e Ruas,
2002). Estava sinalizada uma entrada de pesquisa que acabou recebendo mais e mais
contribuições de educadores, psicólogos e sociólogos. Seria a escola afetada de forma
comprometedora pela atmosfera de insegurança progressiva de que se trata na imprensa,
nos fóruns especiais, em congressos e em centros de pesquisa? De que maneira os
profissionais da educação, responsáveis pelo atendimento e orientação escolar estariam
sendo atingidos pela crescente onda de violência noticiada em mídias distintas? Quanto
sofre a escola em sua rotina com a intervenção de questões agudas de insegurança? E,
sobretudo, como se manifesta a insegurança e/ou a violência no ambiente escolar e de que
maneira a elas reagem os membros da comunidade ali atuantes?
São muitas as entradas que um tema desta envergadura viabiliza. O recorte e a maneira de
nos aproximarmos estiveram cativos do perfil dos profissionais envolvidos com o projeto e
com o investimento que cada um tem feito ao longo de suas vidas acadêmicas. A concepção
original do projeto combinou assim as áreas de sociologia da educação (Helena Bomeny),
estudos sobre violência urbana (João Trajano Sento-Sé) e antropologia das emoções (Maria
Claudia Coelho). À conjugação destas três áreas temáticas de investigação veio somar-se
uma perspectiva interdisciplinar interna ao campo das ciências sociais, também ancorada na
formação dos pesquisadores, e que nos permitiu reunir um arcabouço conceitual oriundo da
antropologia, da ciência política e da sociologia, delineando assim como foco de nossa
investigação as percepções da violência nas escolas pelos professores.[1]
Com o objetivo de mapear o modo como a violência nas escolas públicas é percebida pelos
professores, elaboramos um roteiro para a realização de entrevistas em profundidade,
dividido em quatro blocos temáticos: trajetória pessoal do entrevistado, trajetória profissional,
características da escola em que leciona e violência nas escolas. O corpus aqui tratado
consiste em trinta entrevistas realizadas em cerca de vinte escolas públicas do Rio de
Janeiro, escolhidas segundo critérios que serão expostos e comentados em detalhe mais
adiante.[2]
O foco deste artigo está na articulação entre a centralidade da noção de “autoridade” para a
representação da profissão docente e a percepção da violência escolar pelos professores.
Este tema perpassa os depoimentos, aparecendo de forma particularmente nítida em dois
aspectos das entrevistas: um “deslizamento semântico” entre as noções de “indisciplina” e
“violência”, evidenciado pela natureza dos relatos de episódios vivenciados, presenciados ou
conhecidos pelos entrevistados, e as queixas e comentários dos professores quanto a uma
suposta “omissão” das famílias dos alunos quanto à sua educação (entendida aqui, conforme
veremos, em um sentido mais amplo do que a mera escolarização).
O texto está estruturado em três partes. Na primeira, expomos a metodologia empregada
para a formação deste banco de entrevistas, incluindo critérios de escolha das escolas,
dificuldades encontradas para entrada no “campo” e perfil dos entrevistados. Em seguida,
exploramos três pontos centrais recorrentes nos depoimentos: a) a “alterização” dos relatos
sobre a violência nas escolas, ou seja, a onipresença de uma estratégia discursiva que a
atribui sempre a um “outro”, definido ora espacialmente (outras escolas, outros professores),
ora temporalmente (outras épocas, outras gestões, ex-alunos); b) uma indefinição quanto à
natureza mesma do fenômeno violência, que pode surgir descrito como agressão física,
como imposição de danos materiais, como ameaças ou xingamentos ou como desobediência
a regras relativas à rotina do funcionamento escolar, naquele processo a que nos referimos
acima como um “deslizamento semântico” entre os termos “violência” e “indisciplina”[3]; e c)
um “embate” descrito pelos professores como se dando entre corpo docente e responsáveis
familiares quanto à responsabilidade pela conduta do aluno, tanto em termos de seu
desempenho acadêmico quanto em termos mais amplos de sua socialização. Na terceira e
última seção, abordamos um tema inserido pelos entrevistados em seus depoimentos de
forma espontânea e recorrente, em um tom quase sempre crítico: a aprovação automática.
A aprovação automática é um dispositivo pedagógico introduzido no ensino público do Rio de
Janeiro como desdobramento de uma recomendação contida na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) de 1996. Pela lei magna da educação, as escolas teriam
liberdade de flexibilizar procedimentos de modo a preencher de forma mais adequada os
processos de ensino e aprendizagem. Um dos procedimentos mais destacados dizia respeito
ao aproveitamento dos estudantes com relação ao que era ensinado. As pesquisas feitas
em meados da década de 1980 indicavam o fracasso do sistema educacional brasileiro em
cumprir o que estava prescrito na Constituição. As crianças não permaneciam nas escolas,
era o argumento mais usualmente apresentado. Evasão escolar era a tradução mais explícita
do fracasso da escola em prosseguir em sua missão educativa. As pesquisas, no entanto,
sinalizavam em outra direção. As crianças permaneciam nas escolas, mas não
ultrapassavam a primeira série. Os índices de reprovação acenderam a luz amarela para
problemas concentrados no interior das comunidades escolares. Se o problema mais agudo
era repetência, o próprio sistema escolar entra em questão. Era preciso buscar em seu
interior razões mais plausíveis para o fracasso.
Além de muitos outros fatores – infra-estrutura precária, corpo docente despreparado, falta
de incentivos e condições de oferta de boa qualidade e atrativa para o público estudantil –
um dos que ficou em pauta foi exatamente o efeito sobre as crianças de uma reprovação
precoce. Efeitos de toda ordem: psicológicos, pedagógicos e sociais. As crianças eram
chamadas a se ausentarem dos colegas de turma e iniciarem suas atividades em outro
ambiente, com risco grande de novamente ficarem retidas. O sistema de ciclos foi pensado
para responder ou minimizar os efeitos descritos acima. E dentro dele, um dos
procedimentos adotados no município do Rio de Janeiro foi a aprovação automática, em que
os alunos seguiam até a quarta série do ensino fundamental sem que fossem retidos por
reprovação em disciplinas. Sua inserção espontânea e crítica pelos entrevistados foi o dado
que nos colocou na pista para a centralidade da questão da autoridade na compreensão do
modo como estes professores percebem o problema da violência nas escolas. É esta
reflexão que guia nossas considerações finais.
1. Notas metodológicas
Este caso tem suas características próprias e esclarecedoras: tias paternas professoras,
mãe enfermeira, pai protético (profissional liberal). A conversa sobre a carreira fazia parte do
universo familiar. Este é um ponto interessante entre as falas: alguns indicam inspiração
originária do ambiente familiar, um gosto que veio da socialização familiar – uma prima, uma
tia, mãe, mas são poucos os depoimentos que sinalizam para esta freqüência. Quando
aparece a relação, o depoimento confirma a importância da socialização para a escolha ou a
permanência na profissão por opção (como no caso de uma outra entrevistada que lista
entre as influências que a levaram à escolha pelo magistério o fato de freqüentar, em
criança, a escola em que a mãe trabalhava). Uma outra entrevistada credita à mãe a
inspiração que a tomou pela carreira do magistério. Mãe professora, artista plástica, teve
influência decisiva na escolha da profissão de magistério. Alguns chegam a mencionar que
não pensaram nisso e que até resistiam à idéia. Quando começaram, no entanto, foram se
envolvendo e se comprometendo a ponto de permanecerem nem tanto por salários, mas por
motivações outras, de natureza não monetária. Se todos ou a maioria esmagadora entrou na
profissão por acaso ou contingência da vida laboral, nenhum deles declara intenção de
abandonar por falta de motivação ou declara arrependimento. É como se a experiência os
tivesse embalado a ponto de se perceberem “vocacionados” no curso da rotina profissional.
Há um envolvimento emocional na profissão que distingue tal trabalho de outros. As
entrevistas dão indicação dessa dimensão que pode ser incorporada ao perfil desse conjunto
profissional.
Passemos, então, sem mais demora, ao que foi dito. Aí estão, também, algumas pistas do
que deixou de ser explicitado.
Na seqüência deste relato, a entrevistada faz uma observação que pode ser tomada como
uma síntese deste esforço em caracterizar a violência como algo externo à escola específica
sobre a qual se fala:
E isso atrapalha, atrapalha... e até porque os professores têm um certo medo. Não vou te dizer que
vou para lá tranqüila (...) A violência ela não chega lá dentro. Eu nunca vi ali, aquela coisa da
violência dentro da escola. Eu só assisti aquela cena, assim, no meio de outro... que veio dali, não
é um de nós. O que levou o tiro era.
O ponto central destes discursos que definem a violência como “do outro” surge aqui com
especial clareza: a vítima era um aluno, mas o agressor é textualmente descrito como não
sendo um de nós.
Esta definição espacial das fronteiras entre “nós” e “eles” aparece também na atenção dada
a uma demarcação “minimalista” do espaço escolar, com a ênfase focada onde as pessoas
envolvidas com situações descritas como de violência encontravam-se em relação à porta da
escola. Este dado chamou-nos a atenção devido à recorrência a um elemento que, à
primeira vista, pode soar como uma preocupação excessiva com detalhes irrelevantes,
merece ainda assim a atenção dos entrevistados, o que pode ser interpretado à luz deste
esforço maior em caracterizar a violência como sendo do outro porque detém-se diante dos
limites do espaço físico escolar.
(...) então, por exemplo, eu nunca vi uma arma dentro da escola. E olha que a escola é grande.
Atende a uma clientela que as vezes a gente sabe que está envolvida com o tráfico. As vezes as
pessoas que estão no portão, ex-alunos ou não, podem estar envolvidos com o tráfico.
Só que esse rapaz viu que eles estavam fugindo e aí atirou nele, não no pátio, foi assim... porque a
escola tem um portão fechado. Então fora desse portão mas ainda dentro desse espaço escolar.
[8]
(...) Nós temos o problema de que se nós deixarmos os portões abertos, vão entrar os alunos e os
que não são alunos.
Aqui era assim. Foi feita uma festa. Não sei o que é que houve... brigaram e teve um tiroteio
naquele portão dos fundos, ali onde tem a quadra.
E você acha que os professores vêm para cá porque enfrentam esse tipo de problema nos outros
colégios em que dão aulas?
Ah, com certeza. A gente tem uma professora nossa que relatou um caso em uma escola de (outro
bairro) em que o aluno deu um tiro no portão.
Um tiro no portão... conta aí.
Ah, ficou com raiva da professora, brigou lá com uma professora, enfim... ficou com raiva, foi em
casa, pegou uma arma e atirou no portão.
E você falou... a gente estava falando essa questão da violência nos outros colégios. Você vê esse
problema aqui na (escola do entrevistado)?
Não, não. Não que eu consiga perceber. A gente tem aqui – hoje – uma clientela que não tem esse
tipo de problema. Alguns anos atrás, eu não estava aqui, eu escuto contar pelos próprios colegas
que já estavam aqui, que havia esses conflitos de facções. Crianças que são do (nome de
comunidade) e outras que são da (nome de comunidade) e não podiam... hoje nós não vemos
esse tipo de coisa não. Hoje nós temos uma clientela única, quer dizer, única no sentido de não ter
diferenças, de não ter brigas entre eles porque um mora numa comunidade e o outro numa outra.
É briga de quê? De porrada?
De tudo. De ter que chamar a polícia. De ter tiroteio na porta da escola. Alguns cinco anos atrás
era mais ou menos assim.
Eventualmente, contudo, causas específicas para essa transformação são apontadas, como
uma mudança de gestão, a presença da guarda municipal ou a saída da escola de um aluno
filho de um traficante conhecido:
Mas de quê? De drogas?
É. Mas agora, de uns tempos pra cá, melhorou. Com a gestão do (diretor), a disciplina na
escola melhorou e o entorno também. Agora com a guarda municipal nem se fala. Ela já
está aqui há quatro anos.
Mas eram o que? Vendas?
É, usavam, né? É mas aí é capaz de... a gente não vê claramente isso. Mas a gente sabe.
Mas, aí, o que é que acontece? A gente corre o risco de nossos alunos acabarem usando.
Mas isso já há um tempo não ouço falar. Na época do filho do (traficante conhecido),
ficavam esperando os alunos justamente pra isso, pra seduzir.
A estratégia mais recorrente é contudo definir esse passado em relação com o pertencimento
do aluno à escola: são “ex-alunos” os responsáveis pela violência. Alguns exemplos:
Às vezes, porque, algum aluno que estuda aqui conhece e fala ou tem uma namorada,
que tá ligado à... então a gente conhece ex-alunos que às vezes vem, diz para a direção,
então a direção.
(...) mas existe violência em escola existe. Em muitas outras escolas, até próximas
daqui...(...) aí uma mãe denunciou e dois dias depois o carro de um professor foi roubado.
Ela tem essa liberdade de chegar ali na frente e falar “poxa, meus professores não podem
mais nem estacionar o carro aqui na frente porque roubam?”. Meia-hora depois apareceu
o carro: “olha, tá em tal lugar, mas a gente não sabia que era de professor. Galera nova
na escola”.
Ela conhece o pessoal?
(Balança a cabeça). Ela sabe quem é. Às vezes até são ex-alunos. (...)
Aí os professores tiveram que correr, se esconder. Mas aí, graças a deus... e muito dos
ex-alunos, né, eram traficantes e alguns já morreram. A gente acaba sabendo por
notícias, um ou outro fala, né? É isso.
Você disse que a (escola da entrevistada) não tem esses problemas de violência. Mas tem a
guarda municipal aqui. Como é que é isso?
A gente cedeu o espaço para a guarda. Pô, a guarda dá a maior força. Mas eu te falo da violência,
eu te falo também da (outra escola). A (outra escola) não tem guarda municipal lá dentro. E as
brigas que acontecem, são brigas normais. “Você pegou o meu boné e bateu na minha cabeça”?
não são violências pesadas. A escola quando ela é administrada de uma maneira a evitar esse tipo
de conflito ela realmente funciona.
(...) Eu vejo assim: no primeiro dia de aula é o dia das questões. Vamos acertar o ano inteiro agora.
Eu coloco o que gosto, o que não gosto, a questão do respeito, da conversa durante a explicação.
Eu peço que eles não tenham vergonha de perguntar nada porque se estão todos ali no mesmo
nível, com certeza a sua dúvida será a mesma do colega. Então, não tenham vergonha de
perguntar. Não tenham medo, mas só não perguntem durante a explicação, senão me atrapalha
porque meu chip aqui – eu brinco com eles – que meu chip aqui tá ligado e se sair daquela linha eu
erro tudo. Até para deixar eles, assim, um pouco mais à vontade. Então, eu não tenho problemas
com eles não. Na questão da disciplina, tem uns mais saidinhos e tem outros que não. A questão é
a que eu digo. Quando eles gostam de você, você conversa com eles na sala, eles vão fazer de
tudo para te agradar. Se realmente alguém estiver saindo da linha... não espero todos santos na
aula, mentira. Eles não vão ficar todos quietinhos. Tem sempre um ou outro que fala mais alto,
que faz uma brincadeira. Aí, você já chama a atenção, fica quieto ali. Porque se ele não está
gostando do professor, não tem aquela afinidade, ele vai seguir adiante com a brincadeira, vai
acabar... aí quem sofre é ele. Aí o professor fica irritado, coloca para fora. Então a questão é de
você tentar ser amiga desse aluno... também você não vai deixar... ser amiga, você também não
pode deixar isso ser muito paternalista. “Ah, benzinho. Está não vai fazer o trabalho? Ai que
bonito.” Não, não é isso. Você tem que deixar ele bem à vontade para perguntar, mas tem que
cobrar dele. “Você fez isso, não fez?”, não é para ser tão paternalista assim.
(...) Na (comunidade) a gente tinha uma subqualidade de vida, falta de saneamento básico, não
tinha calçamento mas tinha também o problema da violência. Já tinha os comandos, já tinha a
marginalidade mandando em determinados... eram determinados por territórios, cada território era
um bandido diferente que comandava. Então, lá a gente tinha esse tipo de entrada para
desenvolver o trabalho. Mas naquela época a escola era muito respeitada até pelos marginais.
Hoje em dia eu acho que não seja mais desse jeito.
Por que você acha isso?
Porque hoje em dia não respeitam mais nada, não é? Acho que não respeitam mais nada. A gente
tinha uma pobreza muito grande, as crianças eram carentes realmente mas de tudo, até de
atenção e carinho. Muitos pais saíam para trabalhar de madrugada e quando chegavam eles já
estavam dormindo. Então, quer dizer, era complicado nesse sentido. Mas foi uma experiência
muito gratificante... eu costumo dizer que quem trabalhou na (comunidade) depois trabalha em
qualquer lugar.
Esse “respeito”, quando há, é demonstrado pelo fato de que os alunos “atendem” ao
professor quando são chamados a atenção, cabendo a este ter “pulso” para conseguir
“respeito”:
Você já teve algum problema com aluno? Tem alguma estória para contar?
Não. Sempre, graças a Deus, até hoje... todas as vezes que a gente chama a atenção eles
atendem.
E os professores? Já tiveram algum problema... tem alguma estória?
A gente tem sempre um ou outro professor que não é tão enérgico. Às vezes o professor fala e o
aluno finge que não está ouvindo. Mas nada assim gritante... algo, né? Mas a gente tem, tem
alguns professores que não têm o mesmo pulso, como a gente costuma dizer, que às vezes fala e
entra por um ouvido e sai pelo outro. O aluno faz o que ele disse para não fazer. Mas não é
comum, não é uma regra da escola isso não. E eles sabem exatamente, esses professores que
não têm essa rigidez... então aí eles aproveitam. Adolescentes conseguem identificar isso com
rapidez.
Esta disciplina escolar, se aparece por vezes como “antídoto” contra a violência, pode ter
contornos mais ou menos tradicionais, assumindo formas de organização do cotidiano
escolar distintas. Os dois depoimentos seguintes concordam quanto a este poder da
organização disciplinar do cotidiano como forma de inibição da violência, embora divirjam
quanto à necessidade do recurso a estratégias convencionais tais como a organização do
deslocamento dos alunos pelo espaço da escola, em filas ou não, “formados” ou não:
(...) Alguns alunos não precisam ser vigiados mais. Não precisa mais de professor. Aquilo já está
introjetado neles. Alguns são rebeldes, se rebelam, incomodam. “O professor está aí? O professor
chegou?” Eles incomodam. São justamente esses que a gente reclama. Esses são aqueles que
“poxa, acabo de bater o sinal e esse garoto já”, porque esses incomodam de alguma forma. Esses
incomodam a essa escola. Escola arcaica, do século XIX, em que os alunos se levantavam quando
o professor entrava. Discurso de que “na minha época”. Então, muitos de nós... eu sou formado em
escola pública. Eu sempre estudei em escola pública. Na minha época, eu não tinha a relação que
eu tinha com meus alunos. Nem sonhava em, sei lá, abraçar o meu professor. Era uma relação
diferente. (...)
(...) E pra escola?
Ela é necessária. Nesse momento pra ela é necessário porque você tem uma organização. É uma
instituição. É um poder instituído. Ela tem regras? Tem regras. Se você deixar 800 alunos – não
que eles formem – mas que você organize eles para subirem, são 800 alunos. São adolescentes.
Aí vão subir essa escada feito uns loucos. Há o risco de alguém esbarrar no outro e a pessoa cair.
Duas semanas atrás eu levei um com corte no pulso, outro com corte no dedo, que na brincadeira,
um estava bebendo água – e o bebedouro é de ácido inox, né? – alguém puxou a mão dele e aí
rasgou, né? Levou 8 pontos. Então se você não tiver um mínimo de organização, que é necessária,
a gente não pode, pelo menos nesse momento a gente não tem... aqui não é Escola da Ponte, lá
em Portugal, em que o aluno entra a hora que ele quiser.
(...) Nós fizemos uma festa aqui pra eles. Eles quiseram fazer um Halloween. Estava a guarda
municipal, seis diretores, todos os professores, estavam todos ali. Geralmente... não tem bebida
nenhuma. Mas numa hora dessas, pode, às vezes, né? Por serem rapazes novos. As vezes, uma
briga sai, assim, de repente. Mas, olha, foi uma coisa assim tão saudável, tão legal. Uma coisa
organizada, foi excelente. Mas você tem que estar sempre... prevenida.
Você falou que esses problemas foi durante um tempo... melhorou...
Até porque eu moro aqui. Então teve um período que a indisciplina aqui dentro... eles não
formavam, eu trabalhava aqui e ficava até desestimulada com a casa. Isso foi antes da gestão do
(novo diretor).
(Novo diretor) é esse novo diretor...
Novo não. Já tem há 9 anos. É diretor. Mas é um trabalho que... aqui, por exemplo, na entrada
dessa porta, ele leva os alunos até... o professor espera os alunos em sala de aula. Eles dão uma
linha, eles formam direito. Quando... aqui tem muitos daqueles cursos de capacitação e muitos
outros professores, de outras escolas, participam. E eles ficam assim... só escola particular tem
isso. Mentira! Nem o (outra escola) que é excelente. Os alunos vão todos pro recreio assim, né?
Vai todo mundo junto. Aqui, não. Aqui ainda forma. É um trabalho que ele vem investindo. Voltar
aquela coisa inicial, puxar a fileira. Por isso, ele está resgatando. Então, melhorou a disciplina. (...)
Por morar aqui eu sei que tem uma base da guarda municipal aqui. E ela está aí por que?
Esse é um projeto da própria guarda municipal em que eles instalam a base e são chamados de
guardas comunitários. Eles estão aqui dentro da escola só ...
(Mudança de lado da fita – Lado B)
É relevante?
só por questão de espaço físico. Eles precisavam de um prédio público aqui nessa região para se
alojar e nós tínhamos esse espaço e cedemos esse espaço.
Não é comum ter a guarda dentro dos colégios?
Não, não é. São seis postos e, até por coincidência, esses seis postos estão dentro de escolas.
Eles nos dão um apoio muito grande. Para nós foi um ganho ter a guarda comunitária mas não é
específico para escola mas para a comunidade também.
Você acha que a escola ganha em que com a guarda municipal?
Acho que impõe um pouco mais de respeito. São pessoas que estão lá fora no pátio e se vêem
uma briga eles vão lá e separam. Se os alunos se machucam, eles têm noções de primeiros
socorros que nós não temos. Então, assim, foi um ganho, foi um ganho para nós termos a guarda
municipal.
Temos assim uma oscilação entre duas formas extremas de controle da conduta dos
alunos: a primeira de exercício coercitivo e institucional (a guarda municipal), a segunda
de domesticação cotidiana da conduta (a normatização detalhada das atitudes dos
alunos em ambiente escolar). Na maior parte dos depoimentos, contudo, fala-se em sua
eficácia para conter a indisciplina, com a menção explícita à violência sendo rara e
surgindo evasivamente de forma “alterizada”. Neste quadro, o depoimento abaixo é
ímpar em sua riqueza, por traçar em linha reta uma relação quase que de causalidade
entre o “afrouxamento” das micro-regras do funcionamento escolar na relação
professor-aluno e a eclosão de uma violência física com uso de armas de fogo:
Ou que tenha ouvido falar... de um outro colégio...
Bom, de um outro colégio. Há pouco tempo... há pouco tempo, não... isso já tem um ano. Na Ilha...
professora saiu de sala, você sabe disso?
Não sei...
A professora saiu de sala, não sei por qual motivo, o garoto atirou no outro com uma arma. Atirou
no outro. Pra você ver, isso aí a gente sabe de alguns colégios que acontecem. Alunos que entram
armados, que a gente só vai saber disso depois do... mas, aí a questão do professor não deixar
uma turma sozinha. Eu tenho falado isso todo dia. A gente tem essa preocupação. Se realmente
precisa sair, tem que ir atender o telefone, tem um inspetor no corredor, ele tem que ir lá olhar sua
turma, pra você poder sair de sala. Mas parece que foi na hora do recreio. Todos desceram e ...
aqui na escola, ninguém fica lá em cima.
O trecho abaixo, formulado pela mesma entrevistada em outro momento de seu depoimento,
é ainda mais claro quanto a essa articulação entre violência/indisciplina e processo
civilizador:
(...) Eu acho que a escola perdeu a força dela, de ensinar, porque as mães... os filhos traziam
alguma coisa para cá. Agora a gente tem que ensinar um monte de coisa para haver o retorno. Às
vezes o aluno em casa não é questionado. Eu aprendi na escola isso. Não foi nem meu pai nem
minha mãe quem me ensinou não. Quando você come uma bala e não tem lixo, você guarda o
papel de bala com você. Eu sou incapaz de cuspir no chão. Pode me dar uma vontade louca de
cuspir mas eu não vou cuspir no chão não. Às vezes você vê aluno que cospe, escarra no chão.
Isso eu aprendi em casa e reproduzia na escola. Eu não fazia. Então, são trocas: a casa, a família.
A casa troca com a escola e a escola troca com a família. Quando não tem essa comunicação é
quando esquentam as coisas.
Este depoimento adiciona ainda um novo ingrediente a esta forma de conceber a relação
entre violência, indisciplina e formas de contenção/cultivo da conduta cotidiana: o problema
da responsabilidade por este processo socializador. A quem cabe “civilizar”? À família ou à
escola? Esta relação família e escola é o tema da próxima seção deste nosso esforço de
mapeamento das principais questões que perpassam nosso banco de entrevistas.
Então, o que a gente diz pra eles: “Mãe, antes de vir pro colégio, ele é seu filho. Vai ser seu filho a
vida toda. Ela vai passar por aqui e vai embora, mas ele não vai deixar de ser seu filho.”
Estas falas de duas professoras sintetizam bem uma percepção recorrente entre os
entrevistados: aquela de que a família é omissa na educação de seu filho, estabelecendo
muitas vezes com a escola uma relação de delegação da responsabilidade por seu filho, ao
invés de uma relação idealizada de parceria.
A “ausência” dos pais é percebida sob várias formas, desde a ausência física no espaço
escolar – não-comparecimento às reuniões de pais, não-atendimento a convocações feitas
pela escola, etc. – até outras formas mais sutis, como a omissão na ajuda/estímulo às
atividades escolares. O desinteresse ou a indisponibilidade dos pais para acompanhar o
desempenho escolar dos filhos é apontado como uma dificuldade para os professores:
É, porque aqui você já vê assim... até a ausência de alguns pais porque tem a questão do trabalho.
Eles precisam trabalhar. Tipo, um pouco ausente. E eu acho que isso faz muita falta para o aluno.
Muita mesmo. Porque você faz o seu trabalho aqui, mas em casa tem que haver a continuidade. E,
às vezes, não tem isso. Eles não estimulam esses alunos a continuar aquilo que você plantou aqui.
Então quando eles retornam, eles voltam com aquela preguiça, aquela coisa... às vezes voltam
com trabalho de casa sem fazer. Não tem aquele interesse. Aquele estímulo dos pais: “Olha a
escola!”.
Eu faço a ciranda de livros. Os pequenininhos não sabem ainda pegar. Seria tipo o CA, né? Isso no
ano um, no ano dois eu faço uma ciranda. Eu seleciono, entrego na mão da professora, cada um
leva um pra casa. Eles ficam com ele durante uma semana. A mãe conta a estória. A professora
conta a história porque tem mãe que não conta.
Entretanto, o maior problema causado pela ausência dos pais, na percepção destes
professores entrevistados, não é a omissão no acompanhamento cotidiano do desempenho
escolar de seus filhos. Esta ausência far-se-ia sentir, principalmente, sob a forma de uma
carência afetiva, carência essa que alguns professores esforçam-se por sanar. Este esforço,
contudo, nem sempre é bem sucedido, como nos mostra o depoimento abaixo:
Nós temos assim a questão do ensino religioso. Então, a professora que nós recebemos ela é
muito boa. Ela não centraliza o ensino religioso realmente na coisa da religião, em nenhuma
religião. Ela faz uma coisa bem ecumênica, porém, ela encontra também dificuldades. Então ela
coloca temas para tentar humanizar um pouco aquelas pessoas que estão ali. Então ela coloca
textos falando de paz, textos falando de amor, de amizade, de doação, aquela coisa toda assim.
Mas o engraçado é que ela sente dificuldades, porque eles não ... (tempo)... Eu acho que eles não
têm essa coisa do sentimento tão enraizado neles. Porque a gente ainda tem uma família, tem
aquela questão do amor que o seu pai te ensina, sua mãe te ensina e você passa para os seus
filhos. Pelo menos eu ainda vivo isso, né? Acredito que também muitas pessoas. Mas lá eles não
têm isso. “A minha mãe me largou não sei com quem... eu moro com não sei com quem. Eu tenho
um filho mas o pai dele está preso ou, então, o pai dele morreu”. Que sentimento essas pessoas
vão ter para analisar um texto... a paz, o amor, a harmonia.
O que você acha disso?
Eles acabam se tornando pessoas... insensíveis. Eles estão se tornando pessoas insensíveis. Têm
alguns ainda. Mas numa realidade como essa, em que a violência domina, que a mãe abandona a
criança, que eu tenho um filho com uma pessoa que morreu, ela está presa, é um traficante, não
sei o quê... tem tempo de você ter uma questão afetiva nesse meio todo? Eu não sei se... eu
duvido. Então, eu acho que o trabalho acaba ficando em vão. Eu acredito assim. É muito difícil.
Engraçado que quando você chega e você tenta se doar para eles, eles bloqueiam isso. “Quem
essa louca que tá pensando o quê? Isso é mentira, ela está...”.
Neste depoimento, é clara a expectativa pelo professor de que seu afeto poderia ser uma via
alternativa para suprir a lacuna deixada pela família. Esta omissão familiar, contudo, somada
a um ambiente definido como “dominado pela violência”, é percebida como mais forte,
gerando seres “insensíveis” e “incrédulos” diante da possibilidade de uma doação afetiva
autêntica como aquela tentada pela professora.
Esta mesma articulação entre a omissão afetiva da família e a “compensação” pelo
afeto do professor pode contudo aparecer em uma versão “otimista”, com o afeto do
professor sendo capaz de superar um embrutecimento que seria somente
“aparente”:
(...) Voltei a trabalhar porque, por incrível que pareça eles são super amorosos. É só
saber falar. Se você chegar para eles “vocês são tudo um bando de favelados, bandido! O pai de
vocês... a mãe de vocês...”. aí você não chega nem vivo do outro lado. Agora, se você chega numa
de trabalhar com eles com calma, até mesmo para falar de drogas. (...)
Você acha que o aluno às vezes tem uma relação de pai com o professor?
Tem, tem, muita. Tem alunos aqui muito carentes, que não têm os pais presentes e eles cobram
coisas, assim, de você que o pai deveria estar cobrindo. Então eu tenho um exemplo de uma
menina aqui que, realmente... ela estava até aí, aquela que me perguntou se eu ia embora? Aquela
é muito carente também, a mãe dela não liga para ela, não liga. Ela era uma menina assim: não
assistia à aula, faltava muitas aulas...
(...)
Eu acho que eu não terminei o meu raciocínio. Então essa menina é assim. Quando ela começou
aqui na escola, ela era uma pessoa muito nervosa, que brigava muito, não assistia à aula. Quando
vinha, brigava muito e a maioria das vezes ela não freqüentava a escola. Ela estava na sexta
série... ela já era de idade, 17 anos. Só que ela mudou o comportamento. Ela se tornou minha
amiga e da professora de português também. Nós nos tornamos amigas dela. E também é assim,
são muitos os problemas aqui na escola mas a gente desenvolver uma família aqui, aconselhando,
não é assim que ela deveria fazer. O que uma mãe deveria estar fazendo por ela. E aí ela se
transformou. Nunca mais faltou à escola, ela se esforça para fazer... não é uma aluna brilhante,
mas ela se esforça muito para tirar um R e ela consegue. As pessoas dizem... a diretora da escola
diz que ela se transformou. Ela conseguiu vencer uma batalha. Ela sozinha, sem mãe orientando,
ela conseguiu caminhar sozinha de uma maneira correta, assim, perfeita seria a forma como nós
queremos que seguissem nossos filhos. Mas não sei se será verdadeira: e quando ela sair daqui?
Não vai ter mais o nosso conselho e não sabemos o que vai acontecer. Mas muito são assim, por
causa do professor, ou a professora, que viram pai e mãe que eles não têm em casa.
Aí eu estava falando do menino. Eu fiquei injuriada com ele. Quando eu soube da estória
dele eu disse “não, vamos resgatar isso daí”. Hoje ele é meu assistente. “apaga o quadro
para mim”. Detesto que eles apaguem o quadro que eles jogam pó pra tudo quanto é
lado. Aí eu falo “tem que ser assim para o pó ir caindo”. Entendeu? “ah, vai pegar não sei
o que para mim. Pega o livro, recolhe o livro do pessoal aí para mim. Anota, não esquece
não”. Eu não conseguia entender aquela letra... só Jesus Cristo... mas eu comecei a fazer
com que ele começasse a participar da minha aula, participasse daquilo. Por que? Ele
ama muito o pai, o pai construiu outra família e literalmente não liga para os filhos. Não
liga. Faz festa para a outra família, para a outra filha, faz tudo do bom e do melhor e para
o filho nada. Esse é o problema. E isso se repete na escola. “Eu não posso dar um soco
no meu pai, eu dou na professora, eu vou agredir a professora, eu vou sacudir o braço
para ela”.
Você acha que isso às vezes faz o aluno ver o professor como um pai, uma mãe?
Vê... como pai e mãe. Ah, porque eu não tenho a cartinha aqui. Essa menina perdeu a
mãe com câncer, (nome da aluna). Ficou muito ruim, muito mal. Aí eu virei para ela “Você
vai perder o ano por causa disso? Sua mãe acha que vai ficar feliz? Acho melhor você
começar a voltar”. Isso aqui é o que vou juntando para depois separar o que presta do
que não presta.
(A professora procura a carta da aluna.)
E ela mandou essa cartinha para mim... de despedida. Ela diz que perdeu a mãe mas é
como se eu fosse a mãe dela. Sabe por que? Ela ia perder o ano. Simplesmente ficou
rebelde, não queria fazer mais nada. Se juntou com quem não prestava.
Aqui no colégio?
Não no (nome de outra escola). Se juntou com quem não prestava...
Ela diz assim “professora, você é muito legal, muito inteligente. Você é a melhor
professora que eu já tive. Eu não nós te adoro. Minha mãe morreu mas eu ganhei outra
que é você.”
Estes três depoimentos juntos mostram duas formas principais como esta atribuição
das figuras parentais aos professores pode se dar. O primeiro depoimento narra uma
situação em que a atribuição ao professor de uma função paterna ganha os contornos de um
desafio à autoridade, entendido pelo entrevistado como um “deslocamento” do alvo original
da contestação, que em sua visão seria o pai. O segundo depoimento fala de uma situação
em que a mescla entre os papéis de mãe e professora se deu pela via do afeto, expresso
sob a forma de um aconselhamento realizado pela professora em substituição ao
desinteresse da mãe da aluna.
Autoridade e afeto parecem assim constituir-se nos dois pólos extremos da atuação
do(a) professor(a) como pai/mãe. A relação, contudo, não é necessariamente de simples
oposição, podendo os dois termos aparecer sob a forma de uma articulação, como no
terceiro depoimento, em que o afeto da professora é uma forma de resgate da sua
autoridade.
Na etnopsicologia ocidental, as emoções são percebidas como associadas ao descontrole,
sendo potencialmente perigosas, em especial quando opostas à racionalidade; nesta
dicotomia, as emoções são também descritas como femininas (Lutz, 1988). O modo como
estas professoras recorrem ao afeto para recuperar/constituir sua autoridade junto aos
alunos nos permite assim nuançar estas associações recorrentes no senso comum ocidental
entre emoção-feminino-descontrole, sugerindo uma terceira forma de construção da
autoridade pela via do afeto, forma esta que viria assim compor, juntamente com as duas
outras maneiras de controle delineadas anteriormente (coerção institucional e controle
civilizatório da conduta cotidiana), uma tipologia das representações da autoridade presentes
neste universo.
Esta fusão entre as funções parentais e professorais tem assim um caráter ambivalente,
podendo ser ora solução – como no caso em que a “rebeldia” é descrita como sendo
domada pelo afeto substitutivo da professora – ora problema, na medida em que o
desempenho pelos professores destas funções parentais acabaria por reforçar a omissão da
família em relação a responsabilidades que, na visão destes professores, lhe caberiam. O
depoimento abaixo descreve esse tipo de ambivalência causada por esta indiferenciação:
Você acha que o aluno pode vir a ver o professor como um pai?
Com certeza, isso acontece muito. Até pela carência de atenção que essas crianças têm, isso
acontece o tempo todo.
Você acha isso bom ou ruim?
Eu acho bom no sentido de fortalecer mais os laços de amizade entre o aluno e o professor. Mas é
ruim porque a família pode acabar achando que determinadas funções que outrora seriam da
família, a família acha que é de responsabilidade da escola. Quando na verdade não é.
Os problemas, contudo, podem ainda ir mais longe, atingindo a própria relação entre
professores e pais. Estes são descritos pelos primeiros como eventualmente desrespeitosos,
precisando ser “domados” pela mediação da direção da escola:
Mas como é que foi isso?
Um brigou com outro. O pai veio tomar satisfação, descobriu que morava numa outra facção.
Depois acabaram descobrindo que na verdade primos, parentes, que não sabiam. Acabou tudo
bem. Tem um trabalho que interessante, que é fundamental, que não chega às vezes, diretamente,
aos professores que é o que tá acontecendo lá no portão. Pai vir aqui querer tirar satisfação com
professor porque chamou o filho de burro, jogou alguma coisa que poderia ter machucado ou por
causa da nota... a intervenção da direção é tão imediata que o pai não sobe mais. Ou quando vai
falar com o professor, já vem numa postura...
Amansado?
É amansado, mas numa postura do diálogo. Porque às vezes vem aqui querendo dar na cara do
professor. Eu já tive reunião aqui de pais que “tudo bem professor, mas nós não queremos falar
com o senhor. Nós queremos falar com o professor fulano de tal”. “Tá bom, só um instante”. Aí vai
chamar a direção até porque o professor não vem a essas reuniões, que não é obrigatória. Aí a
direção vai “olha...”
Este “desrespeito” pode assumir mesmo uma forma mais belicosa, em que aos pais
é atribuída uma visão do professor como um “rival”. Nesta percepção, surge uma visão
“infantilizada” e “psicologizada” da atitude dos pais, descrita como uma substituição de
natureza semelhante àquela que os alunos realizariam entre seus pais e seus professores.
Nesta percepção, os pais se comportariam como “alunos”, contestando a autoridade dos
professores de seus filhos como uma forma de “reedição” dos sentimentos de hostilidade que
teriam nutrido em relação a seus próprios professores:
Olha só... eu costumo dizer que são poucos os pais que costumam reconhecer o trabalho dos
professores. E eu costumo dizer que os pais, quando o aluno tem um bom desempenho, o aluno
está de parabéns. Quando ele tem um péssimo desempenho, o errado é o professor, o errado é a
escola. Então, a gente tem esse conflito de aceitação porque alguns pais enxergam o professor
como um rival. Quando, na verdade, não é. Eu acho que às vezes dificulta mais até o fato do pai
não ter uma formação porque aí a rivalidade aumenta. Porque se não tem uma formação, eles
acham... eles transferem a raiva que eles têm dos professores que foram dele para os professores
dos filhos. Eu acho isso uma coisa que dificulta muito o trabalho.
É interessante, contudo, realçar que esta visão não parece estar em conflito, na
lógica nativa destes depoimentos, com a percepção de que os professores desempenham
funções substitutivas parentais, o que, se percebido igualmente pelos pais, poderia
evidentemente explicar a imagem do professor como um “rival”. Ter que desempenhar
funções parentais e ser alvo de hostilidade/rivalidade dos pais são ambas razões para
queixas quanto à dificuldade de realizar seu trabalho como professores. Como explicar esta
aparente contradição?
Uma professora, que iniciou sua carreira há 25 anos, expõe assim sua visão das
transformações por que a educação teria passado nesse período:
Você acha que desde quando você entrou, você acha que mudou muito essa questão da
educação?
Mudou. Mudou para pior. No sentido de... os professores continuam trabalhando do mesmo jeito?
Sim, acredito que até mais do que trabalhava antes. Mas a valorização do professor mudou. A
escola não é mais respeitada pela sociedade como era antigamente. Antigamente a gente
costumava dizer que o quê o professor falava era lei. Hoje em dia não. Hoje em dia algumas leis,
alguns estatutos que foram criados, né? A gente não pode isso com o aluno, a gente não pode
aquilo com o aluno. Você não pode revistar uma mochila, você não pode chamar a atenção de uma
forma mais ríspida porque é constrangimento público. Você não pode deixar de castigo depois da
hora porque é cárcere privado. Enfim, eu acho que tudo isso veio dificultar o trabalho do professor
porque hoje o próprio professor tem a consciência de que a gente não tem artifícios de fazer uma
cobrança. E outro, antigamente a gente... o que o professor falava estava certo. A mãe aceitava e
dizia que estava certo. Hoje em dia não... hoje em dia a mãe vem aqui e questiona. O professor
não pode brigar, independentemente do motivo de ter chamado a atenção o importante não é o
professor estar corrigindo meu filho não. Ele não pode chamar a atenção do meu filho, você está
me entendendo?
Você acha que isso se deu de que forma?
Olha, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, eu acho que foi um
estatuto que veio para derrubar o nosso trabalho porque a gente não pode chamar a atenção
porque é constrangimento público, não pode colocar de castigo depois da hora porque é cárcere
privado, a gente não pode revistar uma mochila porque é invasão de privacidade e os alunos... e
quais são os argumentos que nós temos? Nenhum. Então, os alunos hoje, se ele faz uma coisa
errada, ele sabe que não vai ser punido. Então, se perde o respeito não tem nada a fazer. Aí você
chama o responsável, o responsável fica irritado porque teve que sair de casa para vir até aqui ou
teve que largar o trabalho para vir até aqui. Ontem, inclusive... a gente teve essa semana aqui uma
situação de uma aluna, seis alunas, fazendo guerra de água no banheiro das meninas.... uma na
outra, se molharam toda, uma arranhou o rosto da outra, podiam ter caído, batido com a cabeça,
se machucado feio. Quando eu chamei a mãe de uma delas, eu chamei a mãe de todas, mas só
uma mãe veio. Quando ela veio, a primeira pergunta que ela fez foi “a mãe das outras a senhora
também chamou?”. A questão que estava sendo discutida ali não era a mãe das outras. Era a
postura da filha dela. Então, o essencial deixou de ser importante, deixou de ser essencial. Se
tinha outras pessoas envolvidas então o erro são dos outros não é o erro do filho.
Você acha que mudou essa idéia de que o professor não pode punir?
Ele não tem mais autonomia, voz ativa. Isso é uma coisa que dificulta muito o nosso trabalho.
Considerações Finais
O depoimento dos professores trouxe um dado interessante para o qual não
havíamos feito qualquer hipótese no início da pesquisa: relação entre aumento da violência e
a política de aprovação automática do município do Rio de Janeiro. Tal associação,
expressa sob a forma de uma introdução espontânea por vários entrevistados do tema da
aprovação automática no decorrer de seus depoimentos, provocou na equipe um conjunto de
pequenas e/ou mais refletidas ligações para as quais chamamos a atenção neste relatório.
A política de aprovação automática não pode ser classificada apressada e levianamente
como “politiqueira”, “ideológica”, “irresponsável” ou “oportunista”. Os especialistas que a
fundamentaram o fizeram com base em ponderações persuasivas dos pontos de vista
pedagógico e psicológico. O que significa reprovar uma criança nas primeiras séries do
ensino fundamental, o que vale dizer, nos primeiros anos de socialização escolar? Estamos
falando de crianças na faixa etária de seis a dez anos, sem considerarmos o fato de poder
haver defasagem idade/série, o que elevaria a faixa etária acima dessa referência.
Educadores e psicólogos ponderam sobre os efeitos perversos, emocionais e psicológicos,
advindos da decisão ou do anúncio da reprovação, com desdobramentos profundos sobre a
experiência de socialização das crianças, sobre o rendimento escolar e a convivência
humana. Ser reprovado é perder o convívio com a turma e significa estigmatizar crianças
com efeitos negativos duradouros dificultando a recuperação posterior. Não reprovar
crianças no início da vida escolar pode ser fundamental para sua permanência na escola,
para o interesse pelo estudo e a possibilidade de motivação com reflexos positivos para o
melhor rendimento e para um desempenho mais adequado na rotina escolar.
Como fazer então para evitar que crianças entrem e sigam as séries fundamentais, não
aprendam o básico e sigam em progressão negativa acumulada? O complemento da política
de aprovação automática seria o sistema de ciclo – um processo constante de
acompanhamento individualizado dos alunos de modo a perceber fragilidades e agir sobre
elas sem que se marque o estudante com reprovação em disciplinas. E neste ponto o
desafio iminente seria viabilizar a combinação entre aprovação automática e efetivação do
sistema de ciclo. Isso não acontece na rede pública do Rio de Janeiro. As razões do
fracasso ou da extrema dificuldade do sistema de ciclo formam uma lista nada desprezível:
1) turmas com número excessivo de alunos impedindo o acompanhamento individualizado;
2) sobrecarga ao corpo docente não preparado para essa alteração de função e para as
exigências pedagógicas que tal intervenção reclama; 3) problemas endógenos às escolas
(materiais, infra-estruturais, humanos etc); 4) problemas externos à escola com impacto
sobre a rotina escolar (desestruturação familiar, ambientes afetados pela insegurança são
desafios permanentes que atingem o ambiente escolar e que se interpõem ao corpo
docente). A combinação das dificuldades interpostas ao bom rendimento do sistema de
ciclos com a efetivação da aprovação automática produziu o contrário do esperado
originalmente. Os estudantes obtiveram “licença para seguir adiante” sem qualquer
correspondência de acompanhamento e avaliação individualizada. Pesquisa recente de um
aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ confirmou
as dificuldades encontradas em uma escola da rede pública para a implementação da
política de ciclos e a junção feita no discurso dos professores do desacerto de ambas as
iniciativas: o ciclo e a aprovação automática (Jaime, 2007). Também ali encontramos reforço
à fala de professores que vêem com muita apreensão os desdobramentos de tais políticas
sobre a melhoria da educação pública no Rio de Janeiro.
No caso de nossa pesquisa, as falas dos professores ampliaram o cenário crítico com a
observação de que a aprovação automática retira do professor aquilo que o distingue do
corpo discente: a autoridade de avaliação. A despeito de sua interferência sinalizando o
despreparo do estudante para seguir, o aluno segue por séries continuadas sem que a
apreciação pedagógica docente seja considerada. Podada na base, naquela dimensão que
mais obviamente identifica a posição do professor diante da turma, a autoridade se esvai
com implicações para além da fronteira estritamente conteudista, de conhecimento,
pedagógica. Os professores estariam “desmoralizados” diante da turma como atores
qualificados para orientar sobre o percurso de aprendizado e, em correspondência, sobre o
percurso das relações intra-escolares. O esvaziamento da dimensão de autoridade nos
pareceu ser a fonte de muitas outras avaliações que atravessaram os depoimentos, exigindo
dos analistas uma postura mais atenta aos seus desdobramentos e às conseqüências daí
advindas. Estaria a autoridade docente dependente de um único aspecto da atividade de
magistério, a possibilidade de reprovação? Seria tal percepção um estreitamento da
percepção do sentido de autoridade pelo corpo docente? O que significa reduzir o sentido de
autoridade à sua dimensão repressiva? Há uma ponte direta entre esvaziamento da
autoridade de reprovar e perda da capacidade de se fazer obedecer em outras orientações
de vida? Aprovação automática e indisciplina se casam nos depoimentos dos professores
como sinais da perda de controle e do aumento da violência entendida aqui em uma escala
muito mais ampla das relações humanas que se efetivam no universo escolar.
A inserção espontânea do assunto “aprovação automática” aponta assim para o tema da
autoridade como eixo central organizador das percepções dos professores entrevistados
sobre o tema da violência nas escolas, interligando: a) o deslizamento entre as noções de
violência e indisciplina; b) a interpretação nativa “eliasiana” das relações entre ausência de
socialização primária para o respeito para com o outro e a eclosão da violência/indisciplina
na escola e c) a relevância da discussão sobre a quem cabe a “responsabilidade” pelo aluno,
se à escola ou à família, com o esmaecimento da fronteira entre os papéis de pai/mãe e
professor(a) surgindo como denúncia recorrente. Este banco de entrevistas constitui assim
um conjunto precioso de dados para a análise do modo como o problema da violência nas
escolas é percebido pelos professores, evidenciando um processo de ressemantização que o
vê não como uma questão isolada, mas sim como algo que possui articulações profundas
com outros aspectos do cotidiano escolar e da própria identidade da profissão de professor.
Referências Bibliográficas
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JAIME, Rafael Rocha. (2007). Sistema de ciclos: desafios de uma política pública. Rio de
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Municipais da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Departamento de Ciências
Sociais/UERJ, Monografia de graduação.
[10] Citado em Paulo Neves, “Indisciplina e violência na escola, frágeis fronteiras”. Revista de Educação.
Especial Grandes Temas (Violência e Indisciplina), p.79-87. São Paulo, Editora Segmento. A tese referida é
CAMACHO, L.M.Y. Violência e indisciplina nas Práticas Escolares de Adolescentes: Um estudo das realidades
de duas escolas semelhantes e diferentes entre si. São Paulo: USP: Tese de Doutorado, Feusp, 2000.