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FREDRIK BARTH [organizagio: Tomke Lask] 0 guru, o iniciador e outras variagdes antropolégicas Tradugio Job Cuunba Comerford CARA A andlise da cultura nas sociedades complexas* A expressio “sociedades complexas” que aparece no titulo deste trabalho pode parecer um pouco antiquada, uma expressio que deixa de lado questdes importantes e retoma posigdes insustentaveis. Mas diversos outros termos que usamos regularmente na antropologia, no em menor grau cullura e sociedade em suas vérias acepg6es, tam- bém podem ser caracterizados como termos antiquados, que dei- xam de lado questées importantes. Como a maiotia dos conceitos antropol6gicos, cultura esocedade estio marcados pelos questionéveis pressupostos do holismo e da integeacio: celebram a conexio entre stituigdes disctepantes, a adequacio dos costumes a um dado lugar e estilo de vida e o compartilhamento de premissas, valores ¢ experiéncias dentco de uma comunidade. Hoje em dia, a afirmagio dessa conexio, de modo geral, é feita com a linguagem do estrutu- ralismo, com sua énfase em padr6es Iégicos passiveis de abstracio, incrustados em formas superficialmente diversas; nesta linguagem, as abstrages supostamente apreendem o que é verdadeiramente importante nas formas. O uso que costumamos fazer do termo cultura corna-se ainda mais equivocado por incorser na profunda imprecisio de referit-se simultaneamente a (uma soma total de) padrées observiveis ¢ as bases ideais desses padrdes, abrindo as portas para a recorrente falécia de consttuir de maneita equivoca a descrigio como explicagio. Por fim, nossa avaliagio da cultura esta marcada pela ambivaléncia: por um lado, nds a vemos como algo * Do original: "The analysis of culeue in 1V, 1989. mplex societies" Ethur, vol. 5411+ Faso Ber imensamente intrincado, com enorme quantidade de deralhes que o exnégrafo competente deve demonstrat ter apreendido; por outro, hé tum ideal de ousadia para abstraire revelar a esséncia subjacente a eles. Nio tentarei melhorar essa situagio acrescentando mais uma contribuigio & problemética histéria das definigSes e redefinigses verbais de cultura e sociedade na antropologia. Em vez disso, creio ser mais til trabalhar substantivamente, explorando o grau ¢ os tipos de conexdo verificados no dominio da cultura em varias condiges de sociedade. © papel que escolho para essa tarefa nio € 0 de uma elegante erudigao académica, mas sim 0 do garoto que, no conto de H.C. Andersen, observa as roupas do Imperador. A teoria € os con- ceitos antropolégicos devem ser testados na andlise da vida tal como cla ocorre em um determinado lugar do mundo. Qualquer lugar pode servir como provocagio para desafiar e criticar a teoria antro- polégica. Usarei aqui a ilha de Bali, uma sociedade verdadeiramente complexa, para faz@-lo.! Bali ¢ a praxis antropolégica Devemos tentar olhar para nosso objeto de estudo sem que nossa visio seja excessivamente decerminada pelas convengées antropo- logicas herdadas. Descendo de um énibus no norte de Bali, vé-se um fervilhar incoerente de atividades na zona densamente habicada entre as altas montanhas eo mat circundante. Vefculos modernos trafegam em alta velocidade. Os passageiros e transeuntes, alguns usando sarongues, outros jeans, associam-se com rara graca e deli- 1 Este relato baseia-seem trabalho de campo realizado pot Unni Wikan ¢ por smim durante cecca de 11 meses cada um, desde dezembro de 1983, parte do ‘tempo juntos e part separados. Eu aagradeco pelo estimulo para a realizagio clo presente trabalho, por seus importantes ing ara a andlse aqui apeesentada, bem como por sua permissio para sar liveemente seus dados de campo, ‘A pesquiza foi spoiada pelo Norwegian Research Council for Science and the Humanities (NAVF) e pelo Insticuttet for Sammenlignende Kulturforskning Na Indonésia, a pesquisa foi apoiada pela Academia de Ciencias da Indonésia (LIPI), e contou coma orientagio do professor Ngurah Bagus, 108 |Assdute on CULTURA Ns SHEDS MPLS cadeza, mesmo quando dio as boas-vindas a turistas desajeitados. Grupos de criangas vestidas em seus imaculados uniformes escola- res passam de bicicleta. Turmas de trabalhadores colhem arroz nos campos vizinhos, formadas com base em regras ttadicionais de co- operagio ¢ contrato, mas colhendo variedades modernas de alta produtividade, culeivadas com irrigacio artificial e uso intensivo de fertilizantes, em um sistema que depende da Agua que vem de reser- vat6rios recentemente reformados € que suprem velhos canais de irtigagio. A tarde, em geral observa-se uma fila de mulheres levando oferendas elaboradas e coloridas sobre suas cabegas, em solene pro- cissio rumo a um dos inumeriveis templos dedicados 3 icrigagio dispersos pela rea rural, nos quais realiza-se um complexo culto de acordo com antigos costumes e calendirios. Essa diversidade desconexa (ao menos aparentemente) de ati- vidades e a mistura do novo com o velho, formando um cenirio cultural sincrético, sio caracteristicas desconfortiveis com as quais © ancropélogo irf se defrontar em quase todo lugar. Somos treina- dos a suprimir os sinais de incoeréncia ¢ de multiculeuralismo en- contrados, tomando-os como aspectos nio-essenciais decorrentes da modernizacio, apesar de sabermos que nio hé cultura que nio seja um conglomerado resultante de acréscimos diversificados, como nos lembrava Linton em sua dtima observacio a respeito do que era necessitio para ser cem por cento americano nos anos 1930 (Linton 1936: 326-7). Profundamente condicionados a rejeitar a aborda- ‘gem, hi muito desacreditada, estilo “colcha de retalhos” dos fené- menos de difusio e crescimento cultural, nés ainda insistimos obedientemente em encarat tais evidéncias como ameagas a0 nos- so objeto ¢ As nossas premissas. Em vez de tentarmos fazer com que nossas teorias déem conta do que efetivamente encontramos, somos levados a escolher algum padrio claro e delimicado em meio a esse cenério confuso e a aplicar nossa engenhosidade para salvar © holismo (funcionalista) por meio da construgio de isomorfismos ¢ inversées (estruturalistas) desse padrio escolhido 20 acaso, como se ele codificasse um encadeamento mais profundo, 109 aeoax an Posso facilmence imaginar algum colega que, ante esse cendrio en- contrado no norte de Bali e brevemente descrito acima, produziria uum artigo sobre a oposigio montanha:mar : alto:baixo :: homem: mulher : sageado:profano :: cabesa:corpo, para depois mostrar como isso torna posstvel que as mulheres, mais baixas, possam carregar sobre suas cabecas as oferendas sagradas, enquanto os homens protegem a sacralidade de suas cabegas e, por isso, apenas trans- portam cargas, seculares, sobre seus ombros, exceto as cinzas re- sultantes da cremacio, levadas para o mar sobre a cabega de um. homem, ¢ talvez como uma mulher que, através das partes baixas de seu corpo, teaz a0 mundo um bebs, encarado como divindade reencarnada. Nossos periddicos esto cheios dessas pequenas bobagens que, cembora inceressantes se bem feitas, essencialmente no trazem ne- snhum argumento e nfo mudam nada. Observem como elas funcio- nam: servem como meio para que seus autores consigam evitar to- dos 0s aspectos probleméticos do mundo que nos cerca; reafirmam silenciosamente o pressuposto de que a cultura apresenta uma co- exéncia légica generalizada, sem explorar a extensio ¢ a natuteza dessa coeréncia. Por mais que se multipliquem, relatos de campo des- se tipo deixam intocados os axiomas sobre cultura que herdamos. Reformulando nosso conceito de cultura HA uma crescente reagdo moderna contra esse escolasticismo. Nas palavras de James Clifford e George Marcus, precisamos jogar a cultura em sua totalidade no caldeirio das “controvérsias” porque la ndo pode ser representada como um “corpus unificado de sim- bolos e significados interpretados de maneira definitiva” (Clifford & Marcus 1986:19). Concudo, tendo estabelecido essa perspecti- va, no temos necessidade de mais e mais literatura programitica versando sobre o cariter indefinivel da verdade absoluta e sobre 0 cardter dial6gico das conversagées do etnégrafo no campo. O que de fato precisamos € encontrar os modelos mais adequados aos fendmenos com que nos deparamos e trabalhar no sentido de _Arwduse on cULTURAnas HOCEOADES COMMLEUS teorizar sobre a esfera a qual se pretende fazer referéncia por meio de palavras como cultura e sociedade. Para isto, acredito que o primei- ro passo é fazer afirmativas positivas falsificiveis sobre os fend- menos observados, isto é, precisamos ousar, mesmo correndo o ris- co de sermos ingénuos. Ingredientes para produzir essas afirmativas ousadas podem ser encontrados na convergéncia de diversas eeadig6es intelectuais contemporaneas que consideram as realidades das pessoas como sendo culturalmente construidas (por exemplo, Wuthnow «al 1984, em que hé uma revisio das perspectivas de Peter Berger, Mary Douglas, Michel Foucaule e Jiirgen Habermas). E possivel mostrar de forma razoivel que muito do que os membros de um determina- do grupo consideram como dados naturais € meramente um refle- xo de seus préprios pressupostos. Essas pessoas, contudo, bem como qualquer um de nés, necessariamente agem e reagem de acordo com sua percepsio do mundo, impregnando-o com o resultado de suas proprias construgées. A realidade de todas as pessoas é com- posta de construgées culturais, sustentadas de modo eficaz tanto pelo métuo consentimento quanto por causas materiais inevied- Esse consentimento, a0 que tudo indica, esta incrustado em representagées coletiv a linguagem, as categorias, os simbolos, os rituais ¢ as instituigdes. O que os antropélogos chamam de cultura de fato torna-se fundamental para entender a humanidade ¢ ‘os mundos habitados pelos seres humanos. ‘Acé af no hi problemas, mas desse ponto em diante, precisa- mos avancar com cuidado. Quais as decorréncias necessérias desse insight plausivel? O que devemos continuar a contestar na velha definigio de cultura? Refletindo de forma fiel 0 sentido geral da literatura por eles revisada, Wuthnow et al. propdem que a andlise cultural seja realizada como um “estudo da dimensio simbélica/ expressiva da vida social” (1984: 259). Com isso, todavia, intro- duz-se um pressuposto nio explicitado de que todos os padres observados nas construgées culturais estio de algum modo relacio- nados, de maneira essencial, as fungGes simbélicas e expressivas da Fason Burt cultura, A cultura pode ser representada como varisvel independen- tee principio motor, e perpetuada a heranga dos pressupostos do holismo e do essencialismo dentro dos universos fechados de dife- rentes culturas. ‘Aafirmacio de que a realidade é culturalmente construfda nio resolve verdadeiramente a questio de como ¢ de onde surgem os padrdes culturais. Desprender esses padres de uma pressuposta correspondéncia a uma tealidade objetiva e no-cultural no signi- fica dizer que todos os padrées culturais sio auténomos ou pro- priedade da culeura como tal; nem tampouco implica supor axiomaticamente a existéncia de miiltiplas culturas locais discretas ‘cinternamente integradas, Ao contrério, acredito que assumir a tese da construgéo cultural da realidade aumenta a necessidade de ex- plorar empiricamence o graw de padronizagio na esfera da cultura ¢ a diversdade de Fontes desses padres. Mais especificamente, creio que hd espago para argumentar que padres culturais fundamen- tais podem ser o resultado de processos sia expecificos, € que nem funcional, nem estruturalmente tais padres sio essenciais para as operagées simbéiicas e expressivas da cultura. Reflitamos, por exemplo, sobre o forte senso de coeréncia ¢ ordem generalizada que surge durante a imersio de um pesquisador em uma comuni- dade primitiva, algo que intuitivamente tomnou plausiveis os dogmas fancionalistas teoricamente falhos de Malinowski*. Serd que esse senso expe as raizes do significado ¢ da forga que a cultura pos- sui? No racioc{nio antropolégico convencional, somos levados a tomé-lo como evidéncia de uma consisténcia légica generalizada que se impie e permeia todos os aspectos do significado e da agio, a ser reconstitufda como as regras de transformagio de um cédigo lingiifstico ou a atticulagio entre as pegas de um quebra-cabecas. 2 Neste sentido, o proprio Malinowski admitin ter idealizado a descrigio da vida nas Trobriand ao retraté-a sem as influéncias européias que, na verdade ‘haviam “transformado em grau considersvel” (Malinowski, 1935:480). 12 Anse oa Aruna nas socEDRE one Nio seria, porém, mais dil desenvolver um método para questio- nar ¢ mapear o alcance dos encadeamentos presentes na cultura local, mostrando que esses encadeamentos si0 um artefato da vida em um contexto de pequena escala e densa sociabilidade?" Seja como for, o que vi em Bali certamente nio di essa impres- sio de Idgica e encadeamento generalizados. A vida no norte de Bali impressiona pela extraordindria riqueza e grau de elaboracio no dominio simbélico/expressivo e nio por seu caréter unitario. Intui- se uma aura ou um est que aos poucos torna-se familiar apesar de petmanecer evasivo; ea vida ali também tem uma multiplicidade, tuma inconsisténcia e um grau de contestacio que dificultam imen- samente qualquer tentativa de caracterizagio critica. Evidentemen- te, apresento apenas intuigdes formuladas de maneira muito impre- cisa, e rotular como “complexa” a situagio ainda é uma caracteriza- io grosseira.Creio, no entanto, que essas intuicdes devem ser sufi- cientes pata forsar-nos a descartar um vocabulério que celebre a harmonia, a adequagio ¢a unidade, bem como qualquer anilise que pressuponha a integracio e a consisténcia Iégica. Precisamos de- senvolver outros modelos que permitam apreender de modo mais direto € preciso as caracterfsticas observadas, sem um filtro que negue tudo aquilo aparentemente inadequado. Os modelos sistémicos e 0 holismo, no sentido de sua ambigio de abranger toda uma gama de fendmenos e construit um relato englobante, devem continuar a nos propor desafios, mas neles nio devemos buscar moldes daquilo que esperamos ou gostarfamos de encontrar. * Sem que chegasse a desenvolver essisimplicagBes, dei um primeiro passo actus dest em minh sdise dor stmbolesesgiicadescm tua dos Baktaman, da Nova Guiné (Barth 1975). Nels tento mostrar que os idiomas rituais dos Baktaman baseiam-se em codificagio anal6gica acarretando fontes de significado que nfo demandam que se pressuponha uma estrutura digital de

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