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XO SOLO, A SOCIEDADE E O ESTADO (*) Nota do Tradutor (**) Friedrich Ratzel (1844-1904) 6, sem di- vida um dos mals destacados representantes dda escola cléssica alemi de geografiy sua cobra, que trata de problemas que se associam ‘aos de outras cigaclas naturais © sociais, se consttui uma das contribuigées mais im- pportantes para 0 desenvolvimento da. geogra- fia moderna, em sua concepgio ambienta- lista tos de divulgagio, muti rincias a autores clisicos da geografia, entre ‘es quais Ratzel, algumas vezes citados a part de pontos de vista equivocades, em vérios ccatot por descontecimento de suas obras. sso se deve em muito, no caso de Ratzel a que a grande maioria de seus escrtos se encontra apenas em idioma alemlo; foram ceditadas algumas poucas tradugSes de scus livros © artigos em italiano, inglés e francés, todas atualmente esgotadas e de dificil acesso. ‘A tradugio que ora se publica protende ser uma contribuigio para que se couhega possa avaliar devidamente em nosso. meio © que Raizel realmente disse, Foi eluborada ‘no comprimento de um programa de pét- traduapifo sob a otientagio do Prof. Manoel ‘Seabra, a partir do texto em francés publi- ‘eado em L'Année Sociologique, no qual nfo worst referenchs wo radulor. Optouse por uma tradusdo esttamente literal, sem preo- cupagio com clegincia de estilo, que, na circunstincia, poderia ser arriscada © peri- fristica. Isso posto, sua divulgagio nos pa rece oportuna. (Mario Antonio Euftisio). Friedrich Ratzel I—0O SOLO E A SOCIEDADE Como 0 Estado no € concebivel sem territé- rio © sem fronteiras, constituiu-se bastante rapida- mente uma geografia polfica, ¢ ainda que nas cias politicas em geral se tenha perdido de com freqiiéncia a importincia do fator espacial, da situago, etc., considerase entretanto como fora de diivida que o Estado nao pode existir sem um solo, Abstratlo numa teoria do Estado é uma ten tativa v8 que nunca pOde ter éxito seniio de modo passageiro. Pelo contrério, tem havido muitas teo- rias da sociedade que permaneceram completamente alheia a quaisquer consideragdes geogrificas; estas tém mesmo t2o pouco lugar na sociologia moderna que € inteiramente excepcional se encontrar uma obra em que elas desempenham algum papel. A ‘maior parte dos socidlogos estuda o homem co- mo se ele se tivesse formado no ar, sem Lagos com a terra, O érro dessa concepgiio salta aos olhos, 6 verdade, no que concerne as formas inferiores da sociedade, porque sua extrema simplicidade faz com que scjam semelhantes a formas mais elemen- tares do Estado, Mas entio, se os tipos mais simples de Estado so irrepresentaveis sem um solo que Ihes pertenca, assim também deve ser com os tipos mais simples de sociedade; a conclusio se impde. (*) — Tradurido de “Le Sol, Ia Societé ot tat” — LAnnée Sociologique (1898-1893) 3°: 1-14, Paris. (G8) — Tradutor: Mario Antonio Enfeisio. 0 tra- dutor, na época da elaboracio deste trabalho, era aluno do Dept? de Geografia da FFLCH da USP, no curso de Ps-Graduagio 2 nivel de. Mestrado, ‘Trabalho entregue para publicagio em 18/08/82 4 Num e noutro caso, a dependéncia em relacio a0 solo é um efeito de causas de todo género que li- gam 0 homem a terra. Sem diivida, o papel do so- To aparece com mais evidéncia na histéria dos Es- tados que na histéria das sociedades, ¢ isso seria devidlo aos espagos mais considerdveis de que o Es- tado tem necessidade. AS leis da evolugao geogré- fica sio menos féceis de se perceber no desenvol- vimento da familia e da sociedade que no desenvol- vimento do Estado; ¢ 0 so justamente porque aque- las esto mais profundamente enraizadas a0 solo mudam menos facilmente do que este. 1 mesmo tum dos fatos mais considerdveis da histéria a f6rga com a qual a sociedade permanece fixada 20 solo, mesmo quando o Estado dele se destacou. Quando 6 Estado romano morte, 0 povo romano Ihe sobre- vive sob a forma de grupos sociais de todo tipo © pelo intermédio desses grupos que se transmitiram 2 posteridade uma multiplicidade de propriedades {que o povo havia adyuivido no Estado © pelo Estado. Assim, quer seja o homem considerado isolada- mente ou em grupo (familia, tribo ou Estado), por toda parte em que se observar se encontraré al- ‘gum pedaco de terra que pertence ou sua pessoa fou ao grupo de que ele faz parte, No que diz respeito a0 Estado, a geografia politica apés longo tempo se habituou a levar em consideragiio a di- mensio do territério ao lado da cifta da populacio. Mesmo os grupos, como a tribo, a familia, a comu- nna, que no sf0 unidades politicas auténomas, s6- mente sio possfveis sobre um solo, e seu desenvol vimento nio pode ser compreendido sendo com respeito a esse solo; assim como o progresso do Es- tado é ininteligivel se nfo estiver relacionado com © progresso do dominio politico. Em todos esses casos, estamos na presenga de organismos que en- tram em intereimbio mais ou menos durivel com a terra, no curso do qual se troca entre eles e a terra todo género de ages © de reagées. E quem venha f@ supor que, num povo em vias de crescimento, fa importincia do solo no seja tio evidente, que observe esse povo no momento da decadéncia ¢ da disolugio! Nao se pode entender nada a respei- to do que entdo ocorre se no for considerado 0 solo. Um povo regride quando perde territério. Ele pode contar com menos cidadios ¢ conservar ainda muito solidamente o territério onde se en- contram as fontes de sua vida. Mas se seu territé se reduz, 6, de uma maneira geral, o comego do fim. It TAGAO HABITACAO E ALIMEN- Sob variagbes diversas, a relagdo da sociedade com solo permanece sempre condicionada, por uma dupla necessidade: a da habitagio ¢ a da ali mentagio. A necessidade que tem por objeto habitagdo € de tal modo simples que dela resultou, entre © homem ¢ 0 solo, uma relacio que perma neceu quase invaridvel no tempo, As habitagées ‘modemnas so, na maior parte, menos efémeras que as dos povos primitivos; mas o habitante das gran- des cidades faz para si com pedras talhades um abrigo ar que nem sempre € to espagoso quanto as cavernas da idade da pedra; da mesma’ forma, muitas das aldeias negras e polinésias sio compostas de chogas mais confortiveis que muitas aldeias européias. Em nossas capitais, os represen: tantes da mais alta civilizagao que 4 existiu em, para suas habitagGes, de menos lugar que 05 habitantes miseréveis de um kraal hotentote As habitagdes entre as quais hé mais diferenga si, de um lado, aquelas dos pastores némades, com a extrema mobilidade necesséria &s migragGes com tinuas da vida pastoril, e, de outro, os apartamen- tos amontoados nos enormes edificios de nossas grandes cidades. E todavia, os préprios ndmades estiio ligados ao solo, ainda que 03 lagos que oF ligam a ele sejam mais fracos que aqueles da so lade de vida sedentéria. Eles tém necessidade de mais espaco para se mover, mas voltam peri camente a ocupar os mesmos locais. Portanto, nio existe apoio para se opor os némades a todos of outros povos sedentdrios tomados em bloco, pele ‘inica razfio de que apés uma estada de alguns me ses num local, némade levanta sua tenda ¢ a trans- porta, no dorso de seu camelo, para algum ow tro lugar, de pastagem. Essa diferenga nada tem de essencial; no tem, mesmo, a importincia da- quela resultante de sua grande mobilidade, de sua necessidade de espago, consequéncia da vida pas- toril. Representou-se igualmente os némades como completamente desprovidos de qualquer organiza- gio politica no sentido da antiga méxima Sacae nomades sunt, civitatem non habent. (1) Indagou- vse se cles valorizam 0 solo que ocupam e, conse. quentemente, se cles o delimitam. Mas hoje, tal de tanhas, riquezas, cursos d’égua e mesmo montes de peda artificialmente edificados representam as fronteiras das tribes, e até mesmo as menores di- visoes apresentam limites. E quanto & capacidade desses mesmos povos em criar Estados, pode-se ver quanto ela é grande pela histéria das sociedades sedentérias que se encontram rodeadas por tribos némades; quando os Estados das primeiras decaem, io justamente os ndmades vizinhos que introdu- zem uma nova vida da qual resultam novos Esta- dos. De resto, ndo 6 entre os pastores ndmades que a ligago com o solo est em seu mfnimo; com efeito cles retornam sempre as mesmas pastagens. Fla € muito mais fraca entre os agticultores da Africa tropical ¢ das Américas que, a cada dois ‘anos aproximadamente, deixam seus campos de mi- Tho ou mandioca para a eles nunca maais retornar. E ela é menor ainda entre aqueles que, por medo dos povos que ameagam sua existéncia, néo ousam se ligar muito fortemente & terra, Entretanto, uma classificago superficial nao inclui tais sociedades centre 03 némades. Se ce classifiear os povos segun- do a forga com que aderem ao solo, € preciso colo- ‘car decididamente no nivel mais baixo os pequenos povos cagadores da Africa central e da Asia do sudoeste, assim como aqueles grupos que se encon- 95 tram errantes em toda espécie de sociedade, que um solo determinado thes seje destinado em particular (por exemplo, os boémios da Europa, os Fetths do Jopfo). Os Australianos, os habitantes da ‘Terra do Fogo, os esquimés que para suas cage das, para suas coletas de raizes, procuram sempre certas localidades © que delimitam seus territérios de caga, esto a um nivel mais elevado. Mais ack ma, se encontram os agricultores némades dos pat ses tropicais; depois, 0s povos pastores que, nas diferentes regiées da Asia, ha séculos se mantém sobre 0 mesmo solo. E é somente entio que vem cs asricultores sedentérios, estabelecidos em aldeias fixas, 0s povos civilizados, igualmente sedenti- rios, dos quais a cidade é como que o simbolo. A alimentago & a necessidade mais premente para os particulares como pata a coletividade; tam- bém as necessidades que ela impde aos individuos como aos grupos sobrepuja todas as outras. Quer ‘© homem busque seus alimentos através da caga, da pesca, dos frutos da terra, € sempre da natureza da alimentago que dependem o lugar da habitagio e extensfio do terreno que produz os alimentos: © tempo de permanéncia dos estabelecimentos em tum mesmo local varia igualmente segundo as fon- tes da alimentagio fluam de uma mancira durdvel ou se esgotem ao fim de certo tempo. A caga em prega os homens de preferéncia, enquanto que a coleta de fruto € muito mis ocupago das mu Theres € criangas. Quanto mais a caga ¢ a pesca sto produtivas, mais ha mulheres e criangas disponiveis para o trabalho doméstico; e tanto mais, por conse- ‘quéncia, a casa pode ser solidamente construida © convenientemente disposta. Enfim, quanto mais a agricultura esta em condigdes de assegurar & neces: sidade de se alimentar uma satisfagio certa, tanto mais também se torna possfvel se fixar sobre um habitat limitado. Ha entio uma multiplicidade de fenOmenos sociais que tém sua causa na necesside de, primitiva e premente, da alimentagio. & para (1) — Em Iatim, no or.: “Os, sécios sio némade ‘¢ nfo tém cidades. (no conhecem vida social urbana oF ganizada)”. (N. do T.) 96 se explicar esse fato, niio € necessério se recorrer da “urgéneia” de que fala Lacombo, se- ‘gundo a qual as instituigdes mais primitivas 0 mais fundamentais seriam aqueles que respondem as ne- cessidades mais urgentes. 001 ‘Quando se utiliza 0 solo apenas de uma ma- neira passageira, a fixagiio a ele se dé apenas de uma maneira também passageira. Quanto mais as necessidades da habitacZo ¢ da alimentagéo ligam estreitamente a sociedade a terra, tanto mais € pre- mente a necessidade de nela se manter. E dessa necessidade que 0 Estado tira suas melhores for- sas. A tarefa do Estado, no que concerne 20 solo, etmanece sempre a mesma em principio: 0 Esta do protege 0 tertitério contra 0s ataques extemos que tendem a diminuio. No mais alto grau da ‘evolugio politica, a defesa das fronteiras no 6 a tinica a servir nesse objetivo; 0 comércio, o desen- volvimento de torlos os reeirsos que contém 0 sola, numa palavra, tudo aquilo que pode aumentar o poder do Estado a isso concorre igualmente. A de- fesa do territ6rio (pays) € 0 fim dltimo que se per segue por todos esses meios. Essa mesma necessida- de de defesa é também o resultado do mais notivel desenvolvimento que apresenta a histéria das rela- ses do Estado com o solo; quero me referir a0 crescimento territorial do Estado. O comércio pa- ico pode preparar esse ctescimento, porque ele tende finalmente a fortalecer 0 Estado e a fazer recuar os Estados vizinhos. Quer consideremos uma sociedade grande ou pequena, antes de tudo, ela busca manter integralmente 0 solo sobre 0 qual vi- ve € do qual vive. Logo que venha a se assegurar especialmente dessa tarefa, imediatamente ela se transforma em Estado. E preciso observar as formas mais simples das sociedades para bem compreender essa relagio. Se se examina de perto a relagio da sociedade com o solo e essa necessidade de proteger o solo que ¢ a razio de ser do Estado, se nota que, de todos os agrupamentos sociais, aquele que apresenta a mais forte coesio & casa cujos membros moram todos juntos, limitados no mais estreito espago, unidos 8 mesma cunha de terra. Os habitantes da aldcia, da cidade estio ainda, pela mesma razlo, fortemen te Tigados uns sos outros. Mesmo quando estes ‘limos tipos de sociedade tomam formas poltticas, clas conservam ainda alguma coisa de familial na mancira pela qual esto constituidas © ndo vemes ainda 0 Estado parecer porque ele se confunde com a familia, O carter doméstico da associagao re cobre © seu cariter politico. E somente quando a familia estd fragmentada que os acordos sociais, ne cessirios & defesa, se distinguem dos outros; © ve ‘mos entio aparecer 0 Estado quando forgas toma das desses diversos_grupos familiares si0 assoc das no objetivo especial de defender o solo. idéia de que o solo tem alguma coisa de sagrado, porque ancestrais estéo nele enterrados, contribui para esse resultado; porque a ligagio ao solo, que 6 consequéncia dessa idéia, cria entre as sociedades, dictintas e coperadac, uma comunidade de intersse que € um encaminhamento para a formagio do Es tado. III — O SOLO E A FAMILIA Do ponto de vista econémico tanto quanto do ponto de vista politico, a relagio mais simples que uma sociedade pode manter com o solo é aquela que se observa no caso da familia monogimica; em tendo por isso 0 grupo formado por um casal ¢ seus descendentes que, a partir de uma choga co: ‘mum, se itradiam sobre um espago limitado que exploram para a caga ou a pesca, tendo em vista dele extrair sua alimentagdo. Se a familia cresce por multiplicagdo natural, entio se vé também cerescer 0 solo que Ihe ¢ necessério para poder vi ver. No caso mais simples, esse crescimento se far sem solugdes de continuidade, ou seja, 0 dominio utilizado se estende em tomo da casa familiar Vindo a aumentar, a familia monogimica pode vir a set a familia composta ou o cla que, como na América do Norte ¢ na Oceania, inteira, permanese morando sob um mesmo teto, na “‘casa do cli”, Naturalmente, s6 pode ser assim onde o solo é par- ticularmente produtivo, como perto dos rios bas- tante piscosos da América do Norte, ou ainda nas regides onde a agricultura aleangou um grau bas- tante alto de desenvolvimento. Esse tipo de familia ‘ou do cla faz, entio, as veres de Estado. Mas quando 0 grupo familiar se divide a fim de assegu- rar aos recém-chegados uma parte determinada do solo, Jogo aparecem habitantes novos e cada um deles é a séde de uma nova sociedade doméstica. Entiio 0 desigual valor das terras comega a fazer sentir seus efeitos; elas sio mais ou menos afas- tadas, elas nfo t8m a mesma siluagio, a mesma fe- cundidade © todas essas diferengas tm uma in- fluéncia sobre 0 desenvolvimento das familias. Os pais néo podem formar grupos economicamente fe- chados uns em relagio aos outros; mas 0 lago que ‘os une em virtude de sua comunidade de origem se mantém e liga muitos estabelecimentos, muitas al- dias, muitas casas de cli uns aos outros. E assim que um Estado tem origem. Desta vez, a separagio das unidades politicas e das unidades econdmicas & um fato consumado. Mas, nesse estigio do de- senvolvimento, 0 Estado coincide ainda com o cla Ora, é de sua esséncia fazer para si um territério que ultrapasse aquele que ocupa o grupo familiar. Este iltimo 6 e permanece um organismo mono- celular; 0 Estado, a0 contrério, atrai para 0 seu cfreulo de ago um niimero sempre mais conside- rdvel desses organismos elementares ¢ ultrapassa a todos. Forma-se, assim, entre esses dois tipos de agrupamento, uma diferénga de dimensio que € pro- funda e essencial. IV — O SOLO E O ESTADO Para além do cli, todo crescimento da socie dade 6, na realidade, um crescimento do Estado. Se muitos clas estabelecem uma alianga ofensiva ou defensiva, a confederagéo que formam por sua uniéo néo € ainda um Estado, O Estado se des prende entio sucessivamente do grupo econémico, depois do grupo familiar, os domina e os envolve, 7 Entio, se chega a fase em que 0 Estado é 0 tinico grupo que pode receber uma extensio territorial continua. f dessa maneira que cresceu cada ver mais até formar impérios que abarcaram quase com tinentes; e 0 limite extremo desse desenvolvimento no foi ainda atingido. ‘Assim, do mesmo modo que 0s grupos econé: micos compostos de uma habitagao com os territé rios de caga, de pesca ou de cultura de que depen- dem representam as formas primitives do Estado, sfo eles também os primeiros a perder todo cariter desse género, Mas cles se desenvolvem ativamente fem outros sentidos ¢, se 0 Estado a0 qual perven- ‘cem vem a se dissolver, eles esto prontos a reto- mar seu antigo papel desde que seja til. E que ‘eles compreendem, como Estado, um territério © homens. O grupo dos pais nfo campreende sendo homens; néo tem raizes no solo; desde que o Es: tado ultrapasse o cla, também se ve esse grupo desaparecendo entre a aldeia e 0 Estado. Ainda que a tendéncia & extensio territorial seja como que inata na natureza mesma dos Es- tados, sucede que, colocados esses em concligdes especiais, devem, para poder se manter, renun a se estender. Mas quanda 0 Fetado assim ass Ja limites & sua dimensio, 0 crescimento natural da populagio a torna necessariamente muito densa, s¢ forgas politicas ¢ sociais nio intervém para colocar obstéculos a essa condensagio. Se essa intervengio niio se produzisse, a relago dos homens com 0 solo deveria se modificar por toda parte no mesmo sen- tido; eles se tornariam sempre mais numerosos en- quanto que a porsio do solo ocupada por cada um iia do. O Estado que depende firmemen- te de seu solo © que ndo quer sair do isolamento em que encontra seguranga & entdo obrigado a se empenhar em uma luta contra a socicdade. Ele impede 0 crescimento natural desta, determinando migragdes. ‘Todavia, enquanto a humanidade néo ultrapassou ainda o estgio da barbérie, foram os meios mais simples ¢ os mais rapidamente efiea- zes os de preferéncia empregados. Todas as pri- ndmero de vides humanas e as quais a sociedade obrigada a se conformar, desde 0 abandono dos recémnascidos até a antropofagia, a vendetta, a guerra, concorrem para produzit esse resultado. A nevessidade dessa diminuigdo € particularmente evi cute cm toda parte em que 0% poves ceupam um dominio nitidamente circunserito pela natureza, co- mo 05 ofsis ¢ as ilhas; € 0 que Malthus jé havia vis to. Ela nfo é tao vistvel nos pequenos Estados dos povos primitives, porque # natureza nao os separa téo radicalmente do resto do mundo; mas a vontade dos homens zela cada vez mais para manté-los iso- ados. E um dos mais prementes desiderata da so- ciologia que os métados pelos quais se colocou obs- ticulos a0 crescimento da populagio, métodos cuja pritica € tanto consciente como inconciente, sejam cenfim expostos de uma maneita sistemitica, A ma- neira pela qual as sociedades definham ¢ morrem quando séo colocadas em contacto com povos de civilizagao superior foi descrita em numerosas mo- nografias; e entretanto esse fendmeno esté longe de ter desempenhado na histéria da humanidade ‘um papel tio importante quanto a tendéneia dos {grupos sociais em se concentrar em espagos resti- tos e em se isolar uns dos outros, tendéncia & qual milhares de povos, pequenos ou grandes, sacrifi- ccaram as forgas que Ihes teriam permitido crescer. © progresso da humanidade, que s6 € possivel ‘gragas a0 contacto dos povos ¢ & sua concorréncia, deveria necessariamente ser entravado a0 alto pon- to por préticas desse género. No efrculo estre sempre homogeneo do Estado familiar, nenhum personalidade original poderia se constituir ¢ as ino: vvagoes seriam impossiveis. Elas supGem, com efei- to, que uma primeira diferenciagio se tenha produ- ido no seio da sociedade e que, além disso, se te- ham estabelecido relagdes entre as diferentes socie- dades de maneira a que possa haver entre elas co ‘mo que uma méitua estimulagdo para o progreseo E preciso que 0 fato ndo se produza uma 36 ¢ tinica vez, mas que se repita. F essa mesma idéia que exprimia Comte quando dizi que, fora o meio, havia uma forga, capaz de ow estimular ou retardat © progresso, na densidade crescente da populagio, na necessidade crescente de alimentos que aparece 20 mesmo tempo, € na divisio do trabalho € a coo- peragio que dela resultam. Se Comte se_tivesse clevado a uma concepeao propriamente geogrifica, sc tivesse compreendide que ecca forga como esse meio tém 0 solo por base ¢ dele nao podem ser separados porque © espaco thes é igualmente indis- pensfvel, teria ao mesmo tempo aprofundado e sim plificado toda a no¢do que tinhe do meio. ‘A sociedade € 0 intermediério pelo qual o Estado se une ao solo. Seguese que as relagies da sociedade com o solo afetam a natureza do Es- tado em qualquer fase de seu desenvolvimento que se considere. Quando a atividade econémica é pouco desenvolvida, a mesmo tempo em que 0 tertitério & extenso, e, por consequéncia, & fécil desunirse dele, resulta uma falta de consisténcia ¢ de estabilidade na constituigao do Estado. Uma populagio esparsa, que tem necessidade de muito espago, mesmo quando cla estiver encerrada em ‘um circulo de fronteiras nitidamente definidas, prov duz 0 Estado dos nOmades, cujo trago caracterist co € uma forte organizagio militar, tornada necessé ria pela nccessidade de defender vastas extensées de terra com um pequeno ntimero de habitantes. Se, pela pritica da agricultura, a sociedade se une mais estreitamente a0 solo, entio ela imprime 20 Estado todo um conjunto de caracteres que depen pela qual as terras estio divididas centre as famflias. De inicio, o Estado est mais so- lidamente estabelecido sobre um solo bastante po voado, de onde ele pode tirar mais forga huma nas para sua defesa e uma maior vatiedade de re cursos de toda espécie do que se a poptlagtio fosse pequena. Também no simplesmente segundo a extensio de seu territério que € preciso apreciar a forca de um Estado; tem-se uma medida melhor na relagio que a sociedade sustenta com o territério. Porém hé algo mais; essa mesma relagio age tam- bém sobre a constituigo interna do Estado. Quan do o solo esta dividido igualmente, a sociedade ¢ hhomogénea e propende para a democracia; a0 con- tririo, uma divisio desigual € um obstéculo a toda organizagio social que daria a preponderdncia po- Itica a0; no proprietérios e que seria, por con- seguinte, contréria a toda espécie de oligocracia Fsta atinge seu méximo de desenvolvimento nas sociedades que tém em sua base uma populagio de escravos sem propriedade e quase sem direitos. Dai vem uma grande diferenca entre dois ti- pos de Estados: em uns, a sociedade vive exclusi- yamente do solo que cla habita (quer seja pela agricultura ou pela criaglo, nao importa) ¢ 0 domi- niv de vada trlbo, de cada comuna, de cada familia tende a formar um Estado no Estado; nos outros, (os homens sdo obrigados a recorrer a terras diferen- tes e frequentemente muito afastadas em que estio estabelecidos. Onde a densidade estd em seu ponto mais alto, no hé sendo uma pequena parte da po- pulagio que vive unicamente do solo; a maioria vai procurat os alimentos e 0 vestudrio necessérios para viver em um outro solo. Nos distritos indus- triais mais povoados, uma boa parte dos trabalha- dores reside longe do local em que esto emprega- dos; & uma populagio flutuante que vai para cf ‘ou 1é segundo as oportunidades de trabalho que Ihes so oforecidas. Mas aqueles que néo vivem do solo que ocupam tém naturalmente necessidade de estabelecer relagdes com outras terras. E para isso que serve 0 comércio. Somente que o cuidado de colocar essas relagées a0 abrigo das revoltas pos siveis 6 uma fungio que incumbe ao Estado; assim & que se vé este tiltimo estender seu campo de agio por meio de coldnias, de confederagées aduaneiras, de contratos de comércio, movimento de extensio que tem sempre, pelo menos em algum grau, um cardter politico. Encontramos, entio mesmo nos estigios mais elevados da evolugio social, a mes- ma divisdo do trabalho entre a sociedade que utili- za o solo para habitar ¢ para dele viver, ¢ o Estado {que © protege com as forgas concentradas em suas miios. Poderé nos ser objetado talvez que essa con- cepgio deprecia 0 valor do povo © sobretudo do 99 hhomem ¢ de suas faculdades intelectuais, porque cela exige que seja levado em conta 0 solo sem 0 qual um povo nao pode existir. Mas a verdade nao deixa de ser verdade. © papel do elemento huma- no na politica néo pode ser exatamente aprecindo, se niio se conhecem as condigdes as quais a agi0 politica do homem esté subordinada. “A organiza- ‘¢do de uma sociedade depende estreitamente da na- tureza de seu solo, de sua situacdo; 0 conhecimen- to da natureza fisica do territ6rio (pays), de suas vyantagens ¢ de seus inconvenientes, resulta entdo na histéria politica”. A histéria nos mostra, de uma maneira muito mais penetrante que © histo- riador, a que purty v solo é a base real da pol Uma politica verdadeiramente pritica tem sempre ‘um ponto de partida na geografia. Em politica co- mo em histéria, a teoria que faz abstragao do solo toma os sintomas por causa. Como compreender tudo aquilo que hi de estéril numa luta em que poder politico € 0 tinico objetivo ¢ onde a vitéria, de qualquer lado a que se volte, deixaria entretan- to as coisas quase no mesmo estado em que se en- contravam antes? Tratados que no tém por efel- to repartir esse poder em conformidade com a si- tuagio respectiva dos Estados, nfo sio nunca se- nfo expedientes diplométicos sem duragio. Ao con- twivio, aqui fio de um territério novo, ao obri- gar 0s povos a empreendet novos trabalhos, es tendendo seu horizonte moral, exerce sobre eles uma ago verdadciramente libertadora. Eis 0 que determina © renascimento dos povos que, apés uma ‘guerra feliz, se enriquecem de novos tertitérios (pays), prémio de sua vitéria. Bis de onde vem esse efeito de renovagio e de rejuvenescimento que historiadores profundos, como Mommsen, atribuem a toda expansio politica. A Réssia desenvolveu seu poder no curso daquelas mesmas lutas que # Europa ocidental sustentou durante as cruzadas. Mas aqui aparece a grande diferenga entre a his (tia que se move cobre a terra natal aquela que se dissipa em expedig6es longinquas nos paises es trangeiros. £ na Rissia que s¢ fundou esse grande império cristo do Leste que as cruzadas procuraram 100 de maneira va criar em outro lugar, porém se abs- tendo de qualquer base territorial. Nela se vé eres- cer sem interrupso um Estado que tira suas forgas do solo recémadquitido; aqui se assiste a um ré- pido aborto devido a que se estava muito longe das fontes mesmas da vida nacional. A guerra da Cri- méia, © tratado de Paris de 1856 © cua dentncia em 1871 so outros exemplos do mesmo fendmeno; as condigées geogréficas af desempenharam 0 mes- mo papel. Nessa poderosa agio do solo, que se manifesta através de todas as fases da histéria como em to- das as esferas da vida presente, hi alguma coisa de misterioso que nao deixa de angustiar o espiri- to; porque a aparente liberdade do homem parece como que anulada. Vemos, com efeito, no solo a fonte de toda servidio. Sempre 0 mesmo e sem- pre situado no mesmo ponto do espaco, ele serve como suporte rigido aos humores, 4s aspiragdes mutéveis dos homens, e quando thes acontece es- quecer desse substrato, ele Ihes faz sentir su impé- tio © Ihes lembra, por sétias adverténcias, que to- da a vida do Estado tem suas rafzes na terra. Ele regula 0s distinos dos povos com uma brutalidade cega. Um povo deve viver sobre 0 solo que rece- bew por acaso, deve nele morrer, deve submeter-se 4 sua lei. E no solo enfim que se alimenta 0 egofs- ‘mo politico que faz do solo 0 objetivo principal da vida pablica; ele consiste, com efeito, em conservar sempre © apesar de tudo o territ6rio nacional, e em fazer de tudo para permanecer 0 tinico a dele des- frutar, mesmo quando os lagos de sangue, as ali- nnidades étnicas inclinassem 03 coragées para as gen: tes e as coisas situadas além das fronteiras. Vv — O SOLO E O PROGRESSO E inteframente natural que a filosofia da his- t6ria tenha sempre colocado uma espécie de pre- dilego em investigar a base geogrifica dos eventos histérico. Com efeito, em sua qualidade de cién- cia mais elevada, que se distingue unicamente das outras disciplinas histéricas por sua tendéncia em investigar de preferéncia as causas gerais © per manentes, ela encontrou no solo, que & sempre idéntico a si mesmo, um fundamento imutével aos eventos mutiveis da histéria, f igualmente assim que a biologia, que € em definitivo a histéria dos seres vivos sobre a terra, esté sempre voltada & consideragio do solo sobre © qual exces vores nas ceram, se movem e Iutam. A filosofia da histia é superior & sociologia porque procedeu por compi- ragbes hist6ricas e porque foi assim conduzida, por si prépria, a compreender a importincia do solo, Devido oferecer um ponto de referéncia fixo no meio de mudangas incessantes das _manifestayes itais, 0 solo fen: jd, em si e por si, alguma coisa de geral. Bis como se deu que os filésofos tenham vite do bastante cedo a reconhecer, melhor que os histo riadores propriamente ditos, 0 papel do solo na his t6ria, Montesquieu ¢ Herder nao se propunham re solver problemas sociolégicos ou geogréficos quan- do se preocuparam em estudar as relagdes dos po vos € dos Estados com seus territ6rios respectivos; ‘mas, para compreender © papel do homem ¢ sei destino, eles sentiram a necessidade de represenié clo sobre este solo que serve de teatro a sua atte dade e que, segundo Herder o Ritter, foi criado par ra ele, de maneira a The permitir af se desenvolver conformemente a0 plano do Criador. © que é surpreendente € que, nas considers ‘g0es relativas a0 progesso histérico, dele se tenha {Go pouea conta. Quanto so obscuras esses tee ias em que se nos representa o desenvolvimento hhumano sob a forma de uma ascengZo em linha ret, ou de uma espécic de fluxo ¢ de refluxo, ou de um movimento em espiral, etc.! Rejeitemos essa fame tasias © nos atenhamos & realidade, nos obrigando sempre a sentir 0 s6lido solo sob nossos pés. Eno veremos a evolugio social e politica se reproduit sob nossos olhos, no seio do espagos sempre mals extensos. E evidente que, por isso mesmo, a evo lugio, ela também, se cleva sempre mais alto. Por que © horizonte geognifico se estende, as ciéncias, da astronomia & sociologia, além de se desenvolve rem em emplitude, alcangam um grau de conheck mento sempre mais elevado. A medida em que o territério dos Estados se torna mais considerdvel, nfo € somente 0 mimero de quilémetros quadrados que cresce, mas também sua forga coletiva, sua ti queza, seu poder ¢, finalmente, seu tempo de per- manéncia. Como o espirito humano se enriquece cada vez mais & medida em que os caminhos per- corridos pela evolugio humana sobre esta terra se ilatam mais, 0 progresso pode ser figurado, com 101 ‘uma aproximagéo suficiente, por uma espiral as cendente cujo raio vai aumentando cada vez mais ‘Mas a imagem esti to longe da realidade que é des- provida de qualquer utilidade. £ por isso que pode ser considerado como suficiente mostrar na exten: so progressiva do territétio dos Estados, um ca: réter essencial e, ao mesmo tempo, um poderoso motor do progresso histérico.

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