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CAPITULO 11 AULA DE MUSICA: DO PLANEJAMENTO E AVALIACAO A PRATICA EDUCATIVA Liane Hentschke Luciana Del Ben 11.1 PLANEJAMENTO EM MUSICA: CONCEPCOES EIMPORTANCIA Desconhecemos qualquer curso de licenciatura, pedagogia ou de formagio continuada de professores que nio atribua um papel primordial ao planejamento de ensino ¢ & avaliagdo. Planejar e avaliar, em qualquer érea do conhecimento escolar, sdo condigées sine qua non para a efetivacao do ensino. Seri que o mes- ‘mo acontece com a fea de musica? Qual a importincia que n6s, professores de iisica, atribuimos ao planejamento e & avaliagZo como forma de garantir um censino de qualidade? Dificil de responder. No entanto, a érea conta, nos dias de hoje, com muitos livros didéticos (Souza, 1997) que, cada qual a sua maneira, apresentam possiveis solucdes répidas para os dilemas mais comuns dos profes- sores que trabalham com educacdo musical: “quais atividades eu poderia desen- volver amanhi de manh com a minha turma de 30 alunos?”. Diante de uma questdo tdo inquictante, resta a0 professor recorrer, com urgéncia, ao material didatico dispontvel em bibliotecas, livrarias e escolas. ‘Como formadoras de professores de misica temos constatado, ao longo da Carreira, que a alternativa acima funciona como paliativo para a angistia do pro- fessor, mas estd muito longe de instrumenté-lo para conduzir uma pritica docente consciente, responsaivel e competente. Além disso, alguns professores também uestionam a validade do planejamento e da avaliagao para uma frea que, segun- do alguns, ndo deveria “reprovar”. Entdo, para que planejar sea escola ainda man- tém vivo 0 preconceito de que nao podemos avaliaras artes ~ entre elas, a misica =, pois sto linguagens que tém a ver com a subjetividade e auto-expressio dos alunos, sendo, portanto, impossivel planejare julgar experiéncias (Del Ben, 2001; Hentschke e Souza, 2003; Souza et.al, 2002)? Ou como podemos falar em edu- cago musical no mbito das instituigBes de ensino se no sabemos onde quere- ‘mos chegar com 0s nossos alunos? Ou mesmo se 0 produto musical que cles apresentam € fruto de uma educago formal ou, simplesmente, de uma relagiio informal com a mésica? Nogque tange A insttigao escolar, planejamento e avaliagio sho atvidades cotic- ‘anas do corpo docente em qualquer dea do conhecimento, e no ha por que o professor ‘de miisica, ou o professor que trabalha com misica de modo integrado a outras ativida- des, no explicitar suas intengdes com relago a essa dea de conhecimento. Existem varios mbitos em que se planeja 0 ensino e podemos identificar pelo menos quatro (Gimeno Sacristin, 1998a). O ambito polit regula as politicas curriculares de um pafs, estado c/ou municipio. Um exemplo siio os Pardmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, que, ape- sar de nao serem compulsérios, servem como orientagao para a pritica docente nas escolas. Podemos identificar também o Ambito dos inateriis diditicos, cons- tituido dos livros, apostilas, softwares, curriculos etc., que apresentam objetivos, Contetidos, selecionam certas atividades e definem uma seqiiéncia para desenvol- vvé-las. Hé ainda 0 planejamento que ocorre no Ambito da escola, a qual elabora ‘um projeto educativo que visa dar coeréncia ao trabalho de todos os seus profes- sores, Finalmente, o ambito do professor, que prepara o planejamento de um cur- So ou disciplina, partindo ou nio dos ambitos anteriores, e delimita, assim, aquilo ‘que seré desenvolvido com 0s alunos em sala de aula. Neste capitulo trataremos especificamente do planejamento realizado pelo professor, o que nao significa que esse mbito de planejamento nio seja influenci ado —e até mesmo determinado ~ por um ou mais dos anteriores Segundo Gimeno Sacristén (1998a), educador espanhol, planejar é fazer tum exbogo ou esquema que representa uma idéia, uma agio ou uma série de ages ‘que, a0 mesmo tempo, serve como guia para sua realizagio. Planejar é antecipar ‘ou representar algo que vird a ser realizado; é prever uma ago antes de realizé-la. Por isso, ao planejar, precisamos dialogar com a situagio na qual vamos atuar, refletir sobre ela, precisamos “experimentar” as idéias que pretendemos colocar em pritica, elaborando estratégias de aio com base no conhecimento prévio que temos sobre o funcionamento dessa situago. Nesse didlogo, nessa experimentacao, acionamos nossos conhecimentos, nossas experiéncias, nossos objetivos e nossas crencas, dialogamos com os sabe- res jd sistematizados e com teorias, dialogamos com nossos colegas e articulamos, tudo isso com o conhecimento sobre a realidade na qual trahalhamos: nossos alu- hos, a escola, a sociedade. Gimeno Sacristén (1998a) recomenda que, ao planejar, o professor conside- re alguns aspectos sem, no entanto, concebé-los como uma seqliéncia de etapas a serem seguidas: “a) Pensar ou refletir sobre a pica antes de realiz4- I, ) Considerar que elementos intervém na configuo da expergncia que os alunos te Fo, de acordo com a peculiridade do contetido cuticular envolvide: ©) Terem mente as alterativas disponives:langar mio de expergncias prévias casos, ‘modelos merodoldgicos, exempls realizadox por outros; iy 133 4b) Prever, na medida do possve,o curso da ago que se deve tomar: ©) Anteciparas consegiéncias possiveis da apo escolhida no context concteto em que seatua: 1) Ondenar os passos a serem dads, saben que havers mais de uma possibilidade: £2) Delimizar contest, considerando as limites com que contaré ou tena de superar. analisando as cicunstdncias reais em que se atuaré: tempo, espago, organizagio de professoresss alunosas, materais, meio sociale 'h) Determinar ou prover os recursos necessérios” (Gimeno Sacristin, 19983, p. 205). A importancia do planejamento esté justamente no fato de ele ser uma pro- jegiio daquilo que queremos, daquilo que pretendemos em telago ao ensino e de como ele poder ser realizado em sala de aula. Mas € preciso ter em mente que, ‘embora o plano oriente a agdo de ensinar, definindo um caminho para sua realiza- ‘G40, isso nao significa que essa ago possa ser determinada previamente em todos ‘0s seus detalhes. Isso ocorre porque o ensino é uma atividade complexa, que en- volve varias pessoas, virias coisas a fazer simultaneamente e, por isso, sempre teré algum grau de imprevisibilidade, jé que nao é possfyel prever como os alu- nos, individualmente ou em grupo, estardo interagindo com os acontecimentos da sala de aula e com 0 contexto da pritica. Por isso, o plano poder (e, em alguns casos, deverd) ser transformado, recriado ¢ até mesmo abandonado e substitufdo durante a sua implantagao. 11.2 DIMENSOES A SEREM CONTEMPLADAS NO PLANEJA- MENTO DO ENSINO DE MUSICA Ao planejarmos nossa pritica docente, fazemos uma série de escolhas precisamos estar conscientes delas e saber fundamenté-las. Nossas escolhas par- tem das respostas que damos a algumas questdes que permeiam tado e qualquer planejamento do ensino de misia: * Quais sdo os elementos presentes na mii + Quais so as formas de vivenciar misica? Como se aprende misica? * 0 que pretendemos com o ensino de miisica nas escolas? Quais so as rnossas metas e objetivos? + Por que ensinar mtsica nas escolas? Essas questies serdo discutidas a seguir. 11.2.1 Quais so os elementos presentes na miisica? Inicialmente, poderfamos responder: altura, duragao, timbre e intensi- dade. Mas essa resposta diz respeito aos parametros do som, que constitui a “matéria-prima” da misica. Mdsica, como discurso sonoro, envolve outras dimensdes, como veremos adiante. Importante € ter consciéncia de que, para ensinar misica, precisamos ter claro 0 que entendemos como sendo miisica, precisamos definir quais sao os elementos ou dimensdes que a constituem ¢ {quais sao as formas de vivencié-la. Com base nessas definigdes, comegamos a delimitar quais contetidos € 0 espago das aulas de mb Ha varias definigdes de miisica, e nao pretendemos apresentar aqui uma Uinica e“correta”, mas apontar para uma propriedade fundamental da misica. que € sua dimensio sonora. Conforme observa o musicdlogo Jean-Iacques Nattiez (1990, p.43), as concepgdes de miisica e do que ¢ considerado musical s pois sio especfficas a situagdes ou contextos determinados. No entanto, a referén- cia a0 som esti sempre presente. O som, como vimos, é condigtio minima, embo- ra nfo suficiente, para que algo seja considerado miisica ‘Segundo 0 educador musical Keith Swanwick, por exemplo, para transfor- ‘mar os sons em musica precisamos, primeiro, fazer uma selegdo dos sons que ‘vamos utilizar: depois, devemos estabelecer relagdes entre esses sons; finalmente, precisamos ter a intengiio de fazer misica com os sons selecionados (Swanwick, 1979).A sirene do carro do corpo de bombeiros emite sons que foram seleciona- dos e organizados, mas ndo so considerados mésica, Ea intencio de fazer ou de ‘ouvir miisica que nos permite diferenciar sons que constituem miisica daqueles, ‘que ndo constituem. ‘Swanwick (1991; 1994) apresenta um modelo que procura definir quais so as dimensdes que constituem a miisica e fazem com que reconhegamos algo sono- ro como sendo ou no algo musical. Ao investigar a natureza da experiéncia e do conhecimento musical, 0 autor reconhece dois estratos. O primeiro deles refere~ se A relagio pessoal do individuo com a misica, uma experiéneia particular, mui- {as vezes incomunicdvel, que pode variar em funcio das caracterfsticas de cada pessoa. Mas Swanwick (1994) argumenta que 0 conhecimento musical nao é algo exclusivamente individual. Hé um segundo estrato em que aspectos de experién- cias individuais podem ser compartilhados, uma dimensao intersubjetiva, ¢ é nela que o autor concentra suas investigagoes. ‘Quando vivenciamos miisica, seja ouvindo, tocando um instrumento, can- tando, compondo ou improvisando, prestamos atencao ou nos relacionamos ‘com as qualidades do som em si (forte, suave, rapido, lento, o timbre da vor ou do instrumento, por exemplo), com a forma pela qual os sons sdo manipu- lados, com o conirole seguro das vozes e instrumentos, A essa dimensio ‘Swanwick dé o nome de Materiais: a matéria sonora que constitui a miisica e suas qualidades especificas. Podemos atentar ainda para 0 caréter expressivo da misica, para sua identidade expressiva, seja ela leve, alegre ou triste. Essa € a dimensio de Expressio. Finalmente, podemos prestar atenglio no modo como os sons sio organizados no tempo, como os varios gestos musicals se relacionam, se desenvolvem ou se conirastam, definindo um sentido de dire- 20; a estrutura da misica em termos de frases, perfodos e partes. Esses as- pectos constituem a dimensio de Forma (Swanwick, 1991; 1994). As dimen- ses de Materiais, Expresstio e Forma constituem um ponto de partida para definirmos os elementos musicais ~ ou, mais especificamente, os elementos sonoro-musicais ~ a ser contemplados em nossos planejamentos e desenvolvi dos em nossas aulas. sntendidos num sentido amplo) ocupardo 0 tempo AFF Ao Mas precisamos ter conscigncia de que a vivéncia e a aprendizagem desses siio permeadas por significados e funcGes sociais. Portanto, € preciso complementar 0 modelo proposto por Swanwick (1991; 1994) com mode- Jos e/ou conceitos propostos por outros autores. A relago de nossos alunos com a ‘miisica vai além dos chamados contetidos estritamente musicais. Quando vivenci mos miisica, nfo nos relacionamos somente com a matéria musical em si e suas relagdes internas (altura, duragdo, intensidade, timbre, estrutura, expressio etc.). Logo que ouvimos os primeiros sons de qualquer misica, comecamos a assimil los por_uma rede de significados construfdos no mundo social (Green, 1988). E no mundo social que definimos e convencionamos o que consideramos indica, quais as formas de vivencis-la ou aprendé-la e quais as Fungées e usos de determinada pega ou estilo musical. Portanto, a aula de miisica no pode tratar a ‘iisica como um objeto destituldo de significados e fungdes sociais. Como sali- enta a educadora musical Jusamara Souza (2000, p. 178), é também preciso “re- velar os sentidos ¢ a importincia social da misica de uma maneira critica”, pois também constituem contetidos musicais, embora nao sejam contetidos sonoros. E ‘com essa postura que poderemos possibilitar ao aluno “sair da posicio de simples ‘constmidor passivo e se tomar um produtor e um transmissor. S6 assim o aluno Pode sair de um consumo alienante, podendo ter uma opinido propria sobre @ iisica” (ibid, p. 178). 11.2.2 Atividades musicais: formas de se relacionar com e aprender misica Mas como vivenciamos misica? Por meio de quais atividades? Segundo Swanvi- ck (1979), é possivel vivenciar misica de trés manera: compondo (vide tabela 1-1 8 pagina 26), executando ou apreciando. As atividades de composiga0, execugio ¢ apre- cago so aquelas que propiciam um envolvimento direto com a masica, pssibilitan- ‘do a construgio do conhecimento musical pela ago do proprio individuo, ‘Além das atividades de composigao, execugdo e apreciagaio ~ que slo es- sencialmente musicais ~ Swanwick reconhece dois outros pardimetros: técnica € literatura. A técnica refere-se & aquisigao de habilidades, que incluem controle técnico vocal ¢ instrumental, desenvolvimento da percepedo auditiva, da leitura e da escrita musical. A literatura abrange estudos hist6ricos e musicol6gicos, o que chamamos de conhecimento sobre miisica: contexto da obra, carreira do compo- sitor ou intérprete, andlise, estilo, género etc. Técnica e literatura so concebidas como atividades complementares — jé que nio propiciam um envolvimento direto com maisica ~e tm como fungo fundamentar e possibilitar a experiéncia musi- ‘eal direta, As atividades de composigio, execugio e apreciagao, aliadas & técnica ¢ literatura, configuram 0 modelo (T)EC(L)A. Esse modelo constitu, assim, um ‘dos modelos de atividades musicais a serem utilizados como base para o planeja- mento do ensino de mtisica em sala de aula. Mas o professor que trabalha com miisica pode se perguntar: “eu obrigato- iamente necessito trabalhar com todas essas atividades ou posso focalizar a mi- nha atengdo somente nia execucio musical em forma de canto?”. E importante cesclarecer que o professor nio deve se sentir pressionado a trabalhar com todas as atividades sob a suspeita de sua aula de misica ser considerada incompleta ou ‘menos importante, No entanto, como educadores musicais, encorajamos os pro- fessores a proporcionar ao aluuno o contato com alguma atividade de composicao, apreciagio e execugiio musicais. [sso porque jé existem estudos que mostram que as atividades se retroalimentam (Swanwick e Franca, 1999). Em outras palavras, o desenvolvimento musical do aluno por meio da apreciagao, certamente, influen- card a sua atividade de execugao e/ou composigao € vice-versa. Outro motivo é 0 fato de que, durante 0 processo de educagdo musical, os alunos tendem a se iden tifiear mais com certasatividades em detrimento de outras (Hentschke, 2000), 11.2.3 Metas e objetivos da educagéio musical escolar Para planejar como iremos coneretizar o ensino de miisica em sala de aula, precisamos também esclarecer o que pretendemos com a educa¢o musical nas ‘escolas, para que ensinamos miisica, onde queremos chegar com o ensino de mii ca; em outras palavras, quais io nossos propdsitos, metas e/ou objetivos de ensino. Se tomarmos como ponto de partida as concepedes referentes 2 natureza da miisica ‘e sobre como se aprende mtisica, mencionadas anteriormente, o principal propésito ‘daeducagio musical ns escolas seria desenvolver a capacidade de nossos alunos de vivenciar miisica, ampliando e aprofundando suas relagdes com ela ara Souza (2000, p. 176), “a tarefa basica da misica na educacio é fazer contato, promover experiéncias com possibilidades de expresso musicale intro-

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