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ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E LEGITIMIDADE DEMOCRATICA. Luiz Carlos Bresser Pereira © capitalismo € convencionalmente entendido como o sistema econdmico no qual empresas privadas so coordenadas pelo mercado. Nes- ta definigdo o Estado é um corpo estranho. O capitalismo seria apenas a soma das empresas cpitlistas coordenadas pelo mercado. Esta perspectiva est presente no pensamento liberal radical contemporéneo— para o qual 0. papel do Estado 6 exclusivamente o de garanti os direitos de propriedade. Marx certamente nfo pensava nesses termos, masa definigdo marxsta mais geral do sistema capitalista—o modo de producSo no qual os proprietérios privados dos meios de produgdo constituem a classe dominante€ o exce- dente ¢ apropriado pela burguesia no mercado através da troca de valores cequivalentes — pode também conduzir&idéia de que o Estado néo €essen- cial ao capitalismo. Na verdade, mesmo se pensarmos em termes de um capitalism puro, de um modo de produeio onde apenas as caraceristcas essenciais do capitalismo estivessem presenes, o papel do Estado ser fun- damental Em qualquer circunstinca, inclusive na sua forma liberal capi- talismo 6 um sistema econdmico complexo consttu‘do por empresas capi- talstas coordenadas pelo mercado e reguladas pelo Estado, O capitalismo contempordneo, por sua vez, esté muito longe do capitalismo liberal do sé- culo XIX: além de regulamentado ¢ coordenado pelo Estado, emboraseja altamente competitivo. Nao ha capitalismo, nem mercado capitalista, sem um Estado que o regulamentee coordene, ndo apenas criando as condicoes gerais para a produgio capitalist, através da instituigdo do sistema legal com poder de coerso e de uma moeda nacional, mas também através de uma série de agdes na drea econOmica, social e do meio ambiente. Partindo esse pressuposto bésico iei neste artigo examinar 0 conceito de Estado, Enquanto as organizagbes bu- rocrétcas possuem normas que apenas a regulam internamente, o Estado 6 adicionalmente constitu(do por um grande conjunto de leis que regulam toda a sociedade. Ao deter esse poder o Estado torna-se maior do que 0 simples aparelho do Estado. Este aparelho, regulado pelo direito admini trativo, e dividido em ts poderes (legislativo, executivo e judicirio), € uma organizagio burocritica. O poder do Estado se exerce sobre um te ritério e uma populacio, os quais ndo sio propriamente elementos const tutivos do Estado, mas do estado-nagio. Na verdade séo os objtos sobre 0 dual se exerce a soberania estatl, a0 mesmo tempo que a populacio, transformada em povo, de conjunto dos cidadios, assume o papel de suji- to do proprio Estado. Em sintese, o Estado é a tinica organizagéo dotada do poder ex- troverso. Eo aparelho com capacidade de legslare tibutar sobre a popu- lagdo de um determinado tertéro. A elite governamental, a burocracia € 2 forga militar e polcialconstituem o aparelho do Estado. O Estado, po- rém, € mais do que seu aparelho, porque inclui todo o sistema constitu- cional-legal que regula populacdo existente no territério sob sua juris digdo. Esta populagéo, por sua vez, assume o caréter de povo, a0 se tornar detentora do dirito da cidadania, ese organiza como sociedade civil. So- ciedade civil e Estado constituem o estado-nagio. ‘O controle do Estado e a apropriacio do excedente pelas clases ‘mais poderosas mantém entre si uma relagéo dialétca. Determinada classe 6 dominante nfo apenas porque controla os fatores de producio, ou porque detém a propriedade dos meios de produgdo e de comunicagéo, mas tam- bém porque controla o préprio Estado. Nesse momento ela se torna classe dirigente. 0 controle do Estado reforga o seu controle sobre os meios de produglo,e vice-versa. Isto nfo significa, entetanto, ue o Estado seja um ‘mero instrumento da classe dominante, A medida que as sociedades cag talistas se tomaram cada vex. mais complexas ¢ atribuam um erescente poder para o conhecimento técnico e organizacional, uma nova classe mé- dia burocrética ou assalariada passou a deter erescente influéncia* Por outro lado, a classe operéria também se tecificou, se dividiu em estratos, aumentou seu poder através das organizag6es sindicaise do puro e sim: ples poder de voto. Em conseqlencia, as distingdes de classe — partcular- ‘mente a oposigdo entre uma classe operéria e uma classe burguesa— per- 30 conetito de “poder exroverso” foi desenvalvidos no Ambito do dito administrative italiano. Ver Alles (1966 282). Devo esa indieagio a Palo Modesto 4 Desenvolia dias soe a classe burocrtea eo corespondente modo de produto ext: tal 00 ternoburocréico em uma se de esaios que depos foram eunids em 4 soctedade ‘estate a tenaburocracia (1980) ESTADO, SOCIEDADE CIVIL ELEGITMDADE DEMOCRATICA 91 deram a nitidez no mundo contemporineo. O préprio conceito de classe perdeu parte de sua forga explicativa, cedendo espago para os estratos so- ciaise para as distingSes étnicase raciais, de um lado, e para as distngBes religiosas e culturais de outro. Nem por isso, entretanto, o Estado perdeu mportincia, na medida em que continuou a ter um papel decisivo ndo ape- nas na garantiaestivel dos direitos de propriedade, mas também na dstr- buigdo do excedente econémico. Provavelmente por essa razio, o mais notével analista contempordneo do Estado, Nicos Poulantas, apesar de ‘suas conviegdes marxistas, nfo hesitou em afirmar que as poltcas do Es- tado deixaram de refletr smplesmente os interesses dos poderosos para se tornarem o resultado da condensagdo das lutas de classes. ESTADO E SOCIEDADE CIVIL O caréter mais ou menos demoerdtico do sistema politico exis- tente em um pais faré com que sua populaglo se transforme ou no em ovo, ou se, no conjunto de cidadios com direitos politicos efetivos teo- Ficamente iguais. Nesses termos, © povo pode ser considerado nio como 0 ‘objeto sobre o qual o Estado exerce seu poder, mas como um de seus ele- rmentos constitutives. No capitalismo contemporneo, bem como em qual- ‘quer outro sistema de classes, o poder politico deriva da sociedade civil. Na sociedade civil o povo, consttuido pelos cidadios, se organiza, formal ¢in- formalmente, das formas mais variadas: como classes socitis, fragBes de classes, grupos deinteresse,associag6es. Desta forma pode-seafirmar que a sociedade civil é 0 povo organizado e ponderado de acordo com os dife- rentes pesos politicos de que dispGem os grupos socais em que os cidados esto inseridos, Uma outra forma de definirsociedade civil, seria dizer que é a sociedade organizada pelo mercado. Ou que a sociedade civil 60 préprio ‘mercado. Est tipo de definigdo € interessante, mas leva a confusdes. Na verdade, a sociedade civil incorpora a vida familiar, que € regulada pelo Estado através do direito civil, ¢ pela vida produtiva ou econdmica, que € regulada pelos mercados © pelo Estado. Conforme ensina Bobbio (1985:33), “negativamente, por ‘sociedade civil” entende-se a esfera das relages Socais nao reguladas pelo Estado’ ‘A sociedade civil engloba todas as relagbes sociais que esto & rmargem do Estado mas que exercem algum tipo de influéncia sobre ee. De acordo com a tradigdo marxista, hé uma correspondéncia entre a socie- dade civil e a estrutura econémica da sociedade. A classe econdmica do- ‘minante dispde de um poder maior na sociedade civil. Isto € normalmente 2 WANOVAN 3495 verdade, mas a sociedade civil precisa ser claramente diferenciada do Es- lado e do povo. A sociedade civil & constituida pelo povo, mas enquanto 0 povo € o conjunto de cidadios iguais perante a lei, o poder politico que ‘cada individuo possui na sociedade civil 6 extremamente varidvel. A so- ciedade civil exerce 0 seu poder sobre o Estado, Nas democracias moder- nas o poder do Estado deriva, teoricamente, do povo, mas isto $6 € verda- deiro quando a prépria sociedade civil é democrética, ou seja, quando ela esté crescentemente identificada com 0 povo. Hé perfodos em que se torna dificil distinguir o Estado da socie- dade civil, tal a predomin&ncia © abrangéncia do primeiro; em outros perfodos, a sociedade civil se destaca nitidamente do Estado e divide com le o poder. Isto leva alguns autores a atribuir grande importancia a esta

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