Você está na página 1de 15
108 PRESERVACAO / PATRIMONIO EDIFICADO Lia Motta ———— A SPHAN EM OURO PRETO uma histéria de conceitos e critérios Patrimonio teve sua ctiagd0 lie O ada aos desdobramentos do Movimento Modernista, que foi tum momento de grande reflexzo, revisd0 de conceitos de culturae tomada de posi- ‘40 frente aos problemas culturais do pafs. Esta circunsténcia marcou profun- damente a atuagio do Patrimonio sobre ‘0 ceniros histéricos, determinando co ccitos € eritérios de preservasio. A rela- ao entre aquelas idsias © a prtica no foi ainda explicitada em varios aspectos, Principalmente quando vista ao longo do tempo e em face das mudancas mais etais ocorridas nos 50 anos de existén- cia da SPHAN. Envolvida num trabalho deemergéncia, de salvaguarda de alguns valores culturais. e posteriormente atd- nits diante de uma rotina consolidada dde métodos inquestionados. s6 recente- mente a insttuigdo iniciou trabalhos de auto-reflexio ¢ critica visando conhecer ¢ analisar seu proprio passado. buscando a atualizacao das gies presentes ea atri- buicgo do devido valor experiencia her- dada no cumprimento do papel pioneiro que desempenta frente & criagio de ini- eros éreos regionais de preservacio ¢ 0 erescente interesse pelo assunto por parte de uma parcela cada vez maior da Populacao brasileira Considerando a importincis da pre- servacio urbana, que lida com uma ex- presso sintétca da produso social, eos problemas de sua viabilizagéo num pais subdesenvolvido e em crescimento, bus- ‘cou-se identificar inicialmente a atuacéo turais” capazes de referenciar a “identi- ade cultural do Brasil” © manter a me~ ria nacional. Nesse contexto 0s cet {0s histéricos ganham dimenséo mais real como objetos de uso social € come~ am a ser encarados como registro de uma trajetoria hist6rica ainda viva, de- vendo ser compreendidos pelos sigaifi- ceados que Ihes so atributdos pelas co ‘munidades locas, Sobre Ouro Preto Aloisio Magalhies declarou em entrevista concedida a Zuc~ nir Ventura para a revista Isto €: “Voce nao pode cm um pafs em desenvolvi- mento fugir a idgia de que as coisas vo acontecer. Ao lado da Catedral de Char- tres no acontecerd mais nada. Nenhuma fabrica vai ser construida. Em Chartres std tudo feito. Mas em Ouro Preto como voce vai proibir? Voce tem é que lutar Para fazer protegdes, coisas com que no 1s atinjam. E the digo mais: fi o ciclo do ‘ouro, 0 ciclo econdmico, que consteuiu Ouro Preto no século XVII O vil metal, de certo modo, dentro do sistema de Vida, € que & 0 responsivel por estas coi sas. Quem pode dizer que o ciclo do ago do vai retomiarcertas coisas na regio de Ouro Preto? Serd necessariamente para cstragar ou € possivel voce fazer com que o ciclo do.ago seja benético” Coloco ape- 120 PRESERVAGAO / PATRIMONIO EDIFICADO nas a questio. A priori vocé nao pode di- zer que é certamente negativo,""" Nestas alavras estavam presentes uma visao realista e um novo conceito de centro hi t6rico, visto como elemento de uma tra- Jjel6ria ainda viva e socialmente determi- nada. A primeira grande a¢do de Alofsio Magalhaes como diretor do Patriménio fj a realizacao de um semindtio em Ou- 10 Preto envolvendo o poder municipal, Orgios de cultura e educagio e as diver. Sas representagdes comunitérias, ¥ sando intensificar 0 didlogo com a po- Pulacdo da cidade e entrar num acordo Sobre as diretrizes bisicas para o prosse- guimento dos trabalhos de preservacao. Esse encontro resultou num documento final, do qual algumas medidas foram implantadas, como, por exemplo, acarta geotécnicae a tentativa de levar adiante 0 trabalho com a populagéo na busca de compreensio da producio cultural atual, sus relacio com a produgio passada, ¢ 0 reforco da representagio local do Patti: ménio. Como conseqiéneia foi implan- tado em Ouro Preto um grande eseritério técnico, que, além do arquiteto ov enge- nheiro tradicional, inclufa um grupo es pecializado na drea de ciéncias humanas para incrementar o trabalho local Mas.as rotinas anteriores de controle ¢ aprovacao das obras se mantiveram ao largo dessas novidades. Os mesmos eri trios do inicio da atuagio da instituigdo continuaram a ser empregados, a mesma forma de trabalho sobreviveu. Os téeni- 08 arquitetos continuaram 0 exame de cada caso, verificando se estaria geran- tido 0 aspecto colonial. No aft de contro- lar a possivel criatividade dos novos ar- quitetos que chegavam a instituico com estabelecimento da Fundagio Nacional ProeMeméria e consequente ampliagio dos quadros, foram retomadas as normas mais rigidas, ja sob a forma de cartilha, listando os detalhes que deveriam ser empregados na construgio. Ha dois anos os arquitetos da Dire- toria Regional da SPHAN em Minas, fortalecidos pelos debates sobre arquite- tura nova tealizados em semingrio pro- movido pela SPHAN em Belo Hori- zonte, vém adotando na aprovagio de projetos a postura de aceitagao e incen- tivo & forma menos detalhista para o in- terior do centro histérico e tém sido mais liberais nas periferias. Esse atitude, no entanto, nao chega a significar um avanco com relacio 2 tradicional; nto corresponde a uma mudanga explicita do ‘conceito de centro histérico nem a estu- dos sobre os conjuntos urbanos que pu- ‘dessem referenciar uma agio coerente de aplicagio de novos critérios. io por acaso foi repetidamente men- cionado o profissional arquiteto neste texto. E este profissional um dos grandes Fesponsiiveis pela insisténcie nos cri- ‘érios que se orientaram pelo sentido es- tético dos conjuntos, tratando-0s como obra arquiteténica para arquiteto ver. Foi ‘not6ria na ocasido, ¢ esté bem registrada ra carta que jé transcrevemos, a influén- cia de um desses arquitetos, cuja suges- {Go prevaleceu na aprovagdo do Grande Hotel de Ouro Preto. Com o tempo, ¢ 0 estabelecimente da rotina de trabalho, ‘um nimero cada vex. maior de arquitctos scligou a instituigdo, ocupando via dere- ara os cargos de confianca ¢ dando im- pulso sempre maior as normas estéticas ¢ dc estilo © ts obras — estas sempre justi- ficadas pela urgéncia em razio do pre- ciriostado de conscrvacio dosiméveis. Os estudos, nevessariamente multi ¢ in- terdisciplinares, para explicitagao dos valores preservados, seu sentido e seus objetivos, c aplicaveis nas agdes de pre- servacdo, eram sempre preteridos, ou ‘apenas desenvolvidos sob o aspecto tec- nol6gico, perpetuando-se assim um pro- cesso compulsive de conservagio de um objeto irreal idealizado. Mas a vida continua e preservar 6 preciso Se se examina o aspecto predador de grande parcela da sociedade contem- poriinea, das grandes concentragdes con- Seqilentes ao processo de industrializa- do, ¢ da concentragéo de capital em tomo da industria da construcdo nas alti ‘mas décadas no Brasil, deve-se reconhe- cer @ importancia do papel desempenha- do pelo Patriménio ao preservar parte significativa do acervo edificado de Ouro Preto, Fato que dé sentido & reflexdo so- bre as intervengdes passadas, possibil tando continuar @ agao da instituigao, valorizande até o seu passado como parte ‘ficial da historia local, neluindo eros ¢ acertos. Hoje, acumulados os 50 anos de uma agio quase tnica € continua, € dificil imaginar o que ficou incorporado aos hé- bitos dos cidadios, ransformando-se de forma imposta cm espontinea, 0 que toma duvidosa s oportunidade e eficign- cia da aplicagdo de critérios distintos de preservacio. E preciso, no entanto, avangar ¢ mesmo propor cortegdes se- ‘gundo novos pontos de vista e conceitos mais atuais. Neste sentido € possivel adotar uma visio nova que ndo conflite com a ida de “bem cultural” e demar- ue apropriadamente 0 “bem” centro hist6rico com suas diversas peculiari- dades Com referencia aessas peculiaridades pode-se citar © documento do arquiteto Luiz Fernando P.N. Franco sobre a transcrigio no Livro do Tombo Arqueo- logico, Etnogratico ¢ Paisagistico de centres historicosinicialmente inscritos apenas nos Livros do Tombo Histético € de Belas-Artes. Nos termos desse do cumento,"* 0 “patriménio [foi] enten- ido como matéria-prima para toda a producéo cultural”, constituindo-se es- Pecialmente em fonte de apoto para as ciéncias humanas. Esta nogio confere ao bem tombado um conteddo de docu- mento de interesse piblico, cabendo a0 Estado garantir ua integridade, registro, exploragao ¢ reproducéo. Os conjuntos urbanos, além desse Contetido, tm um componente de vida, pois se originam de um processo hist coe social que ultrapassa ato institucio- nal do tombamento e tem continuidade ‘no proprio bem tombado. O suposta- mente estético — matéria-prima, docu- mento — ganha, dessa forma, vida pré- pra que obedece a uma trajetéria sociale mente determinada. Séo eles, portanto, bens muito especiais, caracterizando-se por expressar um acimulo de valores © um compromisso possivel do passado ‘com 0 presente. Sao também qualidades fundamentais dos centros histéricos a possibilidade da vivéncia sensivel dos espagos e a andlise de seus diversos ele- ‘mentos constitatves, Esta maneira de apreender 0s centros historicos fica bem exemplificada quan- ddo Mare Bloch, em sua /nirodueo a his toria, se refere & paisagom rural como a 122 PRESERVACAO / PATRIMONIO EDIFICADO linica forma de “propicier as perspecti vas de conjunto de que era necessério partir""* para chegar a um determinado tipo de anise historica. E 0 arquiteto Luiz Femando P.N, Franco, indo além, no texto ucima citado, dos aspectos aparentes das paisagens. mencionados pelo historiador, v8 na ocupacio do terri- {6rio uma importante fonte primatia. E mais: alude &s marcas que no esto re gistradas nos projetos ou na simples car tografia ¢ propde uma leitura do “con junto dos vestigios"” de todo o processo ‘de ocupagio dos espacos. Abandona-se. com esta visio, qual quer forma de controle estético, estilis tico e principalmente fachadista. Tal controle é substituido pela documenta- <0.e pelo registro no s6 dos varios ele- mentos integrantes do conjunto hist6rico mas do seu todo, garantindo-se a leitora de seu processo de formaco e de sua tra- jet6ria, assim como o conhecimento dos elementos que no futuro vio inevitavel- mente se perder. Permite também 0 de- senvolvimento de estudos para a detimi tacdo da competéncia da instituigio, © tipo de controle que eta pretende esta- belecer, a definicao das dreas de inter- vengdo ¢ a abertura de um didlogo franco ‘com as populagies. Abandona-se tam- bbémo “cada caso é um caso" e passa-se 0 uso de instrumentos modernos de con- ‘tole urbano com uma visdo intezrada, possibilitando ao Patriménio um planeja- ‘mento capaz de implementar a preserv ‘20 do ponto de vista urbanistico, dando margem 20 aparecimento das expressies novas que deverdo conviver. por forga da natureza do objeto tombado, com 0 acervo preexistente. O parcelamento do solo €, nessa tarefa, 0 condicionador principal e deveria necessariamente pos sibilitar a leitura histériea do urbano. Controlados os volumes, a feigéo arqui tet6nica ficaria a eritério de cada um, de suas vontades ou possibilidades obje tivas Por esta abordagem seriam incluidas 1a producao contemporinea nao so mente as solug6es que buscam a “*har- monia sem imitagio", empregando ele :mentos do tipo tradicional local, pois sio auténticas como expresso de um elite, mas também as solugdes populares tmestno quando escapam as expectativas estéticas dos que exercem 0 controle na preservacio. Adotar-se-ia um tipo de preservagio que admitisse o crescimento segundo as peculiaridades Jocais, inde- pendentemente de modelos internacio- nalmente difundidos. T Na ranserigio procedew we 3 aualzagio da oro gf 2.0 priniro CLAM (Congresso tntemacional de Argietua Moderna) corteuna Sug ean a Su rareo I0--eultimo,em 19853 cade de Dubrow ik, ma Jugs, Em 1929, no segundo Congres _V———————— So, em Frankfurt foram aprovades estatutos ndo 8s érgos no CAM, com represents de averse 3.0 prifo€ do origina. {sas informagesestio nos process, releen tes 2 aprovagin de proeos.exstentes nw Arguive 4 Coordenadoria de Regist ¢ Documentagio (CRD), da SPHAN Pro-Memsra, com entrada por tenderegoe nome do propre, 5-0 Plano de Cansersagio, Valorizag e Desen valvimento de Ouro Preto e Marian fo elaberado pla FndagdoJoso Pineiro de 1973 a 1975 nam ‘sonvénio enteeo nto IPHAN (Insiuto do Ptr tino Histrico ¢ Arttico Naciona).o IEPHA, UUnstimto Estadual do Patrimdaio Hisieicoe A ‘ico de Minas Gerais) eas prefeturas de Ouro Preto Mirna 1. Depeimentocolhido em 7 de dezembra de 1982 pars série SPHAN Memes Ora JT Arquivo da CRD/SPHAN Pro-Memaia proces: s0sdeaprovagia ou legalzagioudelteumenos, de lepalaagio. 8. Vila Sto Jose ¢ Loreamento Brito Fh. 9. Usiizamos aqui original de Rodrigo M. F de Andrade em portugués. Arquivo da CRD! SPHAN/Pré-Mentris, Pastas de Personals, 10.LIMA, Vian de, Renovation et mis-en-vleur Ow Preto, Pats, UNESCO, L972, Arquivo de CRDISPHANP6-Memdri, 1 Detahameno init do plano de Viags de Li sma € urginas coloridos dos mapas, Arquivo da CRD/SPHAN Ps6-Memixis 12. MAGALHAES, Aloisi, Trinfu? A quesida tos bens cutwais no Bras. Rio de Janet, Nova roatcira Funda Nacional Pr Memes, 1985, p. 189, 13. Informagao 0° 13886, Ditetoria de Tomb mento Comservaco da SPHAN: “Tramsrigao de Centos Hisonicos inserts nos Livros do Tambo Fistcico e Panos e de Belas-Ares para o Li vo Arquooligca. FtogriicoePasagstico™ 18 se stembro de 1986 14.BLOCH, Mare, /nraducao & Hisniria, Cole io Sater, Publicasies Europa Ameria, drei,

Você também pode gostar