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LEONARDO AVRITZER Newron Bienorro Juarez GuiMARXES HeLorsa Marta MURGEL STARLING Organizadores CORRUPCAO Ensaios e criticas 2° edigio Belo Horizonte Editora UFMG 2012 HELTON ADVERSE MAQUIAVEL a __Emuma primeira abordagem, podemos tomar a corrupsio em © Maguiavel como um problema cosmologico, isto é, concernente 1 miundo. Nesse sentido, a corrupgio afeta tudo 0 que existe, “endo ofim inevicével para o qual os sets, independentemente desuas naturezas particulares, se destinam. O que nos interessa, contudo, 0 problema da corrupgao politica, isto é,a degradacio © edestruigio do corpo politico, Dentre os corpos po liticos, vamos | nos debrucar sobre as reptiblicas. Uma ver especificado nosso abjeto de estudo, € preciso examinar suas causas ¢ remédios ‘epecificos. Recorrer a uma “lei geral da natureza”, exatamente porsua aplicagdo indiscriminada a todo o existent € de pequeno “auxilio para a compreensio de nosso problema. A circunscrigao ne fazemos exige que associemos a corrup¢ao do corpo politico dos homens que 0 constroem. , ‘as consideragées com uma passagem do ‘Osromanos fizeram nesses casos {0 dominio das prov onquis- radas} aquilo que todos: principes sabios deveriam fazer: estes fejem ndo somente se proteger dos distirbios presentes, mas também = os fotros c colocar toda sua indistria em impedi-tos. Porque se os "vemos de longe cde antemo, sio remediados facilmente, mas esperan~ © do que eles se aproximem de voce, 0 medicamento nao chega a tempo incuravel. E acontece ai aquilo que os médicos ipio seu mal é facil de curar e dificil de Conhecet, mas com 0 progresso do tempo, nfo o tendo no principio conhecido nem medicado, torna-se ficil de conhecere dificil de curat! Antecipando a objegiio de que aqui Maquiavel nao esta fa- lando da corrupcio, lembramos que ele estende a aplicagio desse preceito para os problemas do Estado em geral.? Essas ponderagdes gerais acerca das perturbagGes que acometem tum Estado ¢ seus medicamentos constituem 0 quadro em que Podemos inserit 0 problema da corrupgio. "Isso significa que também para ela deverd valer 0 preceito, de que a prevengio € melhor do que a cura. Como veremos, Maquiavel vai notar em diversas ocasides que a cura para um Estado corrompido € extremamente dificil, sendo impossivel, de modo que o mais prudente € investir nossos esforcos em um trabalho profilético, Para a profilaxia ser eficaz € preciso conhecer a natureza do mal & combater,¢ por isso torna-se necessatio ditigir nossa atencao agora para trés capitulos do primeito livro dos Discursos sobre 4 primeira década de Tito Livio. Esses capitulos (16, 17 e 18) parecem fechar um conjunto de reflexes acerca dos fundamentos e da corrupgio da repiiblica, Nos capitulos anteriores, Maquiavel, tomando Roma como modelo, havia mostrado que a fondagio da liberdade em uma repiblica estd ligada a uma ordenagao dos desejos contlitantes que estruturam a vida politica. © quarto capitulo apresenta a famosa tese segundo a qual os conflitos entre a plebe eo senado de Roma esto na origem de sua liberdade e poténcia. Fsses “tu. multos”, nos quais dois “humores” inconcilidveis se enfrentam (© desejo de dominar ~ que caracteriza os “grandes” — eo desejo de nao ser dominado, préprio do “povo”),’ engendraram as leis © as ordenagées (instituicées) responséveis pela satide evitalidade do corpo politico romano. No estabelecimento desses ordena. ‘mentos, © povo aparece para Maquiavel como o guardiao da liberdade, uma vez.que eu desejo vis precisamente &conservaao desta. Isso significa que a manutengo de uma vida politica livre Fequer uma constante vigiliacia a ser exercida pela plebe para 2 freat as ambigdes dos grandes cujo apetite de dominar é insa- Glivel. As leis € as instituigGes resultantes desse enfrentamento terdo assim de cumprir uma dupla tarefa: por um lado, desejo dos grandes e ordend-lo de modo a ser produtivo para a tepiblicas por outro, conferir ao povo um meio de desafogar seu fumore assegurar que sua virtt: nao se arrefega. Isso nos permite Adiantar que a corrupgao, para Maquiavel, é um problema que deve sempre ser referido ao povo porque cabe a cle defender a “iberdade. Certamente, os grandes podem ser corruptos (0 que ~ nio significa que o sejam sempre), mas seu desejo jé € corrupto por natureza, pois querem dominar. ‘A corrupcao pode afetar um dos agentes politicos de uma idade (0 povo, os grandes ou o principe) ou todos eles. Ha ‘casos em que a corrupgio afeta somente o principe, estando 0 ypovo ainda imune ao mal, como ocorreu em Roma na época idostarquinios. Em outras ocasides, todo o corpo esté podre ea probabilidade de cura é bastante pequena. Mas em que consiste 4 corrupsao politica? Via de regra, Maquiavel parece adotar 0 termo em uma acepgio tradicional, isto é, entendendo-o como ‘rescolha do bem privado em detrimento do bem comum. Mais frequentemente, porém, a corrupgao é 0 desrespeito as leis ¢ 0 desprezo pelas instituigdes cujo efeito é nefasto para qualquer Estado. O termo esta associado também 3 falta de habilidade e de visdo politicas, de espirito civico, referindo-se também 3 falta decnergia t de disposigio para a acio. Alids, é com este dltimo sentido que-o term aparece no inicio do capitulo 16 do livro " {dos Discursos. Maquiavel compara ali 0 povo a um animal “bruto e feroz” que, por ser mantido preso ¢ alimentado por muito tempo, ndo é mais capaz de se orientar e assegurar-se de «i. Uma yer. posto em liberdade, esse animal torna-se facilmente sresa do primeiro que queira dele se apoderar.* O problema que {sse capitulo visa examinar é 0 seguinte: um povo acostumado a {iver sob 0 poder de um principe muito dificilmente pode con- servar sua liberdade caso esta, por algum acidente, lhe seja dada. 33 se deter sobre a questi, restringindo-se a discorrer, no capitulo 16, sobre os procedimentos que deve adotar aquele que deseja tornar-se “tirano em sua patria”, © capitulo 17 vai retomar o problema colocando a questo de outra maneira: quando o governante de uma cidade é deposto devido ao extremo grau de corrupedo que o afetou, ela pode se ‘manter livre? A resposta vai depender do grau de corrupcio do povo. Seo mal se espalhou pelos “membros” do corpo politico,a perda da liberdade momentanea é certa, Caso tenha se restringido a “cabega”, entdo as expectativas para a fundagio de uma vida politica republicana sio melhores.’ Maquiavel vai entio dirigit sua atengao para a corrup¢io do povo, aquilo que nessa ocasiio denomina de “matéria” do Estado. ‘Como havia ficado claro no capitulo 16, corrupcie do povo encontra sua origem na corrupgao de seus governantes, tese reforcada no capitulo 29 do liveo IIL Em termos institucionais, isso significa que o fato de os governantes desrespeitarem com frequéncia as leis termina por induzir 0 mesmo comportamento (modo) no povo, fazendo-o perder a virtude eiviea (virti). Caso Roma tivesse suportado por mais “duas ou trés geragdes”” os governos de seus reis corrompidos, teria sido impossivel instaurar tum regime de liberdade duradouro, foi por isso que os tumultos, que se seguiram pouco apés a deposigio de seu rei, resultaram na liberdade. Caso contrario, eles teriam causado danos, pois ori nariam a divisio da cidade em partidos, ou melhor, em seitas. Essa espécie de divisio politica impede que 0 corpo politico encontre tunidade e estabilidade, comando-o suscetivel as invasées estrangei- ras ov a tomada do poder por um tirano. A solugdo possivel para a matéria corrompida é a virtit de um grande homem, alguém capaz de servir-se de meios extraordindrios para reintroduzir boas ordens e fazer com que o povo as obedeca. Maquiavel reconhece, contudo, que dificilmente pode-se recorrer a tal expediente, 0 que fica mais claro no capitulo seguinte. Seu objetivo é mais uma vez mostrar a dificuldade de se reor- denar uma cidade livre corrompida, mas desconsiderando um dos ant livs ent do um qu qu pre po pe co: eft in; na tar elementos que entrava na formulacao do problema nos capitulos anteriores (a liberdade adquirida). Ele parte agora de uma cidade livre interroga quais so suas possibilidades de conservagao da liberdade quando é atingida pela corrupgio. Maquiavel cenfrenta a questio por um outro viés: eliminando a liberacao do jugo de um principe, pode agora tomar a corrupcao como tim fator interno & propria repiiblica. O elemento corrompido que merece a atengao de Maquiavel continua sendo 0 povo. O {que 0 corrompe, porém, nao é nenhum agente politico, mas & pr6pria fortuna, ou melhor, a boa fortuna (a prosperidade). Um povo que tem ¢xito em suas conquistas acaba por relaxar € permitie-se degradar. A corrupeao se refere primordialmente aos costumes do povo que, uma vez. corrompidlos, fazem com que as boas ordenacées (as boas instituigées) nao produzam mais bons efeitos € as leis nao sejam mais eficazes. Inevitavelmente, essa ‘nadequagao acontece porque os costumes, devido a sua propria watureza, esto sempre inclinados a se alterar, como se alteram também os homens. Os costumes siio 0 que ha de mais maledvel, ‘de mais flexivel e constituem, ao mesmo tempo, o elemento mais modelivel ¢ 0 que nao pode receber uma modelagem definitiva. ‘As ordenagGes, por sua vez, so necessariamente constantes ¢ stabelecidas para resistir aos efeitos do tempo. Sua estabili- dade, contudo, transforma-se em sua deficiéncia mais grave. Para Maguiavel, “as ordenagBes e as leis criadas em uma reptblica nascente, quando os homens ainda eram bons, mais tarde deixam deconvir quando eles se tornam maus”.* Essa inadequagio entre ‘forma e matéria” 64 qualificada por Maquiavel como destrui- dora da liberdade porque as alteragdes dos costumes seguem em diregdo a0 mal. Nao respondendo mais is necessidades da vida jivre, as ordenagées se tornam instrumentos para a dominacao, ‘como vemos com 0 exemplo da eleigao dos cénsules em Roma, inicialmente orientada pela virtit € posteriormente pelo poder privado. Chegado a esse ponto, 0 corpo politico nao tem mais condigdes de conservar sua liberdade. es Na sequéncia desse capitulo, Maquiavel examinard a possi- bilidade de reordenacao da reptiblica ¢ sua reconducio a vida livre. Uma ver que © povo esté corrompido parece nay restar alternativa, a nao ser a refundacao do estado ov » reforma das instituigdes por um tinico homem dotado de incomparavel virti, A primeira dificuldade se encontta no fato de que raramente tims cidade corrompida pode engendrar um homem bom, Ad, imitindo, porém, essa possbilidade, se tal cidadao virtuoso se dispusera imprimir as reformas necesséras, id encommen grande resist@nci: se tentar reformar aos poucos, antes que o edificio desabe, nio sera capaz de persuadir os demais de necessidade dla mudanga porque “os homens, acostumados a vives te um ‘modo, ndo querem mudi-lo”: A outra viando promete melhores resultados: reformar de uma s6 ver, recortendo a meioe exe ordindrios “como a violéncia e as armas”, tornando-se principe possibilidade pritica, Maquiavel nos leva a dizer adeus a esse personagem que poderia resitah x repliblica sua liberdade perdida, Corrobora ainda esse onto de \ista 0 fato de Maquiavel saber muito bem que “homens bore %, a eiuerem fazer algo politicamente relevante, tém de aprender a Tentrat no mal”. Por que esse principio fundamental da vc, Politica parece encontrar restrigo na repiblica? Porque fazer 0 mal pata salvar a repiiblica acaba por acentuat a propria cox [abe © que fica claro se formos ao capitulo 34 desse mesmo livro I. Tratando da instieui igo da ditadura, Maquiavel afirma ‘mal, foi benéfica a Roma, Mas apenas eceu dentro das ordenagées piblicas, sistia em uma tomada da autoridade Por vias extraordindvias. Quando isso acontece, diz Mag vel, © mal feito, mesmo se visa a0 bem, resulta em grande prejuizo Para a liberdade, porque 0 desrespeito as leis e as instituigées ds parte daqueles que detém autotidade corrompe os costumes do povo (neste capitulo, o termo Povo parece se referir aos cida- os em geral) a0 habitué-lo as vias extraordinavias, Maquiavel parece sugerir ento que a solucao paca o problema se encontra nas proprias leis e ordenagdes: sao elas que devem evitar a cor rupgio da matéria, tema que é retomado no capitulo 1 do livro Il dos Discurso. As repiiblicas, consideradas ai como “corpos mistos”, podem assegurar sua longevidade se suas ordenagoes as conduzirem de tempos em tempos a seus principios, que sempre contém emsi“alguma bondade”, e, por esse expediente, elas recuperam “seu prestigio e vigor iniciais”."° A recondugio ao inicio pode acontecer ou por “acontecimento extrinseco” (como a luta contra tum invasor) ou por “prudéncia intrinseca”."! No segundo caso, cla provém “de alguma lei que reveja a conduta dos homens pertencentes aquele corpo, ou de algum.homem bom que surja entre eles e que, com seus exemplos ¢ suas obras virtuosas, produza 0 mesmo efeito de uma ordenagio”." Em ambos os casos, 0 resultado a que se chega é 0 mesmo: retomada das ordenagdes, manutengao da justica e da religiosidade, reforgo dos bons costumes e da virti entre os cidadaos. ‘Mas quando a renovagio se dé pelos acontecimentos externos 0 beneficio resulta da fortuna. E Maquiavel nao se cansa de lembrar {que nio é prudente contar com esta, que o homem de verdadeira Lirti (assim como o povo dotado de virti) deve fazer frente a ela (0 que ele chama de riscontro) para sempre obter éxito. Resta entio a medida profilatica das leis e instituigdes para evitar a cortupgio, juntamente com a virtie de um homem. Que leis € ordenagdes so essas? Os exemplos de Maquiavel: instituigdes como 0s tribunos da plebe, os censores e exectugdes periddicas (nao devem ultzapassar 10 anos) dos traidores da patria. Além disso, a religio desempenha um papel fundamental para a conser- vacdo da “civilidade”, mantendo os homens obedientes as leis ¢ reforsando os lagos politicos. Eos homens de virti?? Maquiavel nfo estaria voltando atras ¢ reintroduzindo a figura do salvador da patria? Os homens de virti podem renovar na medida em que servem de exentplos, on seja, eles produzem “o mesmo efeito de uma ordenagio”. Os exemplos de virrude civica educam os homens & proporcio que dio vida a uma ordenacio e colocam 4 mostra a vilania daqueles que se servem da autoridade para transgredi-la. So 08 sacrificios, as abnegagses dos cidadios que tomam a coisa Piiblica como um bem comum que inspiram nos demai de conservar a liberdade. odesejo NOTAS * MAQUIAVEL. O principe, p. 12 (radugio modificada). A edigi italiana tomada ‘como referéncia € a organizada por M, Martelli, Tutte le opore, MAQUIAVEL. O principe. Este termo ¢ uilzado por Maquiavel em duas acepgdes. A primeira, que ado- {amos na passagem anterior, denota uma parte da totalidade dos cidsdacs em Roma, se confundindo com a plebe; a segunda denota a propria toralidade Muitas veresnio esti claro o significado cmpeegado, MAQUIAVEL. Discurso sobre a primeira década de Tito Lvio,p. 64 MAQUIAVEL, Discurtos sobre a primeira década de Tito Livio, p, 69. MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lvio, . 407, MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lio, p, 69, MAQUIAVEL, Discursos sobre a princi década de Tto Livi, p. 72 (tradusao ‘modifieada). * MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Livi, p.75, MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Livi, p. 305-306. "" MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira déeada de Tito Livio, p. 306, * MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lévio, p, 307, " MAQUIAVEL. Discuss sobre a primeira década de Tito Livio, p. 307. REFERENCIAS MAQUIAVEL, N. Tutte le operé. Organizagio de M. Martelli Florenga: Sansoni, 1972. MAQUIAVEL, N. O principe. Traducio de M. J. Goldwasser. S40 Paulo: ‘Martins Fontes, 2004. MAQUIAVEL, N. Diseursos sobre a primeira década de Tito Livio. Trax dugio de M. F.Sio Paulo: Martins Fontes, 2007. gic ap: lib par as qu tec sut rel (nc au: cor pre est: sot esp for da cor inc qu MARILENA CHAUI ESPINOSA Espinosa expde seu pensamento politico no Tratado teolé- gico-politico (1672) eno ‘Tratado politico (1677). No primeiro, apresenta os fundamentos da politica para demonstrar que a liberdade de pensamento e de palavra é condigio indispensavel para a paz. a seguranga da repiblica; no segundo, investiga es necessérias aos diferentes regimes politicos para que os homens possam viver em paz, seguranga e liberdade, O alvo do Tratado teoldgico-politico € a critica do poder teol6gico-politico, isto é uma politica nascida da supersticdo, subordinada a religido ca ideia da transcendéncia do poder com relagio aos homens (no caso do poder dos deuses) ¢ & sociedade {n0 caso do poder dos reis). O objetivo do Tratado politico E articular liberdade e seguranga, esta iltima definida como auséncia de ciivida quanto ao presente ¢ ao futuro e, portanto, como auséncia de medo. Nas duas obras, Espinosa trata do problema da corrupgao.No Tratado teoldgico-politico,o Estado esti corrompido quando o governo se efetua pela violéncia do soberano a0 impedir a liberdade dos cidadios, dominando “os espititos ¢ as Iinguas”, isto é, a0 vigiar os corpos ~ por meio da forca policial e militar - e controlar os pensamentos por meio a teologia (hoje, dirfamos, da ideologia). No Tratado politico, a corrupgio provém da mé qualidade das instituigdes politicas, incapazes de garantir a seguranca dos cidadaos ao permitic que alguns particulares (Espinosa emprega a palavra privatus) seapresentem com o direito e o poder para tomar as leis em suas

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