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LIBER DISCIPULORUM PARA JORGE DE FIGUEIREDO DIAS Organizagao Manvet pa Costa ANDRADE José De Faria Costa ANABELA MIRANDA RODRIGUES Maria JoAo ANTUNES Coimbra Editora 2003 (EES : SH 10-03 7, econ (CoG? Weald COS & Corson bee © FIM DA VIDA E O DIREITO PENAL José de Fania Cost $1 INTRODUGAO 1. Aproximagio 20 problema (sua centralidade) © problema do fim da vida constitui, a vérios efeulos, uma daquelas atétias que levancam rejeigbes atbvicas — independentemente da poato em ‘que mos situemes ou da mattiz ética, rligiosa, juridica ou filoséfica de que par- tamos (!) — a ser tratada, valorada e estudada (?), para além de poder se¢ 0 ()Salientindo ambém — ¢ deforma cara — exe lado das cis sientando wan ine timo € verdadeico dos autores ques extuderarn,porguanto em ambos encontrdmes a abertura 8 dis. cassava © pondecda de problema da euandcia, (©) Tenhamse em devida cones a seguiaes pulavas: “Lodieeno occukameaco dele rove scone, in tel, fa nesta grande pasa t smaacheraSimpreparaione culture di ura societ i cui membri si iconoscono incapaci di conver: com Fides di fnitezsa e di tansito- fit, Tide che dascuno di noi implacabidmente desinaro a scomparic, GiOKGIO MACEDAR,, La motte ta medicins ¢ Filosofia, in: La fie dell vies, Bologna: Apron, p. 165. (©) Disseran-no, por exemplo, se Bem que em reitosHlosdfienr manifeseamence dile- rentes — ¢ que aqui se querem maniferamente diferentes enquane>ilutragio de divesidade de pensamenco ~~ Voltaire € Max Scheer. Aquele, no seu «Dictionnate Philosophigues, Asbainn da wwoces Homme, escreveu: “Lespbce humaine ext la seule qui sache qu'elle doc mou- rit" (VOLTA, Dicvionnaire Philnephigse, Edition Touquet, vol. V, Pais, 1821, p. 480); exe, ‘em ur estudo «Tod und Focdeben», quand afiemst “Ein Mensch wtier in igendeiner Focm und Weise, dal ihn dee Tod eceilen wicd, auch wean er das cizige Lebewesen auf Erde wre” Orfim da sida 6 dirito penal tt 761 ‘que so € que se movem em um horizone? (\iltimo) ($) que tem com linha der- tadeira, bem Id a0 fundo, esse poreal, jamais aberto ou desvendado, em que & morte se teaduz. Mas o que é parcicularmente interessante, pare continuarmos neste tom de inteéito, revela-e, por sobretudo, na abissal disparidade de tra- ramento que podemos captas, por um lado, na torrente de estados das conse- ‘quéncias do fenémeno social da morte ¢, por outro, na éxiguidade ou mesmo na austncia de trabathos séries, fundamentados e ricionalmente sustentados que tentem perceber a morte, ndo pelos efeitos sociis, uridice-sociais ”), que desencadeia necessatiamente, mas antes pela simples interrogagio do verda- deiro sentido matricial daquilo que definitivamente a morte € @). ‘A morte postula-se, deste jeito, como um problema central, ceneralis- simo, axial, da nossa vida individual e colectiva mas $6 gostamos de a discutir (ck Max SCHEER, Schfien au dem Nachlau, 1, Belin: Der neve Gein, 1933, p. 9. No centanto, quanto 3 aserio de Volare € bom aeescentar mais qualqdet cost, muito embora, normalmense, 6 se relia aqulo que se atsbou de cramcteves. Comectmet, pois pot emu car todo o parigesf: LespBce humaine ext fa seule qui siche quelle doit ryoutt, et elle ne le sait que pan exptience Un enfne deve seal, ex caneport dans une le dees, a den daw ‘ent pas pls qulune plane ec un chat (idem). De sore que, pare Voltaire, cereza da more, came ale, ale, nat di, & um dada do cohecimen que te adquize pela experiznia. no seu eto dexmisifcadore radical chegs como se vids «compact 2 usa da Avda da eranga aque tvesesobrevivido quma itha deerea& suséncfa da dvida (sobre & morte) de uma plana (0 de um aro. Nov anvpodas der compreensfo ex Schelet. porquanta, vimo-o, pars cle um dado inquetionsel que um homem, mermo que fos 0 tnic ser vivo sobre terra, sempre sberia que seria surpreendido pela more. (©) Sebre este horionce — em devradcirainsincia, horzonte cultural — # 0 que ele reprssata de pré-ormativo e de esercial a0 hurmano, vejte 2 ntse de JAN ASSMAN, Lt ‘morte come toma court, Torino: Einaudi, 2002 (trad, italiana Der Tod als Thema der Kul. urtber), p 6 1) Atentemos,th-s6, nas consequéncis eseitamente judicas, Comecemos por dizer que a morte € um enémeno :80 importante — isto é, que teat consequinciat tio importan tes — que a chega.¢ bem, em citcunsetacias deeeminadas pls Ie, a presuni-s (vejam-s¢ os ant. 1148 e 5 do Cbaigo Civil [CC). Para lem diso scnremos, a titulo meramente cxemplificaivo, mais dus sgnifiatvas consequéncias da mort: 4) 0 momento pata a abet cura da suceaso coincide com o momemo da mone fan. 2031.» do Cédigo Cir 6) a ome como causa de xing da esponstildae criminal (ars. 127° 128 do Césigo Penal (CP). {Por ito fa todo o sentido aquilo que eereve Patsci S. Mann: “We plilocapters ‘ce always neying to get on death, and always fling. Anthropologists and social historians are ‘ely c0 do betes shan philosophers in thee offic ta chacwaeiae death, insofar a they xn investigate che many face of death in diferene cultural contexts: death in bacle may be heroic: death in youth nay be tragic, death in old age benign”, PATRCIA S. MANN, «Mes- Physician Asited Suicide (eiced by Mangaret P Bain, Rosarwond Rho- ‘New Youk / London, Rourledge, 1998, p. 1 762. Jest de Faria Cosa por aquilo que ela provoca (°). Tudo 0 que esté antes dos efeitos, das con- sequéncias socinis « juridicas da morte mas que se na confunde com as suas causas — isto 6, aquilo que esté no meio da causa e do efeito e que se t= uz no proprio fenémeno da morte ~ € metecedor vio-s6 de reflexées pot ticas, de projeegies, conviogses ou de sentiments religiosos (!9) ou nyuito sim- plesmente da construcéo artificial de um deserto que faca definhar © mais ‘ansparente © bem intencionado propésito de reflexio material sobre aquele preciso ponto, ‘Tenteinos tomar as coisas ainda mais claras: uma coisa é 0 estudo da morte por aquilo que ela desencadeia; outra é analisar 2 morte ppelas causas que 3 determina; outra, bem diversa, é a aventura do estudo da essencialidade da morte. 1. (cont) A sua inccinseca dificuldade teorética No entanto, a afiemagia ou a confiemagin da essencialidade das coisas no implica uma maior facildade, em exacto ¢ correspondente sentido, na apro- ximagao compreensiva que delas possames levar a cabo, Dis-se-ia até que quanto mais nos aproximamos da essentia mais nos afastamos da sua compre- ensio (1), Ha como que una resistencia anancistica da esstncia a ser vio- lada pelo olhar perscrurante ¢ também necessariamente analitico que a com- ppreensfo consigo sempre arrasta. Mas simuleinea ¢ paradoxalmente, 2quela rejeigéo verdadeira ¢ real corresponde a igual, ou mesmo mais intensa, verti- gem de querer conhecer 0 mistério que a essencia da morte representa. Ora, esta ambivaléncia, se no for desde a primeira hors denunciada em toda a sua ©) ‘Sobre aquilo que provoc mas eyabém Sobre o que suger (cf Deh Ries (Law and thie at the end of lips ediced by Robert Lze and Desc Morgan, Londo / New York, Row dledge, 1996). (0) bio que nfo vamos segue flora os extsoedinkrios mundos podtic, lei, picbrico ow saigioan, Uma qualqier incurs mere dominio Wanras-aaeia da exsacial ¢, pa alee disso, por maior que foue 0 empenko, sempre se fcaria x6 com uma pid iia 4 inabarcvel imensidso dis obras que tiveram a mone como questo cent. E pariculst- mente intermaste ver, nda obstante a saudivel diferenga de portos de Vist, que, mexmo cm Coliquiot que se formam debaico de wma comumt mari confesional, no cavo a cates, se see o pulsar da difcldade em abaear + muliplielade vemdcca que 4 morte pode desper- tac “mat quando nos pomos 4 ceflectee 4 consular lies eeabalhos sobre 4 mote, su preende-not + mitipliiade dur aborlagen fees do probleaa, Micha. RENAID, «Morte € eutandsia porate dic ssa, Brotiri, vol, 150 (2000), p- 223. Acrescence-s que © slurs 2 que noe aeablnine de efre 4 mnanogedben «tata da eutansin (0) Evea tipo de rciocinio ¢ sinds compreentvel e defensivel — ack tavex is — mesmo que nos astern do rigor da gies de rain ican fim da vide e 9 dncite penal 763 amplitude, pode facilmente inquinar 0 pensamento que sélida ¢ tenazmente s¢ afoia a penetrar na dimensio essencal daquilo que a morte é E, deste jeito, somos atirados, sem spelo, para o dominio da intr(nseca dificuldade tedrica ue 0 estudo da morte representa, independentemente, como jf se disse, do lugar ene que nos coloquemos ou da atitude metédica que abracemos. F claro que 0 feixe apertado ¢ vasto de todas as dificuldades apontadas poderia levar 4 uma outra atitude de espitito, qual seja, a de abandonatmos pura ¢ sim- plesmente uma tal problemitica. E de a abandonarmos sustentados na 12230 pragmatica de que a eventual utilidade a retirar desse esforgo do pensamento seria menos (infinitamente) do que proporcional 20s beneficios tebricos ott pre sicos dal decorsentes (!2). Todavia, parece-nos, sern nos alongarrnos em outras sxplanagGes, que s¢ ext longe de poder avaliar uma tal macéria desta mancira. Em primeiro lugar, quando curamos das coisas do esprito é bom nao entrar no jogo logico da pura utilidade, para mais quando 0 que se quer discutir é a densidade de uma questio que, no obstante o seu manifesto cardcter es nhoso ¢ de rejeicéo & andlise, se mostra, sem sombra de divids, como parti- ccularmente importante para a vida das pessoas ¢ da colecividade. Assim —e com isto retomamos o fio da consideracao anterios ¢ avangamos para a segunda das consideraySes de findamentaga —, a questio da morte nfo é, nem pode aqui ser compreendida como uma mera e evanescente problemd- tica de entono manifestamente teorético: ela € uma real ¢ verdadeira questio pritica. O que se quer é perceber minimamente a morte para que, apoiados nesse conhecimento compreensive, possamos retirar consequéncias priticas. 3. A morte, o fim da vida, como o tinico fendmeno da “vide” que nos & absolutamente opaco ‘A peccepgio da realidade, a sua compreensio ou mesmo s sua mais des- carnada e seca andlige mostram set absolutamente indispensével, para aquele que conhece, ter um arsenal minimo pré-compreensivo que lhe permita ace- der ou entrar na realidade que se quer estudar. Ou seja: se no tiverrnos (9). Friese que ese shandono pode ter a sustenuo nfo anaes que em texto se svan- ‘gam mus antes ¢ axioms de que a more, io tendo um fendmeno david, afo perce & vide. 0 imediatamente apreensel e racionalizvel. Wittgeastrin vai, precisimente, por essa via quando a0 seu Treas Lopcr Philophcws (64311) afema “A more nio € um aconteciment® ea vids, Nio fd uma vivdaca da more” (ef LuDWiG WITGENSTE, Tatade Liga flst- {feo « Invengastes Plosifices (xadusio ¢ prefico de M. S. Lourengo), Lisboa: Fundagso ‘Calouste Gulbenkian, 1987, p. 139). 764 Jest de Faria Coma uma quota minima de referentes a reaidade &nos absolutamente estranha, hos- til, de uma quase e irredutivel inacessibilidade. E evidente que 0s fendmenos, ‘para serem compreendidos e percebidos, néo tém necessariamente de ser vivenciados por aquele que os estuda ou analisa. Outros nos podem dar a sua vivéncia ¢, a0 interlorizar-se esse preciso modo existencial do “outro”, pode- mos também aceder & compreensio daquilo que nos preocupa, quer come sim- ples cidadios, quer como cultores de uma determinada disciplina ou saber. Assim, € para nds evidente que 0 homem, enquanto género masculino, sé pode chegar is franjas da compreensfo profunda do abortamento pelas mios expe- rienciadas das mulheres. A discursividade que as mulheres trazem, nos pres- supostos de uma comunicagie sacionalmente sustentada, permite a todos os membros da comunidade participarem na compreensio do fendmeno do abortamento (12) ¢ em consequéncia decidirem. E evidente que bd também outros fenémenos da “vida” que apresentam ‘graus profundissimos de opacidade. Basta pensas, s6 para datmos exernplos muito simples e coneretos ('4), na vivéncia humana durante a gestagio o na ‘que tem lagar durance um estado comatoso. E manifesto, no entanto, que estes dois periodos sio, de certa maneira, radicalmente diferentes. Urge, por isso mesmo, distinguit. Uma coisa é a vivéncia gestacional — onde a autocom- prccnsio subjectiva é minima ou tendencialmente igual a zero — outra, radi- calmente diferente, € a que acontece quando se vive um estado comatoso. Com efeito, todos vivemos a gestagio mas nem todos vive a experiéncia comatosa, De sorte que a nossa atengio se deva centrat, sobretudo, naquilo que € 0 lugar simétrico de “seres para a morte”. Isto é em um momento prima- cial somos também ¢ irredutivelmente sere da vida. Contrariamente as coisas (09) Toda, sejtnas permitido aprofundar um pouco muis exe porto. Com efeto, ao ‘bsante podermot entrar newer mundivdéaca pela sensiblidade e racionalidade Femina, € indesmentivel que sempre ecapard 20s homens usa iredutiveleinexpcimivel dimensto, neste cao a insubstcutel subjectivdade do género. No entant, estamos longe de Pensa ou seque= ‘congeminat como possi qualquer afatamento dis decises sobre 0 aboramenta de todos oF ‘que tenham 0 género masctlint. A dechées da poli, ar decabes policamente sustenadas, para poderem set levadas a cabo aio exigem um to profurde encazamento subjective. Bem ‘elo coneisio, O que exgtm — ¢ iso € cabalmentesaseico na entegn racional que & muh 1s teuem a discusvidae da por — € exe momento de rigor ¢ de comprecesto daqula que se discure. Da mesma forma, todos somos capazes de compreender — e por iso disreteat, ‘alorar € decir enquano ciudios, © ro 46 — os enbmenoe da drogs ou do homiclio mesmo que ues a tenha experienciado » dogs ou ze tenha morta quem quer qoe a (4) E ela que ovttos exemplas se podiam dar sem, todavia, adquiritem a expessuca € telewo daqueles que ze ofeecem em texto. De fieto, 2 comecinhs ¢ dissin anesesia gel bem uma outa evident iasragéo de expeitsia humana que deica uma mara de opacidade. O,fim da vida ¢ 0 dito penal 765 que s6 existern, nds somos. O que implica que naquele momento, no momento ‘em que ja somos seres da vida, a opacidade se mostre também af tinica ¢ irre perlvel (15). Sucede, porém, que, contrariamente 3 morte {o néo-sermos), a expe- riéncia de sermos abre uma fiesta & compreensibilidade. Tal experigncia pode set estudada, valorada © analisada pelos outros. A cigacia, nas suas mais dife- rentes € especificas disciplinas, dé-nos ¢ explica-nos, através de relagdes de fené- menos, o iter da fenomenalidade da prépria vida humana antes e durante a ges- tagio. Por isso somos capazes de o aprender € compreendes, Compteensic que, no obstante nio ser auto-reflexiva, se adcnsa, se refaz e se interioriza porque é de ciéncia certa que qualquer um de nés a viveu, Todos, enquanto sujcitos individuais, softemos desse defice de primitiva experiéncia auto-reRlexiva € € ese sentimento de absolura igual partilha naquilo que se no tem que nes leva a viver, sem preocupagses de maior, face a. um pedago de nds que néo conhecemos porque opaco. Ou melhor: s6 0 conhecemos porque “outros” nos disseram que foi e € assim € porque agora nds expetienciamos nos “outros” que ¢ assim, Ha em auido o que se acaba de ponderar 2 possibilidade de cons- ‘muir uma narrativa plausivel que admite pontos de intersubjectividade que a tcia selacional vai consteuindo. Plausibilidade essa que ndo é mera ficgio mas antes tealidade que se pode partilhar, se bem que, ¢ evidence, dentro de parimetros € patamares extraordinariamente diferenciados. Em sintese: se é verdade que hé Fendmenos da vida que apresentam graus profuadas de opacidade — apesar de tudo desvendiveis cognitivamente, analisiveis cientificamente € apreensiveis compreensivamente -~ é indesmentivel, néo obstante a sua inevitabilidade, que 0 tinico fenémeno absoluramente opaco da vida é a more. 4, Os virios horizontes onde a questio se coloca. © horizonte jurf- dico-penal Pereebe-se com ficildade que a problema do fim da vida se coloca em diversos horizontes (16). Desde logo, salta-nos como preponderance o hori- (0°) noo jo 0 fendmeso da clonagem humana, que mais de ou mais cedo va, incvitavelmente, acontecer, em nada alter a conidergtes que se lvaram a cabo. O “upl- tale” humano ranbérn ce wt um moments genio onde tudo €opaco que, para além de td, wl acontecer em um out tempo e em un ouro lg. Desde logo, «pats des coor eau, estamos pernte un “urr'. Atece a tudo iz, enquanto enquadramento pjabal de legac social, ereniade vlorcivac natura © 40 mapare nazar — fi 2 i (4) Hi ambém uma compreento hsecca dos problemas que oF da vids sui, Into &, podemos pevecber a evandsia saves ds tempos. Ali, exta forma de enquadra a pro % Jest de Faria Coss zonte religioso. Independentemente da confissio, credo ou crenga em que nos sicuemos a celigiasidade assume como seu punctum crucis 0 tratamento ds morte, porquanto esta representa um rivo de passagem — a passagem do mundo dos vivos para 0 mundo dos martos — que na ideagso de qualquer religido se mostra, jd 0 dissemos, essencial ou fulcral ('7). Sendo obvio que nso € nosso propésito caminhar pelo tertivicio da eel iosidade ("), corns-se, pois, mais Ficil ou quase intuitivo perceber que hi todo ‘um continente normativo onde a problemética da morte se mostra de modo particularmente agudo, Esse cerrtério é, sem diivida alguma, o campo fecundo do dircito penal. Com efeito, a nossa preocupagao enquanto penalistas nfo é, obviamente, fazer um tigoroso estudo de reflexio tedrica sobre o fim da vida. A morte, se acontece, digamo-lo em palavras pobres, por razSes normais ou naturals tem, por certo, consequéncias jurtdicas mas nfo tem, com 0 mesmo grau de cer- teza, consequéncias penais. Uma morte que se desenrola dentro do normal ciclo de vida nfo entra na discursividade penal, Ela s6 penetra no territério do direito penal quando, por mor de comportamento humano voluntétio de outrem — por acgio ou omissio —, se interrompe, de mancira jurldico-penal- blemiica ¢ quate sempre convocadt para entarlegitimar a eutanisin, Néo vamos agora dliscuce sobre a bondade de um tl processo de lepitimasto, o que # quer 4 rornar clara — sem qualquer e imedito intuit legicimador — a exstnciahistércn de prAcas eutandsi- 2s socalmente sxentdas (vase, para a Giéciae para Roma, J. Micha Raiser, «Zur Eutha- nasi in der griechischen und rmiachen Amines, i Eihik und Rech en der Green snicker Leben wx Tod, Graz: Leyla, p. 19 € 9. : (7) Pax um confenaxo comparaticn, neste impo, € eurardinatiamente euciativo « til verse Religion e Bioeies (acura di Lorenzo Biagie Renzo Pegorao) Fondazione Lanes, Padova: Gregoriana, 1997. (9) Ni deta de sr interessante ¢ até mesmo muito cuioso que umm Santo da Igreja Catdlica — eanonieado, com se tbe, em 1935 —,flamos de Thomas Morus, zenha defen ido, com uma extentio verdadeiramente caraontindi, a priica da earaadia ma su eee cobra Uropia (THOMAS Mone, Uspia edied by George M. Logan and Robert M, Ada, Caro- ‘cig: Cambeidar Universcy Pes, 1985), Nio &, aqui, o lugar adequate para refletir sobre © papel das utopias © do que representarin © reprsentam no nosso pensamento, Mas uma cis 30 menos Not parcee ceca: nfo s pode menoyprear 4 fora de ura ieia ou de uma solu- «fo 06 porque ela pertence a0 mundo complexo ¢ fri de uma opis. Refiase ainda que, por explo, David Hume, no seu eoahecidisimo enaio em defer do ido, em not, chegs 4 afirmar “sera fick provar que © asieidio € eo leptime & har da tevelagta crs camo 0 a (2 05 pagios, Nia hd um dnico eato da sagrada ecritur que 0 prota’ (Davo HUME, «Do sicldion. ins Enmaies Monts, Poiniose Literdros(teadugio de Jofo Paulo Monteiro, Sara ‘Abie: ¢ Pedso Galo), Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 472, nota 4). Of da idee 0 dircivo penal Ed mente ilegitima, 0 seu normal decurso ('9). © que € 0 mesmo que afirmar: a morte sé é penalmente relevante, s6 preenche um dos diferentes tipos legais de homicidio que se prevéem na PE dos Cédigos Penais, quando, fora dos pres- ‘supostos que se acabaram de salientar em momento anterior {nomeadarente, violagio da vids a coberto de uma causa de exclusio do ilfcito), com ela se dé um encuramento da vida, mesmo que ssse encurtamento seja io-s6 de segundos relativamente ao termo inevitdvel da vida (2), §2 A VIDA HUMANA E O DIREITO PENAL 1. O sentido da vida (a intencionalidade juridico-positiva com que a Vida é valorada) em direito penal O diteita penal valora hierarquicamente — de modo contrétio ao que se passa, por exemplo, no direito constitucional — os bens ou valores jucfdicos que quer proteger. Por isso, a ordenacio sistemstica das diferentes Areas da incriminagio que vemos nas “partes especiais” dos mais diversos adigos penais assume um significado prdprio se quisermos perceber a hierarquia normativa que o legislador achou por bem consagrar. Assim, 0 facto de 0 nosso CP abrir a sua “Parte Especial” @) [PE] com os crimes contra a vida € revelador, de maneira clara ¢ inequivoca, de que 0 bem ou valor jurfdico-penal mais fortemente protegido ¢ 0 da vida humana (#2). ‘Todavia. muito emborz, como se vé, 0 bem juridico vida humana constitua 09) Com particule interese, nomeadameate osublinhar da iden de que a probieto de mata incorpora um verdadero pritclpio de oxdem piblica, ves Jose BEEZ, «A ortotandss como problema juridco-penale, in: As wena moderns de rari: conc de more; ape tes ios, religicomess¢jardo, Por. 1973, p. 37. (08). Como se nfo desconhece — estamos perante unt cdlebre exemplo de escola — ‘pai da hima que asive 8 execugio do homicia do filho e anecipac e premie uns segun~ dos antes 0 botio que acciona a descargs elécria e assim matar © condenado, cle etd + cometer um crime de homicidio. E exc inequivocamence 4 praticélo, nfo obsante 1 sbet de itncia cera que, mesnie que wl aco nia se ves desencaeade, 2 morte do delinquente seria inevitve ly Sobre 4 nogfo ou categoria (¢ seus seatdos normatvos) que a chamada “Pare Especial” encerra ¢ de interne ver © nosto eso sRelagSes ence a Pree Geral « 4 Pere Epeial do Cigo Peale, BED 71 (1995), p. 117-144 @)_Vejaae ote contao ¢ abaluernent coizcdente com o que se acaba de ponderas Kant HEINZ AUER, Vefsung und Sifrecht im Kontes rchepbilopitcher Ei, Wie: Ves lag Oxcerich, 2000, p. 146 es 768 a pedra de toque do portico de entcada da Area da incriminagio penalmence relevante, é bom ado esquecer que o valor vida humana nio é valorado pelo nosso legislador, como por todos os outros, de maneira monolitica: niio hd sé tum tinico tipo legal de crime para proteger a vida humana. Na verdade, a vida humana € cotelada no 56 nos seus diferentes momentos de realizacao ¢ auto- nomia (vida humana intra-ueerina e vida humana auténoma (3)) mas 0 diteito penal também aceita como momentos especificos dessa tutela 0 modo a citcunstincia pelos quais 0 bem juridico vida é violado (#4), Em defini- tivor © que vetdadeiramence se consagra em toda a drea da incriminagso dos crimes contra a vida no € um e s6 um crime contra a vida; 20 invés, pos- tula-se como necessirio, proporcional e adequado positivar vatios crimes que tenham em devida conta, nao sé os momentos de realizagao da vida humana mas também o modo ¢ a circunstincia em que a sua violagso tem lugar. 2. © aumento da esperanga de vida Se de hi muiro se superou a ideia de um bem juridico grosseiramente ‘material ou empltico nio & menos verdade fazer notar que também foram ultra- passadas as fundamentagées de conalidade neo-kantiana que viam os bens jutidico-penais dentro de um horizonte ¢stritamente valorativo ou axiolégico. Hoje, 0 chamamento ou 0 apelo que o bem juridico fiz para a sua com- preensio, penalmente empenhada, nao descura, no minimo que sja, a reali- dade. Neste sentido, os bens jur(dico-penais so pedagos da realidade, axio- Jogicamente celevantes, que sustentam o livre desenvolvimento da personalidade @) Quanto a este preciso ponto, por todos, Jonce Ue FicuEIRENO Diss, em anotacio a0 at. 131.9 (§ 5), in: Comensdrio Conimbricense do Cédigo Peal, itigido poc Jorge de Figuei- ‘edo Dias, «1, Coimbra: Coimbra Edicora, 1999, p. 5. Se ge olhar, mesmo com o mais lige dos olhares judas, para 0 nosso CP de ime dia nos damos conta do acerto daquilo que se scaba de ponderst em texto, Desde logo, 4 csrutuzasistemndica da incrimainagio dentro dos crimes conven «vida auténoma (1 chamad lenica legisla de ineriminapas) nio deixa razegem pata divides: crime matcial ou funds ‘mental (homicldio simples — att. 131.° do CP); crime qualificado (homieldio qualificado — ac. 132° do CP); e Finalmente cme privilegiado (homieldio privilegiado — art. 133° do CP). A isto acreice o taramenro abyolutamente diferenciado da cuela da vida inera-uce- rina (Com rantas espeificidades que a nap ment sec a de que 0 aborto nio admite a puni- 540 por negligénca) ainda o verdadeiramente multiforme modo de prever, quer © homicidio ualificado, quer aqui de mantia pariculamence vste, 0 homieido prvilegiado. Por ours palaveas:cemor virios modos ou circunstancias em que a viola¢io da vida pode ascumic a forma de homiciio qualficado como, de igual jit, emos divers modos e drcunstincias em ‘que a violgio da vida revent fous de homicidio privilepiado. fim da vide dtireto penal 769 humana (5). Ora, se 2 realidade a que chamamos vida humana sofieu modi ficaghes, ainda que s6 quancitativas, implica tal mutagio que devamos repen- sar @ sentido € 0 contetido do bem jurfdico-penal vida humana. E qual foi a grande mudanga? Nao temos a menor diivida em afirmar que a grande transformaco que se operou, nestes tiltimos decénios, no que se refete & vida humana, se prende com o fantistico aumento da esperanga de vida (9). Vive-se durante mais tempo. A vida humana tende a alongar-se {quase que para “tempos bibiicos’ @”), gracas as melhores condigbes bsicas da vida, & descoberta dos antibidticos, as transplantagSes mas, sobretudo, ao extraordindtio desenvolvimento da medicina quando olkada ne seu todo. Aumento tio forte ¢ patente que, hoje, sociologicamente,jé no ¢ incomum ouvir Falarse de uma “quarta idade". E dbvio, por conseguinte, que este alongamento de duragio da vida humana veio colocat novos problemas (*8) ngo s6 a cigncia médica (29) — novas doengas que exigem novas terapias — mas, inevitavelmente, também ao direito penal. 3. (ont,) Suas consequéncias, mesmo sobre a prépria nogio de vida Antes de entrarmos na ponderacio consequencial daquilo que temos vindo a valorar urge que se faca, para que mal entendidos no sutjam, no que (©) Sobre a nocio de bem juidico-penal vej-se © que excrevemos em O Prrige em Airco penal (contribuso para «sua fundamensasio ¢ compreensto degmdrias), wimpressi, Coimbra: Coimbra Edivora, 2000, p. 183 ¢ 5 (0) Esperanga de vide (4 nascenga) € 0 mémero médio de anos que se expers gue um indivduo viv, desde que se verfiquer a partic do nascimento as tras de mortalidade obser- vadis no momeneo (ano de observaio). E s6 para sec uma pequens idea do aumento a cexperangs de vida em Portugal refra-se que, entre 1990 ¢ 1995, a esperanga de vida dos homens ceseu de 70.2 pata 71,5 enquanto a as mulheres aumentou, no mesmo petiodo de cempo, de 77,3 para 78,6 (dadorretador ds Enciclopedia Veto, Edigio XU, wwocen “ee range de vida’) @) Note-te por exemplo, que a esperanga de vida dos homens brancos nos EUA. ‘em 1990 era de 48.0 anos ecm 1971 jé era de 68,3. Em prticamente setenta anos « espe- ana de vida aumento 20 anos. Un sake abrolutamentefabuloso Fonte: a wocer ctads na nota 26). (@) Um problema que, no fim de conts, se bre « vcios problemas ¢ aquele que s¢ prende com of secures econSmizos, Estes nfo af inlisticos, o que pressupie por conseguiné. riosidades na suaalcagso (cf. Ena e allcenone dele rsore nell sania (a cur di Elio Sg ‘a. Antonio G. Spagnsie), Milano: Viea¢ Pesieo, 1996). (2) Ej boj uma valénca médica c em alguns sos mesmo uma especalidade médica 1 chumada gevontlgia. {9 Dera 70 Josh de Fasia Costa toca 4 nossa posigio ética sobre a vida humana, uma ou outta consideragio de principio. A primeira é a de que, para ns, a vida humana é inviolivel, © que, aliés, nada tem de extzaotdindtio, antes oncrespondendo medianamente 2-um imperativo constitucional (°°). A segunda é a de que este axioma ser sempre 0 horizonte no qual ce desenhario codas as ponderagbes que se leva rem a cabo. A terceira prende-se com a prépria natureza do direito penal, sobrerudo quando jogamos com as causas de afastamento da responsabili- dade, seja quando nos confrontamos com as chamadas causas de exclusio do cito, seja quando nos debatemos com as causas de exculpacio, seja, final- mente, quando nos embrenhamos em uma categoria residual de “outras caus sas de afastamento da responsabilidade penal". Vale por dizer: a0 direito penal nao repugna, antes se manifesta como exigéncia de justiga, que a vio- lagao da vida, em cectas circunstincias legalmente definidas, no seja punida (basta pensar no exemplo cléssico de alguém que mata outrem em fegitima defesa). O direito penal mostra-se assim extraordinariamente sensivel 4 pon- deragio dos valores ou dos bens em confliro. Ea esta ponderagia, todos o sabem, nenhum valor ou bem escapa, Nem mesmo o bem juridico vida que 4, jd. vimos, aquele que de forma plena € absolura constitui a pedra angue lar da actual ordenagio hierdcquica da inctiminagso. Posto isto entremos, ssem mais, nas reflex6es que, 2 propésito deste especifico ponto, hé por bem levar a cabo. ‘A ninguém passaré despercebido que uma tio grande e dense mutagéo na esperanca de vida humana nfo podia nao deixar marcas, também elas sig- nificativas, naquilo que ético-socialmence consideramos vida humana. Que- remnos com isto significar que nfo € impunemence que a sociedade vé alerar-se, ede forma tio radical, um dos seus segmentas mais significative: 2 normal duragio da vida humana. Assim, uma nova sensibilidade se vai etiando rela- tivamente a esta nova situaglo. Paradoxsl. Por certo. Na medida em que se, pot um lado, a velhice ver apreendida como um factor de desenvolvimento € de progresso, logo realidade a que se empresta um juizo claramente positivo, 09) Ar. 242, 28 1, da Lei Fundamental da Replica. Pare além diss, a eutela da vida ‘humana recébe zinda, em gossa calender, © reforgo de uma cobertura adjuvanre quando, ata vis do are. 70.° do Cidigo Civil (CC), podemos afiemar que 2 sua proteegio cabe, sem cas vas, naquela norma (CE neste sentido RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O ditto geal de per- sonalidade, Coisra: Coimbea Edivora, 1995, p. 203). Sobre 2 importincia do 2x. 70.¢ 10 CC vejaveo belisimo exude (ensia) — robrendo tendo en cona. © momento hisérico be OWANDO DF CARVALHO, Os direitos do bomem no dircit civil poeuguds, Coimbra: Véetice, 1973, p. Ales O fim da vida e 0 dvcica penal m cla nio deina também de constituir um problema complexo ¢ profundo na rea lizagio do estado de diteito social @"). Na verdade, perante estes novos dados urge Ievar a cabo Coda uma nova redefinicso, por exemplo, da seguranga social. Mas no termina aqui a complexidade social que o aumento da esp2- ranga de vida esté a provocar. Na verdade, muito diferentemente do que acontecia hi poucas décadas, 6 fim da vida tem lugar cada ver mais nos hespitais ¢ no na casa onde « pes- soa sempre viveu (32). Nao s6 porque ali é o sitio privlegiado onde se podem sealizar cuidados intensivos ou de sustentacio da vida mas também porque na casa de familia, por cazées tio Sbvias que nem vale a pena enuncid-las, é imposstvel “ter” a pessoa que estd doente ¢ esté perto do seu fir de vida. De uum lado, pois, 0 aumento cuidadoso e empenhado da durasia da vida que a colectividade nos concede mas, por outro, o afastamento, anonimato e a soli- tude com que se morse, Também por esta vertente das coisas se se no sente 1 paradoxo é indesmentivel que sos bate em cheio na cara 0 punho do anta- gonismo de uma sociedade cada ver menos soidsia porque cada ver mals indi- viduals. 3), Eo que se deve sublinhar, perante tudo © que se acaba de dies, €)_No documento Mere bomen: em Paral na aor $0, do Tstivaro Nacional de Bnatic seluivamente a 2002, ns epg nila "Populag © envelneiments” Weve sequin Porgal regitou serge demegrdicssigicatvas durante «dca de nove. (© agravament> do fendmeno do cavemen,» cntinuazao de bates nies de fund: dade ca inves 40 sentido do x08 migatics,invencaram a etuturs da populsto, com contqutncar 40% nivel conic e soc (03) O que se aabs de dict 6 a muitos los, uma evidera , gor io, no mere- ceia qualquer ous oberg No entate,« precsmente no dominio qu ced coda, pe pig arts dis os como se ver, tad fora o sentido da endenci de ta mone Sire mish Egos ute emo dara as pal ser una rade ex pov wlan ou epeilidade madi, & evidence que 0 doen ‘mina, pars tenticar dee stmento, obras rk de owe no prépio Hospi Gamo 2 tae o hopice movement nasceu na Gra-Breanha em 1967, pela forgo ancien « inate de Cecile Sade etm come htzone imo opo etal ano ta ie ROSAS 210 Bancano, cL cit pallaive apes eric, ir Le fine dele wt, Balog Apron, 3001, p. 153 ¢3). Pasa dso, pode sfmaran sutentada em didos por ode ion como inact que, no8chamados pales denver, 79% 2 90% das mores ta, hoje, gat em inwicigdes de said (cl ANTONIO Banos, sPesae + morte nos eidadoe de sade, ‘Adis Scal 383 (2003), p37) 1) Un prgiens aberaso no sentido & aprofindamos aqui que se acbou de ref fiz Porgué antagonism quand + decoriéncia dacuiva no apresenta, em princi, qual ue iden aneagic? Na verte, em ina Yoga igi, se untried € menos sla 4 porque da se mons mas nda. Tedavia cm nono modo de Yex hf uma eo pas 0 antagonismo, E que o inividaaiomo — ow melhor, aguas formas de individualism —, mm ot de Faria Conse 4 2 total ou quase total impericia ou incapacidade com que a comunidade lida com estes novos problesnas. Tudo tende 2 acontecer a uma velocidade ver ‘iginosa, A capacidade de absorsao e de metabolizagio desse fundo comum a que chamamos consciéncia colectiva esté preparada, no seu ADN, para muta ses mais lentas. E bom nfo esquecer que, hoje, alguém com oitenta ou mais anos viu durante a sua vida suceder-se uma multiplicidade de fenémenos, de factos, de valoragées, de mutagées que, em outras épocas, seriam precisas qua- tro ou cinco geragées para que tal aconteossse. Ou seja: a experiéncia acurmulada por cada um de nés neste tempo, em alguns casos, no cabe em nés. O que, a muitos ticales, nos deixa perplexos, ansiosos, descentrados. E quando as coisas se apresentam com um tal grau dé perturbagio é prudente que os avan- gos se facam com cuidados redobrados. Por outras pslavtas ainda: nesta como em tantas outras matérias da nossa contemporaneidade nunca é demais salien- tar a importincia, sem todavia o endeusas, do principio da precaugio 4), 4, (cont) A qualidade de vida CChegados a um patamar de duragio da vida, que talver em menos de cem anos tenha quase duplicado © seu perlodo normal, © problema jé nio se cen- tra na “quantidade” de vida 5) — para nos exprimirmos de maneira pobre mas sugestiva — mas, seguramente, em uma nova categoria: a qualidade de vida. eta contemporsneidade,surge-not como uma expresso dem modo-deser soil slidicio. ‘Acree que 36 poder se: “odin” anes formos adil ¢feroumeaseiodviduli- tas. Ou sej: of tegson ou as declinagées com que tis perpectivs sia hoje va e valor chs spree sutilease mates que poder bem dat 229 + um tal antagonism. “08) OUVIER GoDAnb, sLe principe de précation, ane nouvelle lgique de Tsction nue sence ¢ démocratin, Phibophie Pogue, 1 (2000), p. 17 es. A precugio, quanto {Lnds, no se cinge aos dominios da uliarfo da cide, da sénica ou da tecnologia, Defer demos, sbertament, a incitncia da prcauso tae no domiaio legis. et & sex pre que se tenha a incengdo ce operat qusquer aerate lgilatva, mormente de ordem Dena. devem todos en iterenientes do proceso legidatve ter como pane de fundo a Hela fore de precugio que se tidus, neste casio eapecfico, em jamais abandonar a ponderagd0 fame esutenada de odes 0s valores em jogo. No entant, pgue se ed em uma dea de sormatividade — onde nfo hi por conseguine, 0 concraponto da vrfablidate — nfo Se ove sc “precvido" a line, porquante quem asim pense ou gine, em termes legierane, Irmobilizasia cpalquer progrexo legdativo, qualquer ide de avango contsente da propria rods leg. (9) Outotfalam dlarameste em envelhecimenta demogrifico, ANTONIO BAR- 205A, of, cit (n. 32), p. 36. Ver tambért 0 que ji se diste na not 31 O fir da vide ¢ 0 dieito penal ™ Com efeito, de todo o lado, as perguntas, as interrogagées, as davidas, as perplexidades assaltam-nos, no s6 enquanto pessoas que viver este tempo mas também enquanto cidadaos cmpenhados que querem responder as exi- géncias da sua prépria ciccunstincia ¢ histéria mas, sobretudo, como juristas preocupados. E esta preocupagio jé nao é, de modo algum, uma pura evanescéncia que nfo tena qualquer reflexo ou afloramento na doutrina penal. Efectivamente, todos convém que, hoje, 0 consentimento informade no dominio do direito penal médico, para ser legftimo, nao basta traduzir, segundo o estado da aste, a probabilidade da esperanca de vida. Exige-se muito mais. © doente perante, por exemplo, uma operas do foro oncolégico, para dar um consentimento, deveras informado, tem de ter ben nitidos, a seus olhos, diferentes valores. A saber: qual o provével tempo de vida que Ihe resta se nada se fier? Qual, também provivel, & certo, o tempo de vida que alcancard se civer lugar a intervengio? Se nada se fizer, com que qualidade de vida terminard os seus dias? E se civer lugar a intervengio, como seri © quotidiano da sua vida? Eis algumas das perguntas que exigem resposta, hoje, para que se possa clara- mente dizer que 0 consentimento se leva a cabo de mancira informada. No entanto, como ¢ ficil de perceber, temos de ter particular atengfo com 4 nogio “qualidade de vida" (99). A prépria designacio daquilo que se quer exprimir nio deixa margem para diividas. Esté-se perante uma realidade que cla prépria qualitativa ¢ que, por conseguinte, exige critérios também eles qualitatives. Ora, acontece que néo é ficil encontrarem-se critérios qualica- tivos quando nos embrenhamos no terreno escorregadio da subjectividade Porém, no obstante esta dificuldade, podemos avangar com a ideia de que, neste dominio como em tantos outros, se enconttam padrées de objectividade {que nos permitem ajuizar sobre 2 qualidade de vida. Com efeito, dis io para patamares minimos de algumas fungBes vitais; alissima probabilidade de sc vir a coneretizar um continuo estado de dor que sé possa ser debelado por analgésicos cada vex mais fortes; provével degradagio mental eis, de ‘maneira seca mas néo menos precisa, um quadro objectivo que permite valo- (05) precio tr em cntsideragio que 5 cla ilar de qualidade de vida € nfo em “qua- lidade do acto médico" ou, se se quise, “em qualidade de intervencio médics”, muito embora 1 reconhega que todas extes problemas eso necessriamence ligados, Sb posen ter boa qua- lidade de vids, no sentido que aqui se pressupée, sc, em simultineo, tver “boa qualidade de ineerencio médica". Por outro lio, + qualidade ds incervengéo médica prende-se com os recut 10s, sus alocagioe ainda sobze of problemas dal resultantes (sobre ests ilkimos pontos veja-se Jorn F KILNER, Who Live? Whe di’, New Haven / London: Yale Univenity Pees, 1990). 778 Josd de Faria Corea rar a qualidade de vida de um doente (37). Uma preciso ainda. O desenho que se acabou de esbogar nfo deve nem pode ser percebido como qualquer coisa asséptica que 0 uso da cincia médica faca ou elabore para, em circuito fechado, a empregar “dentro” da prépria ciéncia médica. A descrigio ou 0 qua- dro daquilo que verdadeiramente pode corresponder as exigenclas de uma razoivel ou boa qualidade de vida tem de ser percebido pelo seu destinatério primacia: 0 doente que vai tomar decisées sobre a sua vida. De sorte que toda 2 linguagem que se empregue neste campo tem de ser perceptivel, segundo a culeura, conhecimento, idade, sensibilidade, por aquele a quem se destina. (© que é importante reter ¢ jamais esquecer € que ¢ “aquele” doente que tem nome, familia ¢ historia que precisa de estar informado. Que precisa de saber 0 que esté a acontecer. Porque ¢ de um problema de “vida? que te trata. Da sua vida (4). 5. O softimento para 16 do sustentével De novo nos vemos confrontados com uma proposisio que faz apelo inelutével a elementos da mais purs subjectividade. No entanto, também aqui, como no ponto anterior, somos capanes de encontrar elementos referenciais de objectividade que, sem esforgo © em consonancia metodolégica, podem ser alevados a critérios objectivos de valoragio. Porém, ances de nos embre- nharmas na cancreta explicacao de tas critérios sejam-nos permitidas, porque fundamentais, algumas breves reflexes de enquadramento geral desta espect- fica questio @).. 0) Ha hoje. poder afitmarse, ur lego conterso dento do pensarenro mético 90 seotdo de sureati que o patamar minimo da chamada qualidade de vida se fee tendo em cousideagio a cipacidade comunicacond, a capacidade de communica com © mundo exerioe Quando nto se rage a qualquer estimulo eneson, 0 obsranre« pessoa estar medicaments viva, 2 un “qualidade de vids" — a que alguns jf nem soquer chamam vide — es eduaida an iafima expresso. (05) Sto aqui de eerie at palaees de Séocca: “Quae, ue cis, non semper rtinenda css: nexium vive: bos a sed eae vite” SENECA, Epiale wore ad Eulum, VI, 70, 4); “quam bene vives refetre, non quam dis sepe autem in hoc ese bene, ne dint (dem, XVILXVI, 101, 15). (7) Como elemento de particular rlevo& quero que te ext, rcsentemeate, a traar £2 obra Le dvleur etl doit (Texes rem et présentés par Bernatd Durand, Jean Poitier, Jean-Piere Royer, Pari: Prees Universes de France, 1997, sabeudo o tex de BEREN- tke Leohos, Le doueue comme fondement de Teutharasi,p. 389 © 5, onde ee Aur ngs, cegorcamente. que a dor posta tet fandamento para um qualquer lealiragio da eurandie, (fim da video 0 dircte penal 15 A dor (#9) ¢ 0 sofrimento tém condicionantes — falamos estritamente daguilo que se designa dor fisica — de natureza nfo fisiolégica fortissimas. De sorte que o limiar do suportivel de dor fisica dependa muito de pessoa para pessoa e, para além disso, varie conforme a época histérica. A sensibilidade Ador fisica era, pot certo, muito diferente na Idade Média daquela que se pode perceber nos tempos de hoje (#"). ‘Todavia, o que é preciso nao esquecer & quey ppor mais rude e dura que seja a pessoa que esté sujeita 20 softimento e & dot intensa, ha sempre um limite fisiol6gico para suportar a dor. Neste sentido, a dor esté para 14 do sustentdvel quando, em um quadro de valoragio fisio- légica, ela se mostra perto ou muito perto daquele normal limite, ‘Ao pensar-se deste modo afsstamos a possbilidade de se poder descer para patamares rid/culos onde a dor passa ou deva ser considerada insuportével. Por ‘outras palavras: ndo podemos accitar que a dor minima seja tida como insu- portivel. ‘Também aqui devemos fazer uso da operatéria cliusula geral que tem como referente o comportamento da pessoa comum ou do chamado homem médio. Independentemente do fim que se queita assacar ou atribuir & nogio de “dor insuportivel” ela deve sex considerada, na limpider da sua normati- vidade, como conceito jurtdico-penal operatésio. Quer isto sigaificar que as consideragies que estamos a elaborar nada tém a ver com as decisies existenciais ou de vida que cada um possa sustentar sobre 0 seu softimento ou sobre a siz dor. Se alguém faz do saerificio um meio de entrega espiritual ou de reli- giosidade, 0 direite penal deve ter perante um tal comportamento a atitude do mais profundo ¢ denso respeito. A densidade ¢ a riqueca interiores so vir- tudes que tornam as sociedades melhores mas no podem ser erigidas a valo- res que meregam a protecrio do direito penal. Efectivamente, como jé tan- tos o disseram, o dircito penal vive da razio pritica, vive e existe para o normal ¢ comum dos cidadios e nao pode ter como parimetros de valorago (0s actos de santidade ou de hetoicidade. (6) imporcante salientar que, mesmo da bunds do pensamentocatlica, da sua prt tick, de certa maneia, da prépriahicracguia se sustena que: “Quand & la douleuy, il para aque le catholicume ve sfuse déocmais 3h aeconder une valeur rédemprcc",JnCQUES POHIER, Le mors opporsune (Let dete der vivant uri fade lure), Sel, p. 383. (8). "Nout envisageone la douleur comme wne construction cull et sociale: Le ‘apport des hommes 3 lz douleur ex lié& la efoyance modifiat le peeepion de la douleur infigée et restric” (ERIC GaLsI80U, «Le médecin, le jurist er le rciologu face 8 Is dow- lear approche sociologique sur le rapporeentedouleu e& droit in: La dou tl droit (Tex tes remis ot presents par Bectard Durand, Jean Poin, Jean-Pierre Royer), Paris Preses Uni- versinires de Panes, 1997, p. 50. 76 fost de Faria Cone 6. OQ “poder de facto” que cada um de nds tem sobre a sua prépria vida ‘A linha discursiva que estamos a empreender neste § 2 — aquela que resulta do tratamento aparentemente sincopado de varias nocGes ou categorias que se ligam & vida ¢ & imagem que ela assume no nosso tempo — ndo podia deixar de intersectar a quesiio de saber 9 que ¢ que a vide representa, para cada um de nés, deritro do ordenamento juridico-penal, pois, com uma tal pro- blemitica toca-se naquilo que pode constituir 0 cerne das nossas preocupagies, Para 0 direito penal é indesmentivel que o bem juridico vida é dispon{- vel quando a sua violagio é levada a cabo pelo préprio. Por outras palavras « visto agorz 0 problema a partit da conduca de rerceitos: a vida € um bem juridico indisponivel quando e sé quando a sua violagio ¢ praticada por ter- ceitos. O que significa, perante a doutrina cléssica do consentimento, que esta precisa causa de justificacio é sempre jlegitima ¢ irrelevante no momento em que se rita do bem juridica-penal vida. Mas um pontn firme se alcanga neste dominio. Ao nio punie-se criminalmente 0 suicidio, a autodestruicio da vida mantém-se dentro dos comportamentos penalmente itcelevances (%), ‘Mantém-se absolutarmente fora da discursividade penal. ‘A relacao do “ei” com a sua razko de set & © seu suporte — isto € a ela fo do “eu” com a “vida” — foi sempre extraptdinariamente dificil de conceber 2 partic de uma éptics estriamentejuridica. Por conseguime, mais do que posi- cionarmo-nos dentro de uma ldgica normativista, 0 que temos por necessério € Gtil de um estrto ponto de vista juridico-penal é tentar enquadrar o bem jurt- dico vida, sem nos preocuparmos demasiado com os recortes normativos da. sua pureza conceptual. Na verdade, de nada vale dilacerarmo-nos em argunen- Lagies e concra-argumencagbes sobre a navureza juttdica da relagio que incer- cede entze a “pessoa” e a sua propria vida. Tudo se apresenra, tudo se pode apresentar estéril, na medida em que havendo uma tal identificagio entre sujeito e objecto ¢ praticamente impossivel conceber um nexo juridico relacio- nal que objective, quer 0 sujeito, quer 0 objecto. E porqué? Porque relati- vamiente 4s pessoas fisicas somos incapazes de conceber uma pessoa sem vida fisioldgica, para além de que, simulcaneamente, € inconcebivel uma vida humana que nfo seja pessoa. Donde, a impossiblidade de se concepwualizar esse nexo telacional que & a condigéo primeita para que um direito possa sur (2) Vet, sobre exe ponte, JORGE DE FIGUEIREDO Dias, em anotagéo 20 art, 131." (5 29) ite Comensteio Conimbricnse do Cidign Penal, 1, dcgido pot Jonge de Figueiredo Dias, ‘Coimbra: Coimbra Editor, p. 15-16 O fim da vide €0 dtc penat m gic. Mas dir-se-d: © mesmo se no passa com a integridade fisica? Com cefeito, também se pode ic a0 limite de sustentar que no & concebivel uma inte- gridade fisica que nfo seja humana que terd como seu revers0 que nido € pos- uma vida humana sem integtidade fisica. Por certo. Mas isto € tio-sé parte do problema e quer esconde: o essenclal « deverminante da questio. De facto, olhando agora estrtamente para a integridade fisica, relativamente ‘2 est ¢ intuitivamente concebivel uma objectivagio. A “minha” integridade fisica nfo se confunde, nem de Jonge nem de perto, com o meu “eu”. Mi porque objectivivel, podemos, no que toca & integridade fisica, conceber, con tra cla, acaques parcelares. Neste sentido, a sua Importincia nio atinge © limice da impossibilidade, Por outras palavras: enquanto, se Se viola a vida jd se ro pode contolar os efeitos dessa resma viclasio, no casa da violagia da integridade fisica somos ainda capazes de ter a percepsao e valoracao (porque estamos vias) das consequéncias. Ainda dentro da mesma linha argumenta- tiva: nfo sio admissiveis ataques parcelares & vida. Tudo se joga e esgota, quando hi uma violagio, em um tinico acto. Uma tinica acco. ‘Assim, arrancando deste angulo, © que nos temos de perguntar ¢ até onde vai este ‘poder de facto” que temos sobre a nossa vida. Pode o bem jurt- dico vida softer a constrigzo méxima, ino 6, a sia nadificagio, quand esi60 em jogo outros valores ou assaca-Se A vida, nestas circunstancias, o limite do absolute? ‘Tem sentida 0 “poder de facto” que indubitavelmente temos sobre ‘a nossa propria vida poder ser transferido, honrando outros valores, para outsem? E podemos transferit um “poder de facto” ou isso representa, in asura, a acgio da prépria pesoalidade e, por consequéncia, mostrar-se como “poder” intransmissivel? 7. A autodeterminagio As tiltimas perguntas que se puseram no ponto antetior deixam perceber que se esta 3 porta de entrada de um dos mais fascinantes mas também mais escomtegadios momentes da capragio de que ¢ crucial parz 0 direito penal. Para um direito penal contemporineo. E se quiséssemos set rigorosos, sem se ser tebacbativo ou supérfluo, poder-se-ia até afirmar que nos encontramos diante de um daqueces “dads” inescapdveis que & nossa culcurajusidica foi constuindo durante milénios, ‘© sujeito (#3) assumiu um lugar pfimacial no jogo complex da cons (©) Para uma visio global, comple e inceprada do “lugar” do sujeto dentro da nossa civilizagio efo de enorme importincis of dois grostor volumes intiulados Geicichue und Vor- 718 Jest de Paria Cos teugio do ordenamento juridico. A consciéncia jusidica, os textos constivu- cionais, as mais variadas legslagées, todos apontam 0 sujeito como categoria, figura ou axiomma juridico ineseapsvel da estrucura, articulagso ¢ movimento dde qualquer ordenamento juridico contemporineo ou, mais especificamente, de qualquer ordenamenss juridico-penal. ‘Mas qual € 0 poder juridico que o sujeito (4) carrega? Ora, est poder jutidico outra coisa no € senio a autodeterminagio. ‘Tudo gira em torno, quando olhamos para 0 sujcto, da niogéo de autodeterminasio. Tentemos, por jsso mesmo, sintetizar as linhas de forga fundamentais de tio importance juridica ¢ que tantas consequéncias trot taumbém ao direito penal Resumem-se elas a dois eixos pelos quais correm duas linhas estruturantes: a vertical € a horizontal A linha vettical de apreensio da autodererminagio — e nio & por acaso «gue falamos em Yinha vertical — assenta na ideia de que € 0 sujeito ¢ 36 0 sujeito que, em auto-teflexéo, deve encontrar o seu modo de estar e de viver consigo mesmo e, sobretudo, deve ser também a Gnica instincia decisSria (#9) do seu comportamento com os outros. E claro que essa aurodererminagao passa, outeossim, pelo respeito que todos os outros Ihe devem merccer. No ‘entanco, esta linha ov anordenada horizontal nio tem, bam & de ver, a mesma imporincia que aquela da vertcalidade traz 4 nogio de autodeterminagdo (‘). _gechicbe der modernen Sabjebtvtts (Hecausgegcven von Reto Luzius Fett, Roland Hagen Diichle und Peter Schulad, Belin / New York: Wales de Gruytes, 1998. (49. O aio gue gui te resupbe nto identifica, minimament, com o syjzto, quase ‘omnipotent, que © liberalism consis, Por iso, rato compara poe intciro Castanheia [Neves quando ern sintee puticulatmente conseguids nos diz: “o individuo no pode ser sem 4 comunidad, a tro sem © epia € 0 bomen sem pesoa (Os ‘Eementos de Dircico Nav sal'de Vieene Rarer Newo Pav in: A. CASTANAERA NEVES, Digest eh. 1.2, Cimber: Coin bn Ediora, 1995, p. 342). (19) B bio que estamos, aqui, a presupoc uma inséncia ica da deciso, Logo, sus. Fentads na auronomis do ser pesion, Outre coisa € 2 instincia heterénoma da decisis, Essa cabe, pot ineion, a0 dieito. (65) Tenhamos, todavia, presente uma das qua ties de ACH: “Srerben ise als Teil des Lebens such Tei der PerSalichleitsverwiflichung eines Menschen’, apad DAGMAR SCHARE. Praienenveriguten (Krink — aber encheidungsfibi), Lage: Hans Jacobs, 2001, p 29. Ors, se para 4 reliacfo comple e global da “minha” persondidade » “minha” more umn elemento ‘esencil eno, o¢ “outro temo dever de erat 2 condigSes pra que a “minha” personal dade se cumpraimcgraimente. ste modo de olbar di sto e densifca adologiamente 0 segmento horizontal que trabalhamos, Ou, dizendo-o com Pinto Bronte, “a pesoa real € constculda pela dialétcs de um eu singulas ¢ de um ‘a social” (cl FERNANDO Jost BRON, Line de inroducdo ao direite, Case: Cobra Editors, 2002, p, 479). Se 2 “minha” morte © fir da vids ©» dic penal 79 Para além disso, a autodererminaglo arcasta consign, sobremuda, uma nogio de imunidade (47). E 0 sujeito que se quer imune — imune ao exterior — e que ‘exige 20 Estado, a0 Dircino, a preservagio dessa propria imunidade (4). Eseé presente, queiramo-lo ou no, uma certa ideia, ado isenta de perigos e de ‘emiveis armadilhas, de auto-suficgncia que, se nfo for bem temperada por uma rigorosa auto-teflexdo, é ou pode ser ela propria destruidora da autodetermi- nagia e pac consequéncia do stjeito em si mesmo. O sujeito que decide, que decide em total autonomia, nio pode ser compreendido camo um sujeito que decide solipsisticamente. © obnubilamento, 0 efectivo e real desapare- cimento do sujeito dé-se, paradoxalmente, quando este, por fenémenos de corrupgio autista, eré que o mundo se centra € gira em torno desse “eu” ideal e descarnado que ele préprio julga representar em plenitude. Nada de ais falso. Por isso, este & win dos maiores perigos — se nio o maior — de uma errada compreensio do que seja a aytodetetminagio, 8, Aprofundamento e densificagio Chegamos a um ponto em que se tragaram jd as coordenadas essenciais daquilo que nos preocupa. Ou seja: desenhou-se ou marcou-se, com o rigor tido por conveniente, 0 horizonte juridico — mas também 0 horizonte de adensamento problemitico — no qual a questio que perseguirnos, para melhor a estudar, nao pode deixar de ser enquadrada. E, verdadeiramente, o que € ‘que nos trouxe uma tal exigéncia de rigor ¢ de enquadramento? Temos para seguramente um pedago do meu “eu singula” o meu ‘eu social” parece exigie, naquela pee- isn tensio dilética, dialético-normativa, 2 sasfgo da sus plenitude. No entanto, este odo de percber a realidede da more colide frontamente com 4 posigo de Witigenstein In. 12]. Com efit, para 0 fildsofo do Tractacus a “mina” morte jamats pode se “miahs", organo no eats foment cm que as cre urna ausénca, a ausénci da minha’ pro ria mocte. Ota it, se bem vemos, logicamenteinaracivel mas miterialmenre ctudi- ‘ante, Sou “eu” que mor. O facto de set indecifdvel, porque inenacvel, mesmo para “mim, 2 xpertncia da “rans” more jas nfo significa que ela no igue agurada 20 Tew “eu. Parece-nos, pois, que “eu” posta dies, sobre ela, a mone, slguma coisa. (©) chamae gucicalarmente denso © operatsrio 0 conceico de imunidade olhado a pari do sueito jurdico. A eseraibima d aurodeterminasto deve exarimune 2 todo 0 jogo ‘eterno de preses. Porque 6 assim é que se realiza, E uma socedade € tanro mais solidd- sia quaneo mais for capzz de das “imunidade” a ese lugat deradeto da desk, (8) "La fustione immuniaiache i dcico sige ae! conftond della comunita & di evi- deoea immedian « come le univesalment®riconeseiata anche al di fuori dela lstercurs git rida? (€f, ROBERTO Estostt0, Inmuniat Torino: Einaudi, 2002, p. 25) 730 fod te Faria Coss nds que 0 percurso aré agora levado a cabo permite, nfo sé melhor perceber aquilo que € constitutive do plano tedrico mas outrossim compreender a smultiplicidade € 0 cruzamento de valores que uma qualquer decisio, sobretudo reste campo, sempre implica, ‘A tudo isto acresce que a questio que nos tem servido de pano de fundo & ela propria um definitional stop ('®). Na verdade, 20 tentar descortinar aquilo que é preponderante ¢ determinante nio podemos esquecer, em aso algum, que 52 trabalha em uma zona limite, se trabalha com um definitional stop. Tio ou mais importante do que perecber as visas fracturas, os diferentes segmentos argumentativos, as diversas posigSes valocativas relativamente a determinances ancilares — que foi, a0 fim ¢ ao cabo, aquilo que necessaria- mente fizemos neste § 2 — é bom nio esquecer que © problema do tratamento juridico-penal do fim da vida, quando esse fim & pedido que se provoque € «ssa solicitagéo é levada a cabo de forma séria, instante e express, desencadeia um definitional stop, Vale por dizer: uma das solugSes do problema — a solugén que admita a néo punibilidade penal daquele que poe termo & vida cde quem Ihe pediu para o fazer de maneita séria, instante e expressa — actita assumir 0 risco de que a deciséo de quem solicita tal acto assume um carée- ter absoluto (9). Que é ela prépria a tiltima ¢ a mais densa das escolhas, Que € um definitional stop. Todavia, se se admite que a situagie actual é aquela que deve permanecer, entio também aqui nfo estamos menos mergulhados em tum absoluto. © absoluto que a vida representa mesmo para aqueles que honesta, séria ¢ desassombradamente jé 2 ndo queiram vives. Mais. ‘Temos de admitir ¢ acctar que se estd perante um absolute impositivo. Também aqui estamos em frente do drama do limite, do definisional sap que no nos deixa dolorosamente de acompanhar. Dat que todo o problema se centre nestes cixos. Haverd razées, razdes fortes e de fundo, para optarmos pelo exo que privilegia a nao punibilidade, em restritfssimas circunstancias, ou essas mes- mas raz6es fortes, densas ¢ humanitérias continuam a privilegiar o absaluto da vida? (0) Baza categoria no € noua. Ede Har. Tomamora, ase conten, de eprésimo, porquanc, caves del, conseguimos crate pentamos que deforma concent,» idea de bane inulrapasve, «ids de limite pres em ante € canes momentos quando dix coremos sobre esa precba problema. (©) Defendendo 0 “absoluta” da proceso 8 vida (de qualquer manciracoloctndo time damente 0 absoluto cate coms) vejse JORG Laven, Der Schute des Lebensm Soe, Franke sm Main / Bedin New York / Pacis / Wien: Peter Lang, p. 115 ¢ O fim da vide e 0 divtto penal 7a §3 © FIM DA VIDA HUMANA 1. A cutandsia: exercicio de deverminagio — isto é, de definigao — de diferentes formas de “eurandsia” Uma primeira observacio se imp6e, desde logo. O chamamento do fim da vida é por nés convocado, como ji ficou claro nas pondsragées que dei- ximos no § 1, 4, nfo para qualquer exescicia de puce ceflexia teorética ou de expeculacio filosdfica mas antes e definitivamente como questo central do direito penal. E mais. Como questfo central do diteito penal — podemos neste momento jf acrescentar em concatenado desenvolvimento — que se liga & prética da eutandsia, Por isso, € nosso primeiro dever pereeber, em todas as suas vertentes, a fenomenologia da cutandsia. Tentemos, por isso, agatré-la conceitualmente, no sem que antes nos pefmitamos tecer um con- junto de necessétias consideragées sobre o real ¢ verdadciro sentido da chamada deverminagia conceitual. ‘A determinagio conceitual deve ser assumida e vista, no como simples cexercicio ldgico de afirmagio da exigéncia de recortes nitidos entre as varias nogBes, mas antes como qualquer coisa que tem um sentido ¢ uma densidade metodolégica que vai para ld desse horizonte primeiro que se liga normal- mente & definigio, Definimos, no por uma estrita necessidade de “arrumar as coisas” — porque ainda nao se provou que a6 coisas arcumadas valham mais do que as desarrumadas — mas porque a0 arrumar, 20 defini, a0 secrnos capares de tragar fronteiras, esté-se, do mesmo jeito, a densificar o hotizonte no qual o problema, 0s problemas, podem melhor ser vistos ¢ valoradas. A den- sificagao axiolégica no é coisa diferente de um espessamento também ele axiolégico. Ora, perante um fundo espesso e de contraste tudo se rorna mais aitido € perveptvel. E 20 tomar-se mals nitido ¢ perceptive, todos, com a maior vantagem ¢ facilidade, podem ver os erros ¢ as imperfeigbes daquilo que ‘part ods 0 caminho mais justo para se atingie a solugio correcta e adequada, A cesta luz consideramos que, neste dominio, se podem e se devern dife- renciar dois grandes tipos de eutandsia: a eutandsia activa e a eutandsia pas- siva Gl}, Deixamos de lado, assim, obviamente, quer a perversa ¢ eticamente ©)_Uma aprosimario a eas caregorias pode verse com proveio, no estado de LAA MoNTICELLL,

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