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> CULTURA E SOCIEDADE Para além do Iluminismo* RESUMO 0 artigo defende uma superagéo complexa do Thuminismo, Reve a trajetéria da razdo e do progresso, do Renascimento aps dias de hoje. Fala sobre a ascensio da racionalidade soberana do séewlo XVII; 0 mito da razdo tluminista. Passa pelo triunfo e pela crise do luminismoe diz que a Revolugfo Francesa retoma heranga do Século das Luzes. No transcor- ter db tempo, razio.e progresso transformam-se, geram po- sitivas ambivaléncias no entanto, ainda néo ultrapassam. 0 reducionismo e a fragmentario do rea ABSTRACT Morin’ text calls for a complex overcoming of lluminism, showing the shortcomings of its rationalism, its reductionist views and ts fragmentation ofthe real PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) -Complexidade (Corp) -Tlumninismo ({Muninisa) ~Razao (Rationalisen) Edgar Morin Fiésofo, antropossecislogo. Pesquisador emérito do Centro Nacional de Pesquisa Ctentifica (CNRS), Franca DEPOIS DA EXPLOSAO DO RENASCIMENTO, © sé- culo das Luzes fol um momento capital na historia do pensamento europeu. A grande dialégica aberta apés a Renascenca, ou ‘Seja, a relacdo, ao mesmo tempo, antagéni- ca e complementar entre fé e dtivida, razdo ¢ religido, teve o seu ponto central em Pas- cal, homem de fé e de dtivida. Essa grande dialégica, no século do Iuminismo, foi marcada pela preponderancia (talvez hege- monia) da razao. E certo que o Renascimento, aconteci- mento histérico que possibilitou a ressur- relcdo da filosofia nao mais como serva da religiéo, restabeleceu ¢ retomou o tema da autonomia da razdo orlunda dos gregas e permitiu, com Galileu, Descartes e Bacon, 0 desabrochar da ciéncia baseada em proce- dimentos empirico-racionais. Esse desen- volvimento da ciéncia levou a conhecer se- parando os abjetos do conhecimento uns dos outros ¢ do sujeito que conhece. Em suma, eliminando a complexidade. Essa razdo, que j4 se manifestava nas ciéncias, tornar-se-4 soberana ao longo do século XVIII francés. Nessa época, a racio- nalidade vai desenvolver-se como razio construtiva das teorias ¢ como razao critica. Os mitos ¢ as religides sera objetos dessa racionalidade critica, mas essa eritica sera, de certa maneira, cega, pois néo perceberd ‘© contetido humano existente em cada mito © em cada religio. De qualquer modo, essa racionalidade construird as suas teorias, es- pecialmente as cientificas, e a idéia de um universo totalmente acessivel ao racional, assim como a concepedo de uma humani- dade guiada pela Razao. Assim, a Razao soberana converte-se ela mesma em razdo providencial e em mito quase religiaso, alcancando até mes- mo um momento transitério de verdadeira deificagéo com a institui¢éo por Robespier- re do culto a "Deusa” Razao. Nessa pers- pectiva, a ciéncia torna-se a produtora do auténtico conhecimento, ou seja, da verda- 24 Revista FAMECOS « Porto Alegre + n° 26 abril 2005 + quadrimestral de, Trata-se de uma época de grande de- senvolvimento das cléncias fisicas, quimi- cas e biolégicas. Impée-se entdo a idéia de que 0 universo seria totalmente inteligivel (inteligibilidade absoluta expressa pelo de- ménio de Laplace, que imaginou um ser dotado de faculdaces mentais superiores capaz de conhecer nao apenas todos os acontecimentos do passado, mas também todos os acontecimentos do futuro). A Razao guia a humanidade na dire- 40 do progresso e assim o tor- na-se a lei inexordvel da historia. Essa no- ¢4o de lei inexoravel foi formulada por Condorcet. O futuro ganha a aura de radio- 0, € © proprio humanismo avanca com base em dois aspectos: 1) Deus estando su- plantado considera-se o homem como su- Jeito do universo e que, por isso mesmo, deve domina-lo (Descartes, Buffon e Marx estabelecem como miss&o da ciéncia 0 con- trole da natureza); 2) todas os seres huma- nos tém a mesma dignidade. Seja quem for merece © mesmo respeito. Essa teoria com- porta a liberdade e a emancipacéo, © ano de 1789, com a expressao dos direitos do Ho- mem proclamados pela RevolugSo France- sa cheia de tantas promessas, pode ser real- mente descrito, de acordo com Hegel. como “um espléndido nascer do sol”. J4 com Rousseau 0 tema da afetivida- de (da sensibilidade) passa a opor-se a ra- z40 e indica que sozinha a razdo tem um cardter abstrato e quase inumano, Rous- seau revela do seu jeito 0 aspecto de abs- tragdo existente na ruptura entre o humano e o natural e da & natureza uma importan- cia quase matricial,-maternal. Voltaire, sar- casticamente, dizia que Rousseau queria “nos fazer andar de quatro patas”. Para Rousseau a civilizagdo acarreta a degrada- Gao humana. Assim, concebe o mito do ho- mem natural que pressupde ndo a existéncia de uma espécie de Jardim do Eden, mas po- tencialidades humanas inibidas pelas civili- zag6es, reptimidas por nassas sociedades, Disso resulta um questionamento do Progresso, que néo é mais considerado so- mente como uma fonte permanente de gan- ho e de melhoria, A questao passa a ser esta: o que se perde quando se obtém um progressa, um progresso técnico, um. pro- gresso material, um progresso urbanistico? Problema, efetivamente, de enorme atuali- dade em nossa crise de civilizacao. A Revolucdo Francesa apoiou-se si- multaneamente no triunfo e na crise do Tlu- minismo. No triunfo, gracas & em de emancipagio de 1789; na crise, pelo ter- ror, esse culto da razdo. Falar disso faz pen- sar em Alejo Carpentier, que, no seu mag- nifico romance O Século das Luzes, observou que o lluminismo chegou as Antilhas junto com a guilhotina, ‘Quanto ao romantismo, pode-se dizer que ele é 0 jorro daquilo que fol refeitado pelo Iluminismo, O espirito de comunida- de, a relaéo mfstica com a natureza, as vir- tudes do fenémeno religioso, enfim, coisas que realmente aparecem como uma espécie de reabilitacéo da Idade Média. Trata-se também de um sentimento muito profundo da natureza comportando a beleza do no- turno (Edward Young escreveu As Noites na metade do século XVIII). Da-se a valoriza- s&o da paixdo em‘detrimento da razao, Mas 0 romantismo tardio, ou melhor, © romantismo dos romanticos que envelhe- ceram como Victor Hugo ou Lamartine, ou © romantisme dos jovens da segunda meta- de do século XIX, como Rimbaud, carrega a mensagem das Luzes e, de toda maneira, trabalha pelo progresso humano inscrito na emancipacio dos oprimidos. O socialismo, sobretudo o pensamen- to de Karl Marx, vai recuperar a idéia de Progresso, que deixara de ser visto como uma progresséo linear para ser compreen- dido como @ resultado do conflito e da luta de classes, 0 que permitiria & classe explo- rada e majoritéria, o proletariado, nio ape- nas libertar-se, mas também criar a socieda- de sem classes; em paralelo, 0 desenvolvi- mento das forcas produtivas levaria ao tri- unfo da tecnologia e da abundancia. A re- volugdo socialista universal seria o meio, a etapa, pela qual o progresso atingiria os seus fins, Assim como 0 mito e a religiao Revista FAMECOS + Porto Alegre + a? 26» abri 2005 + quaditmestral 288 contaminaram a concepgao de Razao do fim do século XVIII. pode-se dizer também que a religiio infiltrou-se profundamente na promessa marxista, pois, de algum modo, a realizagio do novo mundo apre- serita-se como um verdadeiro messianis- mo. O Messias seria o proletariado indus- trial; o apocalipse, a revolugao; a boa nova, © triunfo da sociedade sem classes. Podemos ver também, na seqléncia da Revolucao Francesa, que a visdo laica republicana (sem aderir & concepcao revo- lucionéria) do fim do século XIX e do co- mego do século XX retoma a heranca do Iluminismo. Os professores, especialmente, $40 os portadores dessa mensagem em oposi¢ao aos parocos das aldelas e dos po- voados. Essa mensagem laica diz 0 seguinte: © progresso € impulsionado pelo desenvol- vimento da raz4o, da cléncia, da educacso. Evidentemente a razio sé poderia le- var ao progresso, sendo que a ciéncia e educacao sé poderiam produzir benefici- os... Todas essas evidéncias, ou todas essas solucGes, sao vistas hoje como problemati- cas e mostram-se terrivelmente obscureci- das: vemos que cada um desses termos su- postamente benéficos revela agora ambiva- léncias, uma mescla de bem e de mal. A ciéncia concebeu a bomba atémica e gerou Hiroshima e Nagasaki. Criou a possibilida- de de produzir morte em massa. No campo da biologia, é capaz de produzir manfpula- des genéticas utilizéveis para o melhor ou para 0 pior. O mesmo acontece com as tec- nologias. As forcas cientificas/técnicas/econd- micas descontroladas arrastam os seres hu- manos para degradacées irreversiveis, co- mecando pela destruicao da biosfera cujas consequéncias extremamente nefastas ain- da serdo sentidas pela humanidade. Digamos que hoje 0 quadrimotor constituido por ciéncia, técnica, economia e lucro, supostamente produtor de progres- so, impulsiona a nave espacial Terra, mas nao ha piloto. A nave sofre uma dupla ameaca mortal: a morte da biosfera e a mor- te nuclear, Trata-se de uma extraordinaria reviravolta. A ciéncia € certamente capaz de elucidacao, mas, a0 mesmo tempo, pro- vaca cegueira na medida em que ainda nio consegue revolucionar-se a ponto de ultra- passar o reductonismo e a fragmentacdo do real impostos pelo fechamento disciplinar. Ela é incapaz de fornecer visées de conjun- to. Mas podemos esperar de fato que uma nova ciéncia se desenvolva, regenerando a que se faz hoje. Da mesma forma, pode-se pensar que @ tecnologia produtora de méquinas obe- decendo a uma légica puramente mecanica ~ logica, de resto, que os tecnocratas e os econocratas aplicaram @ totalidade das so- ciedades ~ produzira, transformando-se, maquinas melhores, mais sensfveis as com- plexidades. Pode-se imaginar também que a economia nao esta condenada a lei neoli- beral da competicéo e comporta outras possibilidades como 0 comércio igualita- tio, a economia solidéria ou simplesmente a economia cidada. De qualquer maneira, 0 progresso como certeza esté morto. Pode-se até mes- mo afirmar que estamos diante de uma grande incerteza. Ha uma possibilidade de Progresso, mas © progresso sempre precisa ser redimensionado, regenerado. Assim, por exemplo, a tortura, que desaparecera da Europa no século XIX, retornou em to- dos as pafses europeus no século XX. Ve- mos, hoje, sobretudo a alianca de duas bar- baries: a velha barbérie da guerra que, com as guerras de religiio, guerras étnicas, guerras nacionais, guerras civis, volta com forca trazendo tudo 0 que ela comporta de 6dio, desprezo, destruigéo e mortes: e a barbarie tecnicista, barbérie abstrata do cal- culismo que ignora o humano do ser hu- mano, ou seja, sua vida, seus sentimentos, seus impulsos, seus sofrimentos. Tudo isso nos remete a idéia de que precisamos superar o Iluminismo. Temos de buscar um para além das Luzes. Quando digo “superar”, refiro-me ao sentido hegeliano de aufheben, que signi- fica integrar aquilo que é superado, inte- grar aquilo que existe de valido no pro- 26 Revista FAMECOS « Porto Alegre + n° 26 « abril 2005 « quadrimestral gresso, mas com algo mais. O que é esse para além do Huminismo? Significa, antes de tudo, que se deve superar, reexaminado-a, a razéo como raci- onalidade abstrata; superar 0 primado do calculismo e da légica abstrata. Devemos livrar-nos da razio fragmentada, tomar consciéncia das doengas da razio, superar a razio instrumental de que fala Adorno, a servico das piores influéncias assassinas. Temos até mesmo de superar a idéia de razAo pura, pois no existe razio pura, nao ha racionalidade sem afetividade, Precisa- mos de uma dialégica entre racionalidade e afetividade, uma razio mesdada com 0 afetivo, uma racionalidade aberta. Precisamos fortalecer essa corrente minoritéria ‘no mundo europeu ou ociden- tal, da racionalidade autocritica, que de Montaigne a Levi-Strauss reconhece os seus limites e comporta a autocritica do Ocidente. Em outras palavras, precisamos de uma racionalidade complexa que en- frente as contradigGes e a incerteza sem afo- gé-las ou desintegré-las. Isso significa uma revolucao epistemolégica, uma revolucdo no conhecimento, Temos de tentar, de re- pudiar a inteligéncia cega que sé vé frag- mentos separados, incapaz de ligar as par- tes e o todo, o elemento e o seu contexto, incapaz de conceber a era planetaria e de compreender o problema ecolégico. Pode- se dizer que a tragédia ecoldgica que [4 co- megou € a primeira catdstrofe provocada pela caréncia fundamental do nosso modo de conhecimento e pelo destonhecimento que ele comporta. Portanto, estamos vivendo a decadén- cia da concepco luminosa da racionalida- de (ou seja. da concepcio que comporta uma luz ofuscante ¢ dissipa as sombras com idéias claras ¢ distintas, presa a logica do determinismo) que, por si mesma, igno- ra a desordem e 0 acaso. Precisamos conce- ber uma realidade complexa, feita de um coquetel sempre mutante de ordem, desor- dem e organizacio. Devemos saber que hé um principio de organizacéo, mas também um principio de desorganizacao no univer- so com 0 principio da termodinamica. Te- mos de compreender que o universo é complexo e sempre comportara para nossa mente incerteza e contradic&éo. Devemos compreender que “é obscura a propria fonte de onde nasce a luz", como dizia Joao da Cruz. Precisamos compreender que o im- previsivel e 0 improvavel acontecem com freqiiéncia. Temos de superar 0 progresso determinista, o progresso em tudo necessé- rio, ou seja, na concepeao da vida, na con- cepcdo da historia, na concepeao do univer- so. Dois exemplos mostram como o impre- visto acontece: nas Guerras Médicas, quan- do a pequena Atenas conseguiu duas vezes conter 0 gigantesco império persa; na Segun- da Guerra Mundial, diante de Moscou, no fim de 1941, quando um inverno inesperada- mente precoce bloqueou o exército nazista. Precisamos abandonar a idéia abstrata do humano contida no humanismo. Idéia abstrata por reduzir o hurnano a homo sapi- ens, 2 homo faber, a homo economicus. O ser humano também € demens, faber e mithologi- cus, economicus e Yudens, prosaico e poético, natural e metanatural. Precisamos saber que 0 universalismo se tornou concreto na era planetéria em que se pode descobrir que todos os seres humanos tém no ape- nas uma comunidade de origem, mas tam- bém uma comunidade natural na diversi- dade, assim como uma comunidade de destino. O humanismo abstrato, entao, pode tornar-se concreto, O progresso depende também, de agora em diante, da consciéncla humana. O Progresso conquistado deve incessante- mente regenerar-se, atualizar-se. A possibi- lidade de progresso existe no que Marx chamava de “homem genérico”, nas poten- cialidades inibidas por nossas sociedades, pela especializacao, pela divisio do traba- Iho, pela esclerose,., Essa idgia, existente em Rousseau, é extremamente importante em Marx. Em nossas sociedades, somente ‘0S poetas, os artistas, os inventores — como seres desviantes ~ séo capazes de ser cria- dores e de gerar alguma coisa. Ora, vive- ‘Revista FAMECOS + Porto Alegre + n° 26 - abril 2005 + quadrimestral ar mos um momento em que se esboca a pos- sibilidade de tentar reformar alguma coisa, ir para além do Iluminismo, integrando-o. Devemos conjugar quatro vias que até agora estiveram separadas. A primeira via € a reforma da organizacio social, que nio pode ser abandonada nem ser a tnica via do progresso. A segunda é da reforma pela ediucacao, que deve acontecer em profundi- dade para ajudar na evolucéo das mentes e dos espiritos. A terceira via 6 uma reforma de vida, A quarta via € a reforma ética pro- priamente dita. Precisamos conceber que se ha pro- gresso verdadeiro, ha possibilidade de me- tamorfose. Se houver uma sociedade-mundo, ela ser o resultado de uma metamorfose, pois sera uma sociedade de novo tipo e nao uma gigantesca reproducao dos nossos Es- tados nacionais atuais. Isso é certamente improvavel, mas durante toda a minha vida acreditei no improvavel e, as vezes, minha esperanga fol atendida. Nossa espe- ranca é uma chama dentro da noite: nao hé luz ofuscante; s6 ha fachos de luz dentro da noite. * Texto inédito cedido pelo autor a Revista Famecos. Tradugao de Juremir Machado da Silva 28 Revista FAMECOS « Porto Alegre + n* 26 + abril 2005 + quadrimestral

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