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| ' SUZANA HERCULANO-HOUZEL @s: Ay xT? = k x A,5/4 Como uma bidloga e um fisico descobriram a formula que explica as dobras do cérebro Por Suzana Herculano - Houzel Iustragées de Sarah Yakawonis® 2015 Eaigto online SPECIAL EDITIONS ® ingue anestésico sobre o cortex humano e, pufl, ld se vai a consciéncia, nosso bem mais caro, na demonstracio mais eloquente que conheco de como. cérebroem funcionamento Sabasede tudoo que somos, sentimose fazemos. ‘Mas ter um cérebro nao é prerrogativa nossa, e sim de todos os animais que nao sao esponjes. ‘Oque torna onosso diferente, entao, capaz até mesmo de ponderar sobre si mesmo, a ponto de seconsiderar superioraos demais? “Com bilhdes de neurdnios, dez vezes mais células gliais, um cortex cerebral que se dobra conforme ele ganha neurénios, custo energético extraordinariamente elevado, um cérebro sete vezes maior do que deveria ser.” Por muito tempo, esses foram considerados “fatos” sobre o cérebro humano, encontrados no capitulo introdutorio de qualquer livro-texto de neurociéncia ¢ no parégrafo de abertura de muitos artigos cientificos. Artigos, alids, realizados ao custo de varias dezenas de milhares de délares, cada um. Sem esses recursos nao seria possivel bancar os métodos genéticos, moleculares ¢ eletrofisiolégicos necessarios para buscar explicagdes para nossa capacidade cognitiva singular, incomparavel a dos outros animais: genes tnicos & nossa espécie? Sinapses mais eficazes? Metabolismo acelerado? Quase sempre sao trabalhos estrangeiros ~ porque ciéncia extraordindria requer recursos extraordindrios, que nés, no Brasil, nao temos, Por muito tempo, a norma foi eles produzirem, por 14, e a gente, com sorte, reproduzir por aqui. F perfeitamente seguro dizer que a maior parte do conhecimento cientifico ensinado no Brasil éimportada. Quem diria, portanto, que cada um desses “fatos” mais basicos sobre o cérebro seria desbancado por ciéncia brasileira — e, como nao poderia deixar de ser em terras tupiniquins, a tum custo médio irris6rio, de menos de 6 mil délares por artigo publicado, cada um descrevendo uma nova descoberta inédita. Conseguimos fazer ciéncia que os estrangeiros consideram extraordinaria o suficiente para ser publicada até na , talvez a mais prestigiosa revista cientifica. Como, se nao temos recursos extraordindrios? A resposta envolve uma boa dosede magica. Piztenda que cientsta¢ um bicho objetivo, perfetament racional que s6acredita vendo ‘05 fatos. Uma dose saudavel de ceticismo 6, realmente, uma das caracteristicas mais titeis, das caracteristicas mais titeis para um cientista ~ mas, na prética, muitos sto t4o crédulos quanto o piiblico nao praticante. Foi assim que varios mitos se propagaram e prosperaram entre os prdprios neurocientistas, contentes em apenas repetir “fatos” contados a eles, sem questionarsuas fontes. ‘Ao menos 0 mito de que usamos apenas 10% do cérebro 6 retumbantemente negado pelos neurocientistas (usamos 0 cérebro todo, 0 tempo todo, mesmo quando dormimos; apenas 0 ‘usamos de maneiras diferentes). Mas, na primeira pesquisa que fiz quando voltei ao Brasil depois de formada, descobri que 60% do piiblico carioca que cursou a universidade acreditava s6 usar 10% doseu cérebro. Como se os outros 90% fossem reserva - ou, pensei, compostos nao de neurénios, mas de células gliais, responsaveis por dar suporte funcional ¢ alimentacdo as células neuronais. Afinal, nao era quase isso 0 que qualquer livro basico de neurociencia dizia: dezvezes mais gliado queneurénios? Fui em busca da fonte para esse ntimero, mas ela nao existia. Da mesma forma, descobri que os 100 bilhdes de neurénios, nimero suspeitamente redondo, eram apenas uma estimativa de ordem de grandeza, enao resultado de medidas reais Como em um jogo de telefone sem fio, estimativas citadas erroneamente logo se transformavamem fatos. Revirandoaliteratura, espantei-me em ver que nao conheciamos © mais basico sobre océrebro, humano: de quantos neurdnios ele ¢ feito e como esse niimero se compara com 0 cérebro de outrosanimais. Afinal, se neur6nios sioa unidade basica de processamento de informacio no cérebro, talvez.arazao para nossa capacidade cognitiva inigualavel fosse um numero também, incomparavel de neurénios, sobretudo no cortex cerebral, parte mais externa do cérebroesitio do raciocinio, do planejamento, da compreensio das intengdes alheias. Mas esses dados nao existiam: jé estvamos no século XXI, a neurociéncia era capaz de manipular moléculas no cérebro ¢ revelar suas conexdes - mas ainda nao tinhamos os dados mais fundamentais a respeito da quantidade de neurénios nos cérebros. Tampouco se sabia explicar a razio de uma das caracteristicas mais dbvias do cérebro humano: as dobras do cértex cerebral. A teoria dizia que, tanto na gestacdo quanto na evolucao de espécies com um cérebro maior, 0 cértex cerebral cresce para os lados, como um, lengol se esticando sobre a cama, conforme ele ganha neurdnios. Mas como existe um cranio de volume limitado ao seu redot, o tal lencol cortical teria que crescer como em um cesto de roupa suja; assim, o acréscimo de neurénios faria esse cértex ficar cada vez mais dobrado dentro dacranio, Aomesmo tempo, a teoria dizia que dobrar-se como um lencol em expansao seria também a maneira de permitir um cortex com mais neurdnios. Intuitivamente, faz.todoo sentido. Masa teoria, ensinada como fato nos livros e cursos de pés-graduacdo, nao passava de intuigdo: ja que nao se conhecia de quantos neurdnios os cérebros de diferentes espécies. eram feitos, ndo havia dados que relacionassem o néimero de neurénios em cértices cerebrais ao seu grau de dobras. Para piorar, tampoucose conhecia um mecanismo fisico e biolégico que explicasse como ganhar mais neurénios causaria as dobras do cértex E depois, havia um problema ébvio, mas convenientemente deixado de lado. Se 0 c6rtex se dobra (sabe-se la como) conforme ele ganha neurdnios, entao um cértex mais dobrado deve ter mais neurdnios do que outro menos dobrado. E se a espécie humana éa mais cognitivamente capaz, ela deveria ser também a que possui mais neurdnios no cértex, e portanto 0 cértex mais dobrado. Mas nao 6 Ocértex do elefante é duas vezes mais dobrado do que o nosso, com duas vyezes mais superficie escondida dentro das suas dobras. Varias baleias também possuem um_ cértex maior ¢ mais dobrado do que o humano. Até mesmo o cértex de golfinhos, menor do que onosso, é mais dobrado. Se 0 c6rtex humano nao é 0 mais dobrado de todos, como poderia ser ocértex que tem mais neur6nios? A razao do paradoxo era simples: nao sabiamos 0 basico sobre o cérebro. Nem sobre océrebro humano, nem sobre outros, mais simples, como o de ratos e camundongos. Achavamos que sabiamos que cérebros maiorese mais dobrados sempre tém mais neurénios - masna verdade nao tinhamos nenhuma informacao a respeito, Seria necesssrio voltar ao inicio e descobrir de quantos neurdnioscérebros diferentes sao feitos. O método tradicional para contar células diretamente em fatias finissimas de cérebros era timo para estruturas simples, mas nao prestaria para cérebros inteiros, altamente heterogéneos em sua distribuicao de células. A solucae que inventei foi dissolver, literalmente, essa heterogeneidade: destruir a estrutura das células, preservando a dos. niicleos celulares, de modoa transformar o cérebro em uma sopa de niicleos livres. Como cada célula tem um e somente um nécleo, contar niicleos seria semelhante a contar células ~ mas muito mais pratico, répicioe sem erros, porque basta agitara sopa para tornara distribuicio de niicleos perfeitamente homogénea, Assim, basta contar umas quatro amostras da sopa ao mictosc6pio e, em coisa de quinze minutos, ¢ possfvel saber quantas células aquele cérebro, ou parte do cérebro, possuia antes de ser transformadoem sopa. Funciona lindamente, e € um processo tao répido que em dez anos j4 determinamos a is de 100 espécies. O mais importante, contudo, € decisivo para tornara empreitada vidvel é outro aspecto desse método: ele ¢ barato. ano era 2003, eeu ndo tinha laborat6rio, muito menos financiamento; apenas acertezade que os conhecimentos mais basicos da neurociéncia ainda estavam por ser escritos - eeu sabia como fazé-lo. Propus ao Roberto Lent, entio chefe do meu departamento na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a ideia bizarra de dissolver cérebros para contar neuronios, e ele pronta e generosamente me ofereceu espaco em seu laboratério. Meus primeiros pedidos de financiamento ao CNPq, 0 Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnol6gico, e a Faperj, a Fundacao de Amparo & Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, foram imediatamente recusados, como eu esperava que fossem: eu tinha uma ideia, ‘mas nao o curriculo nemas publicacdes prévias que o establishment gosta de ver. O trabalho somente deslanchou em 2004, gracasa um pequeno auxilio da Faperj voltado especificamente para jovens cientistas, chamado Primeiros Projetos. Pequeno, mesmo; eram 28 mil reais para custear dois anos de trabalho, pouco mais de mil reais por més, Mas como tudo de que eu precisava era vidraria, alguns reagentes, um anticorpo e um microsc6pio emprestado, 0 pequeno auxilio foi suficiente para montar meu préprio laborat6rio e produzir os primeiros resultados, em seis espécies de roedores (comecando com, ‘0s inevitaveis ratos e camundongos, prontamente disponiveis a maioria dos laboratorios) -e para comecar a atrair a atencio de pesquisadores internacionais, que viam, pela primeira vez, dadossobrea quantidade de células com que se constr6i umcérebro, Até as primeiras publicagdes sairem, era extremamente excitante pensar “Eu sei algo sobre 0 cérebro de ratos, camundongos e capivaras que ninguém mais sabe”. Masessa empolgacio do conhecimento exclusivo rapidamente passa. Nao basta produzir conhecimento novo; preciso divulgé-lo e fazer com que ele chegue aos olhos e ouvidos daqueles que podem usé-lo como trampolim para outras descobertas. Ao longo dos dez anos seguintes, entao, adotei a estratégia do Paulo Coelho para tornar seus livros conhecidos: ele ia de livraria em livraria convertendo livreiros, eu ia de congresso em congresso conquistando novos colaboradores mundo afora - nos Estados Unidos, Africa do Sul, Alemanha, Australia, Canada, Republica Tcheca. Cada novo colaborador nao s6 me oferecia cérebros de novas espécies para estudar, como ainda servia de multiplicador dos novos achadlos, espalhando nossas descobertas muito além do que os artigos publicados conseguiriam fazer. E eram descobertas fundamentais, elementares, que hoje ja comecam a constar nas novas edigdes dos livros-texto de neurociéncia e no pardgrafo inicial de artigos cientificos. Agora sabemos que cérebros de mamiferos nao sao todos feitos da mesma maneira, versdes maiores ‘ou menores uns dos outros. Dois cérebros de mesmo tamanho, como de um chimpanzé e de ‘uma vaca, nao tém necessariamente o mesmo némero de neurdnios (0 do chimpanzé tem. cerca de cinco vezes mais neurdnios, o que faz sentido dado seu comportamento mais rico e flexivel).Cérebros enormes nao tém necessariamente mais neurdnios do que cérebros menores: 0 cortex cerebral do elefante, duuas vezes maior do que 0 nosso, é feito de apenas um. tergo do ntimero de neurdnios encontrados em nosso cértex ~ 16 bilhdes de neurdnios no nosso, nem mesmo 6 bilhdes no deles. O cérebro humano nao é extraordinario, ao menos nao no sentido literal de ser fora do comum, uma excecao as regras: ele é apenas um cérebro de primata grande, cujo custo calérico elevado é na verdade apenas 0 que seria esperado, proporcional ao seu grande ntimero deneurénios. Ainda assim, 0 cérebro humano ¢ inigualavel em seu nimero de neurdnios corticais, o que propomos ser a base mais elementar para nossa superioridade cognitiva. Quem mais perto chega dos nossos 16 bilhdes sio gorilas e orangotangos, com cerca de 9 bilhdes, depois chimpanzése elefantes, com cerca de 6 bilhdes, Pelas nossas estimativas, mesmoas baleias nao devem passar deste tiltimo niimero. Girafas, porcos e macacos possuem entre 12 bilhdes de neurdnios corticais; a grande maioria dos mamiferos fica bem abaixo de 1 bilhao. Como nossa espécie chegou ao maior cérebro primata com esse ntimero de neurénios que nenhum outro animal possui foi por muito tempo um mistério da evolucdo para o qual nosso trabalho também apontou a safda: a invencao da cozinha por nossos antepassados, cerca de 1,5 milhao de anos atrés. Com uma dieta crua, precisariamos passar mais de nove horas por dia nos alimentandoa fim de conseguir as calorias necessérias para manter vivos tantos neuronios. Ao usar o fogo, comecamos a digerir 0 alimento - a quebrar suas moléculas ~ antes mesmo de ingeri-lo, aumentando a eficdcia do processo e a quantidade de energia absorvida a cada bocado. Passando do cru ao cozido, subitamente se tornou possivel nao sé manter energeticamente um cérebro com cada vez mais neur6nios como ainda ter tempo livre para usé-lo, Nossas descobertas j foram citadas mais de 2500 vezes em artigos cientificos nos tiltimos dez anos, ea palestra TED em que euas apresento para o grande piiblico ja passou de 1,7 milhao de visualizagdes. Certamente nao detenho mais a exclusividade dos conhecimentos que meu laboratério gera~eacho isso stimo, oquedizersobreasdobras do cértex cerebral, afinal? Elas aumentamcom ontimero de neurnios corticais e/ou permitem que esse niimero aumente, como dizia a intuigao tornada teoria? Dez anos depois, tinhamos publicado dados suficientes sobre 38 espécies de mamiferos para finalmente testar essas hipéteses. De férias na praia em 2014, ao cruzar os dados sobre nimeros de neurdnios no cértex eo grau de dobras da superficie cortical de varias espécies, vi que as duas hipdteses cram claramente falsas. O cértex do elefante ¢ duas vezes ‘mais dobrado do que o humano, embora tenha apenas um terco do nosso nimero de neurénios; 0 cértex do babuino é exatamente to dobrado quanto 0 do porco, embora 0 primeiro possua dez vezes mais neurdnios abaixo da sua superficie. Nem dobras sdo necessérias para permitir mais neurénios, nem ter mais neurénios faz 0cértex se dobrar mais. (© que causa as dobras, entao? Entra em cena Bruno Mola, fisico mineiro com Ph.D. em topologia do universo (que ele explica ser semelhante & topologia do cérebro), que se tornou p6s-doutorando em meu laboratorio ¢ hoje é também professor da UFRJ. Ha dez anos temos papos divertidissimos ~ e iluminadores - comparando nossas perspectivas distintas sobre os ‘mesmos assuntos. A sua visao de mundo, tipica de um fisico, considera que sistemas, mesmo bioldgicos, devem sempre ser otimizados ¢ ter a configuragao matematicamente ideal; minha tica biologica, ao contrario, lembra que ser bom o suficiente ja basta, desde que o sistema funcione. De volta das férias, mostrei ao Bruno que as dobras do cértex nao tinham uma relacdo simples com o ntimero de neurdnios corticais. O que chegava mais perto de uma relagao universal era simplesmente aquela entre a superficie total do cértex (incluindo aquela escondida dentro das suas dobras) e a superficie exposta no topo das dobras - mas, ainda assim, as varias excecdes conhecidas estavam la: 0 cortex do peixe-boi dobrado de menos para seu tamanho, o de varias baleias e golfinhos dobrado de mais. Apesar das excegdes, 0 grafico mostrava que, & medida que aumentava 0 tamanho da superficie exposta do cérebro, ao passarmos de uma espécie para outra, cresciam mais do que proporcionalmente as dimensées da superficie total do Cértex, seele pudesse ser “esticado” Do ponto de vista matematico, isso se expressava numa “lei de poténcia de expoente 1,25”. cérebro do fisico, com sua bagagem propria de fatos mais ou menos titeis e muito diferente da bagagem da bidloga, imediatamente traduziu o que via no grafico em um comportamento de ‘outro objeto bem conhecido por ele. “O cortex 6 como uma bolinha de papel!”, Bruno exclamou. Eu via engrenagens girandoem seu cérebro enquanto ele olhava fixamente o grafico e revirava seus conhecimentos. Papel amassado vira bolinhas conforme ele se deforma sob a pressao das rnossas maos, perdendo energia, e assume a configuragao de menor energia livre, e portanto mais estavel. E por isso que, quando se para de aplicar forca, 0 papel continua amassado. Bruno suspeitou que o mesmo acontecia com 0 cortex cerebral conforme ele crescia dentro do cranio sob uma série de forgas ~ novas células pressionando as outras, o liquor empurrando ‘tudo para fora, a pressdo atmosférica empurrando tudo para dentro. Fisicos, sobretudo os bem vversaclos em matemitica como ele, gostam de encontrar equagdes que descrevem fendmenos naturais ~e ld se foi Bruno tentar transformar em férmula o que sabjamos da biologia: que as fibras do cérebro se deformam sob pressa0; que 0 c6rtex tem superficie e espessura variaveis no desenvolvimento eentre espécies; quea superficie do cortex, como a do papel eao contrario demassinha de modelar, se mantém integra mesmo quandoas dobras se encostam, Nao mais do que algumas semanas depois Bruno chega com aquele olhar animado de fisico- que-resolveu-a-matemdtica no rosto e uma formula na cabeca. No primeiro papel de rascunho queacha em minha mesa, ele escrevinha a deducao da equacao que descreve a minimizagao da energia livre do volume do cértex, depois o termo da superficie. E uma matematica que eu surpreendentemente consigo acompanhar do comeco ao fim, mesmo que meu curriculo escolar carioca tenha sido deficiente em calculo. A formula final é lindamente simples: AT x TI/2= kx AE5/4. Em lingua de gente, isso significa que, a cada instante do desenvolvimento de um cérebro, a forma mais energeticamente favoravel do cértex (e que portanto tende a acontecer espontaneamente) é aquela que mantém uma relagdo constante entre, de um lado, a area total do cértex cerebral (AT) e sua espessura (T1/2) e, de outro, a superficie exposta (AE) Ou seja: mais amassado quanto maior for sua superficie e menor forsua espessura, Sea formula se aplicava ao cortex? Podiamos verificar na hora: era s6 abrir a tabela de dados, calcularo produto ATxT1/2e plota-loem funcao de AE. A expectativa era enorme. A resposta poderia estar ali. E estava mesmo: diante dos nossos olhos, e pela primeira vez na historia da neurociéncia, todos os pontos se alinhavam. As excegdes haviam sumido porque a nossa formula, que previa a conformacao mais estavel do cértex, considerava também a espessura do cértex além das duas dreas que nos interessavam - a superficie exposta de um cérebro “dobrado” e a superficie total de um cértex “esticado”. Como nos filmes, Bruno ¢ eu nos olhamos, incrédulos, e os devidos high five, abracos e pulinhos de alegria se seguiram. Grandes e pequenos, lisos ¢ dobrados, todos os cérebros de todas as espécies disponiveis obedecem a mesma regra, sem excegdes, Nao importa ontimero de neurdnios que formam um cértex, ¢ sim a Area e a espessura formada conforme esses neurénios se espalham: dependendo delas, e somente delas, que o cértex se dobra, conforme a cada instante ele assume a conformacao de menor energia livre, Um dos aspectos mais evidentes da morfologia docérebro, quem diria,éfisica pura. Se é fisica pura, entdo a mesma férmula deveria descrever o grau de dobras de bolinhas de papel, dependendo somente da sua superficie e espessura. Como varid-las? Pensei em comprar papéis diferentes, e j4 estava vasculhando minha lista mental de papelarias conhecidas quando me toquei da solugao Sbvia: bastava comecar com folhas de papel A4 e ir cortando-asao meio para variar sua superficie, edepoisempilhar nimeros diferentes de folhas, antes de amassé-las, para variar sua espessura. Passei a tarde fazendo bolinhas de papel na mesa de jantar e s6 levantei quando ja tinha amassado e medido 66 delas, em seis séries completas de onze bolinhas cada. O veredito: funcionava. O c6rtex cerebral, 0 érgio nobre cujo funcionamento gera aquela consciéncia que evanesce com uma gotinha de anestésico, se dobra como uma folha de papel ‘Um ano depois dos graficos feitos nas férias na praia, o artigo descrevendo nossos achados foi rejeitado pela Nature, mesmo com bons pareceres externas. Prestes a sair de férias, resolvi submeter o artigo a Science sé para nao perder tempo, esperando na volta encontrar 0 e-mail formal de sempre dizendo, no melhor dos casos, que “os revisores nao acharam 0 trabalho 1a grandes coisas, mas quem sabe se vocé refizer tudo a gente reconsidera...”. As férias se passaram, enada. Dois meses depois, para meu espanto, chegou um e-mail taoraro que eu lie reli varias vezes: era a assistente editorial dizendo que a Science tinha interesse em publicar nosso artigo - e, alias, assinem af o termo de consentimento. Demos sorte: nosso artigo parara na mao de dois pareceristas efusivamente entusidsticos, que usaram as palavras wonderful e ‘very impressive, Tinhamos um artigo 100% brasileiro na , 0 sonho de consumo de todo cientista ~ e com o gostinho especial de saber que é possivel, sim, fazer ciéncia de ponta em terras tupiniquins, Publicado ao lado de artigos descrevendo estudos moleculares carissimos, nosso era tao low tech que uma das figuras que o ilustrava, com as medidas das bolinhas de papel amassadas, tinha sido feitana minha mesa de jantar. um gosto bom que deixa um sabor amargo no final, Estamos reescrevendo os livros-texto de neurociéncia e publicando na Science exatamente no momento em que a ciéncia brasileira esté falida. No momento, meu laboratério, bastante bem financiado em termos brasileiros, tem dinheiro somente no papel: com recursos governamentais cortados, nem 0 CNPg, nem a Faperj tém como nos repassar (nem a nés, nem a ninguém, aliés) os auxilios aprovados. E somente em termos brasileiros, mesmo, porque os auxilios aqui so um tanto miserdveis. Os quase 800 mil reais que recebemos ao longo dos tillimos dez anos podem parecer confortéveis, mas se traduzem em uma média de 6 mil reais por més ou um custo médio miseravel de nem mesmo 6 mil délares por artigo publicado (¢ ja so 45). Para ndo ‘mandar para casa os jovens cientistas que trabalham comigo nos mestrados e doutorados que tanto enchem aboca do governo, ja tire! mais de 15 mil reais do bolso, esperando um dia poder ser reembolsada, Acabo de recusar alunos estrangeiros porque, mesmo que as bolsas sejam agas, nao posso garantir que teremos recursos para custear sas pesquiisas. Como eu disse, s6 fazendo magica - ¢ cheguei ao limite da minha cartola. Em terra brasilis, fazer ciéncia de ponta requer virar muambeira para nao pagar os precos abusivos do mercado nacional e taxas astronémicas de importacao (ainda do tempo em que se achava que isso incentivaria a nossa industria), inventar truques para reaproveitar material descartavel € reagentes, aprender contabilidade ¢ administracao na marra, ¢ ainda tirar do chapéu um milagre da multiplicacao de horas para dar conta de ser professor, gerente de projetos, contador, secretério, psicélogo, relacées-puiblicas, técnico de informatica, bombeiro hidraulico, agentede viagens eeletricista—além decientista, claro. ‘Aos meus alunos estrangeiros, quando eles comecam a desanimar porque todos os quinze membros do laboratério temos que compartilhar 0 mesmo tinico jogo de pipetas, porque a internet caiu pela décima vez na semana ou 0 banheiro esta imundo porque a universidade no tem fundos para pagar a limpeza, explico que se eles aprenderem a fazer ciéncia nessas condigies estardio prontos para dar um show quando forem contratados em seus paises de origem. Mas até mesmo conseguir fazer muito com pouco é um problema: corremos 0 risco de o governo comemorar nossa vit6ria como sua e achar que nao precisamos de mais recursos do {que ja temos. E um argumento cretino que ja ouvi como explicacao para 0 motivo pelo qual meu laborat6rio, que por oito anos ocupou um tinico médulo de miseros 24 metros quadrados na UFRJ, nao precisava de uma area maior: “Ela jé produz tanto, nao precisa de mais espaco.” Se produzimos tanto em tio pouco espaco e com to poucos recursos, imagine se nossas perguntas nao precisassem mais ser limitadas pelo pouco apoio financeiro que recebemos do governo ou pelas leis arcanas de importacao. Quantos outros artigos na Science nao poderiamos ter, quantos outros conhecimentos nao poderiamos exportar? Fazer magica ébom, mas cansa. Queria poder ser apenas cientista. A; x [2 = k x A,5/4 Suzana Herculano - Houzel Nascida no Rio de Janeiro, Suzana Herculano-Houzel é formada pola Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de varioslivros de divulgacao cientifiea sobreneurociéncia, Possui pés-doutorado pelo Instituto Max-Planck de Pesquisa do Cérebrona Alemanha, doutorado pela Universidade de Paris Vina Franca emestrado na Universidade Case Western Reserve nos Estados Unidos. Em sew trabalho, analisa como os conhecimentos gerados pela neurociencia a respeito dosseres humanos podem ser aplicados na vida didria, Foi a primeira brasileira a falar na conferéncia internacional TED Global. Sua pesquisa sobre o nlimero de neurénios que 0 ‘cerebro humano possu ganhou destaque internacional. A abordagem envolvew a dissolugaa de quatro esrebros doados a ciéneia em uma mistura homogénea, chamada de sopacerebral”. A partirde uma amostra da mistura, conto e classificon a quantidade de nuicleos celulares pertencentes aosneurdnios, ‘Sua conclusio foi de que © cérebro humano possui 86 bill seacreditavaanteriormente. Seu método de dissolucio dasmembranascelulares para faver uma sopa, usando simples detergente, destr6i as es deneurdnios, ou ja, 14 bilhGes a menos do que membranas das células, mas mantem os nticleos intactos. [Isso pertnite queseja possivelcontar facil célulascorebraisatzavés de um microseépio mnteas Em 1999, quando retornow ao Brasil ps seu doutorade, pasion a se dedicara divulgacao centfica no Museu da Via, da Fandacao Oswaldo Cruz Desde 2002, ¢ professorana UFR, ondedirigeo Laboratério de Neuroanatomia Comparada do Instituto de Ciéncias Bioméicas, no qual ideza uma eqisipe com colaboradores em varios paises e pesquisa as regras de construcdo do sistema nervoso central em humanos ¢ ‘outras especies Fm 2000, langou osite eére se popularizou em 2006, quando comecou a escrever ‘uma colina para ocaderno Equilibrio do jamal Fotha de S40 Paulo, Também écolunista da revista Scientific American Mente & Cerebro bro nosso de cada dia, que Graphic Design by GERPE | arslibri@specialeditions.com.br | www.specialeditions.com.br |

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