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3. OS USOS DAS CALCADAS: CONTATO Hé muito tempo, os responsiveis pela reurbanizago observam os moradores da cidade passando o tempo em esquinas movi- ‘mentadas, parando em bares e confeitarias e bebendo reftigeran- ‘te junto a porta de casa, e jd deram um veredicto, que em essén- ccia é: “Que coisa mais deplorivel! Se essas pessoas tivessem um lar decente ou um lugar mais proprio e arborizado, nao estariam narual” Esse julgamento representa um equivoco profundo a respeito das cidades, Nao faz mais sentido do que comparecer a um jan- tar comemorativo num hotel ¢ concluir que, se aquelas pessoas tivessem mulheres que cozinhassem, dariam a festa em casa. ponto fundamental tanto do jantar comemorativo quanto dda vida social nas calgadas é precisamente o fato de serem pabli- ‘cos. Retinem pessoas que nio se conhecem socialmente de ma- neira intima, privada, e muitas vezes nem se interessam em se ‘conhecer dessa maneira Ninguém pode manter a casa aberta a todos numa cidade grande. Nem ninguém deseja isso. Mesmo assim, se 0s contatos {nteressantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das idades se limitassem a convivéncia na vida privada, a cidade no teria serventia. As cidades esto cheias de pessoas com quem certo grau de contato é proveitoso e agradavel, do seu, do meu '80 MORTE € VIDA DE GRANDES CIDADES ‘ou do ponto de vista de qualquer individuo. Mas vocé nio vai querer que elas fiquem no seu pé. E elas também nao vao querer que vocé fique no pé delas. ‘Ao falar a respeito da seguranca nas calgadas, mencionei a necessidade de haver, no cérebro por tras dos olhos atentos 4 rua, "um pressuposto inconsciente do apoio geral da rua quando a si- ‘tuagdo € adversa - quando um cidado tem de escolher, por -exemplo, se quer assumir a responsabilidade, ou abrir mao dela, de enfrentar a violéncia ou defender desconhecidos. Existe uma ppalavrinha para esse pressuposto de apoio: confianga. A con- fianca na rua forma-se com 0 tempo a partir de iniimeros peque- ‘nos contatos piiblicos nas calcadas. Ela nasce de pessoas que pa- ‘ram no bar para tomar uma cerveja, que recebem conselhos do merceeiro ¢ dio conselhos ao jornaleiro, que cotejam opinides com outros fregueses na padaria e dio bom-dia aos garotos que ‘bebem refrigerante & porta de casa, de olho nas meninas enquan- to esperam ser chamados para jantar, que advertem as eriangas, que ouvem do sujeito da loja de ferragens que ha um emprego ¢ ‘pegam um délar emprestado com o farmacéutico, que admiram 0s bebés novos e confirmam que um casaco realmente desbotou. Os habitos variam: em certas vizinhangas, as pessoas trocam impressdes sobre seus cachorros; em outras, trocam impressdes sobre seu senhorio, y ~~ Grande parte desses contatos ¢ absolutamente trivial)smas a soma de tudo no é nem um pouco trivial. A’som-desses conta- tos piblicos casuais no ambito local — a maioria dos quais ¢ for- tuita, a maioria dos quais diz respeito a solicitagGes, a totalidade dos quais é dosada pela pessoa envolvida e nao imposta a ela por ninguém ~ resulta na compreensio da identidade publica das! pessoas, uma rede de respeito ¢ confiafiga miituos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhanga. A inexisténcia dessa confianca ¢ um desastre para a rua. Seu cultivo ndo pode ser institucionalizado. E, acima de tudo, ela implica néo com- prometimento pessoal. Constatei uma diferenca surpreendente entre a existéncia e a inexisténcia de confianga piblica informal dos dois lados de uma ‘mesma rua larga do East Harlem, composta de moradores basi- a) ‘A NATUREZA PECUUAR DAS CIDADES 61 camente de mesma renda € raga. Do lado da cidade tradicional, repleto de locais publicos e com a vida mansa das calgadas tio deplorada pelos utopistas vigilantes do lazer alheio, as criangas estavam sob controle. Bem em frente, do lado do conjunto habi- tacional, as crianras, que haviam aberto um hidrante de incéndio localizado ao lado da area de recreagio, comportavam-se selva- gemente, lanando agua pelas janelas abertas, espirrando-a em adultos desavisados que andavam pela calcada do conjunto, Jogando-a pelas janelas de carros que passavam, Ninguém ousa- va deté-las. Eram criangas anénimas, ¢ sua identidade era uma ine6gnita. © que aconteceria se vocé as repreendesse ou as fi- zesse parar? Quem o apoiaria naquele Territério cego? Ou, 20 ccontritio, quem se voltaria contra vocé? Melhor ndo se envolver. Ruas impessoais geram pessoas andnimas, ¢ néo se trata da qua- lidade estética nem de um efeito emocional mistico no campo da arquitetura, Trata-se do tipo de empreenidimento palpavel que as calgadas possuem e, portanto, de como as pessoas utilizam as cal- ) nhuma das acepgdes urbanas, Ha graus variados de-uma vida | privada ampliada. © sucesso da Chatham Village como bairro “modelo”, onde se compartilha muito, exigiu que os moradores tivessem padrio de vida, interesses ¢ formacao parecidos. Sio, na maioria, pro- fissionais de classe média e suas familias’. Isso obrigou os mo- |. Neste exo momento, um niceo representa atrga, por exemple, quatro advogatos, ois médicos, das engenees, un dents, un vendedar, um banque, un execu ft ‘vo, um executive de planejamento banc. ia ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 69 adores a se instalarem bem longe das pessoas diferentes que ha- bitam a cidade ao redor; essas pessoas so, na maioria, também de classe média, mas classe média baixa, e isso é uma diferenga e tanto segundo o nivel de camaradagem que a boa vizinhanca da Chatham Village impée, O inevitdvel isolamento (e homogeneidade) da Chatham Villa- ge tem conseqiiéncias praticas, Para citar um exemplo, o colé- gio secundirio que atende a regio tem problemas, camo todas as escolas. A Chatham Village é suficientemente grande para ser majoritéria na escola primaria que suas criangas freqiientam e, portanto, para ajudar a solucionar seus problemas, No entanto, com relagio a escola secundaria, os moradores da Chatham Village precisam relacionar-se com bairros inteiramente dife- rentes. Mas no existe relacionamento piblico, nem confianga piblica informal, nem relacionamento com as pessoas certas — ¢ também nao ha a pritica ou a desenvoltura de langar mio dos recursos mais banais da vida piblica urbana num nivel minimo, Sentindo-se impotentes, como sem diivida so, algumas fami- lias da Chatham Village mudam-se quando os filhos chegam & idade da escola secundaria; outras do um jeito de mandé-los para colégios particulares. Ironicamente, esses mesmos bairros ilhados como Chatham Village que sio incentivados pelo urbanismo ortodoxo nos locais especificos em que as cidades necessitam do talento e da atuacao estabilizadora da classe média, Essas qualidades — presume-se ~ devem ser assimiladas Por osmose. As pessoas que ndo se enquadram de boa vontade em tais riicleos acabam indo embora, e com o tempo os corretores tor- nam-se mais exigentes na escolha dos pretendentes que se en- quadram. Junto com as semelhangas bisicas de padrio de vida, valores ¢ formagio, esse esquema parece exigir uma enorme dose de paciéncia etato. ‘Um planejamento residencial urbano que dependa de uma classificagao individual desse tipo e a cultive, para que exista re- lacionamento entre vizinhos, em geral nao funciona bem social- mente; funciona, quando muito, de maneira restrita, com pes- soas de classe média alta auto-selecionadas em seu meio. Ape~ 170 MORTE E VDA DE GRANDES CIDADES nas soluciona problemas simples de uma populagio décil. Att onde pude averiguar, no entanto, ndo funciona, mesmo em seus préprios termos, com nenhum outro tipo de populagéo. O resultado mais comum nas cidades, onde as pessoas se vee diante da opcio de compartilhar muito ou nada, é 0 nada. Em lugares da cidade que caregam de uma vida piblica natural e in- formal, é comum os moradores manterem em relagio aos outros um isolamento extraordindrio. Se © mero contaio com os vizi- rnhos implica que vocé se envolva'na vida deles, ou cles na sua, € se vocé no puder selecionar seus vizinhos como a classe média alta costuma fazer, a Unica solugio ldgica que resta é evitar a amizade ou o oferecimento de ajuda eventual. E melhor manter- se bem afastado, O resultado disso na pritica & que se deixam de realizar as obtigacdes pablicas comuns — como cuidar das crian- (cas, nas quais as pessoas precisam ter um pouco de iniciativa pessoal, ou aquelas em que é preciso associar-se por um propé- sito comum, © fosso que essa situago abre atinge proporcdes incriveis. Por exemplo, num conjunto residencial de Nova York projeta- do, como todo projeto habitacional ortodoxo, para compartilhar ou tudo ou nada, uma mulher muito comunicativa gabava-se de ter conhecido, por iniciativa propria, todas as mies de cada uma das noventa familias de seu prédio. Telefonava para elas. Segu- rava todas elas para conversar, na porta ou no sagudo. Para puxar assunto, bastava estar sentada no mesmo banco. ‘Um dia, o filho dela de oito anos ficou preso no elevador € nfo foi acudido por mais de duas horas, apesar de ter gritado, cho- ado e esmurrado a porta, No dia seguinte, a mae contou, abis- mada, a uma de suas noventa conhecidas. “Ah, era seu filho?”, disse a outra mulher. “Eu nao sabia de quem ele era filho. Se eu soubesse que era seu filho, eu o teria socorrido.” Essa senhora, que niio se comportava desse modo insensivel e insensato na via piblica tradicional - & qual, ali, ela costumava retomar para sua vida pilblica -, tinha receio de um possivel en- volvimento que no fosse ficil de restringir a esfera publica. ia dezenas de exemplos desse tipo nos lugares em que a op- io € compartilhar ou tudo ou nada. A assistente social Ellen [AINATUREZA PECUUAR DAS CIDADES 71 Lurie fez um relet6rio amplo e detalhado sobre a vida num con- Junto habitacional de baixa renda do East Harlem, que diz 0 seguinte: E (...) extremamente importante reconhecer que, por motivos consideraveimente complexos, muitos adultos nfo querem se en volver em nenfum relacionamento de amizade com os vizinhos ou, se tiverem de se render & necessidade de algum tipo de vida social, limitam-se a um ou dois amigos, a ndo mais do que isso. As mulhe- tesepetem vers sem cota advert dos aris: fio devo me tomnar muito ami é nN, me tomar muito amiga de nnguem. Mew mario “As pessoas si0 muito fofoqueiras, e podem nos meter num ‘monte de encreacas.” “melhor eds um ui dvd” ima das mulheres, Sra. Abraham, sempre sai pela fundes do prétio porju no quer conte com a pesos ue ficam na part ca frente. E também um homem, Sr. Colan(..), nfo permite que sus mulher faga amizades no prédio, por ndo confiar nas pessoas que li residem. Eles nfo deixam que seus quatro filhos, de 8 a 14 anos, descam sozinhos, receosos de que alguém 05 ma. chaque. A conseqiéncia disso & que virias familias colocam todo tipo de barreira para garantira seguranga pessoal. Elas mantém 08 filhos dentro do apartamento para protegé-los de ume vizinhanga que desconhecem. Para proteger-se, fazem poucas amizades, quan- do fazer. Alguns tém medo de que os amigos fiquem zangados ou invejosose inventem um caso para contard administradora,trazen- do-thes problemas. Se o marido consegue uma bonificagao (que ele decide nZo contar a ninguém) e a mulher compra cortinas novas, as visitas podem contar & administradora, que, por sua vez, investiga e Janga um aumento de aluguel A desconfianca e o temor de proble- ‘mas geralmente adquirem mais importincia que qualquer necessi- dade de aconsethamento ou ajuda dos vizinhos. Para essas familia, © significado de privacidade jé foi bastante deturpado, Os maiores segredos, todas 25 confidéncias familiares, sio bem conitecidos nio s6 da administradora, mas geralmente também dos érgios piblicos, ‘como o Departamento de Bem-Estar Social. Para preservar o que 2. ro émuite comum emconjanteshabtaconis de Nova York. il ‘7A MORTE & VIDA DE GRANDES CIDADES resta de privacidade, as familias preferem evitar relacionamentos proximos. Esse mesmo fendmeno pode ser percebido, em grav bem menor, em corticos, porque também neles se toma necessirio, por coutras razdes, criar formas de autoprotesao. Todavia, é sem diivida vverdade que esse afastamento da vida social € muito mais intenso ‘nos conjuntos habitacionais planejados. Até mesmo na Inglaterra, ‘essa desconfianga com relagio 20s vizinhos ¢ 0 conseqiiente isola- ‘mento foram relatados em estudos sobre cidades planejadas. Talvez ‘esse comportamento no seja sendo um mecanisme.grupal comple- xo de protegio e preservagio da dignidade pessoal diante de tantas pressdesexternas para a adaptagio, No entanto, pode-se encontrar, a0 lado do isolamento, um ni- vel considerdvel de partilha nesses lugares. A assistente Lurie aborda esse tipo de relacionamento: £ comum duas mulheres de prédios diferentes se encontrarem € se recorhecerem na lavanderia. Ainda que anteriormente no te ‘nham trocado uma palavra na Rua 99, nesse outro local se tornam, de reperte, “amigas de infancia”, Se uma delas ja tem uma ou duas amigas no prédio, a outra muito provavelmente sera recebida nesse circulo ¢ comegari a fazer amizades préprias, ndo com mulheres ‘moradoras de seu andar, mas no andar da amiga. . Essas amizades nfo sc ampliam indefinidamente. Ha certos tra- |jetos definidos dentro do conjunto, ¢ depois de algum tempo nio se ‘encontram mais pessoas diferentes. Ellen Lurie, que faz. um bern-sucedido trabalho de organiza ‘eo comunitéria no East Harlem, pesquisou a histéria das varias tentativas antigas de reunir moradores de conjuntos habitacio- nais. Ela me revelou que o partilhar & que dificulta esse tipo de associagao, “Nao faltam lideres natos nessas moradias”, diz ela. ‘Hla nelas pessoas com muita capacidade, algumas delas maravi- Ihosas, mas 0 que ocorre normalmente é que, no processo de or- ‘ganizagio, os lideres se conhecem, se envolvem na vida social dos outros e acabam conversando apenas entre si. Eles no en- contram seguidores, A tendéncia ¢ limitar-se a grupos reduzidos, ‘como se fosse um processo natural. Nao existe uma vida piblica ‘A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 73 normal. Ja é dificil as pessoas perceberem o que esta acontecen- do. Tudo isso torna o mais simples retorno social excessivo para essas pessoas.” Ao se verem diante da alternativa de partilhar ow muito ou nada, os habitantes de zonas residenciais urbanas ndo-planeja- das sem comércio e sem vida nas calgadas parecem as vezes pas- sar por processo idéntico ao dos moradores de conjuntos habita- cionais. Assim, os pesquisadores que sairam a caga dos segredos da estrutura social de um distrito apagado e desvitalizado de Detroit chegaram a conclusdo de que nao havia estrutura social alguma A estrutura social da vida nas calgadas depende em parte do ‘que pode ser chamado de uma figura pilblica autonomeada. A fi- ‘gura publica é aquela que tem contato freqiiente com um amplo circulo de pessoas e interesse em tornar-se uma figura piblica. Ela nfo precisa ter nenhum talento ou conhecimento especial para desempenhar sua funcdo, embora quase sempre os tenha. Precisa apenas estar presente, e é necessario que possua um ni ‘mero adequado de pares. Sua principal qualificacao é ser pii ca, conversar com varias pessoas diferentes. E assim que se trans- ‘mitem as noticias que so do interesse das ruas. A maioria das personagens de rua esté estabelecida em locais Piiblicos. Sao pessoas que cuidam de lojas ou de bares ou coisa Parecida. Essas so as figuras publicas fundamentais, Todas as utras figuras publicas das ruas dependem delas — ainda que in- diretamente, pela existéncia de caminhos na calgada em diregao a esses empreendimentos e seus proprietirios. Os funcionérios ¢ os sacerdotes das associagdes comunitérias, dois tipos mais formais de figuras publicas, normalmente de- pendem dos sistemas de transmissio de informagées boca a boca de rua, que tém ramificagées nas lojas. O diretor de uma asso- ciago comunitiria do Lower East Side de Nova York, por exem- plo, faz. uma ronda regular pelos estabelecimentos comerciais. O tintureiro que the lava os ternos revela a ele que hd traficantes de Grogas no bairro. O merceeiro revela a ele que os Dragdes esto aprontando alguma ¢ é preciso ficar atento, Na confeitaria, toma ‘7A MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES conhecimento de que duas garotas esto insuflando os Esportis- tas para uma briga de gangues, Um de seus pontos de informa- do mais importantes é a caixa de pio da Rua Rivington, que nio ¢ utilizada para essa finalidade. Fica diante de uma merc ria, entre a associagao comunitiria, uma confeitaria e um patio com espelho d’agua, ¢ é usada para sentar ou se encostar. Um re- cado dado ali para qualquer adolescente num perimetro de vi- rias quadras chega aos ouvidos dele infalivelmente ¢ com rapi- dez surpreendente, ¢ em sentido contrario, através das informa- ‘gBes boca a boca, os recados também chegam rapidamente até a caixa de pao. Blake Hobbs, diretor da escola de miisica do Nicleo Comu- nitério Union, no East Harlem, observa que, quando cle recebe tum primeiro aluno de uma quadra proxima da velha rua movi- ‘mentada, chegam logo depois pelo menos mais trés ou quatro alunos e as vezes todas as criangas da quadra, Mas, quando se trata de um aluno dos conjuntos habitacionais proximos — talvez depois de indicagdes em conversas na escola publica ou no play- ‘ground ~, ele quase nunca consegue imediatamente outros alu- nos. As noticias no correm nos locais onde faltam figuras pi- blicas e vida nas calgadas. ‘Além das figuras piblicas ancoradas na calgada e de outras bem conhecidas que ficam circulando, é bem capaz de haver ‘muitas outras figuras piblicas mais diferenciadas numa rua ur- bana, Curiosamente, algumas delas ajudam a criar uma identida- de nfo s6 para elas mesmas, mas também para outras. E 0 que indica uma reportagem de Sao Francisco sobre a vida cotidiana de um tenor aposentado em lugares publicos, como um restau- rante ou uma quadra de bocha: “Conta-se que por causa de sua vivacidade, de scu jeito dramético e de seu eterno interesse pela ‘iisica, Meloni passa para seus varios amigos a sensagdo de tam- bém serem importantes.” E exatamente isso. Nao é necessario ter a arte ow a personalidade de um homem ‘como esse para tornar-se uma figura diferenciada da rua, apenas possuir alguma particularidade adequada, E facil. Sou uma figu- ra piblica diferenciada de menor importancia na minha rua, por causa, € claro, da presenga fundamental das figuras piblicas ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 75 essenciais, ancoradas, A razio de eu ter-me tomado tal fi deve-se ao fato de que 0 Greenwich Village, onde moro travava uma batalha horrenda interminavel para evitar que seu principal parque fosse cortado por uma via expressa, Durante essa lula, sob 0 comando do organizador do comité que ficava do outro lado do Greenwich Village, assumi a tarefa de deixar em lojas dos quarteirdes vizinhos & minha rua abaixo-assinados protes- tando contra a via expressa proposta. Os fregueses assinavam os documentos quando iam as lojas e eu passava periodicamente para apanhé-los’. A conseqiincia do meu engajamento nesse trabalho de mensageiro foi tornar-me automaticamente uma figura publica com relagao a estrategia do abaixo-assinado. Logo depois, por exemplo, o Sr. Fox, da loja de bebidas, consul- ‘ousme, enquanto embrulhava uma garrafa, sobre o que poderia ‘mos fazer para a prefeitura remover um monstrengo, ha muito abandonado e perigoso — um banheiro piblico fechado proximo a esquina. Se eu me responsabilizasse pela redacao da petigdo e conseguisse entregé-Ia A prefeitura, propds o Sr. Fox, ele e seus sécios se encarregariam de imprimir c6pias, distribui-las e reco- Ihé-las. Nao demorou para os estabelecimentos vizinhos recebe- rem 0s abaixo-assinados para a remogao do banheiro piblico, Atualmente, nossa rua tem vérios peritos piblicos em téticas de Peticio, inclusive crianga As figuras piiblicas no s6 espalham noticias e sabem as noticias, por assim dizer, no varejo; elas se relacionam e espa tham as novidades por atacado, de fato, ‘A vida na rua, tanto quanto eu possa perceber, no nasce de uum dom ou de um talento desconhecido deste ou daquele tipo de Populagio, Sé surge quando existem as oportunidades concre- tas, tangiveis, de que necessita. Coincidentemente, so as mes- mas oportunidades, com a mesma abundiincia e constincia, ne- cessirias para cultivar a seguranga nas calgadas. Se elas nfo exis- tirem, os contatos piblicos nas ras também nao existirio. 3. se recurs as, bastante ea: esi st 3 ees ai 3: rena com um esorotfima 0 que seria um batho eva emp Tarbém provoca mais conversa € apo pubhca do que avs de ‘TS MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES 5 ricos tém muito mais maneiras de satisfazer necessidades do que os mais pobres, que dependem mais da vida nas ruas — desde saber de empregos até serem reconhecidos pelo maitre do restaurante, Mesmo assim, muitos dos ricos ou quase ricos das cidades parecem apreciar a vida nas ruas tanto quanto qualquer pessoa, Eles fazem de tudo, até pagar aluguéis fabulosos, para mudar-se para locais com uma vida de rua exuberante e variada. Eles até tomam o lugar das classes média ¢ baixa em areas alc- res, como Yorkville ou o Greenwich Village, em Nova York, ou Telegraph Hill, vizinho da area de North Beach, em Sto Fran- cisco. Depois de uma moda que dura no maximo duas décadas, abandonam por capricho as ruas mondtonas das “éreas residen- ciais trangiilas”, deixando-as para os menos afortunados. Basta conversar com 0s moradores de Georgetown, no Distrito de Coliimbia, que na segunda ou terceira frase eles jd estario falan- do entusiasmados dos restaurantes agradiveis ~ “mais restau- rantes bons que em qualquer parte da cidade” -, a singularidade € 0 bom atendimento do comércio, o prazer de encontrar pessoas ‘quando se sai para dar uma volta — tudo nao passa de orgulho pelo fato de Georgetown ter-se tornado um distrito exclusivo de compras em toda a rea metropolitana, Falta ainda descobrir a parte da cidade - rica ou pobre ou meio-termo — que seja preju- dicada por tal vivacidade instigante e tal profuso de contatos nas Tuas. A ceficiéncia das figuras pablicas diminui drasticamente se a pressio sobre elas for muito grande. Uma loja, por exemplo, pode sofrer uma reviravolta em seus contatos, ou contatos poten- ciais, que se tomam to amplos e superficiais, que ela propria perde Sua utilidade social. Um exemplo disso é a doceria e banca de jornais da cooperativa habitacional de Corlears Hook, no Lower East Side de Nova York. Essa loja planejada do condomi- nio tomou o lugar de pelo menos quarenta estabelecimentos mais ou menos parecidos, que foram demolidos no local e em fireas adjacentes (sem que os proprietirios fossem indenizados). (O lugar parece uma fibrica. Os balconistas ficam to preocupa- dos em largar o servico e gritar ameagas inécuas para os desor- deiros, que ndo ouvem nada, exceto “Quero isto”. Um desinte- /ANATUNEZA PECUUIAR DAS CIDADES 77 resse profundo como esse é 0 clima que predomina nos higares em que um centro comercial planejado ou um zoneamento re- pressivo inventam artificialmente monopélios comerciais nos bairros. Um estabelecimento como aquele seria um fracasso se tivesse concorréncia. Ao mesmo tempo, embora o monopélio Ihe garanta o sucesso financeiro previsto, socialmente ele ni atende & cidade. ° _ Ocontato piiblico ¢ a seguranga nas ruas, juntos, tém relagio direta com o mais grave problema social do nosso pais: segrega- ‘go e discriminagao racial, Nao estou dizendo que o planejamento ¢ 0 desenho de uma cidade, ou seus tipos de ruas e de vida urbana, possam vencer automaticamente a segregagio ¢ a discriminagio, Vérias outras ini sto imprescindiveis para corrigir essas injustigas. Todavia, afirmo, sim, que urbanizar ou reurbanizar metr6po- les cujas ruas sejam inseguras ¢ cuja populago deva optar entre partilhar muito ou néo partilhar nada pode tornar muito mais di- Jicil para as cidades norte-americanas superar a discriminagio, ‘sejam quais forem as iniciativas empreendidas, Levando em consideragao a intensidade do preconceito e do medo que acompanham a discriminagdo e a encorajam, superar a segregago espacial é também muito dificil se as pessoas se sen- tem de algum modo inseguras nas ruas. E dificil superar a discri- minago espacial onde as pessoas no tenham como manter uma vida piiblica civilizada sobre uma base publica fundamental- ‘mente digna e uma vida privada sobre uma base privada. ‘Sem diivida podem ser executados aqui e ali planos-modelo de integracio habitacional em areas da cidade prejudicadas pelo ‘Perigo e pela falta de vida piblica —executados mediante grande empenho ¢ a instituico de uma selegao incomum (nas cidades) de novos vizinhos. Isso é uma fuga em relagio a dimenséo do problema e 4 sua preménci A tolerdncia, a oportunidade para aparecerem grandes dife- rrengas entre vizinhos ~ diferengas que freqiientemente sio mais Profundas do que as raciais -, as quais sio possiveis e normais ‘numa vida intensamente urbana mas tio estranhas a subirbios ‘7B MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES pseudo-subirbios, sfo possiveis e normais s6 quando as ruas das grandes cidades dispdem de uma infra-estrutura que permita uma convivéneia pacifica com estranhos, em condigées civilizadas mas fundamentalmente dignas e reservadas. ‘Aparentemente despretensiosos, despropositados e aleat6rios, ‘0s contatos nas ruas constituem a pequena mudanga a partir da ‘qual pode florescer a vida publica exuberante da cidade. Los Angeles é um exemplo extremo de metrépole com vida piiblica escassa, que depende principalmente de uma natureza social mais privada. De um lado, por exemplo, uma conhecida minha de lé comen- ta que, apesar de viver na cidade ha dez anos e saber que ha me- xicanos entre os habitantes, ela nunca viu um mexicano ou uma peca da cultura mexicana, € muito menos trocou uma palavra com algum deles. Por outro lado, Orson Welles escreveu que Hollywood é 0 linico centro de artes cénicas do mundo que no conseguiu abrir ‘um bistré para 0 pessoal de artes cénicas. E, em outro aspecto ainda, um dos mais influentes homens de negécios de Los Angeles deparou com uma falha nas relacdes piiblicas que seria inaceitavel em outras cidades desse porte. Esse executivo, dizendo espontaneamente que a cidade eslava “culturalmente atrasada”, como ele proprio se expressou, con- tou-me que ao menos ele estava trabalhando para remediar isso. Chefiava uma comissio de coleta de recursos para um musea de arte de primeira classe. Mais adiante na conversa, depois de me revelar como € a vida no clube dos homens de negécios de Los Angeles, no qual ele despontava como um dos lideres, pergun- tei-lhe como e em que local a populacdo de Hollywood tinhe en- contros semelhantes. Ele ndo foi capaz de responder. Acres~ centou entio que nao conhecia ninguém ligado a industria do cinema nem sabia de ninguém que conhecesse. “Sei que parece estranho”, argumentou. “Estamos felizes de a indistria do cine- rma estar aqui, mas 0s que pertencem a ela nao so pessoas com quem se tenha contato soci ‘Ai aparece de novo o partilhar ou isolar-se. Imagine a des- vantagem desse sujeito na tentativa de abrir um museu metropo- ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 79, litano de arte. Ele no tem como se aproximar com desembara- Se cesteza ou confianga dos melhores contribuintes Ppotenciais ‘Nos altos escaldes econdmicos, politicos culturais, Los eles obedece as mesmas premissas provincianas de isolaen Social que as Tuas com o calgadio ajardinado de Baltimore ou da Chatham Village de Pittsburgh. Faltam a uma metrépole como ‘essa 0s meios para reunir as idéias necessérias, o entusiasmo ne- cessario, o dinheiro necessirio. Los ‘Angeles lancou-se numa em- preitada estranha: tentar administrar no apenas conjuntos habi- tacionais, nfo apenas éreas apagadas, mas uma metrépole inteira a forga do ou partilhar ou isolar-se. Entendo que essa seja uma ‘conseqiiéncia inevitavel nas grandes cidades cuja populacio ca- rea de vida ptblica urbana na vida e no trabalho cotidianos 6. OS USOS DOS BAIRROS Vizinhanga é uma palavra que passou a soar como um cartiio de Dia dos Namorados*, Como conceito sentimental, “vizinhanga” é prejudicial ao planejamento urbano, Dé lugar a tentativas de ‘ransformar a vida urbana num arremedo da vida em cidades de pequeno porte ou subtirbios. O sentimentalismo suscita atitudes agucaradas, em vez de bom senso. ‘Um bairro bem-sucedido ¢ aquele que se mantém razoavel- mente em dia com seus problemas, de modo que eles no 0 des- ‘truam, Um bairro malsucedido é aquele que se encontra sobre- carregado de deficiéncias e problemas ¢ cada vez mais inerte diante deles. Nossas cidades apresentam todos os graus de suces- 80 € fracasso. Mas nés, norte-americanos, costumamos ser ruins na gestio dos bairros, como se pode constatar, por um lado, no aciimulo de fracassos em nossos vastos bolsdes apagados e, por outro, nos Territérios das areas reurbanizadas. Esté na moda supor que certos referenciais de uma vida digna conseguem criar bairros dignos ~ escolas, parques, moradias lim- pas e coisas do género, Como a vida seria facil se isso fosse ver- {A analogia da autora faz mss sentido em ings, devo 8 etimologia da palavaviohanga, ‘em ingls neighbarhood("congrsgaio deviznhos) e20 Sent manta de tzadeecamareds- 'gem que vaihot e conhecides demonstra, especamente em das comemmaralvos como © ‘os Namorados, quando rocam ardes bere-humovads jocososou sentiments IN oT) 124 MORTEE VIA DE GRANDES CIDADES dade! Que maravilha poder satisfazer uma sociedade complexa exigente dando-Ihe singelas guloseimas concretas! Na pritica, causa ¢ efeito néo sdo assim to singelos. Tanto que um estudo feito em Pittsburgh, com o intuito de demonstrat a suposta inti- ma correlagdo entre moradias melhores ¢ condigdes sociais mais altas, comparou os indices de delingiiéncia em corti¢os com aqueles em novos conjuntos habitacionais e chegou § embaraco- sa conclusio de que a delingiiéncia era mais alta nos conjuntos habitacionais em que havia methorias, Sera que isso significa que moradias melhores aumentam a criminalidade? De modo al- gum. Significa, porém, que outras coisas podem ser mais impor- tantes que a habitagio e também que nio existe nenhuma rela- ‘do direta e elementar entre boa moradia e bom comportamento, fato que toda a histéria da civilizagio ocidental, todas as obras da nossa literatura e todo 0 estoque de observagdes de que dispo- ‘mos deveriam ter tomado evidente ha muito tempo. Um bom abrigo é um bem itil em si enquanto abrigo. Quando, ao contri- rio, tentamos justificar um bom abrigo com o pretenso argumen- to de que ele fara milagres sociais e familiares, estamos enga- nando a nés mesmos. Reinhold Niebuhr denominou essa ilustio de “doutrina da salvagio pelos tijolos”, Acontece © mesmo com as escolas. Nao se pode depender das boas escolas, embora elas sejam importantes, para a recupe- ragao de bairros ruins e a criacdo de bairros bons, Da mesma ma- neira, um bom prédio escolar no garante uma boa educagio. A: escolas, como os parques, tém tudo para ser elementos passage: 105 do bairro (assim como elementos de um plano de agio politi- ca mais amplo). Em bairros ruins, as escolas acabam arruinadas, fisica e socialmente, a0 passo que os bairros prosperos aprimo- ram suas escolas lutando por elas'. 1. No Upper Westside de Manhatan, uma zona bastante degrachda, onde @desntegracso scl fo! agravada por derolices nsensats, pela constuge econjuntor habitaconay pelo desacamento frcado de pessoas, o indie de ransletnca de alunos na esol 1 Supra 50 por cento em 1953-60. Em 16 escls, ating a meca de 22 por cento ada So persar que, seam qual orem as nkiavas. oovernamenta ou pivada, até mexmo uma ecole medina potta ssi num bao a al pont instal, rpossvel aver boas exclas fem quacuer bat inslve! cor alto neice de Vensferencia de elura, ease neuer 9 B= rosinstavis que também dspbem deboas mocadas. ‘ANATUREZA PECUUIAR DAS CIDADES 125 Da mesma maneira, no podemos concluir que familias de classe média ou de classe alta possam constituir bons baitros familias pobres nio consigam fazé-lo, Por exemplo, da pobreza do North End, em Boston, da pobreza da coletividade da ora ma- ritima do West Greenwich Village, da pobreza do distrito do ma- tadouro de Chicago (coincidentemente trés areas declaradas irre- ccuperaveis pelos urbanistas), surgiram bons bairros ~ bairros em que os problemas se reduziram com 0 tempo, ao invés de aumen- tar, Ao mesmo tempo, da outrora elegante e serena classe alta do magnifico Eutaw Place, em Baltimore, da outrora sélida classe alta do Scuth End de Boston, da area culturalmente privilegiada de Morningside Heights, em Nova York, em quilémetros e mais uilémetros de areas cinzentas e desvitalizadas de uma classe mé- dia respeitivel, surgiram bairros ruins, bairros cuja apatia e cujo fracasso aumentaram com 0 tempo, em vez de diminuir. E perda de tempo sair a procura de um referencial para o éxi- to de instalacdes de alto padrao, ou de coletividades supostamen- te capazese livres de problemas, ou de lembrangas nostilgicas da vida em cidades de pequeno porte. Isso foge ao cerne da ques- tio, que ¢0 que os bairtos fazem — se & que faze — de til para as proprias cidades, social e economicamente, como fazem. ‘Teremos um elemento concreto para pensar se considerarmos 05 bairros como prosaicos érgios autogovernados. Nossos fia- cassos com os bairros so, em tltima instancia, fracassos da au- togestio. E nossos éxitos sio éxitos da autogestao, Estou empre- gando o termo autogestio no sentido amplo, tanto a autogestio informal da coletividade quanto a formal, As exigéncias com relagio & autogestio e as técnicas para exe- cuté-la nas grandes cidades sio diferentes daquelas proprias de locatidades menores. Existe, por exemplo, o problema dos estra- hos. Para pensar nos bairros como érgios urbanos autogeridos ‘ou dotados de governo proprio, precisamos primeiro refutar al- ‘gumas idéias ortodoxas mas descabidas acerca dos bairros que talvez se apliquem a comunidades de povoados pequenos, mas no a cidades. Em primeiro lugar, devemos refutar qualquer mo- delo que encare os bairros como unidades auto-suficientes ou introvertidas, “126 MORTE VIDA DE GRANDES CIDADES Infelizmente, «teoria urbanistica ortodoxa esta profundamen- te comprometida com o modelo de bairros supostamente acolhe- dores e voltados para si. Na forma original, 0 modelo consiste ‘numa unidade de vizinhanga, constituida por cerca de 7 mil pes- ‘soas, que tenha temanho suficiente para conter uma escola ele- ‘mentar e para manter lojas de conveniéneia e um centro comu ario. Essa unidade foi ainda imaginada com subdivisées em agrupamentos menores, de um tamanho que atenda a diversio infantil, ao presumivel controle sobre as eriangas e ao bate-papo das donas de case. Embora esse “modelo ideal” raramente seja reproduzido a risca, é 0 ponto de partida para quase todos os projetos de revitalizagao de bairros, todas as construgdes de con- juntos residenciais, maior parte do zoneamento moderno e tam- ‘bém os trabalhos feitos atualmente pelos estudantes de arquite~ tura ¢ urbanismo, que vao impor essas adaptagdes as cidades de amanha. Em 1959, s6 na cidade de Nova York mais de meio mi- Ihdo de pessoas ji viviam de acordo com adaptagées dessa con- cepcao de bairro planejado. Esse “ideal” de bairro em forma de itha, voltado parasi mesmo, é um fator importante na vida atual. Para percebermos por que se trata de um “ideal” absurdo e até nocivo as cidades, precisamos reconhecer uma diferenga fun- damental entre essas invengdes enxertadas nas cidades e a vida ‘em cidades de pequeno porte. Em cidades pequenas de 5 mil ou 10 mil habitantes, se vocé for a rua principal (andloga a infra- cestrutura comercial implantada ou ao centro comunitario de um bairro planejado}, encontrara pessoas que conhece do trabalho ou foram suas colegas de escola, ou com quem vocé se encontra na igreja, ou que sio professoras dos seus filhos, ou Ihe presta- ram servigos informais, ou que vocé sabe serem amigas de co- mhecidos seus, ou que vocé conhece de nome. Dentro dos limi- tes de uma cidadezinha ou de uma vila, os lacos entre os habi- tantes se cruzam e voltam a se cruzar, 0 que pode resultar em comunidades fundamentalmente coesas, mesmo em cidades com mais de 7 mil habitantes e, em certa medida, em cidades ain- damaiores. Porém, uma coletividade de 5 mil ou 10 mil moradores de uma metrépole nao possui esse mesmo grau natural de inter-relacio- ANATUREZA PECUUIAR DAS CIDADES 127 namento, a néo ser em circunsténcias absolutamente extraordi- nérias. E nem mesmo o planejamento de bairros, por mais agra~ davel que tente ser, consegue mudar esse fato, Se conseguisse, seria & custa da destruigao da cidade, convertendo-a numa por- ‘so de cidadezinhas. Assim, o prego da tentativa, sem que a0 menos se tenha sucesso nessa meta mal orientada, é a transfor- magio da cidade nume porcio de Territérios hostis e desconfia- dos uns dos outros. Ha muitas outras falhas nesse “ideal” de bair- ro planejado e em suas varias adaptagies*. Ultimamente, alguns urbanistas, especialmente Reginald Isaacs, de Harvard, ousaram questionar se 0 conceito de bairro em me- trépoles tem algum sentido. Isaacs ressalta 0 fato de que 0s mo- radores urbanos tém mobilidade. Eles costumam escolher, em toda a cidade e até fore dela, o trabalho, o dentista, o lazer, ami- £0, lojas, entretenimento € até mesmo, em certos casos, a esco- la dos filhos. Os moradores urbanos, diz Isaacs, no se prendem 0 provincianismo de um bairro ~ e por que o fariam? A vanta- gem das cidades nao é justamente a variedade de opcdes e a far- tura de oportunidades? _Essa é de fato a vantagem das cidades, Além do mais, a pro- pria fluéncia de usos e de escolhas dos moradores urbanos cons- titui a base que sustenta a maioria das atividades culturais e das ‘empresas especializadas das cidades. J que estas podem atrair pessoal qualificado, materiais, os fregueses ¢ a clientela desse grande pool, elas tém condigdes de existir numa gama extraordi- 2 Atte a veh justia pra santa ums pope cra de 7 mi peso = scene pata aupr ura con ererar=- revere abt as ue ocd acts jek, came podem concur haendo sos us peru mir que eso En sls Signa ins ornare ear eipr se ales ‘redo aoe aso ster que cevera have as ome siren de coco ta coma ou au omar cevers te dus vres a’? Gu ster de oradores ecole em eos ¢ qe Germ 8 ase $2 omar? E Bar que uma excaa element? Se eco dene se pro de poporraldade po coe no a exo de ersino med, tua nomamene muta has proses hs sas ‘des que» el Tundoment? Wanea eat» perpinin “Cue sca" poe» pane “seni no se asearemnerevaade dar ear oem ethua cata cls un ‘esa late gasmerte asta pro dine agum aan pt caades ana henson te or ae gn En Tce cor ren pn om wes ites poeta, meso tem nenhuna ou stata © mol “ides acim de Ebenezer Howe seme, oanacese dese Ceres apo ‘nidade advém da necessidade de preencher um vazio intelectual. ° ‘2BMORTEE VDA DE GRANDES CIDADES néria, € nao s6 no centro urbano, mas também em outros distri- tos que tenham desenvolvido caracteristicas especialidades proprias. E, ao se aproveitar dessa maneira do grande poo! das cidades, os empreendimentos urbanos, por sua vez, aumentam as opgdes de emprego, bens, entretenimento, idéias, contatos e ser- vigos para os moradores urbanos. Sejam os bairros 0 que forem e seja qual for sua funcionali- dade, ou a funcionalidade que sejam levados a adquirir, suas qualidades ndo podem conflitar com a mobilidade e a fluidez de uso urbano consolidadas, sem enfraquecer economicamente a cidade de que fazem parte, A falta de autonomia tanto econ6: a quanto social nos bairros é natural e necessaria a eles, sim- plesmente porque eles sio integrantes das cidades. Isaacs tem raziio ao concluir que a concepgio de bairro em metropoles no tem sentido — se encararmos os bairros como unidades auténo- mas em qualquer grau significativo, inspirados em bairros de cidades de pequeno porte, Apesar da extroversio inerente aos bairros, isso no quer di- zer obrigatoriamente que os moradores consigam viver bem sem eles como num passe de magica, Até mesmo 0 mais citadino dos cidadios se importa com o ambiente da rua e do distrito em que ‘mora, sejam quais forem suas opgGes fora deles; 0s moradores comuns das cidades dependem bastante de seu bairro na vida cotidiana que levam. Presumamos (como é sempre 0 caso) que os vizinhos nao te- nham nada em comum além do fato de viverem num mesmo es- aco geografico. Ainda assim, se nfo cuidarem do bairro adequa- damente, esse espago entrard em decadéncia, Nao existe um “eles” incrivelmente onisciente e dindmico que assuma 0 comando e se encarregue da autogestao, Os bairros metropolitanos nao preci- sam proporcionar a seus moradores uma imitagdo da vida das vilas ou das cidades de pequeno porte, e desejar que isso aconte- 662 6 tao imitil quanto prejudicial. Mas os bairros precisam prover alguns meios de autogestao civilizada, Esse ¢ 0 problema, Considerando os bairros como érgiios autogeridos, s6 consi- g0 achar produtivos trés tipos de bairro: (1) a cidade como um ‘A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 129 todo; (2) a vizinhanga de rua; ¢ (3) distritos extensos, do tama- ho ce uma subcidade, compostos por 100 mil habitantes ou ‘mais, no caso de cidades maiores. Cada um desses tipos de bairro tem fungGes diferentes, mas um complementa 0 outro de modo complexo, Nao se pode dizer que um seja mais importante que os outros. Os trés so necessé- rios para a perenidade em qualquer ponto. Mas acho que outros bairres que nao esses trés acabam se interpondo e dificultando ‘ou impedindo o éxito da autogestio. O mais ébvio desses trés tipos, raramente chamado de bairro, a cidade como um todo. Nao podemos nunca esquecer ou des- prezar essa coletividade maior ao pensar nos segmentos meno- res de uma cidade. E dessa fonte que flui a maior parte do di- nheiro publico, mesmo que ele provenha, em tiltima instincia, do tesouro federal ou estadual. E ai que se toma a maioria das deci- sbes administrativas e politicas, boas ou ruins. E ai que o bem- estar geral entra num dos piores contlitos, aberto ou velado, com 19 interesses ilegais e outros igualmente destrutivos. ‘Alm disso, encontram-se, nesse mesmo plano, grupos com interesses especificos e grupos de pressio. O bairro da cidade ‘como um todo é 0 local onde as pessoas que tém interesse espect- fico em teatro ou em miisica ou em outras formas de arte se encontram e se reiinem, onde quer que morem. E ai que as pes- ‘soas dedicadas a profissdes ou a negocios especificos ou preocu- padas com determinados problemas trocam idéias ¢ is vezes ‘come;am a agir. O Professor P. Sargant Florence, especialista bri- tAnico em economia urbana, escreve: “Segundo minha experién- ccia, sem contar um local especifico de intelectuais, como Oxford ‘ou Cambridge, uma cidade de um milhao de habitantes deve ser ‘capaz de me proporcionar, digamos, os vinte ou trinta amigos -compativeis comigo de que necessito!” Isso soa um tanto esnobe, sem diivida, mas o que o Professor Florence diz é verdade. Talvez ‘ele goste que seus amigos fiquem sabendo o que ele est queren- do dizer. Quando William Kirk, do Nicleo Comunitario Union, ¢ Helen Hall, do Niicleo Comunitério da Rua Henry, bem distantes um do outro em Nova York, retinem-se com o pessoal da Con- -sumers’ Union — revista cuja sede também fica longe -, com pes- “1BOMORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES quisadores da Universidade de Colimbia ¢ com os curadores de uma fundagao para discutir a faléncia financeira, pessoal e da comunidade, provocada pelos empréstimos de agiotas aos con- juntos habitacionais de baixa renda, sabem 0 que os outros esto querendo dizer e, além disso, conseguem associar sua forma pe- culiar de conhecimento a um tipo especial de capital para conhe- cer o problema e encontrar meios de combaté-lo. Quando minha irma, Betty, que é dona de casa, participou da elaboragao de um plano para a escola piblica de Manhattan que um de seus filhos cursa, por meio do qual os pais que sabem o inglés ajudam nas ligGes de casa as criangas cujos pais no conhecem o idioma, ¢ plano deu certo, esse conhecimento se infiltrou pelo bairro da ci- dade como um todo com um interesse especifico. Por causa dis- so, a Betty viu-se uma noite na regio da Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, contando a um grupo de dez presidentes de Associa ‘Bes de Pais e Mestres (APMs) do distrito como esse plano fun- ciona e aprendendo com eles coisas novas. Um dos maiores trunfos de uma cidade, se no o maior, é for- ‘mar comunidades com interesses comuns. Por outro lado, um dos trunfos necessarios aos distritos urbanos é contar com pessoas que tenham acesso a grupos politicos, administrativos e de inte- resse comum na cidade como um todo. ‘Na maioria das cidades grandes, nés, norte-americanos, te mos certa facilidade para criar bairros iteis que abranjam toda a cidade. As pessoas que possuem interesses similares ou comple- mentares nao tém dificuldade em se descobrir umas as outras. ‘Nesse aspecto, normalmente elas tém mais condigdes de fazé-lo nas grandes cidades (exceto Los Angeles, que ¢ terrivel para isso, e Boston, que € patética). Além do mais, como Seymour Freedgood, da revista Fortune, tao bem documentou em The Ex- ploding Metropolis {A metrdpole em explosio], os governos das cidades grandes costumam ser competentes ¢ ativos em varios aspectos, mais do que se poderia depreender ao observar os pro- blemas sociais e econémicos dos iniimeros bairros fracassados das mesmas cidades. Seja qual for nossa desastrosa deficiéncia, dificilmente se trata da mera incapacidade de formar vizinhan- as no geral, a partir da cidade como um todo. ‘A NATUREZA PECUUAK DAS CIDADES 131 Na outra ponta da escala encontram-se as ruas ¢ as miniscu- Jas vizinhangas que clas formam, como, por exemplo, a nhanga da nossa Rua Hudson, ‘Nos primeiros capitulos deste livro, insisti bastante nas atri- bbuigdes da autogestao das ruas: tecer redes de vigilancia piiblica e, assim, proteger os estranhos ¢ também a si proprios; formar redes em escala reduzida na vida cotidiana do povo e, conse- qiientemente, redes de confianca de controle social; © propi- ciar a integragdo das criangas a uma vida urbana razoavelmente responsivvel ¢ tolerante, Todavia, as vizinhangas tém ainda outra atribuigdo vital na autogestio: devem ter meios efetivos de pedir auxilio diante de um problema de grandes proporgdes que a prépria rua ndo con- siga resolver. As vezes, esse auxilio precisa vir da cidade como um todo, na outra ponta da escala, Esse é um fio da meada que vou deixar solto, mas que gostaria que vocss recordassem. Todas as atribuigSes da autogestio das ruas sio modestas mas indispensiveis. Apesar das varias experiéncias, planejadas ou no, ndo ha o que substitua as ruas vivas, De que tamanho deve ser uma vizinhanca para que ela funcio- ne bem? Se atentarmos para as redes de vizinhanga bem-suce das na vida real, veremos que essa pergunta nfo tem sentido, por- que, onde quer que funcionem bem, as vizinhangas nao tém nem ‘comeco nem fim que as distinga como unidades separadas, O tamanho difere até para pessoas do mesmo lugar, porque algumas delas vio mais longe, ficam mais tempo na rua ou tém conheci- dos que se encontram mais longe que os de outras pessoas, Sem diivida, grande parte do éxito dessas vizinhangas depende da sua sobreposicio e da sua interpenetracdo para além das esquinas. Essa é uma das maneiras pelas quais elas apresentam a seus fre- iientadores uma variacdo econémica e visual. A parte residen- cial da Park Avenue, de Nova York, parece ser um exemplo extre- mo de vizinhanga monétona, e o seria se constituisse uma faixa ada de vizinhanca de rua. Mas, para um morador da Park Avenue, a vizinhanga apenas comeca af; basta sair da avenida e virar a esquina. Ela ndo é apenas uma faixa, mas integra um con- junto de vizinhangas entrelagadas de grande diversidade. 132 MORTE E VIDA DE GRANDES GDADES- ‘Sem diivida podemos encontrar muitas vizinhangas isoladas com limites definidos. Elas geralmente existem em quadras lon- gas (e dai haver poucas ruas), porque as quadras longas quase Sempre tendem ao auto-isolamento fisico. Nao ha o que fazer ‘com uma vizinhanga nitidamente isolada; 0 fracasso é uma ca- racteristica comum a elas. Ao descrever os problemas de uma firea de quadras longas, monétonas ¢ isoladas no West Side de Manhattan, o Dr. Dan W. Dodson, do Centro de Estudos de Re- Jagdes Hurnanas da Universidade de Nova York, observou: “Ca- da uma [rua] parece ser um mundo a parte, com uma cultura & parte. Muitos dos entrevistados no tinham idéia do bairro além dda rua em que moravam.” Resumindo a incompeténcia do local, o Dr. Dodson comen- tou: “A situagdo atual da vizinhanca indica que os moradores perderam a capacidade de atuar coletivamente, sendo jé teriam ha muito tempo pressionado a prefeitura e as instituigSes sociais para que resolvessem alguns dos problemas que afetam as con- Gigdes de vida da comunidade.” Essas duas observagies do Dr. Dodson a respeito do isolamento por ruas ¢ da incompeténcia estio intimamente relacionadas. ‘As vizinhangas présperas no sfo, em resumo, unidades dis- tintas, Formam um continuo fisico, social e econdmico ~ sem divida de tamanho reduzido, mas reduzido no sentido de que o ‘comprimento das fibras que constituem uma corda sio de tama- nho reduzido. "Nos locais em que as ruas possuem estabelecimentos comer~ ciais, vivacidade, usos e atrativos suficientes para cukivar essa ‘continuidade de vida, nés, norte-americanos, mostramo-nos mul- to capazes de autogerir as vias piblicas. E mais comum consta- tar e comentar-se a existéncia dessa capacidade nos distritos de populagio pobre, ou outrora pobre. Mas vizinhangas de rua ca- Suais e boas no que se espera delas so também uma caracteristi- ca das zonas de alta renda que mantém popularidade constante — fem lugar de serem uma moda passageira-, como por exemplo East Side de Manhattan, das ruas 50 até as 80, € 0 distrito da Rittenhouse Square, em Filadélfia. ‘Nao resta divida de que faltam as nossas cidades ruas prepa radas para a vida urbana. Em vez delas, temos extensas dreas ‘A RATUREZA Pe ULIAR DAS CIDADES 133, afligides pela Grande Praga da Monotonia, Nao obstante, int ‘meras ruas desempenham bem suas modestas atrbuigBes am- bém conquistam a confiangs ano ser que ~ ow até que~ sejam lestruidas pelo impacto de problemas muito grandes ou pela fal- ta prolongada de melhorias que s6 possam provir da cidade ‘como um todo, ou ainda por politicas de plangj , planejamento delibera- das, que os moradores nao tenham forgas para enfientan, = E chegamas aqui a0 tercero tipo de bairro que ser autogestiro distito. Nest, pens eu, gevalmente somos menos efetivos, e nosso fracasso é mais desastroso. Temos uma profu- sio de locais chamados distritos, Poucos deles funcionam. AA funcio principal de um distrito bem-sucedido é servir de tmediador entre as vizinhangas que slo indispensiveis mas no Em fore pole, ea cidade como um ode, inerentementepo- Existe muita ignordncia entre os responsiveis pelas ci corn inn to mp po ns simplesmente grandes e complexas demais para que sejam com preendidas em detalhe de qualquer perspectiva~ quer a das alias esferas, quer a de qualquer ser human, Mesmo assim, 0 detalhe 4 fundamental. Os integrantes de um grupo distrital do East Har- lem, antes de um encontro marcado com o prefeito e seus secre- trios, prepararam um documento relatando a devastagio provo- cada no distrito por decisdes de fora (a maioria delas bem-inten- cionada, é claro) e fizeram este comentério: “Devemos salientar que constatamos freqiientemente que ns, que moramos ¢ traba- Ihamos no East Harlem, que temos contato diario com o bairro, ‘0 vemos demaneira bem diferente (...) daqueles que apenas pas. ‘sam por elea caminho do trabalho ou léem a respeito dele nos jor- nais ou, mais ainda, acreditamos, daqueles que tomam decisdes sobre ele em repartigdes no centro da cidade.” Ouvi quase as mes- ‘mas palavras em Boston, Chicago, Cincinnati, St. Louis. E uma aueina que no dina dese reps em todas as nosis grandes __ 0s distritos precisam ajudar a implantar os recursos tipicos da cidade onde eles so mais necessérios para os bairros e devem ‘$BAMORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES, ajudar a traduzir a vivéncia real dos bairros em politicas e metas para a cidade como um todo. E precisam ajudar a preservar uma regio que pode ser utilizada, de maneira civilizada, nio s6 pelos seus moradores como também por outros ususrios ~ trabalhado- res, fregueses, visitantes ~ da cidade inteira. Para executar essas fungSes, um distrito competente precisa possuir tamanho suficiente para ter forga na vida da cidade como tum todo. O bairro “ideal” da teoria urbanistica no se presta a esse papel. Um distrito precisa ser suficientemente grande e for- te para brigar na prefeitura. Nada mais nada menos. Claro que brigar na prefeitura nao é a tinica atribuigao do distrito ou neces sariamente a mais importante. Porém, essa é uma boa definigao de tamanho, no tocante 4 funcionatidade, porque as vezes 0 dis- trito tem de fazer exatamente isso e também porque o distrito que no tiver forga e vontade para brigar na prefeitura ~ ¢ ga- nhar=, quando sua populagao se sentir muito prejudicada, é bem ‘capaz de no possuir forea e vontade para enfrentar outros pro- blemas sérios. ‘Vamos voltar um instante s vizinhangas de rua e pegar 0 fio da meada que deixei solto: a incumbéncia que recai sobre uma vizinhanga efetiva de buscar auxilio quando surge um problema muito grande. ‘Nao ha desamparo maior que o de uma rua sozinha quando 0s problemas ultrapassam suas forgas. Como exemplo, veja 0 que aconteceu num caso de trafico de drogas em uma rua do Upper West Side de Manhattan, em 1955. Essa rua era habitada por moradores que trabalhavam por toda a cidade e tinham co- nhecidos tanto na rua como fora dela, Na prépria rua, levavam ‘uma vida em piblico razoavelmente ativa, que se concentrava junto & porta das casas, mas nio havia comércio no bairro nem figuras piiblicas constantes. Eles também nio tinham relagdes com outras vizinhangas do distrto; na verdade, a regido deles nao era um distrto, a ndo ser no nome. ‘Quando num dos prédios comecou a ser vendida heroina, uma cenxurrada de viciados invadiu a rua— ndo para morar, mas para fazer contatos. Eles precisavam de dinheiro para comprar a dro- ga. Uma das conseqiiéncias foi uma epidemia de assaltos & mao ‘A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 135, armada ¢roubos na ua, As pessoas comegaram a ficar com me- de voltr para casa ds sexts-Firas com o pagamentono bo. so. As vezes, os moradores se aterrorizavam com gritos lanci nantes durante a madrugada. Eles tinham vergonha que seus ami. 0s fossem visité-os. Alguns dos adolescentes da rua e Sidos, euros etavamacinho, ume $ moradores, a maioria dos quais conscienci dos, fizeram o que estavaaseualcance Chamaran sollte rias vezes. Algumas pessoas decidiram que o departantento com. Petente a que deveriam recorrer era a Equipe de Narcdticos, Eles Gontaram aos investigadores onde se vendiaheroins, quem a ven- dia Suan dnere vendida e em que dias provavelmente se fazia 0 pion? aPomtectu nada ~ a do ser qu as coisas ontinuaram a Nao aconiece grande coisa quando uma ruazinha desassistida {ua soznha conta um dos majores problemas de uma cidade Sera que apolicia foi subornada? Como & que se vai saber? to gh iit de uma vizinhanga no distrto falta de conhecimen- ‘de outras pessoas que se ithportassem com o problema desse lugar ¢ pudessem dar mais peso a luta, os moradores foram até conde sabiam ir. Por que eles ndo chamaram nem sequer 0 vere dor do local ou entraram em contato com o diretério politico? Ninguém da rua conhecia essas pessoas (um vereador tem cere de 115 mileleitores), nem conhecia ninguém que as conhecesse. Resumindo, essa rua simplesmente nfo tinha relagio alguma com a vizinhanga do distrito, quanto mais relagdes produtivas com uma vizinhanga efetiva, Os moradores da rua que talvez pu. deem tatar do problema mudarams a perceber que a sida. Gio era desesperadora, A rua mergulhou em verdadeir eats ¢ Nova York teve um comissério de polic ili gente durante esses acontecimentos, masninguém eomeosia ches Gar até ele. Sem uma compreensio real nas ruas e a pressao dos distritos, até ele estaria em certa medida de mios atadas. Por cau sa dessa lacuna, uma grande dose de boa intengio nos altos es. calBes tem poucos resultados ld embaixo, e vice-versa, 136 MORTE € IDA DE GRANDES CIDADES. ‘As vezes a cidade no atua em favor da rua, mas contra ela, e, mais uma vez, se a rua ndo contar com cidadios influentes, ficard totalmente indefesa. Recentemente tivemos esse proble- ma na Rua Hudson. Os engenheiros da regido administrativa de Manhattan decidiram reduzir nossas calgadas em 35 centime- tros. Isso fazia parte de um programa municipal rotineiro ¢ des- cabido de alargamento do leito das ruas para veiculos. ‘Nés, os moradores, fizemos o que pudemos. O grafico parou a impressora, retirou dela um trabalho urgente ¢ imprimiu peti- ges de emergéncia no sdbado de manhd, para que as criangas, ‘que estavam de folga da escola, pudessem ajudar a distribui-las. (Os moradores das vizinhangas apanharam as petig&es ¢ as dist ‘buiram em lugares ainda mais distantes. As duas escolas manti- das pela Igreja Episcopal e pela Igreja Catdlica fizeram com que seus alunos levassem as petigdes para casa. Obtivemos cerca de til assinaturas na nossa rua e nas ruas vizinhas; essas assinatu- ras representavam provavelmente a maioria dos adultos direta: ‘mente atingidos. Muitos comerciantes e moradores escreveram cartas, € um grupo de representantes formou uma delega¢ao para falar com o presidente da regiio administrativa, o funcioné- rio responsivel cleito. Sozinhos, dificilmente teriamos tido qualquer chance. Nés nos insurgimos contra uma politica piblica enraizada de tratamento das ruas e nos opinhamos a uma obra que significaria muito di- nheiro para alguém e cujos tramites ja estavam em estigio bem avangado. Soubemos com antecedéncia do plano de obras por pura sorte. A comunicacio piblica nao havia sido necesséria, por- {que tecnicamentese tratava apenas do recuo do meio-fio. Primeiramente nos disseram que o plano ndo seria alterado; a calgada tinha de ser recuada. Precisivamos de mais forgas para ‘escudar nosso insignificante protesto. Esse apoio veio do nosso distrito, Greenwich Village. Na verdade, uma das principais in- tengdes das nossas petigdes, embora ndo ostensiva, era alardear para todo o distrito que havia surgido uma questo polémica. As rapidas decisdes tomadas pelas orgenizagdes do distrito foram ‘ais valiosas para nés do que a expressio da opinigo da vizinhan- ‘ga. A pessoa que assumiu nossa representagdo, Anthony Dapoli- ANATUREZA PECUUAR DAS CIDADES 137 to, presidente da Associagio de Moradores do Greenwich Villa 8 as pestoas da nossa delegago que mais fizeram peso eram de outs rans que nde a ness; lgumas moravam do out lado as fizeram peso ¢: nitopiblica eos formadores de opinio de td distro, Con a ajuda delas, nés vencemos. “to. Com Sem contar com tal apoio, a maioria das ruas nem c! ta regi ~mesino que seus problemas eran origen nape ura ou em outros inconvenientes da natureza humana. Ninguei gosta oe envolverse com o que no dé resultado, vee \ ajuda que obtivemos impée a algumas pe rua, € claro, aresponsabilidade de auriiar outa ruas os spone causas mais genérieas do distrito quando se fizet nevessiio, Se Aescuidarmos disso, talvez nio tenhamos ajuda da préxima vec, Os distritos que conseguem levar a vivéncia das ruas para os escaldes superiozes as vezes ajudam a transformé-la em dire es municipais. Os exemplos disso si infindiveis, mas este ser- ve como ilustragio: neste momento, o municipio de Nova York est supostamente aprimorando o tratamento dispensado aos viciados em drogas, e simultaneamente a prefeitura est pressio- nando o governo federal a expandir e reformutar sua politica ¢ a aumento empenho em impeiro contrabando de entorpecen- es do exterior esto ea movimentago que sjaram a Bulsionar essa adesndotveram origem num mistriogo “les” primeira iniciativa piblica pela reformulago e expansio do tratamento foi fomentada nio por autoridades, mas por grupos de, sso ae sos como 0 Fast Harlem 0 Greenwich e. A deniincia e a divulgacdo da ve os boltns de detenbes estarem fomados de nonies de views enquanto 0s traficantes operam as claras e impunemente part fam desses grupos de presto, nfo deauordadese menos ainda policia. Esses grupos de pressZo analisaram o problema, 2 exigido mudangas e continuardo a faz8-lo, exatamente porque esti em contatodieto com cass ocrrdos nas russ visi, experiéncia daquela rua solitéria do Upper West Side, por outro lado, : ‘ guiro Iago, nfo tem nads pars ensinar a ninguém ~ a ndo ser {138 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES E tentador achar que s& pode criar um distrito por meio de ‘uma federacio de bairros distintos. Lower ast Side, em Nova ‘um distrito de verdade, ‘York, esta atualmente tentando formar messes moldes, para isso tem recebido altas somas em doacdes Milentrdpicas. O sistema federativ formal parse funcionar mui- to bem com melas com 2s quais praticamen® todos concordam, toes exigir um novo hospital. Mas multas das questdes vitais da coi urbana local sio controvertidas. No Lowe? East Side, por Wamaplo a esiraturaorganizacional federatve do distrito inclui, exer emento, pessoas que tena imped ave WANT ponham sia suas casas etarnbém abrange oS Constr de conjun- tos habitacionais cooperativados ¢ varios out grupos de inte~ ‘atlize seu poder de condenar resse que querem que o governo rem dea como fim de despejar esses mesmo moradores. Tra- dime ide contitos de interesses genuinos~ 228° OS ‘oantigiis- tae pono entre a caga @ 0 cagador AS posse ‘que tentam. mise empenhar seus esForgos, em Vaio, tentando que rei rrecrvgges e cartas de peti¢do sejam aprovadas PYF conselhos Yiretores compostos por seus principals adversities! “Aras as facgoes da renhida disputa por questées locais im- portantes precisam mostrar-se ‘com toda a forga que consegui= Por panir em todo 0 disrito (menos que S50 € initil) para me- pal que cles pretendem alterar ov €97) “Tem de lutar por isso xer com a politica munic vs decisdes que pretendem influenciat aoe gie com as autoridades, no dmbito em que % decisbes so errrFvamente tomadas, porgue ¢ isso que imports Fe que ver= team, Qualquer coisa que leve os ‘competidores a fracionar seu poder ou ditur sua fore recorrendo # ‘mogdes de “tomada de eeisao” envolvendo burocracia e comissocs 9° poder decisé- ficdicia dos cidadaos © fio no governo, destroia vida politica, 2 we utogestfo. Passa a ser um arremedo de ‘autogestio, nao uma autogestao verdadeira. ‘Quando, por exemplo, 9 Greenwich Village brigou para evitar aque seu paque, a Washington Square, see ‘cortado por uma via presen, o maioria era esmagadoramente coer ‘Mas nfo era 2 ri ne os individuos favordvels & via exe posigao de lideranga em pressaestavam pessoas eminentes, com /ANATUREZA PECUUAR DAS CIDADES 138 freas menores ves menores do dst. Naturmente is eta esting a ua namo oe, «gover municipal tenou resmoA oda maori ia se esaziado com esa tiica em verde brevalce. Ns verdad, la via send erin ques dist mas la. Rubinow ajudo it um Comite Conn de Emerge uma Verdadeia organizagao cis que se sobrepinba a ours fomas de “onganizagao, Os ists comptentes fncionam como entidades ara 08 Ciacos ee eam acorda sobre quesides controversie de, vem pinipamene eta de mod calavo no Simba fsa, de con nade conseguer, Os dss no so sas de pncipadsinsgianes que ata erat mente, Quan de funcionam fancioam como uiades dotadss depen eon com amano sien para fazerem ale podere oni lossas cidades tém muitos bai dos co onan irros parecidos com i jens demals pa unelonar como disrton, e entre ees oo 18 38 anos planes impos peo urban ase bem vio bios espontneos. Eas unidades espontineas ¢ diminus surgran a0 long do tempo « ase senpre sie on graves de gaps nos bem deinidos Eas gam me desem. pesham bem eenergiamente a fingdes qu as es en na baron, manem suprenenement ob conte Jeospre. blemas sets ea mazes resutanes. Porm, ss mesmoe pewno bimos tabi se vem desamparas, da mesma forma qu as rus, com relaio aos problemas eas Tnazelas vine des de fora No ose infest pla de aervets Porgue no dispdem de poder pra ota Si poe ian te da more eta impost pelos eedoes hipoweciis por eto scones eden de mprsinos um plone sl eee wesmo quando o distri 4 fig, Se enrarem em conto com os tmoradores de tn bio ‘sao, tan ele cam os viinos no conseguir suds re methorar sus relages. Na verde, oso 2 com aue as elages se detrorem ands ma, frie faz com que aS vas vezes um bro mit peusno i sito fom scents vantages do poder Potter Por ter “MO MORTE EVIDA DE GRANDES CIDADES ‘como morador um cidadio extremamente influente ou uma ins- tituigdo importante. Mas os cidadios de um bairro desses paga- ro pela dadiva “gratuita” de poder no dia em que seus interes~ ses conflitarem com os do Papai Manda-Chuva ou da Mamie Instituigdo, Eles nao t8m poder para derrotar Papai nos Srgios piiblicos, la nas altas esferas onde as decisées so tomadas, ¢ portanto so também impotentes para dizer-the 0 que querem (0U influencid-lv. Os cidadios de bairror que incluem wma uni versidade, por exemplo, se encontram sempre nessa situago sem saida. ‘A possibilidade de um distrito com potencial tomar-se com- petente e capaz de se autogerir democraticamente depende muito de conseguir ou no vencer 0 isolamento de seus pequenos bair~ +05. Trata-se principalmente de um problema politico e social do distrito e dos competidores que ele contém, mas é também um problema fisico. Planejar deliberada e concretamente, segundo a premissa de que bairros superados e menores que um distrito so tum ideal desejavel, significa subverter a autogestio. Motivacdes, sentimeniais ou patemnalistas nao ajudam em nada. Quando 0 iso- lamento fisico ¢ induzido por diferencas sociais gritantes, como ‘ocorre em conjuntos residenciais cujos moradores so rotulados pelo preco, a politica administrativa ¢ tremendamente perniciosa para a aulogestio e 0 autogoverno efetivo nas cidades. Nao é descoberta minha o valor dos distritos urbanos que 0s- tentam um poder real (no qual, porém, as vizinhangas no sejam unidades infinitesimais desconexas). Esse valor tem sido redes- coberto e comprovado empiricamente vezes sem fim. Quase to- das as grandes cidades possuem pelo menos um desses distritos cefetivos. Muitas outras reas lutam esporadicamente para fun- cionar como um distrito em épocas de crise. ‘Nao surpreende que os distritos razoavelmente présperos acu- mulem com o tempo um poder politico consideravel. Vez ou ou- tra conseguem produzir individuos capazes de atuar simultanea~ mente na vizinhanga proxima ¢ no distrito inteiro e também no distrito e no bairro da cidade como um todo. ‘A superago do nosso desastroso fracasso em criar distritos funcionais depende em grande parte de mudangas na adminis- ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 144 tragdo municipal, assunto de que ndo precisamos tratar no mo. mento. Todavia, precisamos, entre outras coisas, erradicar as idias de planejamento convencionais a respeito dos bairros. O bairro “ideal” da teoria do planejamento e do zoneamento, grande demais para possuir a mesma eficiéncia e 0 mesmo sig. nifieado de uma vizinhanga, & ao mesmo tempo pequeno de. ‘mais para funcioaar como um distrito. Nao serve para coisa al- guma, Nio serve nem como ponto de partida. Assim como a Goes na fara medi, ot ma esol ead na bse Seas tinicas formas de bairro que demonstram ter funcionali- dade proveitosa para a autogestio na vida teal soa cidade como uum todo, as ruas e os disiritos, entio o planejamento fisico de bairros eficientesdeve almejar as seguintes melas: Primeira, fomentar ruas vivas e atraentes. Segunda, fazer com que 0 tecido dessas ruas forme uma malo mais sontinsaposivel por do um dstito que possva © tamanho e 0 poder necessario para constitui ie p ania para constituir uma subcidade Terceira, fazer com que fc : . parques, pragas e edificios piblicos integrem esse tecido de ruas; uilzé-los para intensficar e ali nhavar a complexiadee multipicidade de wos dese tesido, les no devem ser usados para isolar usos dife isolar Bie nod ferentes ou isolar ‘Quarta, enfatizar a identidade funcional de areas sufici al de reas suficiente- iene exten par funciona como dts. ° as trés primeiras metas forem atingidas, a . quarta o sera na- turalmente. Veja por qué: poucas pessoas, a menos que vivam de- Druga sobre mips, coneguem ienifiarse com uma abstr Gio chamada distro ou preocupar-se com ela. A maioria identfi- ca-se com um lugar da cidade porque o uliliza e passa a conhecé lo quase intimamente. Nés nos movimentamos por ele com os pés « acabamos dependendo dele. O tinico motivo para as pessoas fa- 2zrem isso € se seatrem ataidas por paeuaridads ds edon- lezas que se mostram ites, interessantes e convenientes, 1142 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES. e Jugar sem atrativos: inguém vai espontaneamente de um log gu opin cnn aa mS diferencas, ndo as cépias, propiciam 3 interagio dee ‘¢, assim, a identificagao das pessoas com uma Sea lor ae da ‘malha de ruas vizinhas. ae fo op nee anto, da unidade funcional. esma ™m “ econ 0 Territorio, planejado ou espontine® ninguém J rora consegue identiicar-se naturalmente com ele 04 ém. cae ie i varsi- oe cats de atividades nascem em distritos vivos ode fieados, do meso mode como surge, em escala menor, em ote tals cenosfavorecem aidentidade do distito seta bem ‘Sontiverem um ponto de referéncia que represent sinbol- mente olugare, em certo sentido, o dstrito, Poem, scenes (go podem assumirsozinhos a responsabilidad pels identideds Ho distrto; € preciso que estabelecimentos comers ‘ cat diversos e paisagens diferentes também despontem por toda vane Em meio a esse tecido, os obstaculos fisicos, com¢ gre rtérias de tréfego, parques muito extensos, conjuntos ins i Sis onais ‘cnormes, sio funcionalmente nuins porque impedem iteracac sos. - in ve abeoltos, qual deve Se 0 aso eu ait i ai ional de tamanho: Dei uma definigio funcional ho: - rene grande para brigar na prefeitura, mas no tao ane ponto de seus bairros no consepitem atria sno et ve fre Em termos absolutos, 0 tamanho dit eae Pim todo. dendo em parte do tamanho da cida . estson Mando ‘North End tinha uma populagao que supe fst rem, qu mots ds poss gue mam 2, Desc ae ete anon vam pst os he 0 er cr 3a ont wasencal 0 conn 7 es ta Udo se mosveva abso a ae ge an toos os tvs pauses para no 13 Luho ss Mean tegaram ‘ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 143 rava 30 mil habitantes, ele tinha forga como distrito. Hoje sua populagio é cerca de metade daquela, em parte devido ao pro- cesso salutar de reduzir 0 nimero de pessoas por moradia com a recuperagio dos cortigos e, em parte, devido ao proceso nada salutar de ter sido implacavelmente seccionado por uma nova via expressa. Embora ainda seja unido, 0 North End perdeu boa parte de seu poder como distrito. Numa cidade como Boston, Pittsburgh ou talvez até mesmo Filadélfia, 30 mil pessoas sao suficientes para constituir um distrito, Em Nova York ou Chica- ‘20, no entanto, um distrito com apenas 30 mil habitantes no significa nada. O distrito mais efetivo de Chicago, o Back-of- the-Yards, abriga cerca de 100 mil pessoas, segundo o diretor do conselho distrital, € sua populagdo tem aumentado, Em Nova York, o Greenwich Village inclui-se entre os menores distritos efetivos, mas é vivel porque consegue compensar o tamanho ‘com outras vantagens. Abriga aproximadamente 80 mil morado- res, além de cerca de 125 mil trabalhadores (talvez um sexto de- les seja de moradores). O East Harlem e o Lower East Side de Nova York, ambos lutando para constituir distrtos efetivos, tém, cada um, 200 mil moradores, ¢ ndo podem abrir mio deles. E claro que outras caracteristicas que ‘© tamanho da populagio tém influéncia no sucesso — principalmente boa co- municagio ¢ estado de espirito favordvel, Mas 0 tamanho da po- pulagio € crucial porque representa votos, ainda que na maioria das vezes sé inditetamente. Existem apenas dois poderes puibli- cos miximos que dio feigio a uma cidade ¢ a administram: vo- tos e controle do dinheiro. Para soar mais simpatico, podemos chami-los de “opiniio publica” e “gastos publicos”, mas conti- huam sendo votos ¢ dinheiro, Um distrito efetivo — e, por meio dele, os bairros que o constituem ~ possui um desses poderes: 0 poder dos votos. Com isso, e $6 isso, ele pode influenciar 0 po- der que sera exercido sobre ele, para o bem ou para o mal, atra- ‘vés do dinheiro piiblico, Robert Moses, cujo talento para realizar coisas consiste prin- cipalmente na compreensio desse fato, transformou em arte 0 controle do dinheiro piblico para ficar acima daqueles em quem 95 eleitores votam e de quem dependem para representa-los em “144 MORTE VIDA DE GRANDES CIDADES, seus interesses geralmente conflitantes. Obviamente essa é, sob ‘outro prisma, a velha e triste historia dos governos democraticos. ‘A arte de contrariar 0 poder dos votos com 0 poder do dinheiro pode ser praticada com a mesma eficiéncia tanto por administra- dores piiblicos honrados como por representantes desonesios com interesses estritamente particulares. De qualquer modo, 0 alicia- mento e a corrupcdo dos eleitos & mais fieil quando 0 eleitorado ‘est fragmentado em nichos de poder ineficientes. Quanto acs distritos maiores, nfo conhego sequer um que tenha mais de 200 mil habitantes ¢ funcione como um distrito. Em todos os casos, a rea geogrifica impde um limite popula ional empirico. Na realidade, o tamanho maximo de um distrito efetivo que surgiu naturalmente parece ficar em tomo de seis, ‘quilémetros quadrados*. Isso talvez ocorra porque uma érea maior € desvantajosa para a necessaria interacdo de usos e a identidade funcional que fundamentam a identidade politica do distrito. ‘Numa cidade muito grande, deve portanto haver alta densidade demografiea para que surjam distritos efetivos; do contririo, 0 poder politico necessario nunca se harmonizaré com uma identi- dade geogrifica vidvel Esse aspecto da area geogrifica nao significa que se possa ‘mapear uma cidade com secdes de cerca de 2,5 quilémetros qua- drados, cada segao definida por fronteiras, e dar vida a distritos. ‘Nio sio as fronteiras que fazem um distrito, mas a interagao de 1usos ¢ a vida. A razio de considerar a dimensio fisica ¢ 05 fimi- tes de um distrito é esta: os elementos, naturais ou criados pelo homem, que constituem barreiras fisicas para a interagio de usos natural, devem estar em algum lugar. E melhor que eles se ‘encontrem nos limites de areas suficientemente extensas para funcionar como distritos do que interrompendo a continuidade de distritos que de outro modo seriam vidveis. A face verdadeira de um distrito esti no que ele é por dentro, na continuidade ena interpenetracio de areas internas que Ihe dio funcionalidade, no 40 Back-ofthe tarde de Chicago ¢ a unica excect 8 regra que conheco & ua exccto que tevez tena mpiagoes pratcas er certs casos, que nfo vErn 20 cto aguas ave erb0 hordadas ma sadante neste wo como um assunto admin sratve ANATUREZA PECUUAR DAS CIDADES 145, no modo como termina ou ma aparéncia que tem numa vista aérea, Na verdade, os limites de varios distritos urbanos bastante atraentes expandem-se naturalmente, a menos que barreiras fisi- cas os impegam, Um distrito demasiadamente delimitado corre © risco de afastar visitantes de outros locais da cidade que tra- riam estimuto financeiro, fo) planejamento de bairros, definidos principalmente de acordo ‘com seu tecido, com a vida ¢ a interagdo de usos que geram, em vez. de definidos por fronteiras formais, obviamente opde-se as concepgdes do planejamento ortodoxo. A diferenca esta em lidar com organismos vivos e complexos, capazes de definir seu pro- prio destino, e lidar com uma comunidade fixa e inerte, meramen- te capaz-apenas de proteger (se tanto) o que Ihe foi outorgado. _ Ao abordar a necessidade de haver distritos, ndo pretendo dar a impressio de que um distrto efetivo seja auto-suficiente eco némica, politica ou socialmente. Claro que nio é nem pode ser, da mesma forma que uma rua. E 08 distritos também nao podem ser cépias uns dos outros; séo extremamente diferentes, e devern ser. Uma cidade no é um conjunto de cidadezinhas repetitivas. Um distrto atraente tem caracteristicas proprias e especialida- des proprias. Atrai pessoas de fora (possui uma pequena varie~ dade econémica realmente urbana, a nio ser em alguns casos), € sua propria populagio sai dele. Nem é necessirio que um distrito seja auto-suficiente, No Back-of-the-Yards, em Chicago, a maioria dos trabalhadores cos- tumava trabathar, até a década de 40, nos matadouros do distrito. Isso influenciou a formagao do distrto, porque sua organizagio resullou da organizagio sindical. Mas esses moradores e seus filhos, quando se emanciparam do trabalho nos matadouros, as~ similaram 0 trabalho e a vida da cidade ‘grande. A maioria traba- tha atualmente fora do distrito, menos os adolescentes, que de- sempenham pequenas tarefas depois do periodo escolar. Essa mudanga nio enfraqueceu o distito; no mesmo periodo, o dist to fortaleceu-se. fator construtivo que atuou ai simultaneamente foi o tem Po. Nas cidades, o tempo substitui a auto-suficigncia. O passar do tempo é indispensivel nas cidades. 146 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES [As inter-relagoes que perinitem 0 funcionamento de um dis- trite somo uma Entidade nBo so nem vagas nem misteiosas- Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas especiicas, ‘raltas delas sem nada em comum a nfo ser o ato de utilzarem ‘0 mesmo espago geogrifico. ‘Os primeiros rlacionamentos que se formam em areas urba- nas, desde que haja uma estabilidade populacional nos bairros, ao os que ocortem na vizinhanga ¢ entre pessoas que (= algu- sae coisa em comum ¢ integram insttuigdes ~ igrejas, APMs, a Tociagoes de negécios, diretrios politicos, ligas civices, comi- tes para angariar recursos para campanhas de sade 08 Outtts Gaubas piblicas, os naturais de tal etal vila (associagdes hoje Co causes ire porto-tiquenhos, como jé foram entre 0s ialianos), mu egbes de propretiios, sociedades de amigos do bairro, grupos conta injustigas e assim por diate, ad infinitum, ’A profusio de organizagdes, na maioria pequents, existente ree tedas as zonas relativamente estaveis de uma cidade ‘deina qualquer pessoa tonta, Goldie Hoflman, uma das ararevas de um departamento de reurbanizagao de Filadélfa, srejaio fazer um levantamento das eventuais organizaybes © ins thuigdes existentes numa pequena rea lgubre da cidade Com see fe 10 mil habitantes, designada para revitalizagao. Para surpresa geral, encontrou dezenove. ‘As organizagdes pequenas € gs erganizagbes com fins especificos erescem nas cidades Comm as Golhas de uma drvore e sfo, 8 sua maneira, uma maniestagao jmpressionante de persistencia e obstinagdo da vido. reenanado, a etapa crucial para a formagao de um distritoefet- vo caztuito além disso, Deve desenvalver-se um conjunto dife- ente de inter-relagBes; Sio as relacdes ativas entre pessoas, 8°" retreats lideres, que ampliam sua vida publica local para além, amvizinhanga ¢ de organizacdes ou instituicdes expecificas € proporcionam relages com pessoas cujas ralzes © vivéncias en- Promamse, por assim dizer, em freguesias inteiramente diferen- cons eidades, esses relacionamentos-ponte sio mais fortuitos do que as ligagBes-ponte andlogas, quase impostas, entre Brapet se ai resses pequenos € distinios de comunidades auto-sufi- oe nes, Talvee por estarmos bem mais avangados na formagio ANATUREZA PECULIAR DAS CIOADES 147 de bairros bem situados do que na forma je ems ido de distrit - ges entre distritos as vezes surgem casualmente tnive pesos de determinado distrito que se encontram num baitro que te um atrativo especifico e levam tal relacionamento para seu dis trito, Muitas relagSes entre dstritos de Nova York, por exempl ttm nie dessa mans. " me necessério um niimero surpreendentemente bai imero xo sos que esabelsa ign em compare eo 3 venues tl ara conolidro iio como una Ended rel Batam cerca de cem pessoas numa populacio mil vezes maior. Mas es- sas pessoas precisam dispor de tempo para se descobrir em umas s tras, para investir em colaboracao proveitosa — ¢ também ar raizes nos diversos bai i pa at 505 bairros menores locais ou de inte Quando minha irma e eu ch : egamos a Nova York, vi ume idadepequen, nos dees comm jogo ue chara, mos de Mensagens, Acho que estivamos com isso tentando, va- games omar pulso no mundo enorme, estonteante, em que enramos ao si nosso eau, O jogo consis sm escolher pessoas insamente acs —cmo um cnador de cab gas ds has Ssloméo eum spt de Roc sland inoise fngic qu um tna de anti uma mensgem a ot bce 2 ;entio, em silencio, cada uma de nés imagi - rot epson aie plo mas possivel, que faia @ mensagem seguir adiante. Ganhava quem conseguisse fe Contente de mensageiros mais curta¢ plasivel O eayador de plausivel. © cagad cates flava com o chee desu tb, qu fave caomen cadre fora compra ol de ooo Gul aay com op al iano quando este aparécesse, que falava com sito que sui de flg para Melbourne ete Do outro lado da. comet, o spate reebi a mensagen dope, que a ree te do prefs ques esr do snidor Ext ae are nador ete. Ndo demorou para terma desses mensageios “doméstcos” para qu yuer pesos n 0s “domésticos” para quase qualquer pes soe ee Ct an das corrents mit longs, at que aS. Roosevelt ei taba em casa, De repente, a Sra. Roosevelt fez com que fosse “148 MORTE € VIDA DE GRANDES CICADES possivel pular vitios elos intermedidrios. Ela conhecia as pes- eoas mais improviveis. O mundo encolheu a olhos vistos. Enco- Theu tanto que acabou com nosso jogo, que ficou muito ripido € sem graca. ‘Os distrtos precisam ter uma pequena cota de senhoras Roose- velts-- pessoas que conhecam outras, bem diferentes, ¢ portanto liminem a necessidade de correntes de comunicagdo longas (que, na realidade, no existiriam), ‘Normalmente os diretores de associagdes comunitarias so © ponto de partida dessa rede de ligagdes do distrito, mas cles so Fe iniciam e tentam encontrar maneiras vidveis de amplié-las; sO~ Zinhos, nio dio conta de tudo. Esses lagos necessitam do au tnento da confianca, da empliagdo de uma cooperacio que possa Ser ao menos. principio, casual e experimental; e necessitam de pessoas que tenham considerivel autoconfianga ou suficiente frau de preocupagio com os problemas piblicos locals que ga- ernlam ua autoconfianga, No East Harlem, onde se esté for- mando de novo um distrito efetivo a despeito das adversidades, apés uma desagregagio terrivel e a mudanea da populagio, cin~ ‘iienta ¢ duias entidades participaram em 1960 de uma reunido a transmitit ao prefeito e a catorze de seus secretirios as rei- Vindicacdes do distrito. Entre as entidades havia APMs, igrejas, jrupos comunitirios e de assistncia social, gas eivicas, sso Eiagdes de locatérios, associagbes comerciais, diretérios politi- os e representantes Tocais do Congresso, da Assembiéia e da ‘Camara Municipal. Cingiienta e oito pessoas foram incumbidas eapecificamente de marcar a reunido e elaborar as dretrizes; ha vie entre elas pessoas com todo tipo de qualificago ¢ ocupagio © origens variadas ~ negros,itaianos, porto-riquenhos ¢ outros Geseonhecidos. Isso demonstra a existéncia de muitas ligagoes no distrito, Foram necessarios varios anos € muita habilidade de tuma meia diizia de pessoas para chegar a uma rede desse porte, ¢ o processo esta $6 comegando a ter sucesso. vAssim que consige firmar-se no distrito, uma rede de ligar {des desse tipo, boa e forte, poderd expandir-se relativamente pido e assumir qualquer outro feitio. As vezes, um indicio de que reco esti acontecendo ¢ o crescimento de um novo tipo de orga [ANATUREZAPECULIAR AS CIDADES 149 niza nizeio que abrana que todo o distro mas tna carter vor, constuidsespecifiamente com fins ad oc’. Po em, para ir dans; rede do distrito precisa atender a tres requisi. tos am onto de par; u spo isco com nimero ‘suficlen. icadas como freqientadores;e temy " nx Pesos au exabelecem as gages, asim come a las que foram eos menores nas russe erganizages de inte. reset esecfico, no lo deforma alguma os ines estatisti- : jente representam pessoas nos nistios ¢ habitacionas. Pessoas-indice so uma Tantei por vérias raze, una das qutis las serem encaradas como sem. bre substituveis. As pessoas de care e060 sio inca inves- tem muitos anos em elacionamentossignfiativos com outras pessoas Gnieas eso, no minimo, nsubsives. Desteits ‘elesionamenos, desti-se sua condigdo de sees soci ver eros as vere porpoucotenpo ste arsempre relacionamentos que levaram 5 i ano: vole fremrompdos repens, pode cre todo tp teen ago nos baios um eso, uns inslbildade tha ipo. enc is que parece que o tempo nunca mais ira recu- . hon Salisbury, numa eérie de artigos no New York Times, bem ese apeto il dos cere capo tem ionamentes urbanos ¢ seu rom- won esto um gueto [ele cits a declaragio de um pastor), de- Cina esubidnds nor aiid rata soca av gee solucionar os problemas: piblicos”” ess ma apes para ludara gee ner Cv coe 6.1 esos tt spaetennecomgm toatns Core ines pens ieneen em out pene. te do ponto em que pararam, mas provavelmente ° re a tes ot ao one sine tata eet rence ‘150 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES. ‘Mas [prossegue Salisbury), quand * i: i ‘determinada area, ele ndo s6 dest Ue descnraiza os moradores. Desfaz igrejas.. aon comers tes, Transfere 0 advogado do bairro para um escritério novo no cen- tro. desfigurairremediavelmente a malha fechada das amizades na comunidade e das relagdes entre grupos. Ele arranca os antigos moradores de seu apartamento deteriora ‘do ou de sua casa modesta e os obriga a encontrar um lugar novo € ddesconhecido. E ele despeja em outro bairro centenas, milhares de rostos n0V08(.... wrogramas de revitalizago, que buscam principalmente presen "edificios ¢ ocasionalmente ajudar algumas pessoas mas espalham o restate dos moradores, ém pratamente oes: mo efeito ~ assim como os empreendimentos concentrados ineiatva privada, que lvram raidamente com a valorizasio rida pela estbilidae de deteminado bnito. Crea de 15 il familias foram retiradas de Yorkville, em Nova York, ent I ¢ 1960, por meio daquele expediente; virtualmente todas sairam ‘ contragosto, No Greenivich Village estd acontecendo a mesma coisa, Sem dvi, € um milagre no que nossas eidadestenbam poucos distites, masque eles Rncionem. Em primero lugar, Felativamente pouco espago urbano hoje em dia adequado ~ fe- Tizmente — para a formagio de distritos com interagao de usos € identidadesaisfadries. Enquano isso, dstrits ineipientes ou ligeiramenteinstves esto sempre sendoseecionados,sublivi+ dios ou convulsionados por politcasurbanas equivocadas. distritos que so suficientemente eficientes para se defender de uma ruptura intencional podem acabar esmagados em meio a uma “corrida do ouro” inesperada, urdida por aqueles que aspi- ‘a um quinhao desses raros tesouros sociais. vam fag hi divida de que um bom bairro é eapaz de absorver no- vos habitantes, tanto moradores por livre escolha quanto imi- trantes que If se instalem por convenincia, e também é capaz de resguardar uma populagdo transitéria consideravel, Mas esses progressos e essas mudangas precisam ser gradativos. Para a at- { togestio de um lugar funcionar, acima de qualquer flutuacio da | Sopulagdo deve aver a permanéneia das pessoas que forjaram a ANATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 151 rede de relages do bairro. Essas redes sio o capital social urba- no insubstituivel. Quando se perde esse cdpital, pelo motivo que for, a renda gerada por ele desaparece e nio volta sendo quando se acumular, lenta e ocasionalmente, um novo capital, Certos analistas da vida urbana, ao notar que os bairros séli- dos sio com freqiiéncia constituidos de grupos étnicos — princi- palmente colénias de italianos, poloneses, judeus ou irlandeses—, sugeriram ser neressiria uma base étnica coesa para que um bair- ro funcione como uma unidade social. Na verdade, isso quer di- er que apenas 0s “meio-americanos” so capazes de promover a.aulogestio nas metrépoles. Para mim, isso é um absurdo. Em primeiro lugar, esses grupos coesos devido a origem étni- ca nem sempre sio to coesos como parecem para quem olha de fora. Citando outra vez 0 Back-of-the-Yards como exemplo, a espinha dorsal de sua populagio é principalmente centro-euro- péia, mas ¢ formada por todo tipo de centro-europeus. O bairro tem, por exemplo, literalmente dizias de igrejas nacionais. A animosidade e a rivalidade tradicionais entre esses grupos foram uma desvantagem grave. Os trés principais setores do Green- wich Village derivam de uma colénia italiana, uma col6nia irlan- desa e da comunidade de patricios seguidores de Henry James. A coesdo éinica pode ter influenciado a formagiio desses setores, mas no ajudou em nada na consolidagio das inter-relagdes dis- tritais ~ trabalho iniciado hé muitos anos pela notivel Mary K. Simkhovich, diretora de associagdo comunitéria. Hoje, muitas das ruas dessas antigas comunidades étnicas jé assimilaram uma fantastica variedade de etnias do mundo inteiro, Também assi- milaram uma enorme profusio de profissionais de classe média e suas familias, que se dio muito bem com a vida das ruas e do distrito, apesar do mito do urbanismo de que tais pessoas preci- sam da protecio de “ilhas de partilha” pseudo-suburbana, Algu- ‘mas das ruas que funcionavam melhor no Lower East Side (an- tes que fossem riscadas do mapa) eram chamadas genericamente de “judias”, mas as pessoas que realmente faziam parte da vizi- hana tinham mais de quarenta origens éinicas diferentes. Um dos bairros mais présperos de Nova York, com uma comunicago interna maravilhosa, é 0 East Side da faixa central de Manhattan, 152 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES, constituido predominantemente por pessoas de alta renda, que absolutamente ndo podem ser qualificadas de outra forma que niio norte-americanas. ‘Em segundo lugar, onde quer que se estabelegam bairros etni- camente coesos © estiveis, cles possuem cutra caracteristica além da identidade étnica: abrigam muitos individuos que se re- ‘cusam a sair de lé, Em minha opinio, mais do que a mera iden- tidade éinica, esse é 0 fator relevante. Normalmente sio neces- sirios muitos anos depois de esses grupos se terem estabelecido para que o tempo aja, € os habitantes constituam um bairro esté- vel e efetivo. ‘Aqui hi um paradoxo aparente: para manter num bairro um nimero suficiente de pessoas que nao saiam de li, a cidade pre- ccisa ter a mesma fluéncia e mobilidade de usos que Reginald Tsaacs, citado neste capitulo, observou ao especular se os bairros poderiam representar algo relevante para as cidades. De tempo em tempo, muitas pessoas trocam de emprego ou de local de trabalho, mudam ou ampliam suas amizades ¢ seus interesses, sua familia muda de tamanho, sua renda aumenta ou ddiminui, ou até muitos de seus gostos se alteram, Resumindo, elas vivern, em vez de simplesmente existirem. Se elas vive em dis- tritos diversificados e no mondtonos ~ particularmente em distri- tos onde muitos detalhes fisicos podem ser constantemente aco- modados —e se gostam do lugar, elas podem lé permanecer a des- peito de mudangas locais ou da natureza de seus outros objetivos interesses. Ao contrario das pessoas que precisam se mudar de tum suburbio de classe média baixa para outro de médiamédia e para outro de média alta a medida que sua renda e suas atividades &c lazer se modificam (ou entio serem vistos como excéntricas), fou de pessoas de uma cidadezinha que precisam se mudar para tuma cidade maior ou para uma metropole em busca de novas opor- tunidades, os moradores urbanos no precisam levantar acampa- mento por tais motivos. (0 conjunto de oportunidades de todo tipo existente nas cida- des e a espontaneidade com que essas oportunidades € opcdes podem ser usadas so um trunfo~ no ume desvantagem ~ para encorajar a estabilidade do bairro. ANATUREZA PECULIAR AS CIDADES 153 Contudo, esse trunfo precisa ser capitalizado. Ele € desperdi- ado nos lugares em que a mesmice prejudica os distritos, ser- vindo, portanto, somente a uma faixa estreita de renda, gostos © circunstincias familiares. Os recursos que o bairro oferece para pessoas-indice imutéveis, sem corpo, sio recursos para a insta- bilidade. As pessoas que se encontram nele e sio dados estati €0s podem permanece as mesmas. Mas nfo a psions que se ensonram ole so pessoas. Tis gars so cteros oa de Na primeira parte deste livro, que termina aqui, enfatizei vantagens ¢ os pontos fortes peculiares as ‘idades ves também suas fraquezas. As cidades, como qualquer outra coisa, 86 tém éxito se tirarem 0 maximo proveito de suas vantagens, ‘Tentei destacar os tipos de lugares das cidades que conseguem fazé-lo ¢ 0 modo como funcionam. Minha idéia, no entanto, nio € que devamos tentar reproduzir, rotineira e superficialmente, as +uas € 05 distritos que demonstram ter forga e éxito como nichos da vida urbana. [sso seria impossivel e poderia parecer um exer- clio de sudosimo aguttnic, Alem do mas at mesmo as Fes Tuas e distrito i melhores ras edstias comport melhor, espeiimente Porém, se compreendermos os prinefpios que fund! « comportamento das cidades, poderemos aprovita-nos de van. tagens e pontos fortes potenciais, em vez de atuarmos contrar mente a eles. Primeiro precisamos definir que resultados genéri- 0s desejamos—o que saberemos ao descobrir como transcorre a vida na cidade, Precisamos estar convencidos, por exemplo, de que queremos ruas e outros espagos pilblicos vivos e bem utili- zados e por que os queremos. Mas, embora esse seja um primei- 10 passo, ele nfo é suficiente. © proximo passo € examinar 0 seat urbano cm outro nivel: o funcionamente econd- ue produz essas ruas e esses distri i Os fteqientadoresdaseiades ns ios Wi Pas 20. PROJETOS DE REVITALIZACAO Uma das idéias inconvenientes por tris dos projetos é a pré- pria nogio de que eles so conjuntos, abstraidos da cidade comum € separados. Pensar em recuperar ou melhorar os projetos como projetos ¢ persistit no mesmo erro, O objetivo deveria ser costu- Tar novamente esse projeto, esse retalho da cidade, na trama urba- na~ e, ao mesmo tempo, fortalecer toda a trama a0 redor. Reintegrar esses projetos a cidade é imprescindivel nao sé para dar vida aos proprios conjuntos perigosos e estagnados. E também imprescindivel para o planejamento urbano amplo de distritos. Caso seja fisicamente recortado por grandes projetos habitacionais ¢ suas zonas de fronteira desertas, em desvanta- ‘gem social e econémica pelo isolamento de coletividades muito equenas, o distrito urbano niio tem condigdes de ser um distrito de verdade, suficientemente coeso e amplo para ter peso. 5 principios fundamentais de revitalizagio do préprio terre- no do conjunto e de suas fronteiras que precisam ser reintegra- das ao distrito sio os mesmos que os principios do auxilio a qual- quer area urbana de baixa vitalidade. Os planejadores urbanos precisam diagnosticar que condigées capazes de gerar diversida- de estio faltando ~ se a caréncia é de usos principais combina- dos, se as quadras so muito amplas, se existe uma mistura pre- ‘ciria de idades e tipos de edificios, se a concentracio de pessoas & suficiente. Entdo, a condigao que estiver faltando deve ser su- «438 MMOKIE E VIDA DE GRANDES CIDADES ‘prida ~ em geral gradualmente e no momento oportuno — da me- Ihor maneira possivel. ‘No caso dos conjuntos habitacionais, os problemas fundamen- tais podem ser muito parecidos com 0s que se apresentam nas areas apagadas ¢ desvitalizadas e em antigos subirbios absorvi- dos. No caso de projetos nao-residenciais, como centros cultu- rais ¢ administrativos, os problemas fundamentais podem ser muito parecidos com os que se apresentam nas areas decaden- tes dos centros urbanos nas quais ocorreu a autodestruigio da diversidade. Contudo, pelo fato de os grandes projetos e seus limites apre~ sentarem obstaculos diferenciados a0 preenchimento das condi- des para gerar diversidade (e As vezes, também, obstaculos espe- Ciais a0 processo de recuperagao de cortigos), a revitalizagio de- les requer téticas diferenciadas. ‘Atualmente, os projetos que precisam ser revitalizados com mais urgéncia so 0s conjuntos habitacionais de baixa renda. ‘Seus insucessos tém efeitos dristicos sobre a vida de muitas pes~ 085, principalmente criangas. Além do mais, por serem por si ‘868 muito perigosos, degradantes e instaveis, em varios casos € ‘muito dificil manter um nivel de civilidade tolerivel nas redon- dezas. Foram feitos investimentos enormes em conjuntos habita- cionais financiados pelos governos federal e estadual; esses gas- tos, além de mal planejados, so vultosos demais para serem amortizados, mesmo rium pais rico como o nosso. Para fazer jus 0s investimentos, os empreendimentos precisam vir a represen taras vantagens imaginadas para a vida social e para as cidades'. 1 Acacia de meipncd corn reac din aio {vols panos ee para ss copa ma cure Fanaa No nao, me tuo te mero dots i es and, uti, or eempa,tem Um peje ce barn charac fate esl om ecuiss ee ae 1886 Sate Pace tomas rprderent ae {Tastonn ft um obteca oo desenchimenta dates pray ar pales oer {a eparamen deta, Slo: um novo proj pares com oats Pace ‘evs em oe da clade» or moraores do Dante Pace soo vaste pao far capaci de nc qs bane Pace usa se ecuperago =o aut ae ee Togo Eur des convertdorut pote deena media Ese proces de cog eos eolando- Sid ents em nero Se 1959 pt secret de Hoagie do Esto de Nov Yk fm wn rancoqve Pode mo bem ser ur del para outasevtondaesdahabtacb™ TATICAS DIFERENTES 439 Esses projetos precisam ser recuperados como se faria com ‘qualquer cortico. Isso significa, entre outras coisas, que eles pre- cisam fazer com que seus moradores neles permanegam pot li- vre escolha, Isso quer dizer que eles devem ser seguros ¢ tam- bém vidveis para a vida urbana. Precisam, entre outras coisas, de personagens piiblicas informais, espagos piblicos vivos, bem vigiados e usados com constincia, acompanhamento fécil e na- tural das criangas ¢ inter-relagdo de usos com as pessoas de fora. Em resumo, na sua reintegracdo & estrutura urbana, esses proje- tos precisam adquirir as virtudes de uma estrutura urbana sadia, ‘A maneira mais facil de se aproximar mentalmente desse pro- blema ¢ imaginar, em primeiro lugar, que o nivel do piso do pro- jeto, junto das ruas que o circundam, tem um pavimento pratica- ‘mente desobstruido e vazio, Acima dele pairam os prédios de apartamentos, ligados ao solo soment: pelas escadas e pelas pi- lastras dos elevadores. Todo tipo de coisa pode ser feito nesse pavimento praticamente desobstruido, Sem diivida, esse pavimento hipoteticamente desobstruido nem sempre seré to desobstruido assim na realidade. Podem existir outros elementos fixos, além de elevadores e escadas, 20 nivel do piso. Alguns projetos mantém no andar térreo escolas ou associagdes comunitirias ou igrejas. De ver em quando ha grandes arvores, que devem ser conservadas se possivel, e muito ocasionalmente ha espacos abertos, cuja funcionalidade e singu- laridade justificam sua preservagao, O andar térreo dos projetos mais novos — especialmente a maio- ria daqueles consiruidos a partir de 1950 ~ costuma formar um pavimento a0 nivel do piso, que & nesse aspecto, muito mais de~ sobstruido que o dos projetos mais antigos. Isso se deve ao fato de ue, com 0 passar do tempo, os empreeadimentos habitacionais se transformaram cada vez mais na rotina de fincar arranha-céus cada vez mais altos, em ambientes cada vez mais inexpressivos.. Devem ser projetadas novas ruas nesse pavimento térreo: ruas verdadeiras, que precisam ganhar construgées e novos usos, € no “passeios piiblicos” atravessando “‘parques” vazios. Essas ruas devem formar quadras pequenas. Sem diivida, é preciso con- tar com pequenos parques piblicos e areas de esporte e lazer, {440 MORTEE VIOA DE GRANDES CIDADES ‘mas s6 em niimero e em locais onde novas ruas movimentadas ¢ seus usos possam garantir seguranca ¢ assegurar a atratividade. A localizagdo dessas novas ruas seri influenciada por duas consideragées fisicas principais: primeiro, devem ligar-se a ruas além dos limites do projeto, ja que a meta fundamental é integrar esse local ao que esta & sua volta. (Uma parte importante do pro- blema sera replanejar e adicionar usos as proprias ruas laterais a0 projeto.) Segundo, as novas ruas devem também ligat-se aos poucos elementos fixos dentro do terreno do projeto. Os prédios de apartamentos, que estamos imaginando como suspensos so- bre pilotis, ligados ao chio somente por elevadores e escadas, podem tornar-se prédios de rua, com o andar térreo reprojetado @ incorporado aos usos da rua; ou, se a Tua no os “tocar”, os pontos de acesso podem ser caminhos ou acessos curtos que ve- nham das ruas por entre os novos prédios. As torres existentes agora se elevardo aqui e ali acima das novas ruas, dos novos edi- ficios, da nova cidade que se estendera abaixo delas. Claro, muito provavelmente ser impossivel projetar ruas ‘que se integrem A cidade, aos elementos fixos ¢ imutiveis do lo- cal e sejam a0 mesmo tempo retas, com tracado formando uma malha regular dentro do terreno. Como no caso das novas ruas abertas em quadras muito longas, elas deverio ter curvas, coto- velos ¢ intersegdes em T. Tanto melhor, como sustentei no capi- tulo anterior. Quais so os tipos possiveis de usos para as novas ruas ¢ ‘ios? (O propésito geral deve ser introduzir usos que ndo o residen- cial, porque a falta de usos combinados suficientes ¢ exatamente ‘uma das causas da monotonia, do perigo e da falta de comodida- de, Esses usos diferentes podem ocupar por inteiro os novos edi- ficios de rua, ou somente o andar térreo ou o subsolo dos pré- dios, Praticamente qualquer tipo de uso de trabalho seria impor- tante; ¢ também usos noturnos ¢ comerciais em geral, particular- ‘mente se atrairem boa interacdo de usos de fora dos antigos limi- tes do conjunto. E mais fécil falar em gerar diversidade do que té-la de fato, porque os edificios de uma rua nova em érea projetada tém a edi TATICAS DIFERENTES 441 séria desvantagem econémica de serem todos construgdes prati- camente recentes, em vez de serem de idades diferentes. E uma desvantagem consideravel; nao existe uma maneira correta de superi-la ~ é uma das vantagens que herdamos junto com esses onjuntos, No entanto, hi varias maneiras de minimizar essa situagio, Um deles, talvez o mais promissor, é langar mao de carrinhos ambulantes, que prescindem de edificios. So, em parte, um substituto dos antigos estabelecimentos comerciais de despesas fixas baixas. Podem-se elaborar projetos cheios de vida, atraentes e inte- ressantes para os carrinhos ambulantes de rua, jé que as bancas de pechinchas estimulam bastante a interagdo de usos. Além do mais, podem ter étima aparéncia, Um arquiteto de Filadélfia, Robert Geddes, projetou uma interessante area de vendedores ambulantes para uma proposta de renovago comercial de uma rua da cidade. No problema apresentado a Geddes, a area de vendedores ambulantes devia ser instalada numa esplanada de feiras livres, do lado da rua oposto a um edificio piiblico; de seu lado da rua, a esplanada era fechada dos dois lados pelas laterais de uma loja e de prédios de apartamentos, mas nada a fechava nos fundos (ela penetrava s6 até a metade da quadra e limitava- sse com um estacionamento). Geddes projetou como fundo um galpao atracnte, mas de pequenas proporgdes, para guardar os ‘carrinhos fora do horario comercial. Um abrigo de rua para guardar carrinhos poderia ser usado ‘em trechos das ruas dos grandes projetos, numa solugio to boa ‘quanto no desenho da praca. As vendas de rua seriam excelentes pontos de atragdo visual sse colocadas nas intersegdes em T e nas curvas das ruas. Vocés devem lembrar que o que se coloque num ponto de atragao visual dda rua tem uma relagio muito grande com 0 aspecto geral de toda a paisagem. Um dos problemas visuais dificeis na recuperagio de projetos é fazé-los transmitir vitalidade e urbanidade convincen- tes; é dificil apagar a rigidez e a monotonia visual que eles tém. ‘Outro modo de vencer parcialmente a desvantagem do gran- de nimero de construgdes novas seria utilizar 0 recurso das {442 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES moradias de renda garantida. Esses edificios poderiam ser plan- tados em ruas planejadas da mesma maneira que em qualquer rua da cidade, conforme descrito no Capitulo 17. Contudo, ha- veria a possibilidade de projeté-los como casas geminadas ou ‘como sobrados duplos (um sobrado sobre o outro, somando qua- tro andares). Assim como se mostrou possivel converter antigas casas de pedra geminadas em varios tipos diferentes de usos urbanos e combinagées de usos, em geral um ou dois edificios convertidos de uma vez ou até um ou dois andares de uma vez, aqueles edificios pequenos, muito parecidos com estes, pode- rinm ter essa facilidade de adaptagao. Eles representariam, em principio, um estoque de conversao de usos. ‘Outra possibilidade ainda foi imaginada por Perkins & Will, firma de arquitetos de Chicago e White Plains, que, num servigo de utilidade piblica, criaram para o Nacleo Comunitério Union, de Nova York, uma série de idéias para projetos de conjuntos habitacionais, Entre as propostas da Perkins & Will havia aparta- mentos de quatro andares sobre pilotis, para formar um ‘‘pordo” aberto, com o pavimento do pordo tanto ao nivel do piso quanto a 1,5 metro abaixo dele; outra proposta visava possibilitar a cons- trugdo de estruturas baratas para comércio e outros usos. Os po- res abaixo do nivel do piso fariam com que os apartamentos ficassem apenas meio andar acima do solo, em vez de um andar inteiro; essa solugio, além de econémica, proporcionaria uma ‘boa variagdo na rua, ja que as lojas ou oficinas instaladas em po- res e aleangadas por uma escada de poucos degraus costumam ser atraentes e muito populares. Outra possibilidade ainda ¢ construir alguns edificios de rua baratos e temporirios (o que nio significa necessariamente que precisem ser feios), com a intengdo de manter baixas as despesas fixas numa fase econdmica mais dificil e facilitar sua substitui- ‘¢i0 no futuro, quando a melhora econémica permitir. No entan- fo, esse método nio é to promissor quanto 0s outros, porque as edificagdes feitas para durar cinco ou dez anos precisam ser muito bem construidas para durar muito mais. E dificil atribuir a ‘uma obsolescéncia programada para fazer uma eco- nomia aceitivel. ‘TATICAS DIFERENTES 443, Todos 0s conjuntos habitacionais com prédios altos tém uma desvantagem particular na vigilincia des criangas e, mesmo depois de um trabalho de recuperagio, serd impossivel supervi- jonar as criangas de um edificio alto, da mesma maneira que so supervisionadas, de janelas de apartamentos ou de casas, as criangas que brincam em calgadas comuns. Esse é um dos moti- ‘vos por que é tio imperativo ter adultos circulando pelos espagos piblicos ¢ bem distribuidos em todos os horrios, ter pequenos co- merciantes tipicamente propensos a manter a lei e a ordem piibli- ca, e contar também com outras figuras e ruas bastante ativas e in- teressantes, de modo que se possa tomar conta das criancas pelo ‘menos dos trés ou quatro primeiros andares dos edificios, nos quais essa fungao fica mais facil. ‘Uma das ilusdes no planejamento de projetos de porte tem sido a idéia de que eles podem fugir ao funcionamento geral da economia urbana. Sem diivida, 20 fazer uso de subsidios e do poder da desapropriacdo, é possivel fugir & necessidade finan- ceira de uma boa conjuntura econémica para o comércio urbano € outros usos. Todavia, uma coisa ¢ contornar um problema fi- nanceiro, e outra é fugir 4 atuagio econdmica bsica. E claro que 05 locais dos conjuntos habitacionais dependem da intensidade de uso tanto quanto outra parte da geografia urbana, e para obté- Ja eles precisam ter um bom ambiente econémico. O fato de essa conjuntura econdmica ser mais ou menos boa depende em parte de novas solugdes ¢ novas combinagdes de usos no antigo terre no do conjunto habitacional e também da recuperagio gradativa de corticos e da autodiversificagao de sua populagao. No entan- to, depende ainda da capacidade das éreas vizinhas de gerar di- versidade ¢ usos combinados, Caso a area como um todo, junto com seus antigos conjuntos habitacionais, se tome viva, desenvolva-se e recupere seus corti- G05, 05 usos nio-residenciais dos antigos terrenos dos conjuntos habitacionais devem dar um bom retorno. Contudo, um lugar des- ses costuma ter em principio tantas deficiéncias ¢ tantas carén- cias por suprir, que sera necessirio empregar uma quantia consi- deravel de dinheiro puiblico na recuperagao — dinheiro para repla- nejar e reprojetar o local, o que exigiré tempo e enorme criativi- {484 MORTEE VIDA DE GRANDES CIDADES dade, porque dessa vez ele no poderd ser construido de acordo com um padrao ¢ por pessoas que nao saibam 0 que e por que esto fazendo; sera preciso dinheiro para a construcdo de ruas e outros espagos piblicos; e, provaveimente, dinheiro para subven- cionar a construgao de pelo menos alguns prédios novos. Se a propriedade das moradias existentes continuar ou no sendo dos drgos de habitaco, as novas ruas e os novos usos, af incluidas as novas habitages misturadas a eles, no poderio per- tencer a esses drgios nem ser de sua responsabilidade, pois isso os colocaria numa concorréncia politicamente impraticavel (e descabida) com os proprietarios particulares de edificios. E tam- bbém nao se deveria atribuir aos érgios habitacionais a responsa- bilidade de reintegrar seus antigos dominios a cidade livre, por- que eles nao esto de maneira alguma preparados para assumi- Ja, Essa terra foi encampada pelas autoridades publicas por meio de uma prerrogativa governamental, Pode entio ser retomada por meio de uma prerrogativa governamental, replanejada, e os lotes para construgiio, vendidos ou arrendados com contratos de longo prazo. Partes do terreno, é claro, deveriam ficar sob a ju- risdi¢do dos departamentos municipais competentes, como 0 De- partamento de Parques ou o Departamento de Vias Publicas. Fora as melhorias fisicas e econémicas ao nivel do solo, como essas que mencionei, a recuperagao dos conjuntos habitacionais requer outras mudangas. (Os corredores dos edificios de baixa renda, que geralmente tém muitos andares, so como os corredores que aparecem em pesadelos: pessimamente iluminados, estreitos, malcheirosos, egos. Parecem arapucas, ¢ so, como também os elevadores que levam a eles. E a essas arapucas que as pessoas se referer ao di- zer, vezes sem fim: “Para onde podemos ir? Nao para outro con- junto! Tenho criancas. Teno fihas pequenas.” ‘Tem-se escrito muito sobre o fato de as criangas urinarem nos elevadores dos conjuntos habitacionais. Sem divida é um problema, no s6 por cheirar mal como por corroer 0 equipa- ‘mento, Mas talvez esse seja o mau uso mais indcuo dos elevado- res sem ascensorista dos conjuntos habitacionais. Mais grave ¢ 0 ‘medo que as pessoas sentem neles, ¢ com razio. TATICAS DIFERENTES 445, A tinica solugdo que consigo imaginar para esse problema, € para o problema correlato dos corredores, é colocar ascenso- Tistas, Nada além disso — nem guardas, nem porteiros, nem a “educagio dos moradores” — pode dar a esses edificios um ni- vel tolervel de seguranca ou uma seguranga tolervel para as Pessoas contra os vandalos tanto de fora como de dentro do conjunto. Isso também exige dinheiro, mas pouco em comparago com os vultosos investimentos que precisam ser recuperados ~ nada menos de 40 milhdes de délares num tinico conjunto habitacio- nal. Eu disse 40 milhdes de délares porque foi esse 0 investi- mento piiblico nas Frederick Douglass Houses, urn novo projeto no Upper West Side de Manhattan, onde ocorreu, junto com to- dos os pavores corriqueiros, um crime no elevador tio espanto- ssamente selvagem que até virou noticia de jornal. Em Caracas, Venezuela, onde o ditador deposto deixou um legado enorme de conjuntos habitacionais similares com perigos similares, parece estar funcionando uma experiéncia de aumento dda seguranca em elevadores e corredores. As moradoras que po- dem trabalhar meio periodo ou periodo integral sio contratadas ‘como ascensoristas de 6 horas da manha 4 1 hora da manha, quando os elevadores so destigados. Carl Feiss, consultor de planejamento urbano norte-americano, que fez varios trabalhos nna Venezuela, contou-me que os condominios se tornaram mais Seguros, ¢ que 0 relacionamento entre as pessoas também melho- rou consideravelmente, porque as ascensoristas passaram a subs- tituir as figuras piblicas. ‘Também nos nossos conjuntos habitacionais poderia dar cer- to as moradoras trabalharem como ascensoristas durante o di ‘quando os principais delitos nos elevadores so extorsao ¢ assé- dio sexual de criangas menores por criangas de mais idade. Acho ‘que no periodo notumo, quando os ataques, roubos e assaltos fei- tos por adultos so um perigo bem maior, os ascensoristas deve- riam ser homens. Duvido que a suspensio do servigo noturno funcionasse conosco - primeiro, porque muitos moradores des- ses conjuntos habitacionais trabalham de noite e, segundo, por- ‘que muitas normas arbitrérias, diferentes das que valem para ou- 2-446 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES tras pessoas, ja fizeram dos conjuntos um caso & parte e alimen- ‘tam 0 ressenlimento e o rancor dos moradores*. Para a recuperacdo dos conjuntos habitacionais ¢ preciso que eles sejam capazes de segurar as pessoas por sua livre escolha, quan- cdo elas tém condicdes de escolher (0 que quer dizer que eles preci sam criar apego pelo lugar antes de adquirir poder de escolha), e ‘para isso é necessario executar as modalidades de recuperagio in- terna ¢ externa sugeridas anteriormente. Além disso, no entanto, & ‘preciso que seja permitido que as pessoas fiquem ror livre escolha, © que significa eliminar o limite de renda maxima. Nao basta au- mentaro limite; a dependéncia entre residéncia¢ faixa de renda deve ser totalmente extinla. Se for mantida, ndo s6 os mais bem-sucedi- dos ou afortunados serdo inexoravelmente despejados, como tam- bbém todos os outros se vero psicologicamente como transitérios ou “fracassados” em relagdo a seu lar. Os aluguéis deveriam subir de acordo com o aumento da ren- da, até 0 ponto em que o aluguel proporcional irtegral fosse pa- g0, como no proposto sistema de renda garantica, ja explicado, O montante do aluguel proporcional deveria incluir a amortiza- io rateada e o dispéndio com juros da divida, para reinserir 0 custo investido no cémputo do aluguel. ‘Nenhuma das sugestdes que fiz podera isoladamente recupe- rar efetivamente tudo, Todas as trés — local reformado e reinte- grado A cidade; seguranga dentro dos edificios; extingo do limi- te de renda maxima - so imprescindiveis. Sem divvida, podem- se esperar resultados positives mais répidos nos conjuntos habi- tacionais em que a desmoralizagio ¢ © proceso de degradagio tipico dos cortigos permanentes causaram danos pequenos. 2. Hoje em da, poucas pessoas moram em conjntos de baa rend pore escola; mais precsamente eas foram exulsas do bao anterr para da espace rerovagio urban" ou 2 vias express e, prncpaimenteseeram pessoas nerase, portato, ujetas 9 dsciinagao Fesiencia, nao ham outa escola Etre as pessoas despejades, 30 cerca de 20 por cent {emfladlta, chicago e Nova York, cos indies foram dvulgados) vio para habitagbespubl- ‘as. Das que do io, hd mutas que se enquadtariam, mas preferemrdo fax na tentative {Ge achar outa saa, Ao descreve a fertenha cbstinagao dos que tema srte dete uta op ‘lo, uma autoridade do setor de habtacdo de Nova York citou 0 casode 16 familias despeia- as que se enquasravam nas exis para apartamentos de res domi, os qua esta- vom 3 sus dipoegto num programs habitaconal pubic, “Elag havi recebico cata Se ‘espe, mas nentuma quai para uma morada publi” TATICAS DIFERENTES 447 s conjuntos habitacionais de renda média nio exigem uma recuperagao tdo urgente quanto os de baixa renda, mas em certos aspectos so mais desconcertantes. Ao contririo dos moradores de conjuntos de baixa renda, aqueles dos conjuntos de renda média parecem preferir isolar- se em grupos bem separados de outras pessoas. Minha impres- sio, que reconheco ser duvidosa, é que os conjuntos habitacio- nais de renda média, a medida que envelhecem, tendem a abri- gar uma quantidade significativa (ou pelo menos bem evidente) de pessoas que receiam o contato fora de sua classe. Nao sei dizer se essas tendéncias sio proprias das pessoas que escolhe- ram viver em conjunto segregados e burocriticos ou até que ponto esse sentimento é cultivado ou criado pela vida em Terri- térios. Conhecidos que moram em varios conjuntos de renda média me contaram que observaram aumento na hostilidade de seus vizinhos em relagio a cidade, fora dos muros do conjunto, depois de incidentes desagradaveis nos elevadores eno terreno = incidentes que invariavelmente sio atribuidos a pessoas de fora, com ou sem evidéncias. A disseminagio ¢ o fortalecimen- to da psicologia do Territério em fungao de perigos verdadei- 0s — ou a concentragio de uma quantidade apreciavel de pes~ 508s jé atacadas de xenofobia, seja qual for ~ sio um problema sério para as cidades, As pessoas que vivem dentro dos limites dos conjuntos ¢ se sentem alheias e profundamente inseguras em relagio a cidade do lado de fora no poderdo ajudar muito na eliminagdo das zonas de fronteira desertas nos distritos, ou mesmo permitir um replaneja- mento que vise a reintegragaio delas ao tecido do distrto. Talvez os distritos que contém condominios com uma xeno- fobia tdo acirrada devam simplesmente continuar a desenvolver- se como distritos da melhor forma possivel, a despeito dessa desvantagem. Se, entretanto, as ruas externas a esses conjuntos habitacionais passarem a gerar mais seguranca, diversidade e vi- talidade e obtiverem uma estabilidade maior da populacio, e se, a0 mesmo tempo, dentro dos limites do conjunto habitacional, 0s perigos resultantes do vazio forem atenuados de modo aceiti- vel para os moradores e para as companhias de seguros, sindica- "448 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES ‘108, cooperativas ¢ empresirios donos desses lugares, talvez com © tempo seja possivel reintegri-los & vida da cidade. Certamente a esperanga de que isso acontega diminui a medida que também © distrito em torno desses conjuntos habitacionais é convertido cada vez mais em conjuntos estereotipados e perigosos. Com os empreendimentos no-residenciais, como centros cul- turais e centros administrativos municipais, provavelmente s6 em alguns casos podem ser aplicadas as téticas de replanejamento da rea ocupada para reintegré-los a estrutura urbana. O caso ‘ais promissor & 0 dos conjuntos localizados nos limites dos cen- tros urbanos, que tém apenas os obstaculos e as zonas de frontei- ra desertas resultantes de sua presenga entre eles e 0 potencial de usos intensos suplementares. Pelo menos um dos lados do novo ‘centro administrativo de Pittsburgh poderia ser reintegrado ao cen- tro urbano, do qual se encontra atualmente isolado. Algumas partes do centro administrativo de Sao Francisco poderiam ser reintegradas a cidade como acréscimo de ruas e de novos usos. ‘A principal dificuldade com relagdo aos centros administrati- vvos, prineipalmente aqueles que tém auditérios ¢ salas de reu- nies e provocam grande concentragio de pessoas por certo in- tervalo de tempo, & encontrar outros usos principais que sejam minimamente proporcionais as grandes concentracdes de pes- ‘s0as que esses centros proporcionam em outros horarios do di Aida seria preciso haver espaco, em algum lugar, para a vari dade e a diversificagio que esses usos intensos combinados con- seguem comportar; e sem diivida existe ainda o problema da fal- ta de prédios mais antigos para que a diversidade de usos deriva- da seja bem variada, Em sintese, o problema é que muitos ele- ‘mentos dos centros administrativos e culturais s6 fazem sentido ‘como elementos de uso intenso do centro urbano e, jé que foram isolados, a tentativa de fazer com que eles tenham essa serventia significa fazer a montanha ira Maomé. ‘A maneira mais pritica de lidar com a reintegragdo na mai ria dos casos, penso eu, é concentrar-se, de tempos em tempos, no desmembramento desses conjuntos. O desmembramento pode ser feito no momento oportuno e conveniente. Em Filadélfia, por ‘TATICAS DIFERENTES 449 exemplo, ocorreu uma oportunidade dessas na época em que a estagio central da Rua Broad ¢ os trilhos da Ferrovia da Pensil- vania foram removidos e projetado em seu lugar o Penn Center, empreendimento de escritérios, transportes e hotel. A Biblioteca Livre de Filadélfia, incrustada no bulevar de um centro cultural, onde seu uso é assustadoramente baixo, estava naquela época precisando de uma grande revitalizagio. Os funcionarios esfor- ssaram-se durante muito tempo para convencer a pre! que, em vez de reformar o velho edificio, seria melhor tirar a bi- blioteca do centro cultural e transferi-la para 0 centro urbano, in- tegrando-a ao projeto do Penn Center. Aparentemente nenhuma autoridade competente do governo municipal percebeu que jus- tamente esse tipo de reinsergao de instalagdes culturais basicas rno centro da cidade era necessario— tanto para o centro da cida- dde quanto para a vitalidade das préprias instalagdes culturais. Se os componentes das ilhas culturais ¢ administrativas fo- rem desmembrados e deixarem a ilha, um por um, quando opor- tuno, podem-se colocar em seu lugar usos inteiramente variados— de preferéncia que ndo apenas sejam diferentes, mas cujas dife- rengas complementem o que permanecer no projeto. Filadélfia, enquanto persiste no velho erro da biblioteca, pelo ‘menos se livrou de cometer outro erro ~ porque dessa vez a cida- de tinha experiéncia com um centro cultural para ndo se deixar ‘encantar com a suposta forga revitalizadora de um lugar desses. ‘Quando a Academia de Misica, que fica no centro, precisou de ‘reforma ha poucos anos, quase ninguém levou a sério a idéia de que ela deveria ser transplantada para a ilha cultural. Foi manti- da no lugar dela, o centro da cidade. Baltimore, depois de flertar durante anos com um ¢ outro plano de um complexe cultural administrativo separado e isolado, decidiu construi-lo no centro da cidade, onde essas instalagdes tém mais valor tanto por seus sos principais quanto como ponto de referéncia. Esta é, obviamente, a melhor maneira de revitalizar qualquer tipo ce projeto isolado, antes de ele ser efetivamente construido: refletir melhor sobre ele. 21, UNIDADES TERRITORIAIS DE GESTAO E PLANEJAMENTO ‘Uma audiéncia piblica numa cidade grande costuma ser um evento interessante, ao mesmo tempo animador e desanimador. Conhego melhor as audiéncias da prefeitura de Nova York, em quintas-feiras alternadas, sobre medidas que exigem a decisfio do Principal érgdo de governo do municipio, o Conselho de Orga- mento. Os assuntos aparecem na pauita do dia da audiéncia por pressio, influéncia e manobra de alguém de dentro ou de fora do governo, 0s cidadios que quiserem se manifestar dirigem-se ao pre- feito, aos cinco diretores das regides administrativas, a0 secretd~ rio de Finangas e ao presidente da Camara Municipal, sentados atris de uma bancada semicircular elevada numa das pontas de uma sala ampla e bonita, cheia de bancos brancos com encosto alto para 0 piblico. Os funcionérios piblicos, eleitos ou indica- dos, também se sentam nesses bancos, para atacar ou defender assuntos controversos. As vezes, as sessdes so tranqililas e ré- pidas, mas geralmente sio tumultuadas e tomam nao s6 0 dia, como entram noite adentro. Segmentos inteiros da sociedade, problemas de bairros e mais bairros, distritos e mais distritos, desfiles de personalidades de vulto, tudo isso ganha vida na sala. Os membros do Conselho ouvem, aparteiam e as vezes baixam decretos na hora, como dirigentes presidindo o tribunal de um feudo na época medieval. 452 MORTE E VIDADE GRANDES CIDADES Fiquei viciada nas sessies do Conselho de Orcamento no pa- ‘pel de participante ferrenha e constante desse tipo de audiéncia, ‘¢ niio consigo deixar de me envolver quando se apresentam 05 problemas de um distrito ou se defende a causa de um bairro. Em certo sentido, é tudo muito exasperante, Varios dos proble- mas no deveriam nem existir. Bastaria que funcionarios bem- intencionados das secretarias municipais ou de departamentos competentes conhecessem na intimidade as ruas ou os distritos — e se importassem com eles ~ to afetados por seus planos, ou que soubessem um minimo daquilo que os moradores desses lugares consideram importante em sua vida e por qué. Algumas das divergéncias nunca teriam ocorrido se os planejadores e ou- tros pretensos especialistas entendessem infimamente o funcio- namento da cidade ¢ o levassem em consideracao. Outras ques- tes, ¢ evidente, envolvem favoritismo, acordos e medidas admi- nistrativas arbitrarias que enfurecem os eleitores, mas nio se consegue atribuir sua responsabilidade a ninguém nem desfazé- los, Ha também muitos casos (ndo todos) em que sio logradas centenas de pessoas que perderam o salario do dia, ou deixaram 08 filhos com alguém, ou trouxeram os filhos junto e ficam sen- tadas horas a fio com os pequenos irrequietos no colo; tudo jé havia sido decidido antes que elas fossem ouvidas'. Ainda mais desanimador que tudo isso é as pessoas logo per- ceberem que ha problemas que fogem totalmente ao controle. ‘Seus desdobramentos so muito complexos; tipos muito diferen- tes de problemas, caréncias e servigos se emaranham em deter~ minado lugar — problemas demais para compreender, quanto mais remediar ou abordar quando os impérios administrativos do governo municipal, descoordenados, 0s atacam unilateral- mente ¢ de longe, um de cada vez. Outra vez so 0s cegos apal- pando o elefante. A impoténcia e sua companheira, a ineficiéncia, tomam-se quase palpaveis nessas audiéncias. 1. Asim, em carta 20 New Yerk Times sbee a reviso de acs, Stanley M,haacs, veeadr © cexcéreor do reiso admnstativa de Marhatan, esreve: “Els vao realizar uma audenca? ‘Sem danida Mas nds, com nossa experi, saermas oque sso gnifica. Seo auéncas Co ‘mesmo ino das que 9 Const de rcamento costa reatzar Prime, es fazem ua reu- ‘ido exe assesses execuas 80 ealzadas ds quarasfeas, um di antes da auditn- {a pUbca] "tudo se decde a, depts a popuacdo € recebica com ode a poker e owes ‘TATICAS OWFERENTES 453, Por outro lado, as audiéncias so animadoras, pela grande vi talidade, seriedade e sensibilidade que muitos dos cidadaos de- ‘monstram nessas ocasides. Pessoas bem comuns, inclusive os pobres, os discriminados, os de pouca instrugdo, demonstram nesses momentos sua grandeza de espirito, e nao estou sendo sarcéstica. Falam com sensatez e quase sempre com elogiiéncia de coisas que elas conhecem diretamente, a partir de sua viven- cia didria. Falam apaixonadamente de preocupacdes que sio circunscritas, mas nunca limitadas. Sem divida também se di- zem coisas bobas, ¢ inverdades, e coisas claramente ou ligeira- mente interesseiras; ¢ isso também é bom para que se constate a Tepercussio dessas declaragdes. Acho que nés, ouvintes, rara~ mente somos enganados; nossa reagao deixa claro que com- preendemos e avaliamos essas opinides pelo que elas so. A po- pulacdo da cidade tem vivéncia, responsabilidade e interesse de sobra, Ha ceticismo, mas também ha confianga, ¢ esta, claro, € © que mais conta. 3s oito dirigentes que se sentam atris da bancada elevada (niio podemos chamé-los de servidores do povo, como é de praxe, porque servidores conheceriam melhor os negécios de governo), esses dirigentes também nao sio sujeitos deploriveis, A maioria dos presentes, acho, esté feliz por ter pelo menos uma chance infima, vaga (que raramente se efetiva), de prevalecer sobre eles para defender-se dos simplismos dos especialistas, os cegos que apalpam o elefante, Observamos atentamente os dirigentes, da melhor maneira possivel. A energia, a perspicécia e a sensibil dade deles sdo, em geral, louvaveis. Nao vejo por que achar mais que isso, Nao sdo garotos diante de um trabalho para homens; sio homens diante de um trabalho para super-homens, © problema é que eles tentam lidar com os detalhes intimos de uma grande metrépole por intermédio de uma estrutura orga~ nizada para apoi-los, aconselhé-los, informé-los, orienta-los pressioné-los que se tornou anacrénica. Nao ha torpeza nessa si- tuagdo, nem a torpeza de empurrar a responsabilidade para os outros; a torpeza, se se pode chamar assim, & 0 fracasso bastante compreensivel da nossa sociedade em acompanhar as mudancas histéricas prementes. 454 MORTEE VIDA DE GANDES CIDADES ‘As mudangas histéricas pertinentes neste caso so ndo s6 0 educacao, planejamento regulamentar ~ assumidas pelos gover- nos dos grandes municipios. Nao é s6 Nova York que ndo conse- gue enffentar essas profundas mudangas circunstanciais com mudangas funcionais adequadas na estrutura administrativa e de planejamento, Todas as grandes cidades norte-americanas encon- tram-se no mesmo dilema. ‘Quando as questées atingem de fato um novo grau de com- plexidade, a unica saida é engendrar meios de manter as coisas adequadamente nesse novo nivel. A alternativa é 0 que Lewis Mumford chamou apropriadamente de “desconstrugao”, destino das sociedades que ndo conseguem manter a complexidade de que se compdem ¢ dependem, pseudoplanejamento urbano implacivel, simplista, ¢ 0 pseu- dodesenho urbano que temos atualmente é uma forma de “des- construit” cidades. Porém, embora isso tenha sido definido e san- tificado por teorias reaciondrias que na verdade glorificam a “desconstrugo” das cidades, hoje em dia a pratica e a influéncia

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