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Simpósio: FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE

PROFESSORES DE MATEMÁTICA

FORMAÇÃO MATEMÁTICA DO PROFESSOR DA ESCOLA BÁSICA: QUAL


MATEMÁTICA?

Plínio Cavalcanti Moreira (UFMG)

plinio@ufmg.br

Resumo
O texto trata da questão da dicotomia formação-prática na licenciatura em
matemática. Numa primeira parte, discuto brevemente algumas dificuldades inerentes à
superação dessa dicotomia e conjecturo sobre as razões da permanência histórica desse
fenômeno na formação do professor de matemática. Em seguida, levanto algumas
questões relacionadas com uma abordagem inovadora do problema. Por fim, apresento
algumas contribuições da literatura especializada na área de formação de professores de
matemática, as quais indicam caminhos que me parecem viáveis e interessantes para a
superação da referida dicotomia.
Palavras-chave: Educação Matemática; Formação de Professores; Licenciatura;
Formação Matemática; Saberes Docentes.

Introdução
São muitos os pontos de convergência e de tensão no debate corrente sobre a
estruturação do processo de formação do professor de matemática na licenciatura. E
cada um deles poderia servir de tema para um ou mais simpósios como esse de que
estamos participando no XV ENDIPE. Alguns exemplos:
1. O papel das chamadas TIC (tecnologias de informação e comunicação) na
educação escolar e as formas de incorporação destas na formação do professor
da escola básica.
2. Como desenvolver o trabalho com a história da matemática na formação do
professor? Como a história pode favorecer efetivamente o ensino e a
aprendizagem da matemática na escola?
3. Há certa convergência em torno da idéia de que o aluno (incluindo o da
licenciatura) não pode mais ser pensado como um ser puramente
cognitivo/racional. Há que se levar em conta que a aprendizagem é movida
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fortemente também pela “afetividade”. Como contemplar explicitamente essa


dimensão afetiva no currículo de formação do licenciando, de modo a repercutir
positivamente na sua futura prática docente?
4. O papel da avaliação no processo de formação escolar e a questão, sempre
correlata, da implementação de práticas avaliativas “adequadas” dentro da
própria licenciatura. É possível avaliar a aprendizagem ou somos capazes apenas
de avaliar o cumprimento ou não, por parte do aluno, de critérios gerais
previamente estabelecidos para aprovação/reprovação nas diferentes disciplinas?
Quais as diferenças pedagogicamente relevantes entre avaliar a aprendizagem e
aprovar/reprovar? De que maneira os critérios de aprovação/reprovação podem
afetar o processo de ensino e de aprendizagem?
Mas, a meu ver, o grande ponto de convergência e de tensão, aquele que está
subliminarmente vinculado a todos os aspectos e dimensões do processo de formação
do professor de matemática, é antigo e, no entanto, muito atual: trata-se da relação entre
formação e prática profissional docente. A grande convergência quanto a esse ponto diz
respeito à necessidade de superar a dicotomia formação-prática. E as tensões se
manifestam quando se discutem as formas curriculares específicas que produziriam
avanços no caminho da superação dessa dicotomia.

Algumas dificuldades
A importância de se buscar uma formação mais colada na prática parece
consensual. Afinal, que professor de um curso de licenciatura em matemática nunca se
perguntou coisas do tipo: para que serve isso que estou ensinando? Ou, qual deles nunca
foi questionado por algum aluno com a pergunta “fatal”: onde na minha futura prática
profissional vou utilizar isso que estou aprendendo? Entretanto, gostaria de chamar a
atenção para alguns pontos que ilustram o nível de dificuldade inerente ao tratamento da
questão. Em primeiro lugar, me parece importante refletir um pouco sobre as várias
formas segundo as quais se poderia entender a superação da referida dicotomia. Se a
entendemos como uma separação problemática, como um fosso entre o que é discutido
no curso de licenciatura e as questões que se colocam na prática profissional, então a
sua superação deve significar a construção de aproximações, o estabelecimento de
pontes, a criação de vínculos entre essas duas instâncias. A título de ilustração, vou
apresentar, reconhecendo que de maneira breve e simplificada, dois pontos de vista
distintos a respeito dos vínculos possíveis entre formação e prática. No dizer de Tardif
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(2002), a superação da dicotomia formação-prática deve começar por tomar a prática


docente escolar como o centro de gravidade do processo de formação do professor, isto
é, como a referência central, em torno da qual os vários componentes da formação se
organizariam e se equilibrariam. O sentido de estruturar o processo de formação tendo a
prática como centro de gravidade seria o de estudar a prática do professor, conhecer
melhor as questões que esse profissional tem que enfrentar no seu trabalho concreto
cotidiano para, a partir daí, organizar o processo de formação em termos da adaptação,
produção e discussão de saberes relacionados às diferentes possibilidades de lidar com
essas questões no contexto da prática futura do licenciando. De um ponto de vista quase
oposto, “trazer” a prática docente para o processo de formação na licenciatura poderia
reduzi-lo a uma preparação profissional desqualificada, pois a prática efetiva atual não
pode ser vista como modelo de formação. Bem ao contrário, ela é uma instância que
precisa de mudanças radicais, onde predomina o ensino de fórmulas prontas e a ênfase
nos procedimentos algorítmicos, muito distante do que seria desejável, i.e., uma visão
mais conceitual e conectada da matemática. Correspondentemente, a formação deveria
ser projetada para alavancar um processo radical de mudança da prática e, portanto, ser
concebida a partir de um ponto de vista “científico”, superior à prática escolar, que não
se submeta a ela, mas, ao contrário, que a revolucione.
É claro que cada uma das possibilidades acima descritas se constrói a partir de
uma determinada leitura da prática e toda leitura é feita com pressupostos. Mas isso,
como sabemos, é incontornável, qualquer outra forma de conceber a superação da
dicotomia formação-prática carregará inevitavelmente uma leitura específica da prática
e se construirá a partir de pressupostos. Assim, embora a proliferação de diferentes
projetos possa, por um lado, implicar maiores dificuldades, vejo com bons olhos a
emergência das tensões nessa matéria. Na minha experiência, tenho notado que o debate
sobre o currículo da formação docente na licenciatura se desenvolve de forma tal que os
pressupostos mais profundos permanecem “protegidos” pela cortina de fumaça que se
levanta em torno de certas rusgas que são, a meu ver, de natureza mais superficial, ainda
que importantes. Assim, as tensões emergentes nesse debate podem ter um papel
extremamente positivo, na medida em que sejam canalizadas para a explicitação dos
pressupostos em jogo. Por exemplo, em ambas as concepções simplificadamente
descritas acima, estamos diante de diferentes posições a respeito, entre outras, da
complicada questão que se refere à capacidade da formação de influenciar a prática.
Nesse sentido, um dos pressupostos que poderia permear a discussão é o de que toda
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prática tem uma razão de ser, ou seja, nenhuma prática é gratuita, descondicionada.
Assim, se queremos mudar, é preciso conhecer. Outro pressuposto seria aquele segundo
o qual a inserção de profissionais “bem preparados”, “tecnicamente competentes”, na
prática docente é capaz de produzir mudanças substanciais no ensino escolar da
matemática. E isso é o que um curso de licenciatura de qualidade deveria buscar
oferecer ao mercado: profissionais tecnicamente qualificados (i.e., com uma formação
matemática “sólida”) para o ensino da matemática na escola. Cada um desses
pressupostos pode conduzir a diferentes abordagens em termos da superação da
dicotomia formação- prática.
Outra dificuldade em relação à eventual superação dessa dicotomia é a seguinte:
há uma distância “natural” entre as atividades de formação e as da prática profissional.
Estudos como os de Schön (1983) e Lampert (1985), por exemplo, mostraram que
muitas questões e dilemas da prática profissional são decididos a partir de “reflexões na
ação”. Isso significa que alguns dos saberes cruciais para as decisões nem sempre são
apenas evocados de um conjunto de conhecimentos pré-adquiridos, muitas vezes são
produzidos “na ação”, a partir de reformulações instantâneas e adaptações à situação e
às condições do momento em que surgem esses dilemas e questões. Num certo sentido,
isso quer dizer que pelo menos uma parte significativa da prática profissional docente
não pode ser planejada ou antecipada no processo de formação. É preciso
freqüentemente adaptar ou mesmo reformular as teorias da formação em função das
condições de um dado momento da prática profissional. Em outras palavras: as salas de
aula, os alunos, as escolas, enfim, o contexto da prática profissional do professor nem
sempre pode ser reduzido a uma generalidade teórica a partir de abstrações. No entanto,
ao mesmo tempo, a formação não pode se debruçar sobre cada contexto concreto e
condições específicas possíveis. Esta contradição tem de ser levada em conta em
qualquer desenho de currículo que vise a superação da dicotomia formação-prática e
isso constitui uma dificuldade que, a meu ver, não pode ser minimizada.
Há que se levar em conta, no entanto, que as dificuldades aparecem justamente
em função dos estudos que identificam o problema e sugerem a necessidade de sua
superação no âmbito da formação do professor. Como dissemos, essa dicotomia vem
sendo historicamente apontada nos estudos mais amplos sobre as licenciaturas no Brasil
e, em particular, na licenciatura em matemática - conferir, por exemplo, Ludke (1994),
Diniz Pereira (2000), Fiorentini et al. (2002). Em termos práticos, são vários os
exemplos de tentativas de reformulações curriculares, antigas e recentes, que se
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propõem “atacar” esse problema (conferir os discursos veiculados nos projetos de


reformulação dos cursos de licenciatura de algumas universidades brasileiras, entre eles
os da UFMG, UNESP/RC, UNICAMP). Com as diretrizes para as licenciaturas, o
próprio CNE reconhece a necessidade de enfrentar o problema e propõe um currículo
com as famosas 800 horas de “estudos da prática”. Assim, tentar entender as origens e
os fatores que contribuem para a permanência histórica dessa dicotomia na licenciatura
em matemática é, para mim, o grande desafio porque, como já foi dito, ela condiciona
todo o processo de formação inicial do professor. Por exemplo, voltando aos quatro
pontos citados anteriormente (história da matemática, TIC, afetividade, avaliação): a
referência da prática docente escolar, para a qual se quer formar o licenciando, é um
elemento crucial a ser considerado em qualquer proposta curricular que venha a
contemplar as questões ali colocadas.

Um ponto de vista e uma pergunta


Como vimos, a dicotomia formação-prática percorre toda a estruturação do
processo de formação na licenciatura, mas vou me restringir ao segmento deste processo
que tenho estudado nos últimos anos e no qual ela se manifesta de forma
particularmente aguda e contundente. Assim, tendo em conta as dificuldades e questões
anteriormente mencionadas, examino especificamente um segmento do processo de
formação inicial, usualmente designado de formação matemática do (futuro) professor
(designação que me parece bastante imprecisa e inconveniente, por razões que, espero,
fiquem claras até o final deste texto).
Minha experiência de trabalho em disciplinas como Álgebra Linear, Equações
Diferenciais, Análise Real ou mesmo Geometria e Álgebra nos cursos de licenciatura
indica que uma “sensação” de distanciamento da formação em relação às questões da
prática docente escolar vai se construindo no licenciando, ao longo do curso. Em algum
momento, se há espaço, ele verbaliza essa sensação perguntando sobre as conexões
possíveis “desse tipo de conhecimento matemático” com o trabalho docente na escola.
Por outro lado, ainda que não questione explicitamente, não consegue esconder certa
indisposição em relação a essas matérias, no todo ou em parte, deixando transparecer
que, muitas vezes, o esforço realizado é suficiente apenas para “cumprir a obrigação”,
que estuda para “passar” ou mesmo, em alguns casos, para “passar sem saber”, quando
isso é possível. Tais indicadores denunciam, concretamente, uma rejeição a esse
segmento do processo de formação, tal como está estruturado, em função desse
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distanciamento problemático em relação à prática profissional que o aluno, de um modo


ou de outro, identifica. É importante observar ainda que, embora variando de uma
instituição para outra, a formação matemática costuma ocupar um grande espaço
curricular na licenciatura, o que acentua a necessidade de uma compreensão do
fenômeno em questão nesse segmento do processo de formação docente.
Um fato interessante é que ninguém quer que a formação matemática na
licenciatura se desenvolva descolada (ou, pelo menos, descolada demais) das
necessidades da prática profissional do professor da escola: nem os matemáticos
profissionais que trabalham na formação de professores, nem os educadores
matemáticos, nem os formuladores de currículo, nem os pesquisadores da formação do
professor, nem o CNE, nem as diretrizes nacionais para a licenciatura. Enfim, está claro
que ninguém gosta dessa dicotomia. Assim, a primeira reflexão que proponho é a
seguinte:

Ninguém gosta da dicotomia entre formação e prática docente, mas ela atravessa a
história dos cursos de licenciatura. Como se explica essa impermeabilidade às
mudanças curriculares, essa resistência histórica, essa permanência contra todos os
desejos?

A minha hipótese é que existe uma espécie de consenso oculto entre os


formuladores de currículo para as licenciaturas em matemática que produz e mantém
essa dicotomia. Há uma lógica implícita nas diferentes concepções de formação do
professor de matemática que parece reger a estruturação do processo de formação na
licenciatura à revelia dos desejos e dos embates. E como se poderia traduzir essa lógica
implícita nas mais diferentes concepções de currículo, esse algo tacitamente
compartilhado pelos mais variados grupos de especialistas, esse consenso oculto, não
admitido? Correndo o risco da simplificação exagerada, creio que poderia fazê-lo
através do seguinte aforismo:

1. Quem vai ser professor de matemática vai ensinar matemática.


2. Para ensinar matemática, o professor tem que saber matemática.
3. Então... temos que ensinar matemática ao licenciando (futuro professor).

Há formas mais sofisticadas desse aforismo, mas preferi esta pela sua
simplicidade e pelo fato de que, há relativamente pouco tempo, foi expressa exatamente
assim, como argumento em uma reunião de um grupo de acadêmicos, cuja tarefa era
propor os fundamentos para o novo currículo da licenciatura em matemática de uma
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universidade federal. Mas gostaria de fazer referência a outras formas mais ou menos
equivalentes, algumas até mais famosas. Por exemplo:

1. O professor precisa saber mais do que aquilo que ensina.


2. O professor precisa conhecer a matemática acadêmica para ter uma visão unificada da
matemática escolar. Caso contrário esta se transforma num amontoado de regras e
fórmulas desconexas.
3. A matemática científica é uma conquista da cultura humana e, portanto, deve ser
universalmente socializada através da escola.
4. É preciso desenvolver o espírito científico nas novas gerações e, para isso, a
matemática científica deve ser conhecida pelo professor da escola.
5. O ensino da matemática na escola deve ter como objetivo último a aquisição do
conhecimento em sua forma abstrata, “objetivada”. A matemática acadêmica deve,
portanto, servir de modelo para o professor.

A partir do momento em que se aceita a lógica subjacente a esse aforismo, em


suas várias formas, as discussões sobre o currículo da formação matemática do
professor passam a se desenvolver em torno de um eixo “internalista” (matemática para
aprender matemática): se “entra” ou não série de Fourier, se a disciplina Análise Real
vai até integral ou só até derivada, onde “parar” na Álgebra Linear etc. Os limites de se
introduzir ou não uma determinada “matéria” no currículo passam a ser dados por
parâmetros internos à matemática, o que, obviamente, vai tornar privilegiada a visão dos
matemáticos profissionais, que são os especialistas no assunto. O que é importante (do
ponto de vista dos matemáticos) é, usualmente, a questão fundamental e as concessões
vêm, por exemplo, em função do que é considerado inacessível, muito difícil ou
impossível de ser ensinado para licenciandos num determinado tempo curricular. E as
questões da prática docente escolar? Essas ficariam por conta da Faculdade de
Educação. Afinal, para isso existem as outras instâncias de formação. Aqui se manifesta
claramente a dicotomia que vimos comentando: o licenciando vai se tornar professor de
matemática na escola. O fato de que vai ser professor de matemática orienta as ações
dos departamentos de matemática em relação ao curso. O fato de que vai ser professor
deve orientar as ações das faculdades de educação em relação ao curso. Para tentar
costurar essas ações num todo orgânico forjam-se disciplinas específicas (chamadas
integradoras) que teriam a responsabilidade de harmonizar as várias instâncias de
formação entre si e estabelecer os vínculos com a prática docente escolar. Mas não se
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desenvolvem critérios ou elementos conceituais relevantes que permitam compreender o


que deve ser entendido por “integração”, “harmonização” ou “vinculação” das
instâncias de formação entre si e destas com a prática docente. O resultado líquido é que
essa estrutura garante a completa autonomia da formação matemática dentro da
licenciatura. A partir daí, as outras instâncias se responsabilizam pelo pedagógico em
geral e pela vinculação deste segmento do processo de formação com os problemas
relativos a ensinar e aprender matemática na instituição escola.
Essas são, a meu ver, algumas das conseqüências de se acatar o aforismo citado,
em suas diferentes formulações. O grande problema é que a lógica subjacente a ele
quase nunca está posta em questão, quase nunca é objeto explícito e direto de discussão.
Quando muito, ela é tocada tangencialmente, de modo indireto, no contexto de uma
mera disputa de espaço no currículo da formação do professor. Assim já aconteceu, ao
longo da história das discussões sobre as licenciaturas. Por exemplo, no final dos anos
1960 e início da década de 1970, tomou certa força a tendência de pensar o professor
como um facilitador da aprendizagem do aluno. Esta, por sua vez, decorreria, em grande
medida, da utilização correta de técnicas e de materiais adequados, por parte do
professor. Era o período da educação “tecnicista” com os estudos dirigidos ou
programados, o uso intensivo do retro-projetor, a organização de estudos e trabalhos em
grupo etc. Em função disso, desenvolve-se uma crítica ao “conteudismo” na formação
do professor, afirmando-se que a ênfase exagerada no ensino do conteúdo específico nas
licenciaturas viria em detrimento de uma melhor preparação didático-pedagógica do
futuro professor, a qual requeria o domínio das técnicas de ensino e do uso de diferentes
materiais instrucionais, de acordo com as teorias (behavioristas) da aprendizagem, então
dominantes. Como se vê, em relação à lógica de fundo que nos importa aqui, o
questionamento era tangencial e se traduzia basicamente numa disputa de espaço dentro
do processo de integralização curricular. O professor precisava conhecer e dominar as
técnicas “modernas” e “eficientes” para o ensino da matemática e, para isso, a formação
didático-pedagógica precisava de mais espaço no currículo.
Mais tarde, nos anos 80, essa lógica do “conteudismo” volta a ser questionada,
mas novamente de uma forma indireta e de um ponto de vista “externo”. O professor
passa a ser visto essencialmente como um educador, na medida em que a educação
escolar é entendida mais claramente como um processo de caráter sócio-político no qual
repercute, de maneira importante, a luta de interesses que se desenvolve globalmente na
sociedade capitalista. Nesse contexto, a formação do professor precisa incorporar uma
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compreensão profunda dessa dimensão política da educação escolar para que ele, como
educador, possa desempenhar um papel de contraposição aos interesses que pretendem
colocar e/ou manter a escola a serviço da reprodução das condições capitalistas de
produção. Nesse sentido, inverte-se, em certa medida, a perspectiva anterior e o
“conteudismo” é que passa a ser identificado com uma proposta tecnicista/neutralista da
formação do professor, em oposição a um projeto mais politizado e engajado. Nessa
perspectiva, espaços para uma formação do professor mais voltada para a sociologia e a
história da educação, para a análise crítica das políticas educacionais etc. passam a ser
reivindicados, em detrimento dos espaços curriculares anteriormente destinados à
formação “de conteúdo”.
Embora essas discussões, ainda hoje, não possam ser consideradas
completamente ultrapassadas, creio que não chegaram a desestabilizar essa lógica tácita
expressa no aforismo citado. De todo modo, pode-se dizer que os questionamentos
“externos” não se mostraram eficientes nesse sentido. A nosso ver, entretanto, as coisas
começam a clarear quando nos permitimos questionar essa lógica de modo direto e
frontal, embora preservando, naturalmente, o espaço do diálogo e da investigação. O
que temos proposto é um questionamento dessa lógica a partir de uma posição “interna”
a ela, isto é, aceitando, em princípio, suas premissas e suas conclusões, mas avançando
no sentido de qualificá-las analiticamente. Assim, concordamos que o professor de
matemática da escola vai ensinar matemática e, portanto, precisa saber matemática.
Mas, perguntamos:

1. Que matemática ele vai ensinar na escola?


2. Que matemática ele precisa conhecer para ensinar “bem” aquela que vai
ensinar na escola?
3. Uma pergunta que de certa forma inclui as anteriores e as estende é a seguinte:
Será que existe uma forma de conhecer os objetos matemáticos que seja mais
adequada ao trabalho do professor na escola básica do que aquela forma
segundo a qual o matemático profissional conhece esses objetos? Por exemplo,
será que o professor de matemática, em sua prática, não precisa conhecer os
números, as funções, a geometria (e suas conexões) de um modo específico,
próprio, vinculado a um processo de largo prazo de formação de conceitos pela
população escolar e diferente, portanto, do modo como os matemáticos
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profissionais (aqueles cujo vínculo essencial com a matemática se situa na


produção de “fronteira”) precisam conhecer esses mesmos objetos?

O que dizem as pesquisas?


As investigações e as análises das práticas desses profissionais, das normas e dos
valores a elas associados e da natureza das questões que se colocam, em suas
respectivas práticas, para o professor da escola e para o matemático, nos tem fornecido
indicações de respostas positivas para essa última questão. Por exemplo, Shulman
(1986, 1987), ao descrever o que chamou de Repertório de Conhecimentos para o
Ensino identifica um componente desse repertório que vai influenciar profundamente as
respostas posteriores: o conhecimento pedagógico do conteúdo, que seria, nas palavras
do próprio Shulman, “aquele amálgama entre conteúdo e pedagogia que pertence de
modo único ao campo de trabalho do professor, uma forma especial e própria de
compreensão da materia” (Shulman, 1987, p.8, tradução minha). Partindo das idéias de
Shulman, Deborah Ball e sua equipe desenvolvem estudos cujas conclusões permitem
afirmar que há efetivamente uma forma específica de conhecimento matemático para o
ensino. Em Ball, Bass, Sleep e Thames (2005), esboça-se uma caracterização teórica
desse construto. Em Ball, Thames e Phelps (2008), os autores sintetizam a evolução das
pesquisas do grupo liderado por Ball e apresentam uma teoria já mais elaborada (e
empiricamente validada) sobre o conhecimento matemático para o ensino. Segundo
esses autores, são quatro os domínios em que se estrutura esse tipo de conhecimento:
conhecimento comum do conteúdo (common content knowledge), conhecimento
especializado do conteúdo (specialized content knowledge), conhecimento do conteúdo
e dos alunos (knowledge of content and students) e, por último, conhecimento do
conteúdo e do ensino (knowledge of content and teaching). Numa descrição muito
abreviada, o primeiro domínio incluiria o que vai ser ensinado diretamente na sala de
aula da escola (operar com os números, calcular a área de um triângulo etc.); o segundo
domínio envolveria o que o professor de matemática precisa saber para ensinar um
determinado tópico, mas que não faz parte direta do que está efetivamente ensinando
(conhecimento sobre diferentes formas de justificar a comutatividade da multiplicação
de números, sobre as interpretações quotitiva e partitiva da divisão etc.); o terceiro
domínio diz respeito basicamente a conhecer os alunos em suas relações com a
aprendizagem da matemática (e.g., antecipar o que os alunos costumam achar “difícil”
num determinado tópico) e o último compreenderia o conhecimento sobre diferentes
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estratégias para ensinar um determinado tópico, com quais exemplos introduzir um


conceito etc. Os autores destacam que se trata de conhecimento matemático e não
didático. É um conhecimento matemático específico da profissão de professor da escola.
Nessa mesma direção de pesquisa e incorporando alguns resultados dos autores citados
acima, tenho desenvolvido, principalmente em parceria com Manuela David, estudos
nos quais explicitamos elementos de conflito e de contradição entre as formas científica
e escolar de conhecer os objetos matemáticos (ver, p.ex., Moreira, 2004; Moreira e
David, 2005; Moreira e David, 2008). A identificação e análise desses conflitos nos
levaram a propor uma distinção entre matemática acadêmica (corpo de conhecimentos
matemáticos tal como produzido e organizado pelos matemáticos profissionais) e
matemática escolar (conjunto de conhecimentos matemáticos validados e
especificamente associados à docência escolar). A idéia relevante aqui é marcar posição
a favor de uma distinção entre duas formas de conhecer os objetos matemáticos: aquela
que se refere ao trabalho docente escolar em matemática e aquela apropriada ao trabalho
de pesquisa científica na fronteira do conhecimento matemático. O sentido dessa
distinção é contribuir para um melhor entendimento do trabalho do professor e,
conseqüentemente, da organização da sua formação profissional. E o seu fundamento
imediato repousa na seguinte constatação: os matemáticos não são professores de
matemática da escola e os professores de matemática da escola não são matemáticos.
São duas profissões diferentes. Os saberes profissionais devem ser, naturalmente,
diferentes.
Antes de prosseguir, cabe um esclarecimento importante: matemática escolar,
para nós, não é “aquilo que se ensina na escola”, mas um conjunto de saberes
profissionais associados à pratica docente escolar em matemática. Esse conjunto é
imenso. Para se ter uma idéia, ao fazer um levantamento da literatura especializada a
respeito dos números racionais, uma busca no banco de dados da ERIC nos forneceu
mais de 2000 trabalhos sobre o tema. Isso só sobre números racionais. Então,
referenciar a formação do professor na matemática escolar ou no conhecimento
matemático para o ensino (conferir a amplitude dos quatro domínios propostos por Ball
e seus colegas) não implica “baixar o nível” da formação do professor. Essa associação
com “baixar o nível” resulta de uma concepção simplista do trabalho do professor,
segundo a qual este fica reduzido à mera “transmissão” de uma matemática
“elementar”, desconsiderando-se a complexidade das tarefas associadas a processos
interativos, sócio-culturais, afetivos e cognitivos, como a de ajudar crianças,
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adolescentes e adultos a educar-se matematicamente, ensinando matemática na


instituição escola. O próprio termo “elementar” denuncia uma visão linear em que a
matemática acadêmica “contém” a matemática escolar. Não é este, absolutamente, o
nosso ponto de vista.

Conclusão
Concluimos retomando a questão da dicotomia e discutindo brevemente como os
estudos e investigações relatados acima podem contribuir para a prática da formação do
professor de matemática. Cabe observar, em primeiro lugar, que essas pesquisas e seus
resultados não resolvem, por si só, o problema da dicotomia na formação matemática do
professor, mas abrem possibilidades para a sua superação, na medida em que enfatizam
a importância de se considerar as especificidades dos conhecimentos associados à
prática da profissão docente no processo de formação do professor. Em outras palavras,
os resultados desses estudos “quebram” a lógica subjacente ao aforismo citado
anteriormente: o professor de matemática da escola precisa conhecer a matemática, mas
não necessariamente na mesma forma que o matemático, que o engenheiro, que o
biólogo etc. As pesquisas citadas demonstram concretamente que a matemática
acadêmica não é suficiente para a formação matemática do licenciando (alguns deles,
mais do que isso, levantam a questão da necessidade de se investigar até mesmo se ela
seria necessária e conveniente para o trabalho docente escolar). Por outro lado, os
conflitos apresentados e discutidos em Moreira e David (2008) levantam uma pergunta
inquietante: como integrar, com um mínimo de organicidade, essas duas formas de
saber matemático (a matemática acadêmica e a escolar) num corpo de conhecimentos
que prepare adequadamente o licenciado para o exercício profissional, de modo que ele
possa usufruir das contribuições de ambas?
Em segundo lugar, notamos que essa distinção entre matemática escolar e
matemática acadêmica e os esforços de caracterização de um conhecimento matemático
específico para a educação matemática escolar colocam novos desafios, correspondentes
a um novo patamar da relação formação-prática. Quais seriam esses novos desafios?
Encerramos este texto com a descrição sumária de alguns deles:

 Organizar a matemática escolar e o conhecimento matemático para o ensino em


textos didáticos dirigidos ao futuro professor. Isso exige uma nova lógica de
sistematização, em substituição à lógica axiomático-dedutiva dominante na
matemática acadêmica. Concretamente, isso significa sistematizar os
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conhecimentos sobre números, sobre o desenvolvimento do pensamento


algébrico ou geométrico, sobre os erros mais comuns dos alunos etc. a partir das
questões que se apresentam ao professor em sua prática profissional, i.e., tendo
em conta que a matemática relevante para o professor inclui, de alguma forma, a
instituição escola e os alunos, não se reduz a um “conteúdo” puro e simples.
Observamos, por outro lado, que essa sistematização constitui um grande
desafio, entre outras razões, porque precisa ser dinâmica, acompanhando as
pesquisas na área, mas ao mesmo tempo não pode ser proposta como um
instrumento de submissão do trabalho do professor às orientações das pesquisas
acadêmicas. O texto de formação não é necessariamente o texto do professor em
seu trabalho em sala de aula. O professor está constantemente submetido a
dilemas e escolhas, em situações e condições específicas. A formação deve
prover contribuições para as tomadas de decisão que só a ele cabem, nas
circunstâncias a ele dadas.
 Desenvolver uma compreensão profunda e fundamentada do papel da
matemática acadêmica na formação do professor da escola básica. Essa questão
importante fica seguramente favorecida nessa nova perspectiva em que se
projeta uma concepção específica de formação matemática “sólida” própria para
o professor. Até agora, tendo em vista essa translação praticamente automática
da matemática dos matemáticos para a formação do professor, quase não se faz
pesquisa nessa direção. O que encontramos nesse terreno são, basicamente,
opiniões fundadas no senso comum. A distinção entre matemática acadêmica e
matemática escolar e os conflitos identificados podem estimular uma área de
pesquisa que está praticamente inativa e que, no entanto, seria muito importante
para o desenvolvimento profissional do professor desde a sua formação na
licenciatura.
 Por último, o desafio permanente: se queremos formar um profissional, no caso
o professor de matemática da escola básica, temos que conhecer profundamente
a prática deste profissional e as questões que se apresentam a ele no exercício
dessa prática. Esse desafio também toma novas dimensões se aceitamos a
distinção entre matemática para o ensino e matemática acadêmica, pois a partir
dessa distinção a investigação da prática docente acolhe novos pressupostos e se
põe novas perguntas. O que o professor não sabe não será visto necessariamente
como falta de conhecimento da matemática acadêmica. E podem-se validar,
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nessas pesquisas, muitos dos saberes profissionais que os docentes criam e


desenvolvem na sua prática, ainda que esses saberes não constituam
conhecimento novo e relevante, em termos do conhecimento matemático
científico-acadêmico. Destacamos essa mudança de olhar no processo de
conhecer a prática docente porque, apesar dos vários estudos já produzidos com
outras orientações, uma tendência forte nesse campo ainda é a de considerar que
o saber produzido na prática do professor de matemática da escola não é
conhecimento matemático, mas, para remediar o seu não-saber, a prescrição
usual é a matemática acadêmica.

Sumarizando, podemos dizer o seguinte: apresentamos e discutimos algumas


respostas oferecidas pela comunidade de pesquisa no campo da formação de professores
de matemática para a terceira e mais abrangente das questões propostas na seção “Um
ponto de vista e uma pergunta”. A questão é, a meu ver, muito importante para a
discussão do problema da dicotomia formação-prática na licenciatura em matemática e
as respostas apresentadas certamente não a esgotam. Entretanto, o conjunto dessas
pesquisas, cada uma com seus fundamentos e seus pressupostos, acumula conhecimento
suficiente para sugerir a necessidade de se desenvolver um novo desenho para a
formação do professor na licenciatura. Em particular, essas pesquisas apontam uma
nova forma de pensar a relação formação-prática: ao invés de tentar “integrar” o que foi
concebido “desintegrado”, pensemos em construir um projeto de formação em que o
conhecimento matemático veiculado seja concebido já intrinsecamente integrado às
questões que se apresentam ao professor em sua prática docente escolar.

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