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Bitucacio, Sociedade € Cultures, * 19, 2003, 131-170 ese BOURDIEU, SREUR UTERINE HmNRNERT Durante o iempo em que ambos leccionaram no Collége de France, Michel Foucault e Pierre Bourdieu encontravam-se regularmente visto que eram amigos e, para além disso, partilbavam alguns interesses tanto acerca dos problemas do campo em que trabalhavam. como sobre questées de interven- (Go politica No entanto, Foucault e Bourdien eram completamente diferen- tes em termos de background, da posicdo que ocupavam no campo, do estilo de vida intelectual, do posicionamento episiemoldgico, etc Foucault nunca escreveu acerca do trabalho de Bourdieu, ao passo que este tiltimo veto gra- dualmente a produziv comentérios acerca da obra do primeiro Este artigo consittui uma tentativa de compreensdo desta relacao assimé- trica e de especificacdo pormenorizada das quesides em jogo na critica efec- tuada por Bourdien através de uma leitiera atenta dos seus textos A sua cri- fica consiste essencialmente numa andlise da atitude pouco clara de Foucault e de outros fildsofos da sua geracdo, que pretendiam iniervir no campo das ciénctas sociais a partir de uma posi¢do filoséfica pura, ndo contaminada Para Bourdieu, estes aspectos pouco claros na atitude de Foucault relativamente as questées do poder e do saber contribuiram para a emergéncia da actual moda da andlise de discurso socio-construcionista idealista, que no set entender pretende substituir a soctologia pela andlise do discurso, procedendo como se os fendmenos sociais fossem a mesma * Lradugio de Tiago Neves Universidade de Copenhaga ca gO BEACES socizpape & curruras coisa que os discursos acerca desses fendmenos, de acordo com Bourdieu, seria mais titil que essa moda contribuisse para uma sociologia do conhect- menio que procurasse iranscender a antinomia entre uma historia das ideias internalista e uma historia das ideias exteriorista Neste artigo, defendo que Bourdieu estd correcto quando afirma gue a sua teoria da pré- tica e da pratica cientifica, bem come a sua teoria da relagdo entre o espaco social, o habitus e campos relativamente auténomos, entre eles o pré- prio campo cientifico, constituem uma solugdo mais adequada para o pro- blema Muito embora os textos de Foucault ndo conienbam as exageros que alguns dos seus itérpreles indicam, incluem um enviesamento que acabou por favorecer a actual moda construcionista Introduco: Por que taziio é que os Mestres raramente comentam os tra- balhos uns dos outros? Foucault nasceu em 1926 ¢ faleceu em 25 de Junho de 1984, com apenas 57 anos de idade © convite realizado a Pierre Bourdieu pelo diétio Le Monde para escrever um elogio a Foucault, publicado em 27 de Junho, foi motivo de espanto pata muitos intelectuais franceses Na verdade, nem toda a gente sabia que Foucault e Bourdieu eram nao apenas colegas dos tempos do Coflége de France, mas também amigos pessoais Bourdieu intitulou o seu obitudtio de Os Prazeres de Saber, distinguindo-se assim da caracterizagaio habitual de Foucault através do seu Poder ¢ Saber e também da Vortade de Poder de Nietzsche e 0 Desejo de Saber de Freud Bourdieu no escondeu a forte emogio sentida nessa ocasiao_ Durante a maior parte da vida de Foucault, tanto Foucault como Bourdieu abstiveram-se de interferit publicamente nos seus respectivos trabalhos Foram igualmenie parcos em referéncias ou criticas mtituas nos seus escritos Jé no que diz respeito aos contactas pessoais a situacao era diferente: por exemplo, Foucault apoiou a eleicao de Bourdieu no Collége de France em 1981 ¢ Bourdieu convidou Foucault a iniciar uma campanha conira 0 novo governo socialista © as suas politicas reaccionarias Apesar de manterem relagdes pes- soais de proximidade, continuaram nao comentat publicamente os seus respec- yPUCAcag soctepape & cuiiuras tivos trabalhos Tanto quanto sabemos, Foucault nunca discutiu a obra de Bourdieu Ja Bourdieu, particularmente depois da morte da Foucault, pot exemplo na segunda edigao do Homo Academicus, discutiu explicitamente as posigdes que ambos ocupavam no campo em 1967 Nos tiltimos anos da sua vide activa, digamos que entre 1992 e 2002, Bourdieu citicou mais frequente € agudamente 0 trabalho de Foucault Julgo que isto se deveu ao facto de, tal como Bourdieu tinha receado, alguns aspectos da ob1a de Foucault terem sido utilizados para a promoggo de um selativismo radical idealista € subjectivista, contyatio ao espirito do proprio Foucault: Para além disso, ¢ creio que este € aspecto mais importante, Bourdieu utiliza a sua ctitica a Foucault pata expres- sai uma vez mais a sua profunda desconfianca face a filosofia que desenvolve uum jogo duplo com a ciéncia empirica, sem ter sequer de pagar o prego da aprendizagem do oficio J4 no que se zelere a Foucault, ndo encontrei uma tnica referencia 4 obra de Bourdieu em nenhum dos seus dez clissicos, nem nas 3500 paginas dos Dis et Ecrits, volumes 1 ¢ I (Paris: Gallimard, 2001), nem em nenhuma outa publicagao No que diz respeito 20 material escrito, a relacdo entre ambos os autores faz-se num sentido tnico Alguns aspectos da telacio entte eles podem sez explicados 2 fuz de uma ciferenga de idades pequena mas significativa Foucault eta alguns anos mais velho que Bourdieu, nascido em 1930 Isto significa que, quando se conhece- ram na Ecole Normale Supérieure, Bourdieu era aluno ¢ Foucault assistente, 0 que nesse contexto faz uma grande diferenca Ambos terminaram as suas cai telias no College de France, onde Foucault se tomou professor telativamente jovem, em 1970, ¢ Bourdieu em 1980 Verificamos assim que as suas trajectorias 86 se cruzaram no Collége de France durante 4 anos Ao longo deste texto tentarei relacionat ambos os autores a partir do mev ponto de vista por forma a tornar claro 0 quadro no qual os conftonto; tenta- rei também esclarecer 0 quadro no qual os dois autores se confrontam um ao outro, isto se pensarmos, tal como ambos fazem, em termos de campos rela- Cionais que nao pressupdem necessariamente contactos interactivos ou face a face Ao longo do texto descobrir-se-4 igualmente que temos de lidar com duas pessoas, duas vidas © duas obras radicalmente diferentes, ¢ até mesmo antagOnicas Aquilo que elas pattilham sio alguns elementos do campo cienti- go¥UCAGE, socrepape & cuLruaas fico, intelectual e politico em que operaram Para provar isto desde jé, assi- nale-se que em The Nobility of State (1996), um livio de quase quinhentas paginas sobre os problemas estudados por Foucault durante os tiktimos dez anos da sua vida - 0 poder, 0 governo, o Estado, o discurso - Bourdieu nem por um momento seniiu que podia recorrer a Foucault, quer como apoio, quer como adversério Os projectos intelectuais de ambos sustentam-se a si préptios mas sio incomunicdveis, desenvolvendo-se paraielamente um ao outro O mesmo se podetia dizer do tltimo tabalho monumental de Bourdieu, The Weight of the World (1999) Ou, olhando mais para tas, de tra- balhos como Distinction (1986), The Logic of Practice (1990), Outline of a Theory of Practice (1977) € Reproduction in Education, Culture and Society (1977) Em nenhuma destas obras fundamentais de Bourdieu ha sinais claros de Foucault, mesmo considerando que ele 6, objectivamente, parte da discus- séo enquanto posigdo no campo Encontram-se tés excepgdes interessantes entre os tabalhos mais impor- tantes de Bourdieu: em Homo Academicus (wadugao inglesa datada de 1987), no qual nao se Jimita a descrever o campo mas também aloca nomes de auto- tes as posicdes que eles ocupam nesse mesmo campo Da mesma forma, nos seus dois livios sobre sociologia da arte, designadamente em Ihe Rules of Art (1996) e em The Field of Cultural Production (1993), onde aponta Foucault como 0 fepresentante mais interessante de uma das posicées que 0 proprio Bourdieu recusa: a posigio estruturalista € internalista apresentada em The Order of Things (1966)! Esta andlise pode também ser enconttada em Ratsons Pratiques (1994) Por fim, nos seus tltimos trabalhos, Bourdieu situa e critica Foucault de forma mais explicita A abstengo de discussio nas esferas publica € profissional com académi- cos com os quais s€ partilha © campo, ou com os quais se mantém selacées pessoais, ndo é novidade na comunidade cientifica Por exemplo, era desta forma que Lévi-Strauss se relacionava com muitas outras estrelas da cena pati- siense, como Lacan, por exemplo De certo modo, foi também por causa deste tipo de funcionamento que Habermas e Bourdieu teceram tiio poucos comen- 1 Os mesmos aspectas da obra de Foucault ste objecto de uma etitica muito semebaake ao longo de Raisons Pratiques (1994) eo¥UCAcay sociepaps & curruras trios um ao outro ao fongo dos anos E possivel que a sensagao de fazer parte da mesma familia intelectual, possuindo-se simultaneamente uma consciéncia clara da existéncia de divergéncias profundas, tenha efeitos paralisantes £ tam- Dém possive! sejam apenas circunstiincias exteriores a causar ignorincia pura e simples, como se verifica quando Foucault confessa ter ignorado, sem nenhuma 14z40 especial, a importincia da Escola de Frankfurt (entrevista a Trombadori, 1978) E dificil perceber exactamente a razio desses siléncios Foucault, Habermas e Bourdieu analisam, discutem e criticam quase toda a gente, mas jaramente ou nunca s¢ pronunciam uns sobre os outros Talvez o facto de estarem muito proximos em diversos aspectos mas, a0 mesmo tempo, senti- rem que as suas posigdes sdo incompativeis em elementos fundamentais, Ihes tenha tirado a vontade de investis na enorme quantidade de trabalho necess4- ia a. uma discussao pblica que se afigurava longa, complicada € pouco gra- tificante Talvez seja uma questo de relacdes de poder social e simbélico: num dado momento, s6 pode haver uma Prima Donna em cima paico Por vezes, ‘no entanto, pode surgir um sentimento forte de necessidade de intervencio, como um ataque definitivo de Habermas a Foucault numa tentativa de demonstrat que a sua obra padece de contradicto interna Estes siléncios nao sio insignificantes, pois contradizem as assuncdes destes autores acerca da natureza do trabalho cientifico, designadamente a sua caracterizagéo através de uma incessante troca de argumentos entre pares competentes nas matérias em questo, visto que @ ciéncia € concebida como produto de um esforgo colectivo realizado ao longo da historia, no possuindo outra Ancora para além deste didlogo contingente Os nossos irés protagonistas defenderam fre- quente e alargadamente este principio, mas € nitido que nfo o puseram em pratica neste caso particular Talvez tenhamos de aceitar que, quando alguém sente que esti a caminho de criar um novo paradigma, nao discute esse paradigma com os outros génios que enconira no percurso. Sio as fileitas inferiores da ciéncia que escrevem acerca do «estado da arter de uma dada disciplina e discutem com os «soldados rasos: que seguem 0 génio do lado grUCAce, sociepape & curruras Como podem ser tio semelhantes e simultaneamente tao diferentes? Bourdieu ¢ Foucault tinham origens sociais € culturais bem diversas, assim. como tiveram historias de vida bem diferentes Ao contrario de Foucault, um herdeito, Bourdieu iniciava uma trajectéria de ascensio social Filho de uma familia camponesa do Sul, 0 seu pai foi o primeizo a tornar-se funcionatio piblico, desempenhando funces pouco qualificadas Por sua vez, tanto o pai como a mie de Foucault eram descendentes de varias geraces de médicos Apesar das suas origens diferenciadas, os dois chegam a Paris para ocupar a mesma posicio: 0 estudo das Humanidades numa escola secundaria de elite ¢ nas avlas preparatérias da cole Normale Supérieure Bourdieu € um futador hiperactivo, engajado e cheio de satide, que cedo comega a desprezar o sis- tema académico visto que nao lhe oferecia o que havia prometido; por sev turno, Foucault é um aluno fragile complicado, com dificuldades de enquadra- mento, que com a ajuda dos surealistas acaba por encontrai 0 seu espaco num isolamento atistocratico B Foucault ¢ no Bowdieu quem durante algum tempo pertence ao Partido Comunista O ponto em que estes futuros académicos mais coincidem é no tipo de filo- sofia que cultivam e na tradigio que partilham apés as aulas preparatorias: para além de um grande interesse no legado de Husseil, e de acordo com uma 1eac- gio conta Sartre, no seguimento de autores como Bachelard € Canguilhem, entendem a filosofia como sendo, fundamentalmente, uma reflexividade episte- molégica sobre as ciéncias; reagem, portanto, contra o neo-kantismo, a filosofia do espitito eo espiritualismo francés tradicional Contudo, enquanto Bourdieu se demarca rapidamente da filosofia enquanto instituicao, disciplina e posicao socio-intelectual hegeménica, Foucault prosseguir4 como filésofo e, de acordo com 0 préprio Bourdieu, encetara um jogo duplo com a relagao entre a filoso- fia e as ciéncias sociais Bourdieu, por seu tumo, demarcou-se de tal procedi- mento e tornou-se um cientista social empitico A diferenca € crucial, entie outras coisas porque, dos principais socidlogos da segunda metade do século passado, Bourdieu foi o unico grande cientista empitico ~ isto para além da sua seconhecida competéncia epistemolégica, ted- tica e metodolégica Habermas, Luhmann e Giddens esto a desempenhar 0 papel de filésofos ou ensaistas, reflectindo sobre pesquisa empirica realizada e8CACa, socrzpape 8& CULIURAS por outrem Este aspecto é fundamental na medida em que Bourdieu defende que a critica pos-modemista das ciéncias sociais, vasta, sofisticada ¢ devasta- dora, & também expressio da auto-defesa de uma disciplina anteriormente hegeménica que se sente agora ameacada A influéncia de Nietzsche sobre Bourdieu e Foucault permite-nos perceber a rao pela qual os esctitos de ambos sio entendidos como p6s-modernos, isto apesar de as suas principais obras terem sido produzidas antes da vaga posmodernista Ambos consideram que Deus esté morto e que a existéncia humana se encontra marcada pela finitude e por uma historicidade radical O sujeito humano surge descentrado, mais sujeito a campos do que criador sobe- rano da sua propria existencia Contudo, foi apenas Foucault que, contra sua vontade, adquiriu a reputacéo de set um dos cinco pais fundadotes da chamada vaga -estruturalistae dos anos sessenta (em conjunto com Lévi-Strauss, 0 tinico verdadeiro estruturalista, Lacan, Althusser e Barthes) © proprio Bourdieu se inspirou no esituturalismo, chegando a escrever alguns artigos nessa linha, mas 1apidamente desenvoiveu a sua alternativa critica ao estruturalismo Bourdieu designow a sua alternativa de construtivismo sociologico, isto numa época em que o conceito de constru- cdo eta quase completamente desconhecido na sociologia; ou seja, antes de ter alcancado o estatuto de categoria universal, utilizada em todos os contextos ¢ sem nenhum poder explicativo Actualmente, 2 terminologia construtivista pouco reservada de Bourdieu parece inocente face a sua propria necessidade de rejeitar os exageros construcionistas do presente Inicialmente, Bourdieu interessou-se pela biologia, tencionando estudar medicina e planeando uma tese de doutoramento em epistemologia, a desen- volver sob a orientagao de Canguilhem No entanto, em resultado da experiéa- cia da guetta de libertacdo argelina, cedo trocou a filosofia profissional pela investigacio ¢ docéncia nas areas da antropologia e da sociologia da educagio eda cultura Por seu tumno, Foucault dé continuidade 4 sua educacdo filos6fica com investigagio e docéncia em psicologia, sendo que isso ndo é visto como uma quebra com a filosofia, mas antes como algo que conduz a um tratamento his- torico-filosofico das ciéncias humanas- Esta nova concepcio das ciéncias humanas ndo é coincidente com as Humanidades (as -Letras: hist6ria, lingua _rUCACd, socsrpape & cutruras gem € arte), nem com as ciéncias sociais (economia, sociologia, estatistica), referindo-se em vez. disso a anteopologia, a linguistica e 2 psicanilise como um novo tipo de ciéncias em termos de objecto, teria e método Nos seus princi- pais trabathos, a questo central sera a de saber qual é 0 sujeito destas cién- cias, considerando que o seu objecto (o mito, a linguagem eo inconsciente) ndo € um sujeito e que nestas ciéncias sujeito e objecto sio 0 mesmo Bourdieu salienta que estranhamente, no entanto, a questio de quem € 0 sujeito deste discurso filoséfico meta-reflexivo nao é discutida de forma expli- cita pelos nossos filésofos Para Bourdieu, 0 que € fundamental ctiticar na filo- sofia contemporanea € 0 facto de no usar contia si propria as armas que uti- fiza contra as ci€ncias sociais, perdendo assim a legitimidade conquistada quando reivindica ter alcancado uma cuptura revolucioniria em relagao a filo- sofia académica Bourdieu, por seu turno, virou-se para 2 sociologia e aplicou 2s suas armas tanto sobre a filosoffa como sobre a propria saciologia A forma como ambos reorganizeram a sua identidade profissional original de filosofos foi, como se pode vet, bastante diversa Bourdieu sentiu-se obri- gaco a abandonat a piofisso e @ aprender uma outra, a da ciéncia social empi- rica Esta inflexio foi fortemente influenciada pela sua experiéncia militar e de terreno durante a guerra da libertagio argelina Antes de mais tratou-se de uma conversdo social; s6 posteriormente consistiu também numa conversio cienti- fica Poderiamos também dizer que se tcatou de uma forma indirecta de regres- sat a Béamn, 2 sua teria Foucault, por sua vez, estudou psicologia na qualidade de fil6sofo, nunca se restringindo a ela Foi na qualidade de filésofo que procu- rou ctiat uma forma de estidar © discurso e a acco humanas; por outras pala- vias, atacou © objecto das ciéncias sociais com instcumentos filoséficos Os prin- cipais trabalhos do seu primeiso periodo dedicam-se a histéria dos saberes ¢ das ciéncias, sitzando-se no limiar da historia e da epistemologia Nunca questionoa realmente 0 seu estatuto de fil6sofo, muito embora mais tarde tenha progressi- vamente actescentado aos seus tabalhos compromissos militantes nos dominios das suas investigac6es, como a psiquiatria, as prisdes, etc Tanto Bourdieu como Foucault consideravam impossivel deduzir estratégias concretas de aceZo a partir das explicacdes tedticas por eles avancadas Nunca, soUCacay socigpape & curruras ou 86 muito cautelosamente é que algum deles sugeriv recomendagdes sobre medidas concietas O seu argumento era o de que essa taiefa competia aos profissionais das questées priticas Ambos reconheciam, contudo, a necessi- dade de o investigador ser também um militante que trabalhasse em conjunto com outios militantes, submetendo-se 4s impurezas da pratica quotidiana e mantendo um minimo de honestidade pessoal no tratamento das questes do destino das populagées, para dessa forma contrabalancar o erro da opedlo pot uma vida exclusivamente escolistica Nenhum deles julgava no entanto ser pessoa indicada para tetirar conclusdes praticas das anilises tedricas que pro- duzia Ambos desejavam que o investigador partilhasse a condiczo de militante, oferecendo 0 seu contribute especifico na qualidade de fornecedor de contra- -sabet contra as mentias oficiais, mantendo a sua capacidade de objectivagio através de uma patticipacdo 1eal Nao se trata de militantismo, pratica, activida- des de consultadoria ou teotia pratica baseada em investigacdo, mas sim de ciéncia e pritica de pleno direito Como se pode constatar nos Dits et Ecrits e na biografia de sealizada de Exibon (Michel Foucault, 1989), os registos revelam um Foucault activista, particularmente até 1981, época em que Bourdieu era mais cauteloso nas intervengdes na esfera politica (cf Pierre Bourdieu, 2002; Interventions Politiques, 1961-2001, Agone) Em Maio de 1981, Francois Miterrand, candidato pelo Partido Socialista, foi eleito Presidente francés Esta elei¢do é vista como uma nova possibilidade pata 0 socialismo Porém, logo em Dezembro desse mesmo ano, Bourdieu e Foucault encontram-se para organizar alguma resistencia as politicas reaccion’- tias do Governo, entre as quais a recusa de apoio ao movimento polaco do Solidariedade contra o Partido Comunista eo controlo russo Foucault abando- nou O militantismo pouco tempo depois, ras para Bourdieu este episodio mar- cou um ponto de viragem que culminou com o apoio as greves de Novembro de 1995, tendo sido zcompanbado por um fluxo csescente ¢ incessante de acti vidades de militincia, designadamente em colaboragao com 0 movimento anti- globalizacio Foi com amargura que Bourdieu acabou por descobrir que era consideravelmente menos popular enquanto militante do que veio a set enquanto investigador, pelo menos entre a comunidade cientifica Bourdieu e Foucault tiveram vidas privadas bem diferentes Foucault era homossexual, mas so tardiamente aceitou a sua homossexvalidade, ¢ softcu go¥CACay socrepabe & curruras com as resiriges impostas até mesmo aos intelectuais ndo-conformistas de Patis Mais tarde partilhou a sua vida privada com um companheiro, sem no entanto 1evelar publicamente esse facto Foi nos EUA, nos anos setenta, em vil- tude de leccionar em Berkeley, na California, ¢ também no resto do pais, que Foucault pode experimentar um estilo de vida diferente: a exploracdo dos seus desejos sado-masoquistas com alunos € colegas, 0 que teve como tragica con- sequéncia a sua morte provocada pela SIDA Durante a maior parte do tempo, Foucault trabalhava sozinho, excepgio feita ao seu semindtio no Collége, que veio a constituit-se numa importante reuniio de especialistas do poder ¢ do discurso da governacao Bourdieu, por seu turno, protegeu ferozmente a sua vida privada, conven- cional, partilhada com a sua companheira ~ que trabalhava em fotografia ~ ¢ com dois filhos ~ também eles estudantes de cigncias sociais Foi, durante 30 anos, director de estudos e responsavel por um centro de investigacdo na Ecole Pratique des Hautes Etudes, mais tarde designada por cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, colaborando assim com grandes equipas em programas de investigacio colectivos Tudo estava oiganizado de forma a facilitar a produgao incessante de trabalho sociolégico Quando visitava Copenhaga ou Estocolmo para proferir palestras, todas as horas passadas no hotel eram utilizadas para escrever ou para debater Ambos os investigadores possuiam uma capacidade de trabalho absoluta- mente inacteditével Em resultado deste facto, ambos adquitiiam uma cultura cientifica extracrdinariamente vasta e profunda, bem como uma competéncia, multidisciplinar alargada Se bem que Foucault nao tenha adquirido competén- cias em termos de investigacio social empirica, possuia um vasto conheci- mento daquilo que se passava nas diferentes disciplinas e nfo hesitava em expiessat as stuas opinides, 0 que deve ter conttibuide para istitar Bourdieu Ambos publicaram obras fundamentais, que wansformaram o estado da arte. nos respectivos dominios, a cada dois anos (excepgao feita a crise que Foucault atravessou aps a escrita do primeiro volume da Hisiéria da Sexuatidade) Os dois autores tinham concepgdes bem distintas dos seus trabalhos Foucault, desde 0 inicio ligado ao movimento surrealista, escrevia livros cienti- ficos que eram também obias lteratias, utilizando a expressio attistica como goUCACig soctepane & curruras veiculo para as suas ideias Mais importante ainda: considerava a escrita, a cri cio de uma obra, a nica forma de criat a sua propria vida Dito de uma forma radical: lidat com um problema cientifico tinha de resultar no s6 numa nova explicacdo do problema, mas também auma forma radicalmente nova de exis- téncia para o seu autor. O trabalho intelectual-artistico é, neste caso, entendido como uma experiéncia limite, tio proxima quanto possivel do que «nao pode ser vividow «Sou une experimentador ¢ néo um tedrico Sou um experimentador no sentido em que escrevo para me transforma e para ndo pensar 0 mesmo que pensava anteriormente? Esta forma artistica € individualista de olhar pata a sua propria existéncia, utilizando a ciéncia ndo so para ganhar a vida mas também para fazer da vida uma obra em vez de viver para a ciéncia, encontia-se nos antipodas da posi- cdo de Bourdieu, que se limitou a ocupar 0 seu espaco tal como delimitado pelos parametros da acco cientifica Qs livros de Bourdieu utilizam todos os recursos oferecidos pela retérica, mas ninguém dir que possuem algum valor literasio A principal diferenca, que acabara por provocar a ctitica piblica a Bourdieu ‘A piincipal diferenga entre os dois autores encontra-se nas dreas as quais dedicam 2 maior patte da sua actividade intelectual Do seu primeiro livro, sobre @ historia da loucura, até & sua ltima obra, dedicada aos cuidados de si, Foucault esforgou-se por criar uma nova forme de fazer a historia das ciéncias € dos saberes humanos/sociais, com base num mé¢todo fundamentalmente filo- sdfico e histérico 2 Afirmacio retitada ca belissima entrevista com D Irombadori, em 1978, otientads para 2 constr fo da biografis intelectual de Foucault. IraducZo inglesa publicada em James D Faubion (coord } (200) Michel Fouciauit Wot 3. Power: Nova torque: The New York Press, pp 239-297) goUCAChGg sociepabE 8 cUrIURAS ‘A obra de Foucault confirma a famosa tese do seu mestre Canguilhem, segundo a qual a historia da ciéncia ¢ a epistemologia tendem a converter-se num Gnico discurso, isto na medida em que as ideias tém uma historia consti- tuida mais por articulagdes intelectuais do que por cursos de accfio ou sequén- cias de acontecimentos Foucault passou toda a sua vida a ler livros na Biblioteca Nacional ou em casa, Tentava descobrit se haveria alguma nova forma de os ler Desig- nadamente, se seria possivel Ie-los como trabalhos escritos no pot um sujeito mas por um campo conceptual, ou melhor, por campos descontiavas subse- quentes em vez de criagdes de um sujeito ou de uma equipa avancando conti- nuamente no sentido de maiores ¢ melhores esclarecimentos quanto 4 verdade tikima, trabalhos condicionados mas nio determinados por factores externos Estes saberes ¢ estas ciéncias ndo sto apenas ideias inspiradoras, mas so eles proprios praticas discursivas, o que desde logo marca uma diferenca em termos de poder Este aspecto 6 extemamente importante porque, a meu ver, 0 contributo inovador de Foucault tem sido bastante distorcido, entre outtas coisas pelo acolhimento de que foi alvo nos EUA ¢ no Reino Unido; foi também muito dis- ‘orcido por mumerosas publicagGes sobre © poder e 0 discurso que invacisam muitas das ciéncias sociais, nomeadamente a educacio € a psicologia social Foucault nio é um socidlogo nem um historiador das instituigdes; também nao € um especialista em educacao ou trabalho social Muito embora tenha escrito milhares de paginas com contibutos muito inovadotes para a anélise do poder, Aunca escreveu sobre o poder enquanto realidade social em acco Para além disso, os seus escritos sobre formas de exercicio de poder ow sobre o poder enquanto elemento do discutso so meramente residuais Escreveu sempre € apenas sobie @ forma como 0 exercicio do poder é pensado, conceptualizado € expresso, representado e mil vezes nomeado por diferentes tipos de discurso, da andlise cientifica a panfletos com ditectrizes pata a sua implementacdo pra- tia Acrescente-se que Foucault nunca teve a pretensiio de que a partis desses discursos se pudesse concluit 0 que as pessoas, as classes profissionais, as clas- Ses sociais ou os govemos fazem, 0 que € posto em acco ou 0 gue se mate- rializa no mundo real Foucault nao descreve nem explica a histéria social nem mesmo quando se refere a0 bio-poder, as técnicas de disciplinamento do erUCAGES socispape & cuituras corpo, & governamentalidade; est4 a teferir-se, isso sim, & historia do sabe: O sev contibuto consiste em afirma: que o modo pelo qual as coisas sio postas em palco constitui, em si mesmo, uma realidade que faz a diferenca em termos da concepgao de poder, se bem que nao em termos do poder em si mesmo Foucault nao afirma que esses discutsos, procedimentos e tecnologias domi- nantes conduzem cursos reais de acco ou que se materializario no mundo: social O que ele diz é que os discursos sio influenciados, na sua forma, con tetido ¢ eficiéncia, pelas constelagdes de poder que deles emanam; que os dis- cursos j so, em si mesmos, um tipo de intervencao pratica; por fim, que os discuisos acompanham, mas nfo causam, curso de acco real observavel Temos, assim, duas questées importantes em jogo A primeira consiste em apreender e cxplorar em profundidade 0 contributo inovador de Foucault A sua anélise do poder e do discurso abre novas portas para uma compreensio dos dois iados do proceso social Este contributo é menos evidente nas obras publicadas em Franca ainda durante a sua vida do que nas entrevistas € pales tuas dadas durante a sua permanéncia nos BUA — frequentemente publicadas nos EUA ~€ nos seminatios do Collége de France, em Paris, 86 publicados pos- tumamente As trés publicagdes em lingua inglesa que assinalam o inicio da segunda vaga de acolhimento a Foucault so as obras de Gordon (1989), Dreyfus e Rabinow (1982) e Burchell ef al (1991)> Estou seguro de que esie acolhimento deslocou o centio de gtavidade do trabalho de Foucault, nio tanto pelo que foi dito mas especialmente pelo que nao foi tido em linha de conta Um ouuo passo neste sentido foi dado quando se explotaram novas potencialidades em determinados dominios, como por exemplo nos trabalhos de Thomas Popkewitz (Wisconsin) e Sverker Lindblad (Uppsala), que tentaram, numa abordagem ainda equilibrada, explicar 2 reestruturacdo neo-liberal da educacao a partir de elementos tomadas de empréstino de Foucault! 3 © Gordon (coord } (1980) Power/Knowledge selected interviews and ether writings, 1972-1977, Nova longue: Pantheon Books HI Dreyfus & P Rebinow (982) Aichel Foucault beyond sirwcte- ralism and beneneutics Chicago: The University of Chicago Press G Burchell, C Gordon & P Miller (cords } (991) The Foucault Fifect ~ studies in gonornmentalty Chicago: Tae University of Chicago Press (que coniém contributos de diversos investigadores que partcparam nos semindtios ddados por Foucault em Paris, bem como uma introducio importante da autoria de C Gordon) 4 Ver L Popkewitz & M Brennan (cooids } (1998) Foucault's Challenge Discourse — Rnowledege and ra | evucaca, socrepape & curruras © aspecto positivo deste acolhimento de Foucault na esfera da educagio é que, tal como o préprio Foucault, Popkewitz e Lindblad ndo reduzem as rees- truturagdes da esfera educativa ocorridas pa tiltima década A politica ¢ 8 econo- mia neoliberal de direita, mas antes expiotam o papel desempenhado pelos discursos liberais sobre as formas de governo® O aspecto negativo reside no petigo de se assumit que estes discutsos oficiais sf as causas € 0s instrumen- tos da acco Contudo, no que toca A maiot parte da andlise de discurso de pendor construcionista, jf ndo se tata de uma tendéncia ligeita ou de um perigo menor. Foucault torou-se 0 pai de um culturalismo idealista € radical- mente relativista Trata-se jf no de uma historia das ideias, mas de ideias que fazem a histosia (cf N Rose [1989] Governing the Soud, Londres: Routledge) Tal como Steensen, podemos perguntar: acreditamos realmente que aquilo que © governo, os médicos, 0 media, os patticipantes nos dizem corresponde a verdadeira explicacdo do funcionamento do mundo? F 4 tetdrica desenvolvida pelos conselhos de investigacao, pelo Ministério da Educagio, pelos partidos politicos, pelos sindicatos, pelas Faculdades de Educacio, pelas escolas de for- magic de professores, pelos sindicatos de professotes, pelos grupos de peda- gogia critica, pelas associagdes de pais, pelos media, que devemos o sistema escolar que tivemos na tltima década? H algum socidlogo que tenha provado que estes discursos foram a causa do que aconteceu na educacdo ao longo dos uiltimos 10 anos € possam explicé-lo dessa forma? Ninguém se atreveria a dizer tal coisa, pois aquilo que sucedeu foi muito diferente do postulado pelas retéri- case devew-se, na sua maior parte, 2 outtas razdes_ Ef evidente, contudo, que os discursos acompanharam os acontecimentos teais, ¢ viveram a sua vida paralelamente aos cursos teais de acco Discursos ¢ acontecimentos sio duas faces da mesma tealidade que desejamos explicar, mas nao sio os discursos que explicam os acontecimentos Todavia, a insisténcia foucaultiana na necessidade de investigacio sobre os modos modemos e pés-modernos de governacio em selaco com os discursos power in education; 8 Lindblad & T Popkewitz (cords) (2001) Listening to education actors on govemance and soctal integration and exclusion, Uppsala Reports on Education, n° 3739) CF tame bém J Steensen, Teacher Education Divensjied (no prelo) > Gowmance no original inglés ~N do I grUCACay socrepanr & curruras produzidos no seio do movimento liberal que vai de Maquiavel a Hayek foi frequentemente entendida como um apelo 4 testauraco da ideia humanista da governacio através do discutso, da acco peto significado e pela comunicagio ¢, por fim, da accéo como nada mais do que significado ¢ comunicacio, isto em virtude daquilo a que Bourdieu chamou de esto escoléstico, confirmado pela tradicao tacionalista ocidental e reforgado por sucessivas orientacdes, nas ciéncias sociais, dos factos para o significado, do significado para a linguagem € pata a comunicagao, do discurso para a construgao. Alguns destes mal-entendidos tém na sua origem a préptia forma como Foucault apresenta a sua investigac2o Por exemplo, ele anuncia 20 mundo que 8 seus livros séo sobre a loucusa, as prisdes ¢ as escolas, a medicina clinica, a sexualidade € a governago quando, em boa verdade, so acesca de coisas bem distintas Foucault nunca adquitiu os insttumentos necessarios para 0 estudo da histéria das praticas sociais reais Ele estuda aquilo que aparente- mente pode ser analisado através do recurso aos instrumentos da filosofia e da histéria das ideias Os seus livros sao acerca de formas de alocar temas ao con- texto intelectual, de conceptualizar, enunciat e pensar a loucura, as prisGes, a governagao, etc Sabemos, contudo, por intermédio da histéria social e da sociologia, que nao existem razbes para crer que as coisas sao implementadas tal como expresses nos discursos Pelo contrdrio: a experiéncia diz-nos que é aconselhavel partirmos da hipdtese oposta Um dos aspectos inieressanies da sociologia teflexiva de Bourdieu é que, para compreendet e suprit a lacuna existente entre 0 quadro de referéncia declarado, os motivos € as intengdes e 0 comportamento observavel concreti- zado, teve de contornat a explicacao inicialmente ofesecida por Marx, que assentava nas nocgdes de alienacao, mercadoria fetiche, ideologia e falsa cons- cincia Na teoria da pratica de Bourdieu, 0 sentido pratico do agente con- fronta um campo de operagao, mas nao é a concepgao pessoal que o agente possui da situagdo que guia a sua accio — na medida em que expressa a sua selagio imagindiia com a situacdo real - mas sim o sentido pritico incorporado do agente, enraizado numa acumulagio de historia real O proprio agente nao sabe exactamente o que est a fazer nem porqué; quando muito, pode-se dizer que o agente actua sobre a sittagao. No entanto, no momento da sua actuagio podemos colocar a hipdtese da existéncia de uma harmonia pré-estabelecida gpUCAcgy socizpape & curruras enue a acco ¢ a situacao na medida em que o sentido pratico € a situacio incorporada, pelo menos em condigdes telativamente estiveis Nos textos que seguidamente analisarci, Bourdieu insiste em que a princi- pal diferenga entie ele e Foucault reside nos conceitos de campo € habitus Precisamos, assim, de nos debrugar mais atentamente sobre a sua teotia da pra- tica € sobre os seus conceitos de habitus/sentido pratico Bourdieu sempre argumentou que a accdo social humana consiste tanto numa dimensao de tela- ges objectivas como numa dimensZo de envolvimento subjectivo A acco social humana é entio entendida como sendo guiada por uma orientacio objectiva que € mais everdadeirar ¢ adequadar do que aquilo que ¢ «conhecido» pelas intengdes subjectivas do agente A acco social humana assemelha-se a uma Orquestra que toca sem maestro Os adeptos de Bourdieu tendem a subes- timar este aspecto porque ele faz recordar o marxismo ou o estruturalismo, ov mesmo ambos No meu entender, contudo, este é precisamente o elemento mais inovador da teotia da prética de Bourdieu Explica por que é que, na sua vida quotidiana, as pessoas normais actuam cle forma razoavelmente adequada as situagdes em que se encontiam, independentemente das ideias loucas que frequentemente demonstram possuir acerca dessas situacdes: 0 seu sentido pra- tico nao presta atencao ao seu discurso Foucault apresenta uma ideia de alguma forma semelhante, tal como suge- rem Dreyfus e Rabinow (1982: 187) referindo-se ao primeiro volume da Historia da Sexualidade Para concluit os seus comentarios acerca dos textos de Foucault, nas quais recorrem a formula Como falar de intencionalidade sem un sujeito, de estratégia sem estiategor, os autores utilizam uma comunicagio pessoal de Foucault, na qual ele afisma: «As pessoas sabem o que fazem, é frequente saberem por que razio fazem aquilo que jazem; 0 que nao sabem é as consequéncias daquilo que fazems Existe no entanto uma diferenga subtil: Bourdieu nao est4 propriamente a considerat os efeitos colaterais inesperados ou perversos, ¢ nfio afirmaria, sem nada acrescentar, que o agente sabe o que faz Ditia antes que, na realidade, 0 agente ndo conhece totalmente o contetido daquilo que zesulta das suas accées A afirmacio acima constitui assim um resumo bastante preciso do grUcacay socispanz & cuiruras ponto de vista de Foucault, mas apenas dele Essa afirmagao parece indicat que ‘na acco social humana, tal como na acgZo politica, temos de Kar com dis curso, procedimentos € tecnologias explicitos ¢ conscientes Se os tomatmos. como afirmagdes © ndo como proposigies ldgicas ou imputagdes de poder, os discursos sio claros € transparentes Nao hé signiticados profundos para inte1- pretar, intengdes ocultas para desvendai, conspiragGes demoniacas para tevelar Contudo, 0 resultado das praticas discursivas e nao discursivas é diferente daguilo que se pretendia ¢ se tentou alcancar Ou, pelo menos, tais praticas funcionam de acodo com uma outra légica, que as intengdes e as tecnologias nao contiolam, £ interessante constatar que, na sua introducio a Bourdieu em An Invitation 10 Reflexive Sociology (1999), Loic Wacquant refere-se a esta citagao (pagina 25, nota de rodapé 46), com cuidados semelhantes: Esta nogdo de ‘estratégias sem estratego’ (presente nos trabalbos de Bourdieu), ndo é assim tdo diferente da de Foucault excepedo feita a que @ este tiltimo falta 0 conceito de habitus para proceder a uma articulagdo com as estruturas objectivas legadas pela histéria as prdticas histéricas dos agentes e, desde logo, um mecanisimo explicativo do desenbo social e do sig- nificado objectivo das estratégias» «Muito embora Bourdieu partilbe com Foucault uma concepcdo construti- vista da racionalidade e uma concepcdo historicista do conbecimento tejetta a sua epoché da questéo da cientificidade Enquanto Foucault, abracando uma espécie de agnosticismo epistemologico, se conienia em sus- pender a quesido do significado e da verdade através de uma ‘suspensao ortogonal dupla’ (Dreyfus e Rabinow, 1983) da causalidade e da totalidade, Bourdieu analisa-as por referéncia ao funcionamento do campo cientifico Neste aspecto, tal como no que diz respeito ds estratégias ‘ndo iniencionais’ de poder, 0 conceito de campo marca uma divisdo profunda entre Bourdieu e Foucault: (Bourdieu ¢ Wacquant, 1999: 48, nota de rodapé 86) -Relativamente a questdo da descontinuidade histérica e das vaizes tempo- rais das categorias conceptuais ou epistemes, existem muitos paralelismos qUCAca, socrepane & curruras entre Bourdieu e Foucault, alguns dos quais podemos remontar a formacdo em historia da ciéncia e da medicina que ambos partilbaram sob 4 orienta- ¢do de Cangutibem As principais diferencas encontram-se na bistorictza- ¢Go da razdo desenvolvida por Bourdieu através da nogdo de campo» (Bourdieu e Wacquant, 1999: 94, nota de 1odapé 41) O proprio Bourdieu remete para as diferentes condicdes sociais de vida ¢ para as diferentes biografias a explicacao de algumas difeencas entre 0 seu trax balho ¢ o de Foucault -Existe, na verdade, uma parte do trabalho de Foucault (que, evidentemento, dio se pode resumir a i380) que teoriza a revolta do adolescente em colisao com a familia e com as instituigdes que transmitem a pedagogia familiar e impoem ‘disciplinas' (a escola, a clinica, 0 manicémto, o hospital, entre outras), isto é, com formas de controlo que claramente extertores As revoltas adolescentes traduzem frequentemente negacées simbdlicas, respostas utépi- cas aos controlos sociais gerais que fazem com que se evite desenvolver uma andilise exaustiva das formas bistoricas especificas, especialmente das dife- renies formas assumidas pelos constrangimentos que incidem sobre agentes de diferentes meios, bem como de formas de controlo social bem mais subtis do que aquelas que operam através do exercicio dos corpos» Se alharmos 0 conjunto dos trabalhos e da vida de Foucault verificamos que existe, sem divida, um sentimento anarquista de 1evolta na base de tudo Creio que Bourdieu no tem por intengdo diminuir a forga desta posicao suge- indo que se trata da atitude imatura de um eterno adolescente Pelo contritio: a sua intengio € tomar claro que pode existir um padido de pensamento asso- ciado a uma determinada posigio, padrio esse que pode set enconitado nos: adolescentes burgueses ocidentais Também é verdade que, enquanto socidlogo da educacio, Bourdieu sentiu- -se seguramente questionado por uma obra como Vigiar e Punir, que tapida- ‘mente se tornou uma espécie de Biblia em circulos influenciados pela Feoria Critica em pedagogia Essa obra de certa forma contraria a tese de Bourdieu segundo a qual a Pedagogia Critica, tal como toda a pedagogia, envolve violén- _v¥CACES socrspape & curruras cia simbélica O livto de Foucault pode facilmente ser confundido, ¢ foi-o mui- tas vezes, com uma dentncia da violencia simbélica como algo que pode ser e sera evitado A citagao acima constitui igualmente uma critica 4 tendéncia de Foucault para descrevet as epistemes apenas com base nas suas caracteristicas formais, sem olhar 2 sua génese e conteédo. Quando mudam, mudam como as cama- das geolégicas reorganizadas por um tremor de tetra, e ndo como a historia de um campo de saber e accao £ inegavelmente correcto dizer-se que Foucault tem tendéncia a colocar tudo no mesmo nivel: a ciéncia € os saberes, o impli- tito © © explicito, as expressdes, as proposigdes ¢ as afirmagées, as praticas discursivas ¢ nao discursivas Mesmo quando distingue analiticamente esses conceitos, eles referem-se sempre a entidades que, sejam tedricas sejam con- cretas, habitam o mesmo territério € disputam as mesmas coisas Mais do que analisar 0 modo como as coisas funcionam, Foucault assinala que elas funcio- nam de uma determinada forma Mais do que explicar a dialéctica entre esiru- tura e agéncia, Foucault aglutina-as Talvez seja isso que pretendeu dizer quando uma vez afirmou que desejava ser considerado um -positivista rela- xadow: 0 que vale € 0 que € dito como facto € nao todos os sentidos subjacen- tes, usos, fungdes e origens possiveis daquilo que é dito A questo € entéo a de saber se o que Foucault diz acerca deste tema ¢ 0 mesmo que Bourdieu ou, pelo contratio, € precisemente o oposto Ambos apontam para o mesmo aspecto e apresentam a solugdo num quadro similar Contudo, os argumentos de cada um so expressos de forma bem distinta Pessoalmente, prefiro a abordagem de Bourdieu porque abarca tanto o agente como a estrutura, o discurso como a acgio, respeitando as suas lOgicas nao s6 diferentes como também antagonistas; esta abordagem ndo esté assim exposta ao perigo que actualmente devasta uma boa patte das ciéncias sociais e que, fruto de uma constante depreciacao do positivismo e do behaviorismo, condu- ziu a ideia absurda de que a acco social se reduz a significado Ha um outro aspecto 1elativamente ao qual Bourdieu e Foucault estao par- cialmente de acordo: a questio da racionalidade Se por Modernidade entende- mos a posic¢ao de Descartes e dos seus seguidores durante o século XVII, por Tluminismo a posigio de Kant ¢ daqueles que o apoiaram em finais do século XVIH, € por Filosofia do Espirito Hegel € os seus seguidores, estamos a apontar yUcacay sociepape & curruras para a convicgo fundamental ¢ bisica de que o sujeito humano possvi uma capacidade autonoma de conhecimento racional € de actuacio livie em benefi- cio proprio Darwin, Marx ¢ Freud demonstraram que esta filosofia da identi- dade € indefensivel na medida em que o dito sujeito auténorno no é idéntico a si proprio, mas possui uma identidade deslocada, dita racional quando as suas bases residem isracional, ete Foi Nietzsche quem formulou as conclusdes aparentemente nihilistas desta perspectiva Tanto Bourdieu como Foucault foram influenciados por Nietzsche Em Science de le Science et Réflexivité, Bourdieu cita 2 afirmacio de Nietzsche: Receio que nunca nos libertemos de Deus enquanto continuarmos a acreditar na graméticas (2001: 11 A citacto & retirada do Crepiiscutlo dos Idolos) Poderiamos assim ser tentados a juntar Bourdieu ¢ Foucault, pos-modernis- tas, contra Habermas, 0 tiltimo dos modernistas Veremos em seguida que isso seria um erro Bourdieu tentou sistematicamente demonstrat que existe uma posicio no interior desta dicotomia ou, dito de outra forma, uma posigo que a transcende Uma posicdo que recusa qualquer tipo de tacionalismo tanscen- dental, mas na qual o empreendimento cientifico, protegide pelas suas condi- cOes externas € pelas suas caracteristicas internas, constitui um campo especi- fico no espace social Habermas escteveu uma vez um texto polémico € famoso acerca de Foucault, no qual argumenta que a posigio de Foucault € autodesttutiva se analisada em termos l6gicos: se aplicarmos a teoria da ciéncia de Foucault ao seu proprio trabalho, a teotia revela-se autocontraditéria (cf Habermas, 1985). Julgo que, neste aspecto, Habermas se equivocou . Tanto Foucault como Bourdieu aceitam a aplicacio da sua teoria aos seus prOprios trabalhos O resultado ndo é uma auto-contradicio, mas mais um asso numa interminavel viagem na reflexividade Aquilo que negam € precisa- mente aquilo que Habermas procura fazer: apontar para uma base tiltima do argumento Neste ponto, Bourdieu concorda, contra Habermas, com Foucault Critica Foucault, no entanto, por este trabalhar com teses filoséficas gerais em ver, de proceder a uma verificagdo caso a caso dos resultados ¢ dos métodos utilizados para os obter erUcacay socrepans & currunas Bourdieu e a critica metodolégica a Foucault: The Rules of Art (1996) € The Field of Cultural Production (1993) Bourdieu sempre teve muita vontade de afirmar claramente, conira toda a gente se necessirio fosse, que néo € verdade que aquilo que as pessoas pen- sam acerca das suas pidptias accdes constitui a verdadeira explicacio dessas acgées, pois que 2 inten¢io nao € a sua Gnica causa ou motivo Para além disto, Bourdieu desejava também esclarecer algo acerca da produgao cultural, das ideias, dos discursos, dos motivos ¢ da sua orquestraco na ciéncia e na arte Designadamente, desejava assinalar que o discurso nao s6 nao provoca a accio, e portanto nao a explica, como nem sequet se explica a si proprio Tal como refere num belissimo texto do preficio 4 segunda edicao do Homo Academicus (1987. «A construgdo do campo da producdo (cultural) implica uma ruptuca com objectificacées ingénuas e indulgentes, desconbecedoras das suas ont- gens FE uma abstraccdo injustificdvel procurar a fonte do entendimento da troducdo cultural nessas ndprias produgées, consideradas isolada- mente, afastadas das suas condicées de produgda e wtilizagdo, como preten- deria a aniilise do discurso que, situada na fronteira da sociologia e da lin- guistica, caiu actualmente em formas indefensdveis de andlise interna: (Bourdieu, 1987: XVI-XVID A propésito, podemos constatar que Bourdieu antecipou em pelo menos duas décadas inovagées produtivas como o estruturalismo construtivista, assim como a deniincia de erros que alastraram 1apidamente em nome do construti- vismo e da andlise do discurso Em The Rules of Art, Bourdieu demonstra a produtividade da sua teoria acerca da autonomia relativa dos campos culturais em relagdo ao espaco social, da sua teoria da génese e estiutura dos campos culturais e da sua tesposta a questdes de método relativas a0 estudo da produgdo ¢ dos produtos culturais © Devemos aqui recordar que a famosa palestra de Foucault sobre -A Ordem do Discurso data de 1971, ¢ 2 sua obra A Ondem das Cosas de 2972

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