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Colegio Texts Floscot ian 3d andameno pra une iatoal cate isch aia drag moda Grae sta flosofa? Identidade © etaoiee de Arsotes © 13 - Sabrea ‘tints eletnge ds Gposiconailice-Octerento ‘etme fie emendutn em erospecta- Yo Hesmendtes 2 Ross prstes Freon fea teas ou un boca de iota de Sina ae em nodna ‘losopa do frura Ss NUSIOSE os arsine Hone Gor Gas acca a romenologia Haas Rist, Ted Aino Ages nor are ieee ‘emelages corer coomogsnics ‘Aisaeerodacsospes “aoe gels asset eegger Caprese fundamental da ieromondo Slog Renta dae etaics Jean-Paul Sartre A transcendéncia do Ego Esbogo de uma descricao fenomenoldgica Introdugio e notas Sylvie Le Bon ‘Traducao de Joao Batista Kreuch y EDITORA VOZES Petropolis Introdugao 0 Ensaio sobre a transcendéncia do Ego! & a primeiris- sima obra filosdfica de Sartre. As Gnicas duas publicacoes que a precederam, de fato, néo podem ser consideradas como pesquisas filoséficas propriamente ditas. Uma € um artigo sobre a teoria realista do direito em Duguit, publicado em 1927; a outra, A lenda da verdade (La legende de la vérité)?, em que Sartre expunha suas ideias sob a forma de um conto, publicado em 1931 na revista Bifur. Com este ensaio, Sartre inaugura, portanto, um trabalho de investigacaio que desembocara em O Ser ¢ o Nada. Tam- bém a cronologia confirma a incontestavel unidade de suas preocupacées filosoficas nesse periodo: pode-se dizer que todas as suas obras dessa época foram, se nao redigidas, 20 menos concebidas, ao mesmo tempo. O Ensaio sobre a transcendéncia do Ego foi escrito em 1934, em parte durante a estadia de Sartre em Berlim para estudar a fenomenologia de Husserl. Em 1935-1936, ele escreveu ao mesmo tempo A imaginagao (L'imagination) e O imaginario (L'Imaginaire) publicados respectivamente em 1936 € 1940, e depois, em 1937-1938, A psique (La Psyché), que ele jé havia idealizado em 1934, Da Psique ele separou 0 que se tornaria o Esbo- co de uma teoria fenomenolégica das emogées (Esquisse d'une théorie phénoménologique des émotions) e que foi publicado em 1939. Lembremo-nos, enfim, que O Ser e o Nada (L'Etre et le Néant) veio logo em seguida, e foi publi 4. Essai sur la transcendance de I'Ego, publicado pela primeira vez em Recherches philosophiques, em 1936, e nunca mais reeditado. 2. Cl. BEAUVOIR, S. La force de I'age. Gallimard, 1960, p. 49. cado em 1943. Nessa iltima obra, ele reteve explicitamente suas conclusées do Ensaio sobre a transcendéncia do Ego”, completando e aprofundando, no entanto, a refutagao do so- lipsismo, considerada insuficiente. Sartre nao renegaria esse ensaio da juventude se nao em um Gnico ponto que, ademais, encontra-se muito pouco de- senvolvido: trata-se de quanto tange a psicandlise. Ele revisou totalmente sua antiga concepcao - sua rejeicao - do incons- ciente e da compreensao psicanalitica e nao defenderia mais ‘suas prevengdes anteriores nesse dominio. Mas a teoria da estrutura da consciéncia em si, assim como a ideia fundamental do Ego como objeto psiquico transcendente, s4o sempre as suas. A melhor apresentagao desse denso, embora curto, ensaio {oi feita por Simone de Beauvoir, ¢ 0 melhor é reproduztla aqul, 0 Ensaio sobre a transcendéncia do Ego, escreve ela‘, “des- creve, sob uma perspectiva husserliana, mas em oposicéo a algumas das mais recentes teorias de Husserl, a relagao do ‘Moi” com a consciéncia; entre a consciéncia e o psiquico ele estabelece uma distingao que ira manter sempre; enquan- to a consciéncia € uma imediata e evidente presenca de si, © psiquico um conjunto de objetos que nao se distinguem endo por uma operacao reflexiva e que, como os objetos da percepcao, dao-se apenas como perfis: 0 édio, por exemplo, um transcendente que se apreende através das Erlebnisse cuja existéncia é somente provavel. Meu Ego é, ele mesmo, um ser do mundo, tanto quanto o Ego dos outros. Assim, Sartre fundava uma de suas crencas mais antigas e mais obs- tinadas: existe uma autonomia da consciéncia irrefletida; a relagéo com 0 eu que, segundo La Rochefoucald e a tradicéo 3. Cf. O Ser eo Nada, 22. ed. Petropolis: Vozes, 1997, p. 195 € 221. 4, BEAUVOIR, S. La force de V’age, p. 189-190. *Sobre a manutencao do termo frances Moi, cf adiante a nota do tradutor, sob o titulo 1*O Eu e 0 Mol", p. 15 [N.T.) Psicolégica francesa, perverteria nossos movimentos mais esponténeos, aparece somente em algumas circunstancias particulars. © que Ihe importava, sobretudo, é que essa teo- tia, e apenas ela, dizia ele, permitia escapar do solipsismo, do psiquico, do Ego existente para o outro e para mim da mes ma maneira objetiva. Abolindo o solipsismo, evitavam-se as armadilhas do idealismo e, em sua conclusao, Sartre insistia no alcance pratico (moral e politico) de sua tese”. Sartre A TRANSCENDENCIA po Eo Esbogo de uma descrigdo fenomenolégica Para a maioria dos filosofos o Ego & um “habitante” da consciéncia. Alguns afirmam sua presenca formal no seio das “Erlebnisse”, como um principio vazio de unificagao. cea Outros - na maioria psicélogos - pensam descobrir sua pre~ caeelsn rea Te STR TET FOREST senga materiel, como centro dos desejos e dos atos, em cada tor conformne 0 rtigo publicado em 1936: enquanto as ee eee Sata neat je tihis Ur ce aftr doemnes paneeata ds aamanon, ‘rar aqui que o Ego nao est nem formalmente nem material- mente na consciéncia: ele esta fora, no mundo; é um ser do mundo, como 0 Ego do outro, | 0 Eueo “Moi”* A) Teoria da presenca formal do Eu ‘Temos que atribuir a Kant que “o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representacées”?. Mas é preciso concluir que um Eu, de fato, habita todos os nossos estados de consciéncia e opera realmente a sintese suprema de nossa experiencia? Parece que isso seria forcar o pensamento kan- tiano. O problema da critica sendo um problema de direito, Kant nao afirma nada sobre a existencia de fato do Eu Penso. Parece, ao contrario, que ele tenha perfeitamente visto que havia momentos de consciéncia sem “Eu”, ja que diz: “deve * Sartre utiliza as duas formas de "Eu", presentes na lingua francesa, como substantivos invarlavels: respectivamente “Je e “Mol”, que so indistingut vels em portugués, correspondendo ambos 20 pronome e substantlvo "Eu" Ao fazéo, diferencia “duas faces” do Ego que, afinal, compéer uma unida de (cf. adiante, p.39. Cf. tb. a distingdo do uso desses dois termos pelo autor explicada por Sylvie Le Bon a nota de rodapé 12, p.19,). Observase que nas ttaducoes das obras de Sartre tem-e recorrido @ diferentes formas de lidar ‘com essa dificuldade para distinguir 0 “Eusle” do "Eu-Mol”. O mais comum tem sido usar "Eu" e “Mim” respectivamente (ef. O Ser e 0 Nada. Petropolis: Vozes, 1997, p. 221). No entanto, entendemos que © uso de *Mim’ na ccorresponde a0 “Moi”, aqul substantive, mas o enfraquece, pols o "Mé frances nao é apenas um pronome obliquo que poderia set traduzide por “mim” ou “me”, mas uma forma substantivada que, no uso corrente, equiva Je 20 pronome pessoal reforgando a individualidade ea distingdo do sujeito| {que fala, Setia algo como “Eu-mesmo”, “Mewet" ou “Euquantoa-mim” ‘Assim, na falta de um correspondente a altura, © substituigao por ura for. ‘ma menos densa que nao corresponde ao original, preferimos aqui manter 0 termo original Moi, convidando © leitor a adentrar'se no sentido flosofico do ‘conceito comesando pela compreensao de seu significado primario (N.T., 1. Critique de la Ralson pure, seconde éd, Analytique tanscendantale, L ‘ch. 2,2 section, § 16: De unite originairement synthetique de ’aperceptior CE igualmente § 17-18 (Traduction TremesayguesPacaud, p. 110-118). poder acompanhar”. Trata-se, com efeito, de determinar as condigdes de possibilidade da experiencia, Uma dessas con- digdes € que eu possa sempre considerar minha percepcéo ou meu pensamento como meu: eis ai tudo. Mas existe uma tendéncia perigosa na filosofia contemporénea ~ cujos tracos poderiam ser encontrados no neokantismo, no empirio-criticis- mo e num intelectualismo como o de Brochard - que consis- te em realizar as condicoes de possibilidade determinadas pela critica’. E uma tendéncia que leva alguns autores, por exemplo, a se perguntar o que pode ser a “consciéncia trans- cendental”. Se a questdo é colocada nesses termos, somos obrigados naturalmente a conceber essa consciéncia - que constitui nossa consciéncia empirica - como um inconscien- te. Mas Boutroux, em suas licées sobre a filosofia de Kant, fazia ja justica a essas interpretacdes. Kant nunca se preocu- pou com o modo com que se constitui de fato a consciéncia ‘empirica, ele nao a deduziu, absolutamente ao modo de um proceso neoplaténico, de uma consciéncia superior, de uma hiperconsciéncia constituinte. A consciéncia transcendental, para ele, € apenas 0 conjunto das condicées necessérias & existencia de uma consciéncia empirica. Consequentemen- te, realizar o Eu transcendental, fazer dele 0 companheiro insepardvel de cada uma de nossas “consciéncias”, é julgar sobre 0 fato e nao sobre 0 direito, é posicionar-se em um. ponto de vista radicalmente diferente do de Kant. E, no en- tanto, se se pretende autorizar-se consideracdes kantianas so- bre a unidade necessaria a experiencia, comete-se 0 mesmo erro daqueles que fazem da consciéncia transcendental um inconsciente pré-empirico, 2. O neokantismo ¢ representado por Lachelier ¢ Brunschvicg: 0 empirio- cifiticismo por Mach; quanto a Victor Brochard (1848-1907), ele nao era apenas historiador da flosofia antiga: fol 0 autor de urna tese: De l'Erreur (Sobre o e770 ~ 1879) e de diversos artigos de filosofia ou de moral recohi dos 20 final da obra: Etudes de philosophie ancienne et de philosophic ‘moderne (Estudos de filosofia antiga e de flosofia moderna. Vin, 1954). 3, BOUTROUX. La phillosophie de Kant (A filosofia de Kant), curso pro- ferido na Sorbonne em 1896-1897. Paris: Vrin, 1926. Empregarel aqui o termo “consciéncla” pare traduzir a palavra ales “Bewusstsein” que significa tanto a consciéncia total, @ monada, como ‘cada momento dessa consciéncia. A expressao “estado de consciéncia” me parece inexata por causa da passividade que ela introduz na conseléncia, | O Eu eo “Mor 7 Se, portanto, se atribui a Kant a questao de direito, a ques- to de fato nem por isso fica resolvida. Convém, portanto, co- locérla aqui claramente: 0 Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representagdes, mas as acompanha de fato? Suponhamos, ademais, que uma certa representacao A pas- se de um determinado estado em que o que Eu Penso nao a acompanha para um estado em que o Eu Penso a acompanhe; esse caso, segue-se para ela uma modificacdo de estrutura ‘ou antes ela permaneceré inalterada em seu fundo? Esta se- gunda questdo nos leva a colocar uma terceira: o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representagdes; mas deve-se entender com isso que a unidade de nossas represen- tacées ¢, direta ou indiretamente, realizada pelo Eu Penso - ou entdo deve-se compreender que as representacées de uma consciéncia devem ser unidas e articuladas de tal modo que um "Eu Penso” de constatagao seja sempre possivel a propos to delas? Essa terceira questdo parece colocar-se no terreno do direito ¢ abandonar, nesse terreno, a ortodoxia kantiana. Mas trata-se, na realidade, de uma questo de fato que pode ser formulada da seguinte forma: o Eu que encontramos em nossa consciéncia é possibilitado pela unidade sintética de nossas representacdes ou sera ele que unifica, de fato, as representa- Ges entre si? Se abandonarmos todas as interpretacdes mais ou me- nos forcadas que os péskantianos deram ao “Eu Penso" ¢ quisermos, no entanto, resolver 0 problema da existéncia de fato do Eu na consciéncia, encontraremos em nosso camninho a fenomenologia de Husser'*. A fenomenologia & um estudo cientifico e ndo critico da consciéncia®. Seu procedimento es- sencial é a intuicao. A intuic&o, de acordo com Hussetl, nos 4. Em Limagination (PUF, 1936), a proposito do problema singular da Imagem, Sartre separa os tragos gerals da revolugao filossfica que fot 0 surgimento da fenomenologia. Como aqui, ele insiste na fecundidade de lum método que se quer descritiv, mesmo se 05 “fatos” que Ihe apresenta a Intuigdo $40 essencias. “A fenomenologla & uma descricao das estrutu- ras da consciencia transcendental fundada sobre a intulcao das essencias ddessas estruturas" (cap. IV: "Husser”, p. 140). '5. Husserl desenvolve esse projeto em La philosophie comme science rigoureuse (A flosofia come ciéncia rigorosa) (1911). fencia do Ego coloca em presenca da coisa®. Tem-se, entao, que entender que a fenomenologia é uma ciéncia de fato e que os proble- mas que ela coloca sao problemas de fato”, como, ademais, pode-se compreender considerando que Huser! a denomi- na uma ciéncia descritiva’. Os problemas das relacées do Eu com a consciéncia sao, portanto, problemas existenciais. A consciéncia transcendental de Kant, Husserl a encontra distingue por meio da éroxr’. Mas essa consciéncia ndo é mais um conjunto de condigées légicas, é um fato absoluto. ‘Tampouco uma hipéstase do direito, um inconsciente que flutua entre o real ¢ 0 ideal. E uma consciéncia real acessivel cada um de nés desde que tenha operado a “reducéo”, Res- 6. "Nos atos de intuicdo imediata, temos a inuigao da ‘cosa em si mes rma’, [dees direcirices pour une phénoménologle (Ideias diretrzes para uma fenomenologia) (que designaremos por Ideen 1), § 43 (Trad Ricoeur, p. 139) . Husser! dia: uma ciéncia de esséncias. Mas para o ponto de vista em ue nos situamos isso dé na mesma 7. "Ciencia de fto" ¢ ‘ciéncia de esséncias” ~ ou ainda “ciéncia eidética”, esas expresses, aqui, dao na mesma, Com efeto, Sartre nao esta se ree. ‘indo, nesse momento, oposicao ~ em outros locas essencial - entre fato empifco e esséncia, mas a oposigao, mais global, entre problemas de ato.e problemas de dre. Ora, flo esséncia aparecem em bloco camo dados, 0 essencial(aqul) ¢ precisamente que a fenomenclogiaseja a ciéncia de lum dado (material ou ideal, pouco importa por enquant), face 8 perspec: tiva aniane que coloca a questo do pure direlto. E porque ela visa um dado, um conjunto de fotos, que a fenemenologia € uma cienca descritiva Por outo lado, se ¢ verdade que Husseri quis undar uma “ciencia de essen clas" ou “eidéica",@ necessério considerar sobretudo aqui que estas e& séncias so apresertadas com certeza, em ura vista imediat, exetamente como o seriam os objetes. Desse ponto de vista, elas S80 fatos (ideas). “A essencia Erdos ¢ um objeto de um novo tipo. Assim como na intuigao do individuso ou intuicao empirica, o dado € um objeto individual. assim também o dado da intugao eidetica€ uma esséncta pure, [| A intulgao das esséncias Wesens Schaung ela também é uma intuigdo, eo objeto et dético, também ele um objeto", deen I, 1* section, ch. "Feit et essence”, 3 (Trad. Ricoeur, p. 21) 8. A énoxt(epoché), a reducdo fenomenotogica, é a colocagao entre pa rntesis da atitude natural, sempre marcada por um realismo espontaneo, Sartre designa também, seguindo Husserl, esse consciéncia natural pela expresso “consciéncia intramundana”, Sobre isso ou sobre es reducbes, -Ideen I, cap. WV da 2 sessao, § 56 a 62 (Trad. Ricoeur, p. 187 a 208); € as Meditations cartesiennes,§ 8 (Trad. Levinas, p- 17-18) 1 0 Eu 20 °Mo’ 19 ta 0 fato de que é ela que constitui nossa consciéncia empiri- a, essa consciéncia “no mundo”, essa consciéncia com um “eu” psiquico e psicofisico. Quanto a nés, preferimos acredi- tar na existéncia de uma consciéncia constituinte. Seguimos Husserl em cada uma das admiréveis descricdes® em que mostra a consciéncia transcendental constituindo o mundo a0 aprisionar-se na consciéncia empitica; estamos persuadi- dos como ele de que nosso eu psiquico e psicofisico é um objeto transcendente que deve cair sob a acao da éroxr”. Mas nés nos colocamos a seguinte questdo: Esse eu psiquico € psicofisico nao é suficiente? E preciso duplicé-lo em um Eu transcendental, estrutura da consciencia absoluta?"’ Vejamos. as consequéncias da resposta. Sendo negativa, resulta: 1) que 0 campo transcendental toma-se impessoal, ou, se preferirmos, “prépessoal’, ele € sem Eu; 2) que o Eu aparece somente no nivel da humanidade e nao é mais que uma face do Moi, a face ativa'?; 3) que 0 Eu Penso pode acompanhar nossas representa Oes porque ele vern a tona sobre um fundo de unidade que nao contribuiu para criar e que, ao contrario, € esta unidade anterior que o torna possivel; 9. Aquelas das Ideen I, principalmente. 10. “Para mim, sujelto meditante,situado e persistente na éroxt, ¢ colo- candome assim como fonte exclusiva de todas as afirmagées ¢ de todas as justiicacoes objetivas, nao existe, portanto, nem Eu psicolégico nem fendmenos psiquicos no sentido da psicologia, quer dizer, compreendidos como elementos reals de seres humanos (psicofisicos)", Méditations cart § 11 (Trad, p. 22), 11.0 problema se encontra colocade em Husseri, no § 11 das Meditagdes carteslanas Ja citadas, e intitulado “O Eu psicolégico e 0 Eu transcen- dental". Com efeito, na passager citada na nota 10, Husserl acrescenta Imediatamente: "Pela roxy fenomenolégica, eu reduzo meu Eu humano natural e minha vida psiquica - dominio de minha experiéncia psicolégica, interna ~ 20 meu Eu transcendental e fenomenologico”. Ore, desse Eu transcendental, ele afirma que nao se pode jamais reduztlo. 12. Sartre designa por meio do conceito de "Eu" a personalidade em seu aspecto ativo; por "Moi", ele entende a totalidade concreta psicalogica da ‘mesma personalidade. E berventendide que o Eu e © Moi compdem urna lunidade, eles constituem o Ego, do qual so as duas faces (ct. nota 52) (Cestatuto do Ego, aqui discutido, & adquirido em O Sere o Nada, p. 221. 20 A transcendéncia do Ego 4) que seré licito perguntar-se se a personalidade (mes- mo @ personalidade abstrata de um Eu) ¢ um acompa- nhamento necessério de urna consciéncia € se nao se po- dem conceber consciéncias absolutamente impessoais”. Ora, Husserl respondeu a essa questao. Depois de consi- derar que o Moi era uma producdo sintética e transcendente da consciéncia (nas Investigacdes ldgicas)", ele voltou, nas Ideen (Ideias)"*, a tese classica de um Eu transcendental que estaria como que por detras de toda consciéncia, que seria uma estrutura necesséria dessas consciéncias cujos raios, (Ichstrahl) incidiriam em cada fendmeno que se apresentas- se no campo da atencéo. Assim a consciéncia transcendental torna-se rigorosamente pessoal. Essa concepcao era neces- saria? Ela € compativel com a definicao que Huser! da da consciéncia? Acredita-se ordinariamente que a existéncia de um Eu transcendental se justifique pela necessidade de unidade e de individualidade da consciéncia. E porque todas as minhas ercepcoes e todos os meus pensamentos se reportam a essa morada permanente que minha consciéncia ¢ unificada; € por- que eu posso dizer minha consciencia e Pedro e Paulo podem também falar de sua consciéncia, que essas consciéncias se distinguem entre si. O Eu € produtor de interioridade. Ora, € certo que a fenomenologia nao tem necessidade de recorrer a esse Eu unificador e individualizante. Com efeito, a cons 13. As consequéncias enumeradas constituem o fundo da tese que Sartre 18 defender, em oposiceo aos ulkimos trabalhos de Hussert 14, Recherches Logiques. Tomo I, 2a. parte, V, § 8: *O eu puro € o ter consciéncia” (Trad, p. 159ss.). A evolucao de Huser ¢ perceptive no inte- rior das proprias Recherches Logiques. Com efeito, Husserl escreve: “Alem disso, eu devo reconhecer, verdad, que naa posso absolutamente chegar ‘8 descobrir esse eu primitivo enquanto centro de referénela necessério”. Ao us ele (infelianente) acrescentou na segunda edigao, de 1913, a seguinte nota: “Desde entdo, eu aprendi a encontré-lo, ou compreendi antes, que hgo era preciso deixarse reter, na apreensao pura do dado, pelo temor de ccair no excesso da metafisica do e 15. Cl. [deen I, § 80, para a imagem do ralo¢, sobretudo, § 57: *O Eu puro @ colocado fora de circuito?” (Trad. p. 188). Cf. tb. a 42 Meditacdo carte siana, relativa aos problemas constitutivos do ego transcendental | O Eve 0 "Mor a ncia se define pela intencionalidade'®, Pela intencionalidade, ela se transcende a si mesma, ela se unifica evadindo-se”. A unidade de mil consciéncias ativas pelas quais eu somei, somo e somarei dois com dois para fazer quatro € 0 objeto transcendente “dois mais dois fazer quatro”. Sem a perma- néncia dessa verdade eterna seria impossivel conceber uma unidade real e haveria tantas operacoes irredutiveis quantas consciéncias operatérias. E possivel que aqueles que acre- ditam que “dois mais dois s40 quatro” € 0 contetido de mi nha representacao sejam obrigados a recorrer a um principio transcendental e subjetivo de unificagao, que sera entaoo Eu. Mas precisamente Husserl nao precisa disso. O objeto ¢ trans- cendente as consciéncias que 0 apreendem e é nele que se encontra sua unidade. Dir-se-4 que, no entanto, € preciso um. principio de unidade na dura¢ao para que o fluxo continuo das consciéncias seja suscetivel de definir objetos transcen- dentes fora dele. E preciso que as consciéncias sejam sin- teses perpétuas de consciéncias passadas e da consciéncia 16. Para Sartre, a hipétese de um Eu transcendental como morada pessoal Lnificadora efundacora de toda consciéncia é supérflua, Para ele existe ape- has umn campo transcendental pré-pessoal ou impessoal. Transcenclente tanscendental nao assumem para cle um sentido kantlano, mas an tes um sentido husserlano, tal como & definide por exemplo pelo § 11 das Meditacoes cartesianas, € transcendental 0 campo constituido pelas consciéncias origindrias fomecedoras de sentido. Devemos observar que Sartre abandonara ease tetmo (por demais kantiano?), que no se encon- traré mais, por assim dizer, em O Ser e 0 Nada. A consciéncia € conside- rada conforme ela ¢ireflelida ou rellexiva, posicional ou nao posicional de 5. Nao existe mais Ego nem mesmo campo transcendental. Por outro lado, a transcendéncia de Ego permanece uma tese fundamental. As nocées de transcendéncia e de intencionalidade, com efeit, sao correlativas. ‘A trans cendencia € estrutura constiutiva da consciencia” (cf. O Ser © o Nada, 34), quer dizer que, de improviso, @ consciencia sai de si mesma para dirigirse aos objetos. E 0 que significa a famosa afirmacao “Toda consci- €ncla € consciencia de alguma coisa”. Correlativamente, s30 denominados transcendentes @ consciencia mundo e seus objetos (fisicos, culturais ‘ete,), enquanto eles estao, por definicdo, fora da consciencia, e s8o para ‘la 0 Outro absoluto, 17. Sobre a intencionalidade, confira Iden I, § 84, 3¢ secao, cap. 2: “A in tencionalidade como tema capital da fenomenologia” (Tred. p. 262); bem ‘como o artigo de Sartre publicado nas Situagdes J “Uma idela fundamen: ‘tal da fenomenslogia de Husserl: a intencionalidade” (p, 32-35). a 2 Atranscendéncia do Ego presente, Esté certo. Mas & tipico que Husserl, que analisou em A consciéncia interna do tempo essa unificagéo subje- tiva das consciéncias, jamais recorreu a um poder sintético do Eu. E a consciéncia que se unifica a si mesma e concreta- mente por um jogo de intencionalidades “transversais” que s80 retencdes concretas e reais de consciéncias passadas. Assim, a consciéncia remete perpetuamente a si mesma; quem diz “uma consciéneia” diz toda a consciéncia e essa propriedade singular pertence consciéncia ela mesma, quaisquer que sejam ademais suas relacoes com o Eu’, Parece que Hus- serl, nas Meditacées cartesianas, manteve inteiramente essa concepcéo da consciéncia que se unifica no tempo", Por ou- tro lado, a individualidade da consciéncia provém evidente- mente da natureza da consciéncia. A consciéncia nao pode ser demarcada (como a substancia de Spinoza)” seno por si mesma. Ela constitui portanto uma totalidade sintética ¢ individual totalmente isolada de outras totalidades do mesmo tipo e 0 Eu sé pode ser evidentemente uma expressao (e nao uma condigéo) dessa incomunicabilidade e dessa interio- ridade das consciéncias. Portanto, podemos responder sem hesitar: a concepcao fenomenol6gica da consciéncia torna 0 Papel unificante ¢ individualizante do Eu totalmente inti. E @ consciéncia, ao contrério, que toma possivel a unidade a personalidade de meu Eu. © Eu transcendental, portanto, no tem razao de ser. Mas, além disso, esse Eu supérfluo € nocivo, Se ele exis- tisse, arrancaria a consciéncia de si mesma, a dividiria, es- 18. Sobre a autoconstituicdo do tempo fenomenclégico, veja as Licdes sobre conscléncia interna do tempo (1904-1910), § 39 (Trad, Dussort, p. 105ss.),inttulado “A dupla intencionalidade da retengao e a constituigao do fiuxo da consciencia’, onde Husserl explica que “O fluxo da consciéncla constitul sua propria unidade*, 19. Cf. 4° Meditagao cartesiarta, § 37: "0 tempo, forma universel de toda _genese egologica” (Trad. p. 63) 20. “Por substincia eu entendo aquilo que existe em si e ¢ concebido por si, 04 sea, aquilo cujo conceito ndo precisa do concelto de uma outta coisa para ser formado” (Etica, 18 parte, definicso Il). Sartre diz: “A consciéncia & consciencia de ponta a ponta. Ela 36 podria, pois, serlimitada por si mesma” (O Ser e 0 Nada, Introdusao, p. 27), 1 Eve o “Mor 7 corregaria em cada consciéncia como uma lama opaca. O Eu transcendental é a morte da consciéncia. Com efeito, a existéncia da consciéncia é um absoluto porque a conscién- cia € consciente de si mesma. Ou seja, o tipo de existencia da consciéncia € de ser consciente de si. E ela toma cons- cigncia de si enquanto como € consciente de um objeto transcendente®. Assim, tudo é claro e lacido na consciéncia: © objeto encontra-se diante dela com toda a sua opacidade caracteristica, mas ela, ela ¢ pura e simplesmente conscién- cia de ser consciéncia desse objeto, esta é a lei de sua exis- téncia, Devers acrescentar que essa consciéncia de consc- @ncia ~ fora dos casos de consciéncia refletida sobre os qui nos deteremos logo a frente - nao € posicional, quer dizer, que a consciéncia nao € para si mesma seu objeto”. Seu objeto esta fora dela por natureza, e & por isso que, em um mesmo ato, ela o pde e o apreende. Ela mesma nao se co- nhece sendo como interioridade absoluta. Denominaremos ‘como essa consciéncia: consciéncia de primeiro grau ou ir- refletida. Perguntamos: Existe ai lugar para um Eu em uma consciéncia assim? A resposta é clara: evidentemente nao. Com efeito, esse Eu ndo é nem objeto (j4 que é interior por hip6tese) nem tampouco da consciencla, ja que ¢ alguma coisa para a consciéncia, nao uma qualidade translacida da consciéncia, mas, de alguma maneira, um habitante. Com feito, o Eu, com sua personalidade, é tao formal, tao abstra- 21. “Porse tratar de absoluto de existencia e nao de conhecimento, escapa {famosa abjecso de que um absoluto conhecido nao € mais um absoluto por se tomar relative ao conhecimento que dele se tem. Realmente, 0 absoluto, ‘aqui, nao ¢ resultado de construgae légica no terreno do conhecimento, ‘mas sujeto da mals concreta das experiencias. E nao é relalivo a tal expe: riéncia, porque ¢ essa experiencia, E também é um absoluto nao substan. lal” (0 Ser ¢ 0 Nada, p. 28). a 22. “A transcendéncia & estrutura constitutiva da consciéncia, quer dizer, a consciéncia nasce tendo por objeto um ser que nio € ela. (..] A cons ‘éncia implica seu ser um ser nao consciente e trensfenomenal. (..| A Consciéncia é um ser para o qual, em seu proprio ser, esta em questao 0 ‘eu ser enquanto este ser implica outro ser que ndo si mesmo” (O Ser € 0 Nada, p. 3435). 23, “Toda consciéncla posicional do objeto ao mesmo tempo conscien: cia nao posicional de si" (O Ser e 0 Nada, p. 24), A transcendéncia do Ego to que o supomos como um centro de opacidade. Ele é para © eu concreto e psicofisico aquilo que o ponto é para as trés dimensées: ele ¢ um Mot infinitamente contraido. Se, portan- to, introduzimos essa opacidade na consciéncia destruimos, dessa forma, a definicéo tao fecunda que davamos hé pouco, coagulamos, a obscurecemos, jé nao seré uma esponta- neidade, ela carrega em si mesma como que um germe de opacidade. Mas, além disso, somos obrigados a abandonar esse ponto de vista original e profundo que faz da consciéncia um absolut nao substancial. Uma consciéncia pura é um absoluto téo somente porque ela é consciéncia de si mesma Ela permanece portanto um “fenémeno” no sentido muito Particular em que “ser” ¢ “aparecer” compéem uma unida- de*, Ela 6 completa leveza, completa translucidez. E nisso que 0 Cogito de Husserl se difere tanto do Cogito cartesiano. ‘Mas se o Eu é uma estrutura necessaria da consciéncia, esse Eu opaco ¢ elevado ao mesmo tempo a posicao de absoluto. Eisnos, portanto, na presenca de uma ménada. E é exata- mente essa, infelizmente, a orientagao do novo pensamento de Husserl (cf. as Meditacées cartesianas)®. A consciéncia tornou-se pesada, ela perdeu o cardter que fazia dela o existen- te absoluto por forca da inexistencia. Ela € pesada e ponde- vel. Todos os resultados da fenomenologia ameagam ruir 24, “Na esfera psiquica nao existe nenhume distingao entre aparecer & set. [..] Essas aparéncias em si nao constituem um ser que apareceria, também ele, com a ajuda das aparéncias pelas quals ele apareceria’ Husserl, La philosophie comme science rigoureuse (p. 83 da traducao de @ Lauer). °0 pensamento modemo realizou um progressa considerével a0 reduzir 0 existente a série de aparicdes que 0 manifestam. [..] 0 dualism do ser e do ‘parecer nao pode encontrar legitimidade na filosofia,[..] © ser de urn exis tente 6 exatamente o que © existente aparenta. Assim chegamos & ideia de fenémeno como pode ser encontrada, por exernplo, na "Fenomendlogia” ce ussert ou Heidegger: 0 fenémeno ou 0 relativo-absoluto. |. (O fenomen) pode ser estudado e descrito como tal porque é absolutammente indicative de si mesmo" (O Ser € 0 Nada, p. 15-16). 25. Orientacdo que indicam a 4* Meditacao cartesiana, que trata da plenitude concreta do Mol como monada”, e a 5¥ Meditacao, intitulada ‘Determinagao do dominio transcendental como intersubjetividade mona- dologica”. | 0 fue "Mo! se 0 Eu nao for, tanto quanto o mundo, um existente relativo, significa dizer, um objeto para a consciéncia® . B) O Cogito como consciéncia reflexiva 0 “Eu Penso” kantiano é uma condigao de possi © Cogito de Descartes e de Husserl é uma constatacao de fato. Falou-se da “necessidade de fato” do Cogito, e essa ex- presso me parece muito justa. Ora, inegavel que 0 Cogito € pessoal. No “Eu Penso” hé um Eu que pensa. Chegamos aqui ao Eu em sua pureza e € exatamente do Cogito que uma “Egologia” deve partir. O fato que pode servir de partida ¢, portanto, o seguinte: cada vez que nés apreendemos nosso pensamento, seja por uma intuicéo imediata, seja por uma intuigao apoiada na meméria, nés apreendemos um Eu que € 0 Eu do pensamento apreendido e que se da, além disso, como transcendente a esse pensamento e a todos os outros, pensamentos possiveis. Se, por exemplo, eu quero recordar determinada paisagem percebida no trem, ontem, éme pos- sivel fazer retornar a recordagéo dessa paisagem enquanto tal, mas eu posso lembrarme também que eu via essa pai sagem. E 0 que Husserl denomina, na Consciéncia interna do tempo, a possibilidade de refletir na recordac4o”. Dito de outra forma, eu posso sempre operar uma rememoracao qualquer sobre o modo pessoal e o Eu aparece imediatamen- 26. As dficuldades decorrentes da coneepeao husserliana da consciéncia transcendental como arquircegise foram recentemente evocadas em um. artigo de M. Derrida publicado nos Etudes philosophiques (Estudos filo soficos) (1963: "Phanomenologische Psychologie. Vorlesungen Sommer- semester 1925, por Ed. Husser!". M. Derrida escreve em particular: "Meu Eu transcendental ¢ radicalmente diferente, precisa Husser, de meu Eu natural e humano; e contude ndo se distingue em nada dele. ..] Eu (rans- cendental) no € um outro. Nao é, sobretudo, um fantasma metafsico ou formal do eu empiric. Isto levaria a denunciar a imagem teorética e a me tafora do Eu espectador absoluto de seu proprio eu psiquico, toda essa linguagem analogica de que, as vezes, temos que nos servir para enunciat a redugao transcendental e para descrever esse ‘objeto’ insblto que é o eu Psiquico dante do Ego transcendental absoluto” 27. Por exemplo, no Suplemento XIl: “A consciéneia interna e a apreens@o ddas vivencias” (p. 179ss. da tradugao), 26 A transcendén ado Ego te, Essa é a garantia de fato da afirmacao de direito feita por Kant. Assim fica evidente que nao ha uma de minhas consciéncias que eu nao apreenda como provida de um Eu. Mas devemos lembrar que todos os autores que descreveram © Cogito consideraram-no uma operacao reflexiva, quer dizer, uma operacao de segundo grau. Esse Cogito é operado por uma consciéncia dirigida sobre a consciéncia, que toma a consciéncia como objeto, Entendamo-nos: a certeza do Cogi- to € absoluta porque, como diz Husser!*, existe uma unida- de indissolivel entre a consciéncia reflexiva e a consciéncia refletida (a tal ponto que a consciéncia reflexiva no poderia ‘existir sem a consciéncia refletida). Permanece o fato de que ‘estamos diante de uma sintese de duas consciencias em que uma é consciéncia da outra. Assim, o principio essencial da fenomenologia “Toda consciéncia é consciéncia de alguma coisa” esta preservado. Ora, minha consciéncia reflexiva ndo se toma a si mesma como objeto quando eu realizo o Cogito. (© que ela afirma diz respeito 4 consciéncia refletida. Enquan- to minha consciéncia refiexiva ¢ consciéncia de si mesma, ela € consciéncia ndo posicional. E se torna posicional apenas quando visa a consciéncia refletida que, ela propria, nao era consciéncia posicional de si até ser refletida. Assim a consci encia que diz “Eu Penso” nao é precisamente a consciéncia que pensa. Ou antes nao é seu pensamento que ela assen- ta por meio desse ato tético. Temos, portanto, fundamentos para nos perguntar se o Eu que pensa é comum as duas consciéncias sobrepostas ou se ndo é, ao invés disso, o Eu da consciencia refletida. Toda consciéncia reflexiva, com efeito, € ‘em si mesma irrefletida e € necessario um ato novo e de terceiro grau para assentéla, Nao existe aqui, por outro lado, remissao infinita, uma vez que uma consciéncia nao tem absolutamente necessidade de uma consciéncia reflexiva para ser conscien- te de si mesma. Ela simplesmente nao se coloca como objeto para si mesma®, 28. Com o “Eu sou’, eu apreendo uma evidéncia apocitica, diz ainda Husserl nas Meditagées cartesianas. 29. Para resumir, uma andlise fenomenologica da consciéncla discerniré tues graus de consciénci: | 0 Eu eo “Moi a ‘Mas ndo seria precisamente o ato reflexivo que faria nas- cer 0 Moi na consciéncia refletida? Assim se explicaria que todo pensamento apreendido pela intuicéo possui um Eu, sem cair nas dificuldades assinaladas em nosso capitulo pre- cedente, Huser!” € 0 primeiro a reconhecer que um pensa- mento itrefletido sofre uma modificacao radical tornando-se refletido. Mas & preciso restringir essa modificacéo a uma perda de “nalveté”? O essencial da mudanca nao seria a apa- rigao do Eu? Evidentemente, é preciso recorrer & experiénci concreta e esta pode parecer impossivel, pois, por definicéo, uma experiéncia desse tipo é reflexiva, ou seja, provida de um Eu. Mas toda consciéncia irrefletida, sendo consciencia nao tética dela mesma, deixa uma recordacao nao tética que € possivel consultar”. Basta para isso procurar reconstituir 0 momento completo em que apareceu essa consciéncia irre- fletida (0 que ¢, por definicao, sempre possivel). Por exemplo, eu estava absorvido agora ha pouco em minha leitura. Eu vou procurar lembrar as circunstdncias de minha leitura, minha atitude, as linhas que eu lia. Vou assim ressuscitar nao ape- nas esses detalhes exteriores, mas uma certa espessura de consciéncia irrefletida, pois 05 objetos ndo puderam ser per- cebidos se nao por esta consciéncia e permanecem relativos a ela, Essa consciéncia, nao € preciso colocé-la como objeto 12) Um primeiro grau no nivel da consciéncia irrefletida, no posicional de si, porque é consciencia de si enquanto consciéncia de um objeto trans- ccendente, Com 0 Cogito: 23) Um segundo grau: a consciencia reflexiva ¢ nao posicional de si mes- ma, mas posicional da consciéneia refletida, 32) Gm terceiro grau, que & um ato tético ao segundo grau, pelo qual @ ‘conseléneia rflexiva toma-se posicional de si Dito de outra forma, no nivel do segundo grau existem atos irefletidos de reflexao. Quanto & autonomia da consciéncia irefletida, ela & fortemente afirmada na introducao de O Ser e 0 Nada. 30. Na introducéo as /deen J, Husserl declara que a fenomenologia “exige © abandono das atitudes naturals ligadas 4 nossa experiencia © a nosso pensamento, ou seja, uma mudanga radical de atitude” (Trad. p. 6); €n0 § 31, inttulado "Alteragao radical da tese natural" (Trad. p. 96), ele explicta essa afirmacao. 31. Husserl apela a recordagdes ndo téticas de consciéncias nao téticas ras Ligoes sobre a consciencia interna do tempo. A transcendéncia do Ego de minha reflexéo, mas ao contrario, & preciso que eu dirija minha atengao aos objetos ressuscitados, mas sem perdé-la de vista, mantendo com ela uma espécie de cumplicidade e inventoriando seu contetido de modo nao posicional. O re- sultado nao é duvidoso: enquanto eu estava lendo, havia a consciéncia do livro, dos herdis da histéria, mas o Eu ndo ha- bitava essa consciéncia, ela era apenas consciéncia do objeto € consciéncia nao posicional dela mesma. Esses resultados apreendidos ateticamente eu posso agora torné-los objeto de luma tese ¢ declarar: ndo havia Eu na consciéncia irreflet- da, Nao € preciso considerar essa operagao como artificial e concebida para as necessidades da causa: é evidentemente gragas a ela que Titchener podia dizer em seu Textbook of Psychology que muitas vezes o Moi estava ausente de sua consciéncia. Ele néo ia além disso, no entanto, e nao procu- rou classificar os estados de consciéncia sem Moi. Havera, sem duvida, a tentacao de objetar que essa ope- Faco, essa apreensao nao reflexiva de uma consciéncia por uma outra consciéncia, nao pode evidentemente operarse senao pela recordacao © que, portanto, ela nao goza da cer- teza absoluta inerente ao ato reflexivo. Nos encontrariamos, entéo, na presenca, por um lado, na presenca de um ato certo que me permite afirmar a presenca do Eu na conscién- Cia refletida e, por outro, diante de uma recordacéo duvidosa que tenderia a fazer crer que 0 Eu esta ausente na conscién- cia irrefletida, Parece que nao teriamos 0 direito de opor isso aquilo. Mas proponhe considerarmos que a recordacao da consciéncia irrefletida nao se opoe aos dados da consciéncia reflexiva, Ninguém cogitaria negar que o Eu aparece em uma consciéncia refletida, Trata-se simplesmente de opor a recor- dacao reflexiva de minha leitura (“Eu lia”), que é, também ela, de natureza duvidosa a uma recordacao nao refletida. A validade da presente refiexo, com efeito, nao se estende para além da consciencia apreendida presentemente. E a recorda- 32, Titchener (1867-1927) & um psicélogo engloamericano. Aluno de Wondt, ele se dedicou a psicologia experimental e influenciou sobretudo Psicologia anglo-saxa, Pode-se citar dele: An outline of psychology (1896); Lehrbuch der psy: cchologie (citado aqui) (1910-1912); Experimental psychology (1927). 40 reflexiva, a qual somos obrigados a recorrer para rest tuir as consciéncias transcorridas, além do carater duvidoso que ela deve a sua natureza de recordacéo, continua suspeito uma vez que, na opiniéo do préprio Husserl, a reflexéo modi- fica a consciencia espontanea. Uma vez, portanto, que todas as recordacées nao reflexivas da consciéncia irrefletida me mostram uma consciéncia sem mim, e como, por outro lado, as consideracées teéricas baseadas na intuicao de esséncia da consciéncia nos obrigaram a reconhecer que 0 Eu nao podia fazer parte da estrutura interna das “Erlebnissen”, s6 nos resta concluir que: nao existe Eu sobre o plano irrefletido. Quando corro para pegar um énibus, quando eu olho as ho- ras, quando me absorvo contemplando um retrato, ali nao hé um Eu. O que ha é consciéncia do dnibus-que-eu-devo- -pegar etc., € consciencia nao posicional da consciéncia De fato, estou entéo mergulhado no mundo dos objetos, s80 eles que constituem a unidade de minhas consciéncias, que se apresentam com valores, qualidades atrativas ¢ repulsi- vas, mas eu mesmo desapareci, aniquilei-me, Nao ha lugar para mim neste nivel, e isso ndo provém de um acaso, de uma falha momentanea da atencdo, mas da estrutura propria da consciéncia. E isso que uma descricéo do cogito nos deixaré ainda mais perceptivel. Pode-se dizer, com efeito, que o ato reflexi- vo apreende no mesmo grau e da mesma maneira o Eu da consciéncia pensante? Huser! insiste no fato de que a cer teza do ato reflexivo vem de que ai se apreende a conscién- cia sem facetas, sem perfis, inteiramente (sem “Abschattun- gen"). E evidente. Do contrério, 0 objeto espacotemporal 33, Sarre se refere sql & tora fenomenologia da percepeto por “per fs" ou “esbogos", em alemo "Abschaltangen” Ch. fdeen I § 41 (red . 130134), “Em virude de uma necessidade eiética, uma consciencia Epica de mesma colseperecbide sob Modes coves faces" eque se cor, sa coninamene em ear de mani aes ue ce percepcto, comporta um sistema complexo formedo por um divetso ininterrupto de aparencase esbogos; nesses dversos vem esbocarse ees mesmos sich abschatten, por mes de uma contndade determined, todos os momentos deabjte que se oferecem na percepe8o com o carter de darae stmesma corporaimente” (Tied. p. 132-133), Sarre opde pensamento.epercepcao por exemplo em 0 tmaginarto, * 30 Atranscendéncia do Ego ‘se manifesta sempre através de uma infinidade de aspectos , no fundo, nao é mais que a unidade ideal dessa infinidade. Quanto as significacdes, as verdades eternas, elas afirmam sua transcendéncia na medida em que se dao, desde que aparecem como independentes do tempo, ao passo que a consciéncia que as apreende 6, a0 contrat, individualizada rigorosamente na duracéo. Entéo nos perguntamos: Quando uma consciéncia reflexiva apreende o Eu penso, o que ela apreende € uma consciéncia plena e concreta recolhida em um momento real da duragao concreta? A resposta € clara: © Eu no se da como um momento concreto™, uma estru- tura transitéria de minha consciéncia atual; Ele afirma, a0 contrério, sua permanéncia para além dessa consciéncia e de todas as consciéncias ¢ - embora, certamente, ele nao se areca nem um pouco com uma verdade matematica - seu tipo de existéncia se aproxima bem mais das verdades eter- nas do que da consciéncia. Inclusive, ¢ evidente que € por ter considerado que Eu e penso encontram-se no mesmo plano que Descartes passou do Cogito a ideia de substancia pensan- te. Nés vimos ha pouco que Husserl, embora mais sutilmente, cai, no fundo, na mesma questao. Sei perfeitamente que ele reconhece ao Eu uma transcendéncia especial que nao é a do objeto e que se poderia denominar uma transcendéncia “por cima’. Mas com que direito? E como explicar esse tratamento privilegiado do Eu se nao for por preocupacées metafisicas ou criticas que nada tem a ver com a fenomenologia? Seja- mos mais radicais e afirmemos sem temor que foda a trans- parte, p. 18ss.: “Trata-se de fenomenos radicalmente distintos: um, saber consciente de si mesmo, que se situa de uma vez no centro do objeto; ‘outra, @ unidade sintética de uma multiplicidade de aparéncias, que far Jentamente sua aprendizagern" 34, Husserl parece télo pressentido, mas ele ndo se detém nessa intuicao, Contudo, no § 54 das Idzen J ele excreveu: "E certo que ee pode ponsar luma conscléncia sem carpo e, por mais paradoxal que isso pareca, sem ‘alma, uma consciéncia ndo pessoal, quer dizer, um fluxo vivide em que néo se constituriam as unidades intencionais empiticas denominadas corpo & alma, sujeito pessoal empitico, e onde todos os conceitos empiticos, incl sive, consequentemente, 0 do vivenciado no sentide psicologico {enquanto vivancia de uma pessoa, de um eu animado) perderiam todo ponto de apoio e, em todo caso, toda a validade" (Trad. p. 182) | 0 Eve 0 “Moi 3t cendéncia deve cair sob a ¢rt0xy}"; isto talvez nos poupe de escrever capitulos tao embaracosos quanto 0 § 61 das Ideen. E porque o Eu se afirma a si préprio como transcendente no “Eu penso” que ele ndo é da mesma natureza que a conscién- cia transcendental Observemos, além disso, que ele nao aparece a reflexao como a consciéncia refletida: ele se da por meio da consci- éncia refletida. Certamente que ele é apreendido pela intui- 0 € € 0 objeto de uma evidéncia. Mas, sabernos do servico que Husserl prestou a filosofia ao distinguir diversas espécies, de evidéncia™. Pois bem, mais do que certo que 0 Eu do Eu penso nao ¢ objeto de uma evidéncia nem apoditica nem adequada. Nao € uma evidencia apoditica porque ao dizer Eu nés afirmamos bern mais do que sabemos. Endo é ade- quada porque o Eu se apresenta como uma realidade opaca cujo contetido seria preciso desenvolver, Certamente, ele se manifesta como fonte da consciéncia, mas isso mesmo deve- ria nos fazer refletir: com efeito, por isso ele aparece velado, mal distinguido através da consciéncia, como um seixo no fundo da agua - por isso mesmo é imediatamente enganador porque nés sabemos que nada, exceto a consciéncia, pode sera fonte da consciéncia. Além disso, se o Eu faz parte da consciéncia, haverd, portanto, dois Eus: 0 Eu da conscién- 35, Algo que Hussei! jamais reconhecer4 “Entre os tragos distintivos gerals que apresentam as esséncias do dominio do vivenciado apés a purifieagso transcendental, o primeiro lugar € dado expressamente & relagao que une cada vivéncia ao eu ‘Puro’. Cada cogit, cade ato tem um sentido especial; caracteriza-se como ato do eu, procede do eu, nele o eu vive atualmente. [..] Nenhuma suspensao pode abolir 2 forma do cogite e suprimir por um ato o “puro’ sujelto do ato: o fato “de set dirigido sobre’, ‘de estar ocupado com’, ‘de posicionar-se em relacao 2, ‘de fazer experiéncia de’, 'de softer de’, envolve necessariamente em sua esséncia de ser precisamente um raio que emana do eu, ou em sentido Inverso que se dirige para o eu; esse eu @ 0 puro eu; nenhuma reducao tem influéncia sobre ele" (iden I, § 80 (Trad. p. 270): “A relagto do vivide ‘como eu puro”) Jqualmente, 1® Meditagao cartesiana, § 8, p. 18: epds a reducao, "Eu me tencontro como ego puro com o cotidiano pure de minhas cogitagoes 36. As diversas espécies de evidéncias s8o definidas nas Ideen I, § 3, € também na primeira Meditagdo carlesiana, § 6 Atranscendénci cia reflexiva ¢ 0 Eu da consciéncia refletida. Fink”, discipulo de Husserl, conhece ainda um terceiro, 0 Eu da conscién- cia transcendental, liberado pela é710x1). Dai o problema dos tres Eus, cujas dificuldades ele menciona nao sem uma cer- ta complacéncia. Para n6s, esse problema é simplesmente insolivel, pois néo é admissivel que se estabeleca uma co- municagao entre 0 Eu reflexivo e o Eu refletido, se eles sao elementos reais de consciéncia e, principalmente, que eles se lentifiquem finalmente em urn Gnico Eu. ‘Como conclusdo dessa andlise parece-me que se pode fazer as seguintes constatacoes: 14) O Eu é um existente. Ele tem um tipo de existéncia concreta, diferente sem duvida do tipo de existéncia das verdades matematicas, das significagées ou dos seres es- pacotemporais, mas nao menos real. Ele se d8 a si mes- mo como transcendente. 28) Ele se entrega a uma intuicdo de um tipo especial que © apreende por detras da consciéncia refletida, de uma maneira sempre inadequada. 38) Ele nunca aparece, exceto por ocasido de um ato re- flexivo, Nesse caso, a estrutura complexa da consciéncia € seguinte: ha um ato irrefletido de reflexao sem Eu que se dirige sobre uma consciéncia refletida. Esta torna-se 0 objeto da consciéncia que reflete, sem cessar, no entanto, de afirmar seu objeto proprio (uma cadeira, uma verdade matematica etc.). Ao mesmo tempo um objeto novo apa- ece, que € a ocasiao de uma afirmacao da consciéncia reflexiva © que nao esté consequentemente nem sobre © mesmo plano da consciéncia irrefletida (porque esta € um absoluto que nao tem necessidade da consciéncia reflexiva para existir) nem sobre o mesmo plano que o objeto da consciéncia irrefletida (cadeira etc.). Esse obje- to transcendente do ato reflexivo é 0 Eu. 37. FINK. Die phdnomenotogische Philosophie E. Husserls in der ge- gerwartigen Kritk. Kantstudien (1933). 4) O Eu transcendente deve cair sobre o golpe da redu- 0 fenomenolégica. O Cogito afirma demais. O contet do certo do pseudo “Cogito” nao é “eu tenho consciencia desta cadeira”, mas “existe consciencia desta cadeira”. contetido € suficiente para constituir um campo infinito e absoluto para as pesquisas da fenomenologia. C) Teori Para Kant e para Husserl o Eu é uma estrutura formal da consciéncia. Nés tentamos mostrar que um Eu nunca € puramente formal, que ele € sempre, mesmo de maneira abstrata concebido, uma contracao infinita do Moi material. ‘Mas precisamos, antes de ir adiante, nos desembaracar de uma teoria puramente psicolégica que afirma, por razdes psicolégicas, a presenga material do Moi em todas as nos- sas consciéncias. E a teoria dos moralistas do “amor-pro- prio”. Segundo ele, se o amor por si ~ ¢ consequentemente o ‘Moi - seria dissimulado em todos os sentimentos sob mil for- mas diferentes. De uma maneira muito geral, o Moi, em fun- Ao desse amor que ele se outorga, desejaria para ele mes- mo todos 0s objetos que ele deseja. A estrutura essencial de cada um’de meus atos seria uma referéncia a mim mesmo. 0 “Retorno para mim” seria constitutivo de toda consciéncia. da presenca material do Moi Objetar a esta tese que esse retorno a mim nao esta de forma alguma presente na consciéncia - por exemplo, quan- do tenho sede, quero um copo de gua e ele aparece para mim como desejével - nao Ihe causa problema: ela nos con- cederia isso de boa vontade. La Rochefoucauld € um dos pri- meiros a ter feito uso, sem nomeé-lo, do inconsciente: para ele 0 amor-proprio se dissimula sob as formas mais diversas. E preciso despistélo antes de apreendélo, De uma forma 3B. “O amorpréprio é © amor de si mesmo, ¢ de todas as coisas para si; ‘le torna os homens idélatras de si mesmos, ¢ os tornaria tranos dos ou tros se a fortuna lhes desse os meios; ele jamais repousa fora de si, endo se detém nos sujetos alheios sendo como abelhas sobre as flores, para tirar deles o que Ihes ¢ proprio. Nada mais impetuoso do que seus desejos, nada de mais oculto do que seus designios, nada mais habil do que suas ati des: suas flexiblidades nao se podem representar, suas transformacoes mais genérica foi admitido em sequida que o Moi, se nao esta presente na consciéncia, esta escondido atras dela e que ele € 0 polo de atragao de todas as nossas representacoes e de todos os nossos desejos. O Moi busca, portanto, obter o obje- to para satisfazer seu desejo. Dito de outra forma, é 0 desejo (ou se preferimos o Moi desejante), que ¢ dado como fim eo objeto desejado que @ 0 meio. Agora, o interesse desta tese nos parece ser que coloca em relevo um erro muito frequente dos psicblogos: ele consis- te em confundir a estrutura essencial dos atos reflexivos com 2 dos atos irrefletidos”. Ignora-se que existe sempre duas formas de existéncia possivel para uma consciéncia; e cada vez que as consciéncias observadas se dao como irrefletidas se Ihes sobrep6e uma estrutura reflexiva a qual se pretende espantosamente que permanega inconsciente. Tenho piedade de Pedro e Ihe presto socorro. Para minha consciéncia uma s6 coisa existe nesse momento: Pedro-de- vendo'ser-socorrido, Essa qualidade de “devendo-sersocorri- do” se encontra em Pedro. Ela age sobre mim como uma forca, Aristoteles dissera: & o desejavel que move o desejante. Neste nivel o desejot ¢ dado a consciéncia como centrifugo (cle se transcende a si mesmo, ele é consciéncia tética do “de- vendo-ser” e consciéncia nao tética de si mesmo) e impesso- al (ndo existe Moi: estou diante da dor de Pedro como diante da cor deste tinteiro. Existe um mundo objetivo de coisas ¢ de agoes feitas ou a fazer, e as agdes vem aplicar-se como quali- dades sobre as coisas que as reclamam). Ora, esse primeiro momento do desejo - supondo que ele nao tenha escapado ‘completamente aos te6ricos do amor-préprio - nao é const derado por eles como um momento completo e auténomo. Eles imaginaram por tras dele um outro estado que perma- cuperam as des metemarfoses, ¢ seus refinamentos, os da qulinica, Naw se pode sondar a profundeza nem perceber as trevas dle seus abismos” (LA, ROCHEFOUCAULD. Maximes, Suplemento de 1693). 39. Sobre 8 dupla forma de existencia sempre possivel para uma conscién- ‘la e garantia da autonomia do pré-rellexivo, cf. 0 Ser eo Nada, Intioducao. 40. A descrigao fenomenologica do desejo desenvolvida em O Ser € 0 ‘Nada (p. 473511), nece na penumbra: por exemplo, eu socorro Pedro para fazer cessar o estado desagradavel em que colocou-me a viséo de seus sofrimentos. Mas esse estado desagradavel néo pode ser conhecido como tal e nao se pode tentar suprimilo senao por meio de um ato de reflexao. Com efeito, um desagra- do no plano irrefletido se transcende da mesma maneira que a consciéncia irrefletida de piedade. E a apreensao intuitiva de uma qualidade desagradavel de um objeto. E, na medida em que pode acompanharse de um desejo, ele deseja néo suprimir a si mesmo, mas suprimir 0 objeto desagradavel"'. De nada adianta, portanto, colocar por tras da consciéncia irrefletida de piedade um estado desagradavel que se trans- formard na causa a prova funda do ato compadecido: se essa consciéncia de desagrado nao se volta sobre si mesma para colocar-se por si como estado desagradavel, ficaremos indefi nidamente no impessoal e no irrefletido. Assim, portanto, sem sequer dar-se conta, os teéricos do amnor-proprio supdem que 0 refletido € primeiro, original e dissimulado no inconsciente. E quase desnecessario demonstrar 0 absurdo de uma tal hi pétese. Mesmo que o inconsciente exist, quem acreditaria que ele oculta espontaneidades de forma refletida? A defini- cao de refletido nao supde ser posto por uma consciéncia? Mas, além disso, como admitir que 0 refletido seja primeiro em relacao ao irrefletido? Sem duivida, pode-se conceber que uma consciéncia apareca imediatamente como refletida, em certos casos. Mas, mesmo entao 0 irrefletido possul a prior dade ontolégica sobre o refletido, porque ele nao tem nenhu- ma necessidade de ser refletido para existir e a reflexao supde a intervengao de uma consciéncia de segundo grau. 41. Igualmente a emocio é um comportamento irefletido, ndo inconscien- te, mas consciente de si mesma nao teticamente, ¢ sua forma de ser tetica- ‘mente consciente de si mesma est em transcender se ¢ apreenderse no mundo como uma qualidade das coisas. A emocio é uma "transformacdo ‘do mundo”, segundo o Esboco de uma teorla das emocdes (p. 32-33). 42. Sobre © problema colocado pelo inconsciente freudiano, veja, em O Ser eo Nada, 0 capitulo "A mate", p. 92-100; e a 4* parte, cap. 2, 1:"A psicandlise existencial’, p. 682-703. Dirigirse também a nota 74, adiante, Chegamos portanto a seguinte conclusao: a consciéncia irrefletida deve ser considerada como auténoma**. E uma to- talidade que nao tem necessidade nenhuma de ser completa- da e nos devemos reconhecer sem mais que a qualidade do desejo irrefletido € de transcender-se apreendendo do objeto a qualidade de desejavel. Tudo se passa como se vivessemos em um mundo em que os objetos, além de suas qualidades de calor, odor, forma etc. tivessem qualidades de repulsivos, atraentes, agradaveis, titels etc. etc., e como se essas quali dades fossem forcas que exercessem sobre nés alguma in- fluencia. No caso da reflexao, ¢ unicamente nesse caso, a afetividade @ posta por si mesma como desejo, temor etc.; somente no caso da reflexao eu posso pensar “Eu odeio Pe- dro’, “tenho pena de Paulo etc.” Portanto, ao contrério do que tem sido afirmado, ¢ sobre esse plano que se situa a vida egofsta, e sobre o plano irrefletido que se situa a vida Impessoal (0 que, naturalmente, néo quer dizer que toda a vida reflexiva seja necessariamente egoista, nem que toda a vida irrefletida seja necessariamente altruista). A reflexao “en- venena’, o desejo“*. No plano irrefletido eu presto socorro a Pedro porque Pedro tornou-se “devendo-ser-socortido”. Mas se meu estado se transforma de repente em estado refletido, eis-me entdo no ato de me olhar agir no sentido em que se diz que alguém se ouve falar. Ja nao € mais Pedro que me atrai, mas minha consciéncia compassiva que me aparece ‘como devendo ser perpetuada. Mesmo que eu pense apenas que devo realizar minha acao porque “isso é bom”, o bem qualifica minha atitude, minha piedade etc. A psicologia de La Rochefoucauld conserva seu lugar. Contudo, ela nao é ver- 43, Sartre insistira sempre nessa autonomia da consciénca irefletida, que cencontra seu fundamento na intencionalidade essencial des conscienclas. Essa concepedo da prioridade ontolégica do irrefletido sobre o refletide Permanece central em stas obras posteriores, paricularmente O imaaina. Tio (@ imagem & uma evidencla antepredicativa), a Teoria das emacoes, O Imaginario, e O Ser e 0 Nada, pois ela constitui o unico meio radical de liminar todo idealismo, 44. Da mesma meneira que o perverso, substituindo seu desejo em si ‘como desejavel por este-objeto-desejavel, eventena-o por isso mesmo, Ime diatamente. De qualquer modo, ofaz sofrer uma alteracdo fundamental ern relagdo ao desejo ingénuo (ef. O Ser eo Nada, p. 479), dadeira: nao € culpa minha se minha vida reflexiva envenena “por sua esséncia” minha vida espontanea, além do que a Vida reflexiva supoe em geral a vida espontanea. Antes de ser “envenenados” meus desejos eram puros; € 0 ponto de vista que assumi sobre eles que os envenenou. A psicologia de La Rochefoucauld s6 € verdadeira para os sentimentos particula- tes que extraern sua origem da vida reflexiva, quer dizer, que se dao inicialmente como meus sentimentos, em vez de se transcender inicialmente rumo a um objeto. Assim, 0 exame puramente psicolégico da consciéncia “intramundana” nos leva as mesmas conclusées que nosso estudo fenomenolégico: 0 Moi néo deve ser procurado em estados de consciéncia irrefletidos e nem por tras deles. 0 ‘Moi aparece somente com 0 ato reflexivo e como correlativo noematico™ de uma intencéo reflexiva. Nés comecamos a entrever que 0 Eu e 0 Moi formam uma unidade. Tentaremos mostrar que esse Ego, do qual o Eu ¢ o Moi nao sao mais que duas faces, constitui a unidade ideal (noematica) e indireta da serie infinita de nossas consciéncias refletidas. © Eu € 0 Ego como unidade das acées. O Moi € 0 Ego como unidade dos estados e das qualidades. A distingao que se estabelece entre esses dois aspectos de uma mesma re- alidade nos parece simplesmente funcional, para nao dizer rarnatical. 45, 0s trmos “node” (noematic) ¢“nodse" vém da fenomenclogia de Hussei CF ideen 1,3 segdo, cap. 3 Sartre dé aos termos ume definite Yoluntariamente simpifceda em L"imaginaton (A imaginacao), cep. 4 P. 15368: "A fenomenclogi, tendo colocade 0 mundo ene partntess, @ perdeu por lao, A lstingto conitaciesnanio pone seu endo No presente, 0 corte se for de outro modo, dstinguese © conunto dos elementos reels da conacénela (a hyle-e os dilerentes ios Intencionals ue a exprimem) © por oil lado @ sentido que habla essa consciem in A reaidade paiquce concreta sia denominada Roose eo sentido que ‘er habla nodme. Pr exemplo,“arvoreemflorpercebide® ¢ nogme da percepcBo que tenho neste momento, Mas esse senido -noematco™ que Pertencea cada consclencia real nao em si nada de ea” A cconstituigao do Ego © Ego nao é diretamente unidade das consciéncias re- fletidas. Existe uma unidade imanente dessas consciéncias, € 0 fluxo da consciéncia se constituindo a si mesma como unidade de si mesma‘ - ¢ uma unidade transcendente: os estados € as agdes. O Ego é unidade dos estados e das acées, - facultativamente das qualidades. Ele é unidade de unidades transcendentes e ele mesmo transcendente. E um polo trans- cendente de unidade sintética, como o polo-objeto da atitude irrefletida. Mas esse polo aparece apenas no mundo da refle- x€0. Nés examinaremos sucessivamente a constituigéo dos estados, das agdes e das qualidades e a aparicao do Moi como polo dessas transcendéncias*, A) Os esiados como unidades transcendentes das consciéncias O estado aparece a consciéncia reflexiva. Ele se dé a ela € constitui o objeto de uma intuigao concreta. Se eu odeio Pedro, meu édio por Pedro é um estado que eu posso apreen- der pela reflexao. Esse estado esta presente diante do olhar da consciéncia reflexiva, ele & real. Deve-se concluir dai que ele seja imanente e certo? Claro que nao. Nao devemos fazer da reflexao um poder misterioso e infalivel, nem creio que tudo 0 que a reflexdo alcanga seja indubitavel porque alcan- ado pela reflendv. A relleade lei limites de direilo © de fato. ¢. Cl. Zeltbewusstsetn, passim. 46. O problema da relacdo do Ego com os estados, as acdes © as qual dads, que tematiza essa segunda parte, sera retomado brevemente em O ‘Sereo Nada no capitulo “A temporalidade”, p. 22138. E uma consciéncia que pée uma consciéncia, Tudo o que ela afirma sobre esta consciéncia é certo e adequado. Mas se outros objetos Ihe aparecem por meio dessa consciéncia, esses objetos nao tém razdo alguma de participar das ca- racteristicas da consciéncia. Consideremos uma experiéncia reflexive de édio™. Eu vejo Pedro, e sinto como que um tre- mor profundo de repulsa € de célera a sua vista (ja estou sobre o plano reflexivo): o tremor é consciéncia. N4o posso enganar-me quando digo: eu sinto nesse momento uma vio- lenta repulsa por Pedro. Mas esta experiéncia de repulsa é 0 6dio? Evidentemente nao. Além do mais, ela nao se da como tal. Com efeito, eu odeio Pedro ha muito tempo e penso que © odiarei para sempre. Uma consciéncia instanténea de re- pulsa nao poderia, portant, ser meu édio. Mesmo que eu a limitasse ao que ela é, a uma instantaneidade, jé néo poderia mais falar de ddio. Eu ditia: “Tenho repulsa por Pedro neste momento” € dessa forma nao comprometo o futuro. Mas, precisamente por essa recusa de comprometer o futuro, eu deixaria de odiar. Ora, meu édio me aparece ao mesmo tempo que minha experiencia de repulsa, Mas ele aparece através dessa expe- riéncia. Ele se da precisamente como nao limitando-se a essa experiencia. Ele se dé, em e por cada movimento de desgos- to, de repulsa e de célera, mas ao mesmo tempo ele no é nenhum deles, ele escapa a cada um enquanto afirma a sua Permanéncia. Afirma que jé aparecia ontem quando pensei em Pedro com tanto furor e que aparecera amanha. Ele opera por si mesmo, ademais, uma distincao entre ser e aparecer, uma vez que se da como constituinte de ser mesmo quando estou absorvide em outras ocupagbes e nenhuma conscién- cia o revela. Isso parece o bastante para poder afirmar que 0 6dio nao é da consciéncia, Ele ultrapassa a instantaneidade da consciéncia e nao se dobra @ lei absoluta da consciéncia pela qual nao existe distin¢ao possivel entre a aparéncia ¢ © ser. Assim, o édio € um objeto transcendente. Cada “er- 47. Ci. 0 6dio como possibilidade de minha relagdo com outrem (O Sere 0 Nada, p. 5098s.) Acconstituigao do lebnis"® o revela inteiramente, mas, ao mesmo tempo, isso & apenas um perfil, uma projecdo (uma “Abschattung’). 0 édio € um crédito para uma infinidade de consciéncias coléricas ou Tepugnadas, no passado e no futuro. Ea unidade transcenden- te dessa infinidade de consciéncias. Assim, dizer “eu odeio” ou “eu amo’, por ocasiao de uma consciencia singular de atracao ou de repulsa, equivale a operar uma verdadeira passagem ao infinito bastante anéloga équela que operamos quando perce- bemos um tinteiro ou 0 azul do buvar. Nao é preciso mais que isso para que os direitos da refle- x80 sejam singularmente limitados: € certo que Pedro me re- ugha, mas é e seré sempre duvidoso que eu o odeie®. Essa afirmagao ultrapassa infinitamente, com efeito, o poder da re- flexaio. Nao € preciso concluir, naturalmente, que o édio seja uma simples hipotese, um conceito vazio: € um objeto bem real, que eu apreendo através da “Erlebnis", mas esse objeto esté fora da consciéncia e a natureza mesma de sua existén- cia implica sua “dubitabilidade”. Também a reflexao possui ‘um dominio certo e um dominio duvidoso, uma esfera de evi- déncias adequadas e uma esfera de evidéncias inadequadas. A reflexao pura (que nao é, no entanto, necessariamente a reflexdo fenomenolégica) atém-se sem erigir pretens6es para © futuro, E 0 que se pode ver quando alguém, depois de di- zer em sua célera: “eu te detesto”, recompée-se e diz: “Nao 48. Eriebnis: experiencia vivida vivencia intencional Para a significagao desse termo, em uma nota de L"Imagination (p. 144), Sartre remete as /deen, § 36, ¢ acrescenta: "Eriebnis, termo intracuzivel tem francés, vem do verbo erleben, ‘Etwas erleben’ significa ‘viver alguma coisa’. Eriebnis teria, mais ou menos, o sentid de ‘vivéncia' no sentido em que o entendem os bergsonianos". 49. *O certo" © “O provavel” constituer 08 duas grandes partes do eatude sobre L'imaginaire. Sao certas somente minhas “consciéncias-de”, em seu movimento esponténeo de ela rumo as coisas; o paradoxo dessas consci encias de primeiro grau é que elas se apreendem 20 mesmo tempo como interioridades puras e como explosées rumo as coisas, externamente, Fora estas, todo objeto, como objeto para a consciéncia, quer seja meu é A Ierdade, age compreende por analog om a rexponsabildage« a vontade, Aqui 0 fa alsao, que de sis estinge etn vnecndrt ai. Constr, Sa fade acne un expres ete iy tn “am epee” lero do capo tracert uma sponte edt con thucrn. A lerdade 6 pare a espontaneldodeaqullo que 9 Ego. o ptqlco tin gerl to pra ceracincs taracanderal mpc No Sere o Nada, Ibeaade espntanldade encontareseunidas A bet dade tense coenesiva a toda cnscence, Obvinment, a Wberdade€ tarnben ian conc eco ¢nciseo coat funder da ica = ete thnnio que cu alo expresedo dele: Mat o te ve se undameta sbre stead nal stg in in sen eae esa Se Comin cn un purine Hain ones lade & “a matin de meu se, ela me pepassa de pota a pots GED Serco Nada, pare cap "Sure Paar erdade™ py. 536681 74, Esse exernpo ¢entraldo da obm de P. Janet intulada Ls Nevroses (a neuroses) : i Dont Gane i Anta, ue ans an a cee ser Ensaio sobre 0 Fg, peste my dsc ce o say eee sunrise Une. gar dusteos uch moana ter thcar a foportinia descermudanca A evlucdoj ii quondo Sorte Ic se ce bre Buta (94) agin econo ta Ino ban aac por muro piety too eo tin certamente de manta 90 simpsi quanto em 1934. le coniera Dariculrmene nant sue antiga nerprtagso data neuen da Jovem casade rata por Jane, Ele nto via rai qe cnada ey eclcagto, em seu passado em em seu carte pode sri de explcegao", esposa tinha um medo terrivel, quando seu marido a deixava 80, de colocar-se a janela ¢ interpelar os passantes como uma prostituta. Nada em sua educacdo, em seu passado, nem em seu caréter serve para explicar semelhante temor. Parece-nos simplesmente que uma circunsténcia sem importancia (leitu- ra, conversacao etc.) havia determinado nela o que se pode- ria denominar como vertigem da possibilidade. Ela se achava monstruosamente livre, e essa liberdade vertiginosa se lhe aparecia na ocasido desse ato, que ela temia fazer, Mas essa vertigem nao € compreensivel, exceto no caso de a consci- éncia aparecer de repente a si mesma como transbordando infinitamente em suas possibilidades o Eu que lhe serve ordi- nariamente de unidade. Talvez, com efeito, a funcao essencial do Ego nao seja tanto te6rica quanto prética. Nos observamos, de fato, que ele no amarra consigo a unidade dos fendmenos, que ele se limita a refletir uma unidade ideal, ao passo que a unidade concreta ¢ real tem sido operada ha muito tempo. Mas talvez ‘seu papel essencial seja mascarar a consciéncia sua propria espontaneidade’®. Uma descticao fenomenolégica da espon- taneidade mostraria, com efeito, que esta torna impossivel qualquer distincao entre acéo ¢ paixao e qualquer concepcao de uma autonomia da vontade. Essas nocées possuem sig- nificagao somente em um plano em que toda atividade se dé como emanando de uma passividade que ela transcende, ou seja, em um planoem que o homem se considere ao mesmo tempo como sujeito ¢ objeto. Mas é uma necessidade essen- cial que se possa distinguir entre espontaneidade voluntaria € involuntaria, Tudo se passa, portanto, como se a consciéncia cons- tituisse o Ego como uma falsa representacéo dela mesma, como se ela se hipnotizasse sobre esse Ego que ela const ‘le abandonaria aqui @ nocao de explicagae pela de compreensao dialé lca que deve necessariamente operar-se a parti desse passado, dessa educacao, desse carster, Simone de Beauvoir em A forga da Idade dé as razoes que outrore tinha Sartre para tejeitar a psicanalise; confer As paginas 25.26 e 133, 75. Dat a possiblidade ontologica des condutas de mae. tuiu, absorvesse a si mesma nele como se tivesse feito dele seu guardiao e sua lel: é gracas ao Ego, de fato, que uma distincao podera efetuar-se entre 0 possivel e o real, entre a aparéncia € o ser, entre querido € 0 sofrido. Mas pode acontecer que a consciéncia se produza a si mesma de repente sobre o plano reflexivo puro. Nao, talvez, sem Ego, mas como que escapando do Ego por toda parte, como que dominando-o e sustentando-o fora dela por meio de uma criacao continua. Nesse plano no ha mais distingao, entre o possivel e 0 real, pois a aparéncia ¢ o absoluto. Nao ha mais barreiras, nem limites, nem nada que dissimule a cons- ciéncia para si mesma. Entao a consciéncia, apercebendo-se daquilo que se poderia denominar a fatalidade de sua espon- taneidade”, encontra-se repentinamente em angiistia: ¢ essa angisstia absoluta sem remédio, esse temor de si, que nos parece constitutive da consciéncia pura ¢ é ela que dé a chave do distirbio psicasténico de que falévamos. Se o Eu do “Eu Penso” é a estrutura primeira da consciéncia, essa angiistia & impossivel. Mas se, ao contrario, adotarmos ponto de vista aqui exposto, néo apenas teremos uma explicacao coerente desse disturbio, mas também um motivo permanente para efetuar a redugéo fenomenolégica. Sabemos que Fink, em seu artigo nos Kantstudien, reconhece com alguma melan- colia que, enquanto se permanece na atitude “natural”, nao ha razdo, nem “motivo” para praticar a éxoxr}. Com efeito, essa atitude natural € perfeitamente coerente e nao se pode- ria encontrar nela aquelas contradicdes que, segundo Platdo, levam 0 filosofo a efetuar uma conversao filos6fica. Assim a éroxt] aparece na fenomenologia de Husserl como um mila- gre. O proprio Husserl, nas Meditacdes cartesianas, faz uma aluséo muito vaga a alguns motivos psicolégicos que leva- riam a efetuar a reducéo. Mas esses motivos nao parecem de modo algum suficientes, ¢ sobretudo a reducdo nao parece possivel de ser efetuada senao ao termo de um longo estudo; 76. Ci. O Ser e 0 Nada, parte 4, cap. 1, tem 3: "Liberdade e responsabt lidade”, p. 677ss. *O homem, estando condenado a ser live, cartega nos ‘ombros o peso do mundo inteiro: & responsivel pelo mundo € por si mes- mo enquanto modo de ser’. ela aparece, portanto, como uma operacéio erudita, o que the confere uma espécie de gratuidade. Ao contrario, se a “atitude natural” aparece inteiramente como um esforco que a consci- éncia faz para escapar-se a si mesma projetando-se no Mol ¢ absorvendo-se nele, e se esse esforco jamais ¢ completamente recompensado, se basta um ato de simples reflexao para que @ espontaneidade consciente se aparte bruscamente do Eu e se dé como independente, a é70xrj nao € mais um milagre, hao € mais um método intelectual, um procedimento erudito: uma angiistia que se impée a nds e que nao podemos evitar; €ao mesmo tempo um evento puro de origem transcendental © um acidente sempre possivel de nossa vida coti 28) Essa concepcao do Ego nos parece a tinica refutacdo possivel do solipsismo”. A refutacao que Husserl apresenta em Formale und Transzendentale Logik e nas Meditacoes 71. Ck 0 Ser eo Nada, pre 3, cap 1 tem I: “0 obstacal do soip- smo" (p. 291) o, porters oern I “Musser Hegel Nellore (p02), no qual Sartre deserwaveoelea astentatvon Se rangece ssipsismo exposes por Huss! em Logica formal c lsies ereoce dental e nas Medtagoescartsinas. Sarre recoece ue & tones Proposta pelo Ensaio sobre # tanscendoncia de Ego f heuer Anterrment,supus poder escape ao acpom reccande sense de Hse sore a enitencia do "Ego" transcend Parcomne saa ‘te nada mas restave he minha conscience que ose vegas oe "gt co ato fda esvanco desu sets, Mann verde mora continue convict de ques hipotese de um ste wacencn inate prejudice, ato de abandonarnes al potas nao os neneey um ao pessoa questo do enitenca do out. Mano sea pane oe on tempi, nada mals houvese arn da Consens deste Eee oo eae, umcampo onsets eto =e mati geek transcendental Para alm do uo por consegule 9 nies ante de escopr ao solpsnmo sel ainda el, prover que minha concen transcendental eae propre sr aftade els vténce eomrenenng de otis consciences do mesin ipo Aesiy porterscnceorer name série de signieagoes Unico nexo que Hessel pode exabelcer ene Imeu ser eo ser do Outo odo conhctmento! porane, noe seccrn mals do que Kant 20 solplsme”(p 306) Para colocar osopamo defiitvamente de lado & preciso reorer int G0 de Hegel que conte em “serine depende do ote ern mes ser radicaliza-ta, Sartre dé sues conclusées nas p. 316ss. cartesianas nao nos parece capaz de convencer um solipsis- ta determinado e inteligente. Enquanto o Eu permanece uma estrutura da consciéncia, seré sempre possivel opor a consci- éncia com seu Eu a todos os outros existentes. E, finalmente, quem produz 0 mundo € 0 Moi. Pouco importa se algumas categorias desse mundo necessitam por sua natureza propria de uma relacao com outrem, Essa relacao pode ser uma sim- ples qualidade do mundo que eu crio e nao me obriga absolu- tamente a aceitar a existéncia real de outros Eu. Mas se o Eu torna-se um transcendente, ele participa de todas as vicissitudes do mundo. Ele nao é um absoluto, ele nao criou o universo, ele cai como as outras existéncias so- bre o golpe da éoX1}; e 0 solipsismo se torna impensavel a partir do momento em que o Eu nao tem mais uma posicéo privilegiada. Em vez de se formular, com efeito, em termos de “Eu existo s6 como absoluto”, deveria enunciar-se como “ So: mente a consciéncia absoluta existe como absoluto”, o que é evidentemente um truismo, Meu Eu, com efeito nao é mais certo para a consciéncia do que 0 Eu dos outros homens. Ele é apenas mais intimo. 34) Os teoricos de extrema-esquerda acusaram algumas veres a fenomenologia de ser um idealismo e de afogar a realidade na maré das ideias. Mas se 0 idealismo ¢ a filoso- fia sem mal de M. Brunschvicg, se é uma filosofia em que © esforgo de assimilacao espiritual” nao se depara jamais com resisténcias exteriores, em que 0 sofrimento, a fome, a guerra se diluem em um lento processo de unificacao das ideias, ent&o nada € mais injusto do que chamar os fenome nélogos de idealistas. Pelo contrario, ha séculos que nao se sentia na filosofia uma corrente tao realista. Eles recoloca- ram o homem no mundo, devolveram o devido peso a suas angiistias e seus sofrimentos, e também a suas revoltas. In- felizmente, enquanto o Eu continuar sendo uma estrutura da consciéncia absoluta, poder-se-é censurar a fenomenologia 78, Ea “flosofia alimenta:” denunciada no artigo sobre a intencionalidade de Situations I 70 A transcendéncia do Eg Por ser uma “doutrina-escapista”, por puxar uma parcela do homem para fora do mundo e desviar desse modo a atengao dos verdadeiros problemas. Parece-nos que essa critica nao tem mais razdo de ser ao fazermos do Moi um existente rigo- Tosamente contemporaneo do mundo e cuja existéncia tem ‘#8 mesmas caracteristicas essenciais que 0 mundo. Sempre me pareceu que uma hipotese de trabalho tdo fecunda como © materialismo historico nao requeria absolutamente como CEE CATEQUETICO PASTORAL asnnaieie Sa fundamento essa absurdidade que € 0 materialismo metafi- Sosa Fiteare ecesetn sico”. Nao é, de fato, necessério que o objeto preceda o su- asco é Pastoral Jeito para que os pseudovalores esprituais se desvanegam ¢ ice Een Para que a moral rencontre suas bases na realidade. Basta hens Sel acacia que 0 Moi seja contemporaneo do Mundo e que a dualidade ‘Girs Seveeronca Sujeito-objeto, que € puramente légica, desapareca definiti- Se TEOLOGICO ESPIRITUAL vamente das preocupacées filos6ficas, © Mundo nao criou 0 eee ‘Mot, 0 Moi nao criou o Mundo; sao dois objetos para a cons- Settee Bogie, cigncia absoluta, impessoal, e € por ela que eles se acham ligados. Essa consciéncia absoluta, quando purificada do Eu, nada mais tem de um sujetto, nem 6 mais uma colecao ie is de representagées: é simplesmente uma condicao primeira e Sorade acm etiorsoteroe BNLoya=seHiNTo) I] uma fonte absoluta de existéncia. E a relacdo de interdepen ae déncia que ela estabelece entre o Moi ¢ 0 Mundo basta para eee renrccmnsat ania que o Moi apareca como “em perigo” diante do Mundo, para cat, Semin) *7estlos aicede wiped que o Moi (indiretamente e pela intermediacao dos estados), ‘cde Seat | tdo. Na Ried etre mio) drene do Mundo todo o seu contetido. Nao é preciso nada | [SED0e (Sema de Docamemngso) ‘mais para fundar filosoficamente uma moral e uma politica [ Neeser) absolutamente positivas”, PRODUTOS SAZONAIS = saat i ‘er formato de bolo. { SSeS Site Spas nc ne { Spemesece atte Sat ies { Satie CADASTRE-SE —— { 79. Sartre fax a critica desse materialismo absurdo em “Materialismo ¢ I revolugao* (Siuations ill, p. 135.228). r 80. Indmeros artigos das Situations la VI, as Entretiens sur la politique, e sobretudo a Critique de fa Raison dialetique sao testemunhos da continu, dade das preocupacées éticas e politicas em Sartre aqui fundamentades Fikes erie spas came eee ae 3 Senomenologicamente | Meum Goya RI Cui Cate TRF SC Foal CE Goan, CD ’ Aird Foo, MG" tondeaa PR” Nénss AM” Nall RN Pept Ale ode ano, RIS BA” St Las MA Sia Pel, SP "GNIDABE NO EXTERIOR. Lab Pog op 25h Pal RIT: 2 228990 Fs: (20251-4676 es La So "ral veda com

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