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Disciplina: Didatica 2 semestre de 2018- Maurice Tardif Professora: Clara Campos Saberes docentes e formagao profissional y EDITORA VOZES ' \ Tntrodugao, Quais sao os saberes que servem de base ao oficio de pro- fessor? Noutras palavras, quais 540 08 conhecimentos, 0 ber-fazer, as competéncias e as habilidades que os professo- res mobilizam diariamente, nas salas de aula e nas escolas, a fim de realizar concretamente as suas diversas tarefas? Qual 6a natureza desses saberes? Trata-se, por exemplo, de co- nhecimentos cientificos, de saberes “eruditos” e codificados como aqueles que encontramos nas disciplinas universita- rias € nos curriculos escolares? Trata-se de conhecimentos técnicos, de saberes da ago, de habilidades de natureza ar- tesanal adquiridas através de uma longa experiéncia de tra~ balho? Todos esses saberes sao de cardter estritamente cog- nitivo ou de carater discursivo? Trata-se de conhecimentos racionais, baseados em argumentos, ou se apdiam em cren- gas implicitas, em valores e, em iiltima anélise, na subjetivi dade dos professores? Como esses saberes sio adquirid través da experiéacia pessoal, da formagao recebida num cola normal, numa universidade, através do contato com os professores mais experientes ou através de outras fontes? Qual é o papel e o peso dos saberes dos professores em relagao aos outros conhecimentos que mar- cam a atividade educativa e 0 mundo escolar, como os co- nhecimentos cientificos ¢ universitarios que servem de base as matérias escolares, os conhecimentos culturais, os conhe- cimentos incorporados nos programas escolares, etc.? Como a formagio dos professores, seja na universidade ou noutras instituigoes, pode levar em consideragio e até integrar os sa- beres dos professores de profissio na formagao de seus fu- turos pares? Os oito ensaios que compdem este livro tentam fornecer Tespostas a estas questdes que ndo somente tém dominadoa Pesquisa internacional sobre o ensino nos iiltimos vinte anos, mas também tém marcado profundamente a proble- matica da profissionalizagao do oficio de professor em va- Tios paises (Tardif, Lessard & Gauthier, 1998). Esses ensaios representam diferentes momentos e etapas de um itinerario de pesquisa e de reflexao que venho percorrendo ha doze anos a respeito dos saberes que alicercam o trabalho ea for- macio dos professores das escolas primédrias e secundarias, Cada um deles-constitui um esforco de sintese nao sé de pesquisas empiricas realizadas junto a professores de pro- fissdo, mas também de.questdes tedricas sobre a natureza dos saberes (conhecimentos, saber-fazer, competéncias, ha-_ bilictadtes; etc.) que sao efetivamente mobilizados e utiliza dos pelos professores em seu trabalho diario, tanto na sala de aula quanto na escola. A partir de 1980, a questao do saber dos professores fez surgir dezenas de milharés de pesquisaS no “mundo ‘an- glo-saxa0 e, mais Tecentemente, na Europa. Ora, essas pes- quisas empregam teorias e métodos bastante variados ¢ Propdem as mais diversas concepgées a respeito do saber dos professores. Nesta apresentacao, gostaria de explicitar a minha prépria perspectiva tedrica, a fim de ajudar os leito- res a situarem melhor o meu trabalho entre as pesquisas contemporaneas sobre a questo. + Devo dizer inicialmente que, para mim, a questo do s: ber dos professores nao pode ser separada das outras di nensdes do ensino, nem do estudo do trabalho realizado riamente pelos professores de profissio, de maneira mais especifica. Em todos esses anos, sempre situei essa questao do saber profissional no contexto mais amplo do es- tudo da profisséo docente, de sua histéria recente e situagdo dentro da escola e da sociedade (Tardif & Lessard, 2000). Por isso, sempre me pareceu absurdo falar do “Saber’ (ou do Conhecimento, da Pedagogia, da Didatica, do Ensi- no, etc.), tal como o fazem certos psicélogos e pesquisadores anglo-saxées da 4rea da educagio, como se se tratasse de uma categoria auténoma e separada das outras realidades sociais, organizacionais e humanas nas quais os professores se encontram mergulhados. Na realidade, no ambito dos oficios e profissées, nio creio que se possa falar do saber sem relacioné-lo com os condicionantes e com 0 contexto do trabalho: o saber é sem- pre o saber de alguém que trabalha alguma coisa no intuito de realizar um objetivo qualquer. Além disso, o saber nio é ‘uma coisa que flutua no espaco: o saber dos professores é 0 saber deles @ esta relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiéncia de vida e com a sua histéria profissional, com as suas relagdes com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessario estuda-lo relacionando-o com esses elementos. cOnStEUTIVOS do trabalho docente.. Escapar de dois perigos: o “mentalismo” ¢ 0 “sociologismo’ A abordagem por mim preconizada neste livro tenta es capar de dois perigos, que designo pelos termos de “menta- lismo” e “sociologismo”, e procura, a0 mesmo tempo, esta- lecer uma articulagao entre os aspectos sociais e indivi- duais do saber dos professores. Ela se assenta na'idéia de que esse saber é social, embora sua existéncia dependa dos professores (mas nao somente deles) enquanto atores indi- viduais empenhados numa pratica. lismo consiste em reduzir o saber, exclusi principalmente, a processos mentais (representacoes, cren- Gas, imagens, processamento de-informagoes, esquemas, ete.) cujo suporte 6a atividade cognitiva dos individuos. Em u termos filos6ficos, o mentalismo é uma forma de subjetivis- ‘mo, pois tende a reduzir o conhecimento, e atéa propria rea- idade, em algumas de suas formas radicais, a representa- Ges mentais cuja sede 6 a atividade do pensamento indivi- dual (pouco importa se este 6, em seguida, numa perspecti- va baseada no materialismo ow no reducionismo biol6gico, determinado pela atividade cerebral). Desde o desmoror mento do behaviorismo na América do Norte e 0 conse- giiente desenvolvimento das ciéncias cognitivas, o menta smo, com suas intimeras variantes e ramificagdes (constru- tivismo, socioconstrutivismo radical, teoria do processamen toda informagao, etc.), me parece ser a concepgao de conhe- cimento predominante na educagao, tanto em relacao ao en- sino quanto em relagao a aprendizagem. A minha posigio, no que se refere ao mentalismo, é que o aber dos professores é um saber social, por vazios motivos: Em primeiro lugar, esse saber é social porque é partilha do por todo um grupo de agentes ~ 0s professores — que pos- suem uma formagao comum (embora mais ou menos va vel conforme os niveis, ciclos e graus de ensino), trabalham numa mesma organizagao e estao sujeitos, por causa da es- tratura coletiva de seu trabalho cotidiano, a condicionamen- tose recursos comparaveis, entre os quais programas, maté- rias a serem ensinadas, regras do estabelecimento, etc. Des- se ponto de vista, as representagdes ou praticas de um pro- fessor especifico, por mais originais que sejam, ganham sen- tido somente quando colocadas em destaque em relagao a essa situagao coletiva de trabalho. 2) Emssegundo lugar, esse saber é social porque sua posse utilizagao repousam sobre todo um sistema que vern ga- rantir a sua legitimidade e orientar sua definicao e utiliza- ao; universidade, administragio escolar, s agdes profissionais, grupos cientifico: de atesta- ao e de aprovacao das competéncias, Ministério da Educa- <0, etc. Em suma, um professor nunca define sozinho e em si mesmo 0 seu préprio saber profissional. Ao contrario, esse saber é produzido socialmente, resulta de umanego- ciacdo entre diversos grupos. Nesse sentido, o que um “pro- fessor deve saber ensinar” nao constitui, acima de tudo, um problema cognitivo ou epistemolégico, mas sim uma ques- tio social, tal como mostra a histéria da profissao docente (Névoa, 1987; Lessard & Tardif, 1996). Por isso, no ambito da organizagio do trabalho escolar, o que wm professor sabe depende também daquilo que ele nao sabe, daquilo que se supde que ele nao saiba, daquilo que os outros sabem em seu lugar ¢ em seu nome, dos saberes que os outros Ihe opdem ou Ihe atribuem... Isso significa que nos oficios e pro- fissdes nao existe conhecimento sem reconhecimento social Em terceiro lugar, esse saber também € social porque seus proprios objetos si objetos sociais, isto & préticas sociais. Contrariamente ao operario de uma industria, 0 professor nio trabalha apenas um “objeto”, ele trabalha com sujeitos ¢ em fungao de um projeto: transformar os alunos, educé-los ¢ instru¢-los. Ensinar é agir com outros seres humanos; é saber agir com outros seres humanos que sabem que lhes ensino; é saber que ensino a outros seres humanos que sabem que sou ‘um professor, etc. Daf decorre todo um jogo sutil de conhec- mentos, de reconhecimentos e de papéis reciprocos, modifi- cados por expectativas e perspectivas negociadas. Portanto, saber nao 6 uma substincia ou um contetido fechado em si mesmo; ele se manifesta através de relacdes complexas entre © professor e seus alunos. Por conseguinte, é preciso inscre- verno proprio cerne do saber dos professores a relagao com o outro, ¢, principalmente, com esse outro coletivo representa- do por uma turma de alunos. () Em quarto lugar, tais como mostram a historia das disci- plinas escolates, a historia dos programas escolares ¢a hist6- ria das idéias e das praticas pedagdgicas, o que os professores ensinam (os “saberes a serem enssinados”) e sua maneira de ensinar (0 “saber-ensinar”) evoluem com 0 tempo e as mu dangas sociais. No campo da pedagogia, o que era “verdadei- ‘itil” e “bom” ontem ja ndo o é mais hoje. Desse ponto de vista, o saber dos professores (tanto os saberes a serem en- sinados quanto o saber-ensinat) esta assentado naquilo que Bourdieu chama de arbitrario cultural: ele nao se baseis nenhuma ciéncia, em nenhuma légica, em nenhums evidene cia natural. Noutras palavras, a Pedagogia, a Diddtica, a Apron. dlizagem e o Ensino so construcdes socials cujos contercen, formas e modalidades dependem intimamente da histériade ae Sociedade, de sua cultura legitima e de suas culturas icas, humanistas, cientificas, populares, eta), de seus po. deres e contrapoderes, das hierarquias que aaa am na educagio formal e informal, ete aa ) sa Finalmente, em quinto lugar, de acordo com uma litera- tura' bastante abundante, esse saber & social por ser adquii dono contexto de uma socializagio profissional, onde ¢ incor. Borado, modiicado, adaptada em fungio dos momentos € ds fases de uma careira, a0 longo de uma histria pois: sional onde o professor aprende a ensinarfazendo oseu tra batho: Nowe palaras,o saber clos professors no im Conjunto de cntetids cognitivos definidos deuma ves por GBS, mas um processo em construcio ao longo de cana eira profissional na qual o professor aprencle progress famente a donsnar set ambiente de trabalho, 20 mesmo tempo em que se insere nel eo interiosiza por meio dee Bias de acto que se omam parte integrase de sua “one Em suma, pouco imy |suma, pouco importa em que sentido conside: ae sideramo: a questo do saber dos professores, nio devemos esquacer Sua "natureza socal”, se quisermos realmente representa-lo lesfigurd-lo. Entretanto, ao tentarmos escapar do m talismo, nao devemos cair no soci 2 en 50 Skciologismo tende a clminar totalmente a contibui- so dos atores na construcio concreta do saber, tratando. como uma producdo social em si mesmo e por si mesmo, producao essa independente dos contextos de trabalho clog professores e subordinada, antes de mais nada, a mecanis, mos soci is quase sempre exteriores A esco- , a forcas soci | la, tais como as ideologias pedagégicas, as lutas profissio- nais, a imposicio ea inculcagao da cultura dominante, a re- produsdo da ordém simbdlica, etc. No sociologismo, 0 saber zeal dos atores concretos & sempre associado a outra coisa que nao a si mesmo, e isso determina a sua inteligibilidade para o pesquisador (que invoca entao realidades sociais como explicagao), ao mesmo tempo em que priva os atores de toda e qualquer capacidade de conhecimento e de transfor- macao de suia propria situagao e acao. Levado ao extremo, 0 sociologismo transforma os atores sociais em bonecos de eRtriToquo. Pouco importa o que eles saibam dizer a res ‘peito daquilo que fazem e dizem, seu saber declarado nao passa de uma prova suplementar da opacidade ideologica na qual a sua consciéncia esta mergulhada: as “Iuzes” ema- nam necessariamente de outra parte, ou seja, do conhe- cimento oriuindo da pesquisa em ciéncias sociais, conheci- mento esse cujos orgulhosos distribuidores sio os sociélo- Diante do sociologismo, afirmo que é impossivel com- preender a natureza do saber dos professores sem colocé-lo ‘em intima relagdio com o que os professores, nos espagos de trabalho cotidianos, so, fazem, pensam e dizem. O saber dos professores € profundamente social e 6, a0 mesmo tem- > ‘po, o saber dos atores individuais que o possuem eo incor- poram a sua pratica profissional para a ela adapté-10¢ para fransformé-lo. Para evitar equivocos, lembremos que “So- dial” ndo quer dizer “supra-individual”: quer dizer relacao e interacao entre Ego e Alter, relagio entre mim ¢ os outros repercutindo em mim, relago com os out a mim, e também relacio de mim para comigo mesmo quan- do essa relagio é presenga do outro em mim mesmo. Portan- sssores nao é 0 “foro intimo” povoado de ma to, osaber dos pi representacoes mentais, mas um saber sempre ligado situagio de trabalho.com outros (alunos, colegas, pais, etc:), “um sabér ancorado numa tarefa complexa (ensinar), situado: de trabalho (a sala de aula, a escola), enraizado num espag e numa instituigao e numa Sociedade. Essas constatag6es so apoiadas por praticamente todos 0s estudos que se debrucaram sobre essa questo nos tilti- ‘mos quinze anos’. De fato, eles indicam com veeméncia que 0 saber dos professores depende, por um lado, das condi- ‘ses concretas nas quais 0 trabalho deles se realiza e, por ou- tro, da personalidade e da experiéncia profissional dos pro- prios professores. Nessa perspectiva, o saber dos professo- res parece estar assentado em transagdes constantes entre 0 que eles sfo (incluindo as emogoes, a cognicao, as expectati- vas,a histéria pessoal deles, etc.) eo que fazem. Oser eoagit, ou melhor, 0 que Eu sou e ser vistos aqui nao como d que Eu faco ao ensinar, devem materializada através de uma formacao, de programas, de priticas coletivas, de disciplinas escolares, de uma pedago- zada, etc., e so também, ao mesmo tempo, es dele. Como se pode, entao, pensar essa articulagao » que sabe um ator em atividade” e o fato de o seu prdprio saber individual ser, ao mesmo tempo, um compo- nente de um gigantesco processo social de escolarizagio que afeta milhes de individuos e envolve milhares de ou. tros trabalhadores que realizam uma tarefa mais ou menos semelhante a sua? A minha perspectiva procura, portanto, situar 0 saber do professor na interface entre 0 individual e o social, entre oator eo sistema, a fim de captar a sua natureza social e in- dividual como um todo. Ela se baseia num certo ntimero de fios condutores. Saber e abalho Um primeiro fio condutor ¢ que o saber dos professores deve ser compreendido em intima relagao como trabalho de- Jes na escola e na sala de aula. Noutras palavras, embora os professores utilizem diferentes saberes, essa w ‘em fungio do seu trabalho e das situagdes, condicionamentos e recursos ligados a esse trabalho. Em suma, o saber esté a servico do trabalho. Isso significa que as relagdes dos profes- Sores com os saberes nunca s4o relagdes estritamente cogniti- vas: sio relagées mediadas pelo trabalho que Ihes fornece principios para enfrentar e solucionar situacdes cotidianas. Essa idéia possui duas fungées concei lugar, visa a relacionar organicamente saber a pessoa do trabalhador e ao seu trabalho, aquilo que ele é e faz, mas tambémao que foie fez, a fim de evitar desvios em diregaoa concepgdes que nao levem em conta sua incorporagdo num. processo de trabalho, dando énfase a socializagao na profi sio docente e ao dominio contextualizado da atividade de ensinar. Em segundo lugar, ela indica que o saber do profes- sor traz em simesmo as marcas de seu trabalho, que ele nao ésomente utilizado como um meio no trabalho, mas € pro- duzido e modelado no e pelo trabalho. Trata-se, portanto, deum trabalho multidimensional que incorpora elementos relatives a identidade pessoal e profissional do professor, & sua situagao socioprofissional, ao seu trabalho diario na es- cola ena sala de aula. Essa idéia deve ser associada a tese de Delbos e Jorion (1990) sobre os salineiros. Segundo esses au- tores, o saber do trabalho nao é um saber sobre 0 trabalho, ‘mas realmente do trabalizo, com 0 qual ele faz. corpo de acor docom formas miiltiplas de simbolizagao e de operacionali- zagio dos gestos e das palavras necessarias a realizacao con creta do trabalho. Estabelecer a dlstingao entre saber e traba- Iho é uma operagao analitica de pesquisador ou de enge- nheiro do trabalho, mas, para um grande ntimero de oficios e profissdes, essa distingao nao é tao clara nem tao facil no processo dinamico de trabalho. ais: em primeiro Diversidade do saber ‘Um segundo fio condutor de que me sirvo hé muito tempo é a idéia de diversidade ou de pluralismo do saber docente, De fato, como veremos em diversos capitulos, quan- do questionamos os professores sobre seu saber, eles se re- ferem a conhecimentos ¢ a um saber-fazer pessoais, falam dos saberes curriculares, dos programas e dos livros dida- TOS, apsiam-se em conhecimentos disciplinares relativos ‘As matérias ensinadas, fiam-se em sua propria experiéncia e apontam certos elementos de sua formagao profissional Em suma, o saber dos professores é plural, compésito, he- terogéneo, porque envolve, no proprio exercicio do traba- tho, conhecimentos ¢ um saber-fazer bastante diversos, provenientes de fortes variadas e, provavelmente, de na- tureza diferente. No primeiro capitulo deste livro, apresento uma féntati- va de interpretagao desse problema da diversidade, pro- pondo um modelo de andlise baseado na origem social dos saberes dos professores. Esse modelo, formulado em 1991, orainda hoje-Na-minha-opiniao; ele pode ser mais pertinente do que as diferentes tipologias propos- tas por varios autores para representar a diversidade dos conhecimentos dos professores Bourdoncle (1994), Doyle (1977), Gage (1978), Gauthier et alii (1997), Martin (1993), Pa- quay (1994), Raymond (1993) e Shulman (1986). Estes auto- res usam critérios cognitivos ou teéricos a partir dos quais propdem diferentes classificagdes dos saberes, mas os crité- rios mudam de uma tipologia para outra: ora comparam-se principios epistemolégicos, ora correntes de pesquisa, ora modelos ideais... Por conseguinte, parece-me mais perti- nente evitar 0 uso de tais critérios, 05 quais, no fundo, refle- tem sempre os postulados epistemoldgicos dos autores, € propor um modelo construido a partir das categorias dos ptoprios docentes e dos saberes que utilizam efetivamente em sua pratica profissional cotidiana professores permite se mesmo saber. De fato, como sera mostrado nos cap! 1 €2, os diversos saberes e 0 saber-fazet dos professor: tao longe de serem produzidos por eles mesmos ou de se 18 originarem do seu trabalho cotidiano. Ao contrério, o saber dos professores contém conhecimentos e um saber-fazer aja origem social é patente. Por exemplo, alguns deles pro~ F-vém da familia do professor, da escola que 0 formou e de sua cultura pessoal; outros vém das universidades ou das F escolas normais; outros estao ligados & instituigao (progra- mas, regras, principios pedagdgicos, objetivos, finalidades, E etc,); outros, ainda, provém dos pares, dos cursos de recicla~ = gem, etc. Nesse sentido, osaber profissional esta, de um cer to modo, na confluéneia dé varios sal yeres oriundas da S0- E Tadade, da instituicdn escolar, dos outros atores educacio: nais, das universidades;ete FA conseqiténcia disso ¢ que as elagbes que os professo- resestabelecem com esses saberes geram, ao mesmo tempo, relagdes sociais com os grupos, organizagdes e atores que o: produzem, No tocante & profissio docente, a relacéo cogni- fiva com o-trabalho é acompanhada de uma relacao social: ‘osprofessores no usam o~'Saber em si”, mas sim saberes produzidos por esse ou por aquele grupo, oriundos dessa” ~hidaquela instituicio, incorporados ao trabalho por meio" desse ou daquele mecanismo social (formacao, curriculos, fistramentos de trabalho, etc.). Por isso, ao se falar dos sa~ beres dos professores, é necessério levar em consideragao 0 que eles nos dizem a respeito de suas relagbes sociais com esses grupos, instancias, organizacées, etc. Os juizos cogn F tivos que expressam no tocante aos seus diferentes saberes sio, 20 mesmo tempo, juizos sociais. Eles consideram que 0 seu saber nao pode ser separado de uma definicao do seu Saber-ensinar, definigao essa que consideram distinta ow posta as outras concepgdes do saber-ensinar atribuidas a esses grupos. Temporalidade do saber O saber dos professores ¢ plural ¢ também temporal, uma ¥ez que, como foi dito anteriormente, € adquirido no contexto de uma histéria de vida e de uma carreira profis- sional. O capitulo 2 trata dessa questao, que também tem uum impacto importante sobre a formago dos professores, como veremos nos capitulos a respeito desse tema. ber dos professores é temporal significa dizer, inicialmente, que ensinar supée aprender a ensinar, prender a dominar progressivamente os saberes realizacao do trabalho docente. Os inimeros trabalhos dedicados & aprendizagem do oficio de professor colocam em evidéncia a importancia das experiéncias fami- liares e escolares anteriorés & formacio inicial na aquisicao do saber-ensinar. Antes mesmo de ensinarem, 05 futuros professores vivem nas salas de aula enas escolas ~ e, portan- to, em seu futuro local de trabalho - durante aproximada: mente 16 anos (ou seja, em tomno de 15.000 horas). Ora, tal imersao é necessariamente formadora, pois leva os futuros professores a adquirirem crengas, representag6es e certezas sobre a pratica do oficio de professor, bem como sobre o que ser aluno. Em suma, antes mesmo de comecarema ensinar oficialmente, os professores ja sabem, de muitas maneiras, 0 {que 6 0 ensino por causa de toda a sua historia escolar ante- ior. Além disso, muitas pesquisas mostram que esse saber herdado da experiéncia escolar anterior é muito forte, que ele persiste através do tempo e que a formagio nao consegue transforméd-lo nem muito men Dizer que 0 A idéia de temporalidade, porém, nao se limita a hi ria escolar ou familiar dos professores. Ela também se aplica diretamente A sua carreira, carreira essa compreendida como tum processo temporal marcado pela construcao do saber profissional. Esse tema da carreira profissional, por sua vez, incide sobre temas conexos como a socializacao profissio~ nal, ac Jacao da experiéncia de trabalho inicial, as fases de transformagao, de continuidade e de ruptura que marcam a trajetéria profissional, as intimeras mudangas (de classe, de escola, de nivel de ensino, de bairro, etc.) que ocorrem também no decorrer da carreira profissional finalmente, toda a questao da identidade e da subjetivi- dos professores, que se tornam 0 que sao de tanto fa- dad 20 zer 0 que fazem. Sao esses temas, portanto, que sero explo rados de diferentes maneiras através dos varios ensaios aqui apresentados. Acxperiéncia de trabalho enquanto fundamento do saber Se admitirmos que o saber dos professores nao provém de uma fonte tinica, mas de varias fontes e de diferentes mo- mentos da hist6ria de vida e da carreira profissional, essa propria diversidade levanta o problema da unificasao e da Fecomposiao dos saberes no e pelo trabalho. Como os pro- y fessores amalgamam esses saberes? E, se hé fusio, como ela se opera? Ocorrem contradigoes, dilemas, tensdes, “conflitos + cognitivos” entre esses saberes? Essa diversidade dos saberes também traz.a tona a questao da hierarquizacao efetuada pe- Jos professores. Por exemplo, ser que eles se server de to~ dos esses saberes da mesma maneira? Seré que privilegiam certos saberes e consideram outros periféricos, secundétios, acessorios? Serd que valorizam alguns saberes e desvalori zam outros? Que principios regem essas hierarquizagbes? 4 Os professores que encontrei ¢ observei nao colocam to- dos 0s seus saberes em pé de igualdade, mas tendem a hie- rarquizé-los em fungio de sua utilidade no ensino. Quanto ‘menos utilizavel no trabalho é um saber, menos valor profis- sional parece ter. Nessa tica, os saberes oriundos da expe= riéncia de trabalho cotidiana parecem constituir 0 alicerce da pratica e da competéncia profissionais, pois essa experiéncia /,< é,parao professor, a condigao para a aquisicao e produsio de seus proprios saberes profissionais. Ensinar é mobilizar uma ampla variedade de saberes, reutilizando-os no trabalho para adapté-los e transformé-los pelo e para o trabalho. A expe- Fiéncia de trabalho, portanto, é apenas um espago onde o pro- fessor aplica saberes mesma saber do trabalho s em suma: reflex retomada, reprodugao, reitera- 0 daquilo que se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir sua propria pratica profissional a Saberes humanos a respeito de seres humanos Outro dos meus fios condutores é a idéia de trabalho inte- rativo, ou seja, um trabalho onde o trabalhador se relaciona com oseu objeto de trabalho fundamentalmente através da in- teragdo humana. Vem daf uma questo central que tem orien- tado as minhas pesquisas nos tiltimos anos: em que e como 0 fato de trabalhar seres humanos e com seres humanos reper- cute no trabalhador, em seus conhecimentos, suas técnicas, sua identidade, sua vivéncia profissional? Minha hipotese é que o trabalho interativo e, por conseguinte, os saberes mobili- zados pelos trabalhadores da interacao nao podem se deixar pensar a partir dos modelos dominantes do trabalho material sojam eles oriundos da tradigao marxista ou da economia libe- ral. De fato, até agora, foi o trabalho produtor de bens mate- riais que serviu de paradigma para o estudo do trabalho inte- rativo. A organizacao escolar foi idealizada a partir das orga- Rizagbes Industriais (ratamento de massa e em sé extrema do trabalho, especializagao, etc.) e 0 ensino, como uma forma de trabalho técnico susceptivel de ser racionaliza- lo por meio de abordagens técnico-industriais tipicas, como 0 behaviorismo cléssico, por exemplo, mas também, attalmen- te, através de concepcdes tecnolégicas da comunicagao que server de suporte as novas tecnologias da informacao. Com essa idéia de trabalho interativo, procuro compre- ender as caracteristicas da interagao humana que marcam 0 saber dos atores que atuam juntos, como os professores com seus alunos numa sala de aula, A questao do saber est: da, assim, a dos poderes e regras mobilizados pelos atores sociaisna interagao concreta. Ela também est ligada a inter- rogagGes relativas aos valores, a ética e as tecnologias da in- teracao. Essas diferentes idéias sdo abordadas em diversas partes do livro e de maneira mais especifica no capitulo 6, Saberes ¢ formacao de professores Finalmente, chegamos ao iltimo fio condutor, decor- rente dos anteriores: a necessidade de repensar, agora, a for- "et Peper FERPA E- magdo para o magistério, levando em conta os saberes dos professores e as-realidades especificas de seu trabalho coti- diano, Essa éa idéia de base das reformas que vémsendo re- alizadas na formagao dos professores em muitos paises nos xiltimos dez anos. Ela expressa a vontade de encontrar, nos cursos de formacao de professores, uma nova articulagao ¢ uum novo equilbtio entre os conhecimentos produzidos pe las universidades a respeito do ensino € os saberes desenvol- vidios pelos professores em suas priticas cotidianas. Até ago- ra, a formacio para o magistério esteve dominada sobretw do pelos conhecimentos disciplinares, conhecimentos esses produzidos geralmente numa redoma de vidro, semnenh na conexdo com a aco profissional, devendo,em seguida, serem aplicados na pratica por meio de estagios ou de ow- trasatividades do género. Essa visio disciplinar eaplicacio- nista da formagio profissional nao tem mais sentido hoje em dia, nao somente no campo do ensino, mas também nos ‘outros setores profissionais. E essa idéia que defendo, de senvolvo e ilustro nos trés tltimos capitulos. Procuro mos- trar como o conhecimento do trabalho dos professores ¢ 0 fato de levar em consideracdo os seus saberes cotidianos lovar nossa concepcao nao sé a respeito da for- mas também de suas identidades, contribui- x permite ren\ magao deles, des e papéis profissionais. nor Sao estas, substancialmente, as principais idéias que teiam e alimentam os capitulos deste livro, o qual esta di dido em duas partes. A primeira contém cinco capihilos que tratam mais especificamente er dos professores posto em relagdo com sex trabalho e com suas atividades profis- sionais; a segunda possui trés capitulos que abordam muito mais.as relagdes entre.a formacio profiss as saberes. pr Na primeira parte, os capitulos 1 e2 formam um todoe ema ci anos de intervalo. O disctitem o mesmo problema com oito anos de int pitulo 1 (“Os professores diante do saber: esbogo de uma aa

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