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Muitas faces do feminismo no Brasil Vera Soares Introdug¢ao Este texto busca construir uma trajetoria do movimento de mulheres a partir dos anos 70, identificar os varios espacos onde as mulheres se organizam ¢ apontar alguns desafios colocados para o movimento de mulheres, em particular para o feminismo, a partir dos processos de democratizacio ¢ de globalizacio. ‘A bibliografia sobre os movimentos de mulheres foi o ponto de partida, mas muitas vezes foi a meméria a fonte pera a inspira. cao, fazendo refletir minha experiéncia € construindo uma vi 40 particular das trajetérias ¢ das questées que desafiam esse movimen- to. Como vivo ¢ milito na cidade de Sio Paulo, esta anilise certa- mente traz um viés paulistano. O conceito de feminismo aqui utilizado parte do principio de que o feminismo a acho politica das mulheres. Engloba teozia, prética, ética e toma as mulheres como sujeitos histéricos da trans. formacio de sua prépria condic&o social. Propée que as mulheres partam para transformar a i mesmas € ao mundo. O feminismo se Vera Soares Fol integrante da Comisso de Mulheres do PT de 1982 2 1994. E miltante feminista, membro da ELAS — Elisabeth Lodo Assessoria, consultora do Nicleo de Estudos da Mulher e Re lapes Soviais de Género da USP — NEMGE- USP. (Este texto € uma reelaboracdo de textos anteriores: Sosnss, 1994; Da.caooe Soares, 1995) 33 \ Vera Soares expressa em aces coletivas, individuais ¢ existenciais, na arte, na teoria, na politica. Reconhece um poder nfo somente no Ambito do publico-estatal, mas também o poder presente em todo o tecido so- cial, fazendo a concepcio convencional da politica ¢ a nocio de su- jeito se ampliarem. Todos aqueles que tm uma posicio subalter- na na relacées de poder existentes sio chamados a transform4- las. Nao existe pois um s6 sujeito histérico que enfrenta e€ trans- forma tais relacées em nome de todos os subalternos. Reconhece uma multiplicidade de sujeitos que, desde sua opressio especifi- ca, questionam e atuam para transformar esta situacao (SOARES ef 1995). Apesar de a acio das mulheres se inscrever numa aco mais alii, geral democratizadora e modernizadora da cultura e dos costumes na sociedade brasileira, a reflexdo aqui fica no Ambito dos movi- mentos de mulheres e do movimento feminista. Esta escolha perde ao nfo analisar as influéncias mais amplas do movimento feminista mas, por outro lado, ganha nas possibilidades da reflexio de um segmento organizado das mulheres na sociedade. As mulheres nos movimentos A presenca das mulheres na cena social brasileira nas iltimas décadas tem sido inquestiondvel. Durante os 21 anos em que o Bra- sil esteve sob o regime militar, as mulheres estiveram 4 frente nos movimentos populares de oposicao, criando suas formas préprias de organizac4o, lutando por direitos sociais, justica econédmica e democratizacdo. “O movimento operario que se organizou nos anos 70 € seguramente o ator mais importante neste cenario. Os movi- mentos de mulheres constituem a novidade” (Souza-Loso, 1991, p. 269). A presenca das mulheres aa arena politica foi, assim, construida no perfodo da ditadura, a partir dos anos 60, sendo um dos elementos que contribuiram para os processos de mudancas no regime politi- co; “[.] além disso, mulheres também compuseram a coluna vertebral de muitas das organizacées de sociedade civil ¢ partidos politicos de oposicéo que com ésito desafiaram regras autoritérias durante os anos 70 ¢ inicio dos 80” (ArvarEz, 1988). 34 *, Muitas faces do feminismo no Brasil # De fato, as mulheres estiveram presentes nas lutas democrati- cas e, simultaneamente, mostraram e tem demonstrado que diver- sos setores se inserem diferentemente na conquista da cidadania ¢ que os efeitos do sistema econdmico sao sentidos diferenciadamente de acordo com as contradicGes especificas nas quais estes setores esto imersos (SADER, 1988). As mulheres — novas atrizes —, ao transcenderem seu cotidia- no doméstico, fizeram despontar um novo svjeito social: mulheres anuladas emergem como inteiras, miltiplas. Elas estavam nos mo- vime: s contra a alta do custo de vida, pela anistia politica, por creches. Criaram associacées € casas de mulheres, entraram nos sin- dicatos, onde seivindicaram um espaco proprio. Realizaram seus encontros. Novos temas entraram no cenério politico, novas prati- cas surgiram. Algumas autoras citam o movimento que emergiu no Brasil como talvez “o mais amplo, maior, mais diverso, mais radical € © movimento de maior influéncia dos movimentos de mulheres da América Latina” (STERNBACH ¢ alii, 1992, p. 414). Dois processos fundamentais que cruzaram a segunda metade dos anos 70 ¢ toda a década de 1980 marcam a presenca dos movimen- tos sociais no Brasil contemporineo: as crises econédmicas ¢ a inflacio crescente que delas decorrem, € 0 processo de abertura politica, ambos afetando e mobilizando tanto as classes médias como as operarias. A “transiciio negociada” do regime autoritirio processou-se 2 partir da segunda metade dos anos 70, dentro do projeto de “distensio lenta ¢ gradual” do presidente Geisel, ¢ veio acompanhada da proli- feraco de movimentos populares, da consolidacio da oposicio, da remobilizaco da esquerda, da rearticulacio de uma politica de opo- sicio, da expansio da acho pastoral da Igreja catélica. As mulheres neste periodo tiveram espaco para uma maior acao politica em contraposicio 20 imaginario social que as vé como cidadis despoli- tizadas ow intrinsecamente apoliticas. Foi durante a ditadura militar, quando existiam as torturas a presos politicos, a homens, mulheres ¢ criancas supostamente parti- cipantes de movimentos politicos, que o movimento feminista foi capaz de produzir uma série de ergumentos iluminando as ligacées da violéncia contra a pessoa e contra as mulheres na esfera doméstica. 35 \ Vera Soares © movimento de mulheres que aparece durante os anos 0 rompeu com uma tradicio segundo a qual as mulheres manifesta- vam publicamente valores tradicionais ¢ conservadozes, como ocor- zeu com a Marcha da Familia com Deus pela Liberdade, que prece- de o golpe militar (Bray, 1987). O movimento de mulhezes nos anos 70 trowxe uma nova versio da mulher brasileira, que vai as ruas em defesa de seus direitos ¢ necessidades € que realiza enormes manifestagdes de dentincia das desigualdades. Concordo com Alvarez quando afirma que, ironicamente, as regras autoritérias dos milita- res, que tinham por intencio despolitizar ¢ restringir os direitos dos cidadaos € cidadas, tiveram como conseqiéncia a mobilizacio das mulheres, geralmente marginais na politica (ALvaREZ, 1990). O movimento de mulheres no Brasil foi (¢ ainda é) muito hetero- géneo, Na realidade, devemos tratar de movimentos de mulheres que trouxeram a pa:ticipaco politica muitas mulheres influenciadas pelo feminismo que ressurgiu também no periodo, “um feminismo revisitado”, como afirmou Beth Lobo ao fazer referéncia aos movi- mentos feministas do inicio do século, em que mulheres lutaram pela conquista do voto ¢ pelo direito 4 educacio (Sovza-Lozo, 1991). O movimento feminista que reapareceu no Brasil a partir de meados dos anos 70 teve algumas caracteristicas dos movimentos que surgiram na Europa e nos Estados Unidos nos anos 60. No entanto, as condicées politicas locais, geradas pelas peculiaridades da primeira fase do governo militar, no deram lugar 4 emergéacia de um movimento de liberacao radicalizado, como os que mobili- zaram mulheres da mesma geracio ¢ camada social naquelas socie- dades, com trajetérias ¢ questionamentos “identitarios” semelhan- 1989). Esta mesma situacio, por outro lado, propiciou a emergéncia do feminismo no seio das militantes dos partidos de esquerda ¢ de tes aos de muitas jovens brasileires (GoLpsER mulheres engajadas na luta pela democracia no pais. Tratou-se do surgimento de um feminismo cujas militantes estavam em sua maio- tia também engajadas nos grupos de esquerda ow nas Iutas democra- ticas, criando um movimento feminista bastante politizado, o que a autora chamou de “um feminismo bom para o Brasil” (GoLDBERG, 1988) 36 *, Muitas faces do feminismo no Brasil # O ano de 1975 é freqtientemente citado como aquele em que os grupos feministas reapareceram nos principais centros urbanos. Naquele ano, quando muitas vozes dissidentes eram sistematicamen- te silenciadas pelos militares brasileiros, a proclamacao da Década da Mulher pelas Nacées Unidas ajudov a legitimar demandas incipientes de igualdade entre homens e mulheres. As mulheres sou- beram aproveitar a brecha e organizaram encontros, seminérios, conferéncias, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro ¢ de So Paulo. A partir dai, comemoracées publicas do Dia Internacional da Mulher (§ de marco) passaram a ocorrer em varios estados, varias organizagdes feministas tomaram forma e varios jornais feministas apareceram. Os primeiros grupos feministas criados na década de 1970 nasceram com o compromisso de luter tanto pela igualdade das mulheres como pela anistia € pela abertara democrética’, Exam gru- pos de reflexfio € pressio, cujas feministas tomaram como tarefa “traduzir sua motivacio original em proposicées que sejam relevan- tes para a grande massa de mulheres desprivilegiadas, de modo 2 mobiliz4-las contra a opressiio de sexo e de classe” (SINGER, 1980, p. 119). Muitas mulheres passaram 2 dirigir sua atuacdo, por intermé- dio dos grupos recém-criados, para Intas em bairros ¢ comunidades das periferias urbanas, da Igreja catélica, em clubes de mies, associa- ces de vizinhanca, onde donas de casa ¢ maes se reuniam, organiza- vam-se € mobilizavam-se por questées do cotidiano. Os grupos feministas ¢ 0s movimentos populares de mulheres proliferaram durante os anos 70 ¢ inicio dos 80. As comemoracées do Dia Internacional da Mulher se constituiram em momentos-cha- ve para a organizacio de foéruns das mulheres, articulando protestos piblicos contra a discriminacdo de sexo € uma agenda de seivindica- ¢6es, consolidando uma coordenacdo de mulheres ¢ lacos de solida- tiedade. Até os dias de hoje essas comemoracdes se constituem em um dos momentos privilegiados de encontro do movimento de mulheres. 4. Aluta pela anistia no Brasil teve uma grande participacéio das mulheres, que iniciaram 0 Movimento Feminino pela Anistia, em 1975, composio principalmente por esposas, mes. ims e outras familiares de vitimas da repress. Muitas feministas tiveram participacao importante neste movimento, conforme aponta Paul Singer (1980). 37 \ Vera Soares Os sindicatos também passaram a ser lugar da militancia fe- minista, criando-se uma interlocucio entre as feministas ¢ as sindi- calistas, que teve desdobramentos significativos para as relagdes en- tze 0 sindicalismo ¢ as trabalhadoras. As feministas debateram com as esquerdas e com as fozcas politi- cas progressistas alguns pontos da teria e da pritica do fazer politico, apontando para a nio-hierarquizacdo das Iutas ¢ a sexualizacio das prd- ticas nos espacos publicos. O feminismo trouxe novos temas para o conjunto do movimento de mulheres, posteriormente incorporados pelos partidos politicos: direito de ter ou aio filhos, puniclio aos assas- sinos de mulheres, aborto, sexualidade, violéncia doméstica No inicio dos anos 80 chegavam a quase uma centena os gra. pos feministas espalhados pelos principais centros urbanos do pais No Brasil, como também em varios paises da América Latina, as mulheres se fizecam ¢ se fazem visiveis por meio de uma multiplicidade de expressdes organizativas, uma infinidade de rei vindicagSes e formas de luta. Os movimentos de mulheres, como outros movimentos so- ciais, sio movimentos nio-cléssicos, na medida em que transcorem nas esferas ndo-tradicionais de organizacio ¢ aco politica — a novi- dade é que tornaram visiveis a prdtica e a percepcdo de amplos seto- res sociais que geralmente estavam marginalizados da andlise da rea- lidade social, iluminaram aspectos da vida ¢ dos conflitos sociais em geral obscurecidos ¢ ajudaram a questionar velhos paradigmas da ac&o politica. Uma das principais contsibuigées do movimento de mulheres tem sido evidenciar 2 complexidade da dindmica social ¢ da aco dos sujeitos sociais, revelando o cardter multidimensional ¢ hierdrquico das relagées sociais ¢ a existénci de uma grande heterogeneidade de campos de conflito. Para uma compreensio inicial destes movimentos foi usual nos referirmos a0 movimento feminista como uma das expressdes de um movimento de mulheres mais amplo (Vareas, 1993). As fe- ministas compéem uma face do movimento de mulheres. As mu- Theres das periferias dos centros urbanos, das pequenas comunida- des rurais, as que atuam nos sindicatos compéem a outra face. Cada uma das vertentes do movimento de mulheres poderia ser analisada 38

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