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RICHARD SENNETT ODECLINIO DO HOMEM PUBLICO AS TIRANIAS DA INTIMIDADE eS adn te Cage ne Piet I) nts Copyright ©1974, 1976 by Richard Sennett tuo origina: The Fall of Public Man Indicagdo editorial: Renato Janine Ribeiro Capa: , Moema Cavaes sobre Fscadaria Bauhaus 1932), de Oskar Schlemmer Indice remissivo: Adelina Bougas ‘Marisa Vargas Revisio: Anibal Mari Regina Colonéri Clara Baldrani Paulo Cézar de Melo ParaC. RH. CAPITULO 7 O IMPACTO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL NA VIDA PUBLICA “A revolugdo urbana” e a “cidade industrial” sio duas vias, répidas Mas enganosas, para retratar as transformagées de um século atrés, A primeira engana ao sugerit que crescimento das cidades no sé. culo XIX haveria sido tio enorme que teria pouca relagio com as ci ades que existiam anteriormente. A segunda engana ao sugerir que esse erescimento ocorreu tipicamente em lugares onde ser operirio numa industria gigantesca era a vida que o populacho da cidade co. nhecia. De fato, 0 maior crescimento da populagao ocorreu em cidade com poueas indiistrias de porte; ocorreu nas capitais. O simples au- mento da populacao era, certamente, sem precedentes. Velhos padres Para lidar com essa populagao e sustenté-la economicamente eram glo- Fificados até que se tornassem irreconheciveis; neste sentido, as mus 14 Numa sociedade que esté quebrando as amarrs feudais, a burguesia Se constitui como a classe ertica. Em Paris © em Londres ne ne XVIII o trabalho comercial ¢ burocrtico nto implica o cum. Brimento de uma obrigacio estabelecida em tempos imemoriais Noy 5: decorrer do século XIX, essas mesmas ocupactes burguesas comeone 2 tas ganharam um novo context. Podemes identificar. enquanto uma regra de trabatho, as classes burguesas de Londres e Pars, comegando pelos propretinos de none cies, com a0 menos um empregado; com trabalfadores de sentere sereventes, suard-livzos, assim por diante com os estratos proficees naisegerencaisacima dles. Era um grupo surpreendentemente wg de de pessoas. Em 1870, totalizavam entre 35 ¢ 43% da populagte te je Ainda assim, entre uma capital e a outra, as diferengas no eram to { ‘boas maneiras”, a despeito de ras de linguagem, costumes nacionas, ou idade, Por um lado, entre 1770 e 1870, em Paris 0 aumento percentual de trabathadores burgueses no fora grande, talver um teree » orale Mas a verdadeira mudanca de contexto estava naquila que comercial zavam e administravam: tm sistema de mercadoriasfeitas a maui Produzidas em massa. £ importante sabermos até que Ponto aqueles ue vivenciaram esse novo sistema o entenderam. Nao 0 entenderam muito bem. em parte porque traziam consigo muitasatitades da antige cidade para relacionar-se com a nova cidade. Mas a maneira pela qual \ tendiam a nao compreender a ordem industrial é importante, porque Ap reveta uma visto fundamental da vida industrial que condiclono todos des para como Ambito pblico: a respeitabilidade burguesa estava fundada na sort Os homens de negécios os burveratas do séeulo passado tinham ouca nogdo de estarem partiipando de um sistema ardenado. Alem disso, uma vez que estavam dirigindo o sistema, tendemos a supor ave entendessem ao menos o proprio trabalho que faziam, © nada peccria estar mais longe da verdade. Os novos pineipios para se larer diheite © para se diriir grandes organizasbes eram tm mister até mesma *\ Para aqueles que eram muito bem-sucedides. Os trabathadores das \, | empresas de produgto em larga escala, de Parise de Londtes, nas de cadas de 1860 ede 1870. costumavam retratar suas atividades em ter. ‘mos de apostas na sorte e de jogos de azar. eo cendrio apropriade eva a do mereado de capitals Para entendermos os novos estimulos econdmicos que desafiavam as pessoas que afluiam cidade, precisamos saber o sentido da espect ago naquele tempo. Era possivel, de fato, ganhar ou perder muito di nheito rapidamente. As familias com capital tendiam a aplici-lo em uma ou, no maximo, em muito poucas empresas. Assim, bastave umm mau investimento, e familias decentes e respeitaveis encontravam-se face & ruina; um bom investimento, e repentinamente alguém passava 4 habitar num mundo totalmente novo. Quais eram ss regras, entao, para se fazer um bom investimento, ou se evtar um mau investimento? Osinvestiores de isquer barrel 's de hoje sobre como tomar uma decisio. Por exem. plo, poucas empresas pul hourse © suas subsidisrias em Paris, nfo tinham prineipios reais de controle, nem mesmo garantias pro forma de que as empresas envoli- das efetivamente existiam. O mercado de produtos era, no minimo, Pior. Os grandes investimentos nacionais eram igualmente uma ques. 176 | {Go de sorte, e nao seguiam qualquer ordem racional efetiva, no sentido comum. Construiam-se estradas de ferro na Franca em meio aos mata, sais. porque se “suspeitava” que algum dia se descobritia ferro. all. grandes esciindalos, como 0 caso do Panama, tinham eco em fiascos igualmente fraudulentos, ainda que menos espetaculares, A existéneia de tanta fraude dependia de uma classe de investidores que quase nie dispunha, em suas proprias mentes, de padres de des industrias, e, portanto, do que constituiria uma deci investimento Nao se chegara ainda ao final da década de 1860, quando as essoas comesaram a relacionar a sucessio dos bons dos maus te Pos e a pensar, portanto, em algo chamado ciclo de negécios, Mas o ue causava esse ciclo? Hoje em dia podemos fazer uma boa descricao dele, por meio dos eseritos contemporneos de Marx, mas poueos cor. refores de um século atrés ja os estavam lendo, Os homens de negdeion estavam mais afeitos a explicar os ciclos de negicios em termos mist. cos. John Mills, um banqueiro de Manchester, acreditava que o ciclo de negécios dependia da “ciéncia da ment m Purdy apresentou a teoria segundo a qual os ciclos de negécios ocorriam por ue os jovens investidores tomavam-se maduros e no tisham, por tanto, 0 vigor fisico necersério para manter o capital citculando com intensidade. Na Franga, 0 entendimento do ciclo nao era melhor. E aquilo que tornava tao critica a falta de auto-andlise na época era e fato 5 econdmicas no século passado eram tio m ‘as ¢ repentinas do que hoje, que num espago de poucos meses a Franca industrial pode mergulhar da expansio para a depressi ap6s um certo periodo de estagnago. no qual nada pareci Para melhorar a situagio, repentina ¢ inex evidente ascensio," As instabilidades inexplicdveis que comandavam os setores oe} investimentos comandavam por sua vez também as burocracias, Ope. Fagdes como o Crédito Rural (Crédit Fon monumental fariam sua aparicdo, ficariam envolvidas no que pareciam ser proietox € repentinamente ruiam; seu trabalho seria entio feite oneanizacio, com pessoal novo. Al Frenca sao tentados a contrastar sua historia buroeratica favoravel mente em relacio & da Inglaterra, argumentando que o maior controle estatal_da economia francesa dava aos burocratas u maior. O argumento poderia resistir em termos de v em termos de Paris ou de Londres, nao, pois, para quanto todos os érgios centrais do Estado francés estavam ‘em Paris, a propria economia da cidade estava st 7 \.__ ] imais baixo de controle estatal do que as provincias ou a zona rural xy. | A reconstrugdo de Paris por Haussmann, que causou enormes perdas SX J comerciais e financeiras, teria sido impossivel numa cidade provin ciana, porque a mao morta da burocracia teria inibido a acumulagao frenética (e desordenada) de capital, mao-de-obra e material, \ | A respeitabilidade fundada na sorte: eis 0 fato econémico do sé culo XIX, sssocindo a uma demografia de exyansto ede lament Surge mais uma ver a dignidade da borgvesia: instal, conta ese economia, um lar estivel forgr familia enguante um grape ter uma vida de proptiedade nga, er um ato de vontade,¢demandore um certo rigor, Hoe tas ores parecemossufocane. Talver sea o prpriofato de que a economia capitalisa creseu relatvamene de rod mas ordenado eteve em ns suportes mais firmes o ue tena permitido nossa superago da propredadedosieulo XIX, Sea consincia que a pessoas tem de seu proprio tempo fosse proto dreto das eondigdes materia sob as quis vive, eto os adios bargueses das capitals do silo KIX deteriam area Que viiam num tempo de permanente catacismo. Retrspectivamente:& possvel ver comoascondigbes materia datiade stavam enaizadse eram expanstes dos padrbes materiais que exstinm antes do rlnade da ondem industrial. Mas fl como foram experimentades na Epace QS entretanto, os aumentor de populgde, av mudangss a a Autwages da nova ordem indus eram tn grandes ques ornarann mem fain de uma vida ser evitadatmultidtes de esomn devampas rads, desenraizadaseameagadoras, sno a mantteng Jena ida decent uma questo de sorte mais do quede vontade Estas conigbes mates nao levaram a una perepgio dese Spo. Uma conscnca da desodem material da edads grande ine tava entre sens cidadaos, bem como ns provineias, pis de fata mas vesioa demorasam ase moda paras capita, temeroses de somo sta vida ali No decorrer do seul, como um todo, a malori dos migrants sera par cidade volunteriamente, como pessoas ovens soles ¢ "to como grupos deslcados. Os habitants de diferentes pos de dade, cdadesprovineinas de ambos o pases, etm ox mats propensos a mergulnarnese abi. Em partite ocrra porque ete ldadea incanaseram o corpo do novo : tm Lyon, como em Manchester o Biringham, estavam fibvices elas haviam crido a economia © a demogratia de Manchester, ina cidade nova. Em outs edades mais antiga, tecido dai Socal 178 tram “a chegada de uma grande transfor maga: Little Dorrit, fatos. materiai wwidade da v drina. Middlemarch conta o que acontece numa cidade de prov Little Dorrit, 0 que acontece em Londres. A razio pela qual as transformagies materiais nto levaram A per: cepedo de um caos total, a razdo pela qual as pessoas da classe mé Podiam sentir que a sobrevivéncia era possivel na cidade, ou pela qual a vida cosmopolita era importante e significativa apesar de todos os seus terrores, era exatamente porque 0s cidadios nfo precisavam inventar uma cultura na cidade com imagens de como era a vida urbana, como enfrentar o desconhecido, de como se comportar diante de es tranhos. Havia uma cultura herdada, Essa cultura era o dominio Dlico. Assim como crescera no Antigo Regime como resposta as trans formages materiais da populagdo e da demografia, cla sobrevivera Para 0S nossos tataravés como um instrumento para que se tentasse reservar a ordem em meio a mudangas materiais muito maiores na cidade, Aquilo que nossos tataravés receberam, com o tempo, e como o fizeram com todas as herangas, eles desperdigaram. Finalmente, a but guesia deformou, até o ponto em que nada permanecia, as modas senvolvidas no séeulo XVIII para se levar uma vida significativa a guma distincia das incertezas das cireunstincias pessoais. Mas o im. ulso para se levar uma tal vida continuon forte, ainda que os meios ara tanto estivessem ruindo. Este é 0 grande paradoxo culo pasado: enquanto as condigdes materiais iam se tornando mais, conhecidas e mais regulares. o munda publico ia se tornando cad ‘menos estivel. De que modo, entio, era a vida piiblica conduzida em meio a €ssas novas condigdes materiais, como uma resposta a elas, como uma defesa contra elas? MERCADORIAS PUBLICAS Nao hi melhor introduce para essa vida publica do que a hi curiosa de como se transformara, no século XIX, o comércio van das capitals. O surgimento da loja de departamentos, por mais que o sunto possa parecer corriqueiro, 6 de fato uma forma conden: prio paradigma de como o Ambito piiblice como um intercfimbio ative abrira caminho, nas vidas das pessoas, para uma experiéncia dia mais in: tensa e menos sociavel publicidade(publicness).. 179 Em 1852, Aristide Boucicaut abriu uma poquena Ioja de venda a rej em Paris, chamada Bon Marché. A laja se baseava em tes tng inéitas. A margem de luero de cada item serie pequena, nos o valve de mercadoras vendidas seria grande. Os pregos dav moreadorig ve Flam fixos ¢ claramente marcados. Qualquer pessoa podria vate nessa loa apenas para ofhar, em sentir qualquer obrigaste deca pra O principio de um pres fixo para mercadorias no varejo nto era inteiramente original. A Bele Jardnire de Parissot rendie porpos de NY camae mesa dessa forma, jiem 1824, mas Bouciault ol epecg sa iia em foda a escala de mercadoriay no va Uma medida da originalidade do prego fixoestare om sees AN timas décadas do Antigo Regime, era proibido por lei que os vare 2 distrib riéncia das compras'* oes Num mereado onde os pregos do varejo flutuam, vendedores & x}) _compradores fazem todo o tipo de encenag.zo para aumentarem eu dh ‘minuirem os pregos. Nos bareres do Oriente Mécio, demonstragoes de Sentimento ultrajado, declaractes apaixonadas de dor sofrimento ‘casionados pela perda ou compra dessetapete t20 bo € estdo incluidas na venda. Nas feiras de alimentos pas culo XVIII, poder-se-ia perder horas fazendo se mai prego de uma ‘atia de bifeem alguns centaves.* ‘A pechincha e os rituais altantes sho os ex comuns de teatro diario de © do homem piblico como ator. O final da linha de producao e de distribuigio numa sociedads sem precos fitos € a pose, a manobra para se obter posigaes. a habi lidade para se localizar as brechas na armadura do pretagio reciproca eestlizada entrelaga sovialmente os compradores ¢ os vendedores: nio participar ativamente arriscar-se« parder dinheire ~S O sistema de prego fixo de Boucicault diminui o riseo de nao se * J desempenhar um papel. A sua i re fez com que a pas sividade se tornasse norma. A297 Nos estabelecimentos varefistas de Paris sob 7 no ini 0 Regime, ¢ lo XIX, entrar numa loja significava que se queria fe quer que fosse. Os que olhavam scm intengdo de comprar pertenciam as feiras livres, interior de uma Joja. Este “contrato implicito” de compra faz plenamente sentido di te dos esforgos dramiticos exigidos pelo sistema de precos livres. Se um vendedor aplicar seu tempo fazendo discursos ardentes a respeito de suas mercadorias, com declaragdes de que esti a beira da bancar V 180 "io podendo tirar um centavo do prego, ele deve saber que 0 com: prador também usaré esse tempo a seu favor. Essa dramaturgia toma tempo e. portanto, desencoraja as vendas répidas. Ao ter em vista a Pequena margem de lucro por item ¢ o grande volume de vendas, Bou. cicault teve que abolir esse comportamento teatral.* Potter Palmer em Chicago — comegaram a vender em grandes volumes © com peguena margem por artigo? A resposta mais simples diz res eito ao sistema de producto. Artigos feitos a maquina podiam ser {citos mais rapidamente e em muito maior volume do que os artigos {enue A loja de departamentos, neste cmputo, & uma resposta a fébrica, Uma explicagao complementar ¢ dada por C. Wright Mills, Fespeito & buroeracia industrial. Em White Collar (Colarinho j Branco). ele da sua explicacdo para o sistema de precus fixos: numa Hoja que lida com vendas volumosas, é necessério haver um mimera Niet do mprendore potent ec oa. ele precisa ter um prego fixo; no poder con arefa de barganhar com sucesso.” Mas a loja de departamentos, a NX | E por que Boucicault ¢ seus imitadores — Burt, em Londres, 1, nao teria sido hem-suce a massa de compradores potenciais. A simples complesidade fi siea das ruas da vetha cidade também e ia. Sair do seu quartier er assim, as lojas de departamentos cidade, para completar seu volume de vendas. A cr ‘boulevards em Paris na década de 1860 ajudava a A criagdo de sistemas de transportes. em Paris e em Londres, isso ainda mais rea! - 08 Gnibus purados a ja sido introduzidos em 1838, mas seu grande periado ¢ mento foi a década de 1850, Em 1888, transportaram 36 Passageiros: em 1866, 107 milhdes. A mesma unido entre transporte rapido ¢ comércio varejista marcou 0 desenvolvimento de Chicago apos © Grande Incéndio de 1871, Este trans nado ao prazer. nem tampouco seu: terpenetrago das Producio em massa, administrada por uma burocracia ampla, ligada & massa de compradores, tudo isto levava 0 vendedor a aban- donar os antigos padres de comércio varejista para aumentar 0 lucro. Nao explicava, no entanto, por que o comprador estava disposto a mu- dar também. O Iuero do vendedor no explica, principalmente, por que, em Paris, o comprador estava disposto a se tornar uma figura passiva quando se tratava de gastar seu dinheiro. Vamos excluir. primeiramente, essa explicagaio simples e dbvia do motivo por que um comprador esti disposto a abandonar a pai agio ativa no comércio de varejo. Em geral, os pregos nio se tornaram mais baratos na loja de departamentos, em comparagdo com as lojas ddos velhos tempos. Os niveis de pregos de alguns artigos baixaram, mas essa poupanga era mais do que simplesmente anulada, pois até as pes- Soas que tinham poucos recursos passaram a comprar artigos que nun- ca haviam sonhado possuir. Expandia-se 0 nivel de consumo entre as classes médias e as classes trabalhadoras mais altas. Um exemplo: com o advento da loja de departamentos, a idéia de possuir varios conjuntos de roupas, todos quase similares ¢ feitos a miquina, para o uso nas as, passou a se firmar. Outro exemplo: nessas lojas as pessoas come- aram a comprar cagarolas e panelas que servissem a determinadas fi- nalidades, pois a estufadeira ou a frigideira de uso geral pareciam ter se tornado inadequadas. Havia um relacionamento entre © novo papel passive do com- prador ¢ aquilo que parecia ser um novo estimulo ao consumo. D’Ave- nel descreve sucintamente a qualidade dos artigos vendidos nas novas lojas de departamentos: de vender mercadorias com grande margem de luero e de pri ‘entio, mercadorias de menor gualidade com margem de vida, eles (a loja de departamentos) vendem mercadorias de lade boa ou ravoivel, com uma margem de lucro que anterior s0 era utilizada para mereadorias de menor nivel Objetos de nivel médio de quatidade, com margem de lucro outrora apropriada apenas a objetos de qualidade baixa, e consumidores gas- tando mais para possuit mais — eis em que consistia a “padronizagao” mercadorias. Os varejistas da época, Boucicault e Palmer, maisespe- cialmente, sabiam que estavam diante de um problema: estimular as Pessoas a comprarem mercadorias to indefinidas. Tentaram resolver 0 problema criando uma espécie de espeticulo do lado de fora da tum espeticulo que deveria dotar as mereadorias, por associagio, de um interesse que a mercadoria poderia intrinsecamente nio ter.” © primeiro recurso que 0s varejistas usaram foi a justaposi¢a0 182 inesperada. Um visitante do andar de utenslios da Bloomingdale em Nova York teria uma percepeio melhor do que haviam tentado esses Iojas do século XIX. Ao invés de cem potes do mesmo tama |mesmo fabricante haveria um Gnico exemplar, coloeado ao lado de um ‘outro, deforma diferente. Zola esereveu que “a forca das lojas de de partamentos é aumentada dez vezes pela acumulagao de mercad fe tipos diferentes, qu sustentam-se umas as outa. Jo a outra para frente”. D'Avenel tem a mesma Jaue os mais dessemelbantes objeto pres coloeados présimos uns dos outros 0 do objeto Jante”: uma pessoa gostaria de compri-lo porque temporariamente el se tomara uma coisa inesperada; tomara-se estranho.? Os proprietiios vaelstasreforgaram o est confusto de objtosdisparescolocados juntos, atav aos objetos mais prossics, Mereadorias estranhas. a exportagta dos Estados colonizados,eram seis, dzia Bertrand enquanto artigos de comércio em si mesmos, Eles habituavam ¢ com Prador &idéia que ele eneontraria na loja aquilo que nao estava espe rando encontrar ¢, assim. estria disposto a deixar a loja com meren dorias que ele nto teria, isto significa, estava garantido no comércio vareista desorientagdc o estilo & compra resultava de uma aura temporétia deestranheras, de mistficagoes, que os objetos adquiriam Havia uma conclusio ogica para esse proceso de estimulagdo {Um alto volume de vendas significava que os objetos pareciam na loa. rapidament due criaram enti wma iusto de escasser de suprimentos entre coisas aque eram, de fato, mercadories produzidas em massa. Um comprador sentia-seestimulado quando ele ou ela deparava com objetos cuja exis parecia fugaz, © cuja natureca estiesse dss agdes fora do context de seu uso norm Nas itimas décadas do século XIX, 0s donos de lojas de depor: tamentos comecaram a trabalhar mais o carater de espeticulo de suas empresas, de maneira quase deliberada. Vitrinas envidracadas eram inseridas nos andares tereos das Iojas, e 0 arranjo dos art delas era feito com base no que hava de mais inus no que havin de mais como. As propr naramse cada ver mais fantéstcase elaboradas.” Com a estimulacao do comprador para revestir os obj nificagdes pessoas, acima e além de sua utilidade, surge fio apenas, 13 credibilidade que tornaré lucrativo o comércio varejista de massa, O novo cédigo de credibilidade comercial era um sintoma de uma mu- ‘danea bem maior que ocorria na percepeao do ambito piiblico. O inves- ‘timento de sentimentos pessoais e a observacdo passiva estavam sendo uunidos; estar fora, em piblico, era ao mesmo tempo uma experiéncia assiva, wvés dessa expressio cle iqhidades nas relagdes entre o patrdo e o opersrio za produgo desse objeto poderiam ser dissimuladas. A atengio era * Para responder a essas questdes, Darwin parece se tornar mais fisiolégico. Descreve um conjunto de los de desgosto” no rosto, masculos que, quando as sobrancelhas so repuxadas ‘mente, ao mesmo tempo comprimem os eantos da boca. A respeito desses mésculos, Darwin faz duas meiro, que se desenvolvem em todas as criaturas jovens, com as tivas feitas pela criatura para se proteger contra a dor fisica causada 08 olhos: segundo, exceto nos casos raros em que so controlados por grandes atores. A Primeira afirmagio tem seu lugar dentro da teoria da evolugao. Uma forma de vida “mais alta” portara em sua estrutura feigGes anatOmicas ‘que serviram a formas de vida mais baixas em diferentes situagSes; se 0 organismo continuar a usar essas feigdes, freqtientemente ele as em regard com finalidades que no terdo sentido nos termos do seu pri meiro aparecimento no organismo inferior. Assim, o cavalo desen Wveu, através de seleco natural, “miisculos de desposto”. com a fins: lade de proteger os olhos do sol; tais musculos sobreviveram em for- ‘mas evolutivas mais altas porque a mesma resposta fisiologica faz sen tido nos termos de novas condiges ambientais, Darwin entendeu, por- tanto, 0 desgosto como demasiada luminosidade invadindo a vida de alguém. Para ele, nao se tratava de uma metifora sofocliana; 0 método de explicagao das aparéncias de superficie fornece um ponto de origem exato, cientificamente conseguido para o sentimento de se estar arras sado, de se ter demasiada afligio sobre si. O fato de alguém poder retratar em sua propria face 0 estar arrasado deve-se a que anterior- ‘mente o animal tivera demas sufa para ta © segundo principio desse método origina-se no primeiro. Se si tuarmos o principio anatémico num sentimento, vemos por que, quan. doo sentimento é genuinamente vivenciado, ele faz um aparecimento involuntario, Este aparecimento involuntirio de sentimento era mi importante para Darwin, como o é. retrospectivamente, padendo com: 216 Preender o intenso temor que as pessoas do s6 expor umas as outras, © de aparecer fora da prot cluindo o sew argumento, Darwin estabelece a luntaria com maior intensidade maior de nes dente eles. no se pode dizer que isso depende d que, mesmo entre aqueles que podem manip tariamente, trata-se usu exemplo uma fa aio. como as dutos conseguido desmist homem como muito vulnerivel homem ou uma mulher esieja ger parecer, para além de qual crimais, os mis; F poder de controle que & pesse nha. As aparéncias haviam se tornado, ne anatémica, uma revel da express: A obra de Darwin é tipica de sua ép. da emocio através dos principias da e1 para o carter, ou para a predisposi ‘esse método apareceu em “ciéncias” wes de Ber tillon, nas quais 0 comportamento criminose era predito pela form: craniana. A frenologia que o jovem Sigmund Freud estudara era ape nas e tio-somente a aplicacdo logica de tais mensuragdes de Bertillon, ior do crdnio. A paixdo de natureza sexual era t 1890, como concentrada ne lobo frontal dis trava no centro da base da medula, e assim por d dos momentos iniciais de seu pensamento, Freud pensara q) © superego estavam local do aparecimento involuntario do po estava, acima de tu exp dos do século XIX: a masturbagio masculina, simbolo de degenerada fraqueza, produzia involuntariamente o crescimento de pélos na palma da mao masturbatéria; inversamente, a masturbacao feminina era considerada causadora da queda dos pélos do pubis. Haveria algum espanto no fato de que as mulheres tivessem medo de se mostrar em piblico, totalmente cobertas por suas roupas, como de habito, se o principio da expressio involuntatia fosse verdadeiro? A pessoa se protegia do olhar das outras, pois acreditava que poderiam ler © mais intimo de seus sentimentos com um simples olhar. Hoje em dia, a pessoa que tenta nao sentir pareceria fadada ao fracasso. Hé um século, talvez toda uma classe de pessoas tenha expe- Timentado um fracasso psiquico por causa de suas tentativas para ig norar ou suprimir seus impulsos. Mas a razo pela qual tentava fazé- lo era logica. Era sua maneira de lutar com a confusio entre a vida piiblica © a vida privada. Uma ver claramente sentida. uma emogio & involuntariamente mostrada aos estranhos; portanto, a tinica maneira de se proteger estava em tentar parar de sentir, part suprimir seus sentimentos de ordem sexual. A deformacio fisica do corpo por mei ido nos mesmos termos; quan- do o corpo estiver retorcido e fora de qualquer forma natural, deixar de “falar”. Quando se tiverem apagado todas as pistas da natureza, ter: reduzido a sua vulnerabilidade diante dos othos dos outros. Talver a Pudieicia vitoriana tivesse sido uma “paixdo irracional em nome da denegacao da paixdo"” (Lytton Strachey); talvez tivesse sido “o comple- ‘mento da repressio dos outros para se reprimir a si mesmo" (Bakunin), Fora também uma simples tentativa de se proteger contra os outros — uma protegao achada necessiria. dada a nova percepgio psicolgica da vida p Este era um clamor antigo de Fielding, que acreditava que as aparéncias, a uma certa distancia do eu, deveriam, portanto, nos ha: bituar ao ato de gostar ou condenar a aparéncia; a0 ato, nao ao ator. Os leitores de Carlyle nio estavam mais dispostos a ser radicalizados por ele, do que a ser forcados a aceitar a teoria da evolugdo proposta por Darwin, mas 0 método desses grandes escritores teve seu reflexo popular na medicina, na criminologia, no conselho religioso sobre sexo, da mesma maneira que no vesturio, 0 PALCO DIZ UMA VERDADE QUE A RUA NAO DIZ MAIS lade no ambito piblico alterou radicalmente a ponte dos cidigos de eredibi ast cada de 1830, o gosto popular comegou a exigir que as aparigdes que os atores faziam em paleo estivessem imunes a entos de etologia feitos nas ruas. © pablico comegou a exi arte, uma pessoa pudesse verdadeira rigdes criveis e verdadeiras, no paleo, comecou a tomar forma como ‘uma exigéncia de cuidado com o costume histérieo, Na década de 1830. houve nos palcos uma tentativa a embora freqiientemente inepta, de fazer com que as personagens das pecas vestissem costumes absolutamente eorretos e recriagies cui ddosas do periodo em que a pega se situava. A tentativa, eng nto era nova. Desde 0s tempos de Madame Favart — que cami surgira em cena como uma camponesa, cuidadosametne vestida, e 1761, como uma princesa turca, vestida com uma roupa efetivi importada ds Turquia —, esse impulso existia tanto nos paleos di ris como nos de Londres. Mas em 1830, e durante muitas © historicismo adquiriu uma forea que jamais havia ti blico demandava exatidao a fim de criar a tro: uma expressio de Moyr Smith, que devemos ponderar mais lon: mente. Eis como Charles Kean, filho do grande ator do séeulo XVIII, ‘montou Shakespeare na metade do século XIX: em Macherh (1853). Ricardo III (1884), Henrique VIII 1854) ¢ no Conto de Inverno (1886) le tentou um reconstituigdo exata de costumes e de cenario das épocas fem que cada pega se situava, Meses de pesquisa uma das reconstituigdes; uma doaciio foi reeebida de Oxford, ¢ con. descendia em aceitar as belas fantasias de Kean, conta do doador permanecesse seereto ness: as palavras de James Laver, Kean Ricardo IIT, “que ele havia escolhide esta peca porque e oportunidade para retratar uma época historica diferente daquelas pe. as j& produzidas. Ele cita nominalmente as autoridades histiricas de que se serv detalhes”.s* Seria erréneo tomar esse historicismo como um incidente is na histéria do costume. A mesm dia-se até mesmo ao vestuario alegérico ou mitolégico, A colegio de costumes do século XVIII, de Le Compte, mostrava personagens mito logicas como Zétiro ou Eros vestidas em termos de material cobrindo lum corpo inerte. Ao contriio, na colecde dramatica da Bil Lincoln Center para as Artes da Representacao, em Nova York. ha uma extraordinaria colecdo de costumes proveniente do Thédtre de 29 Porte Saint-Martin (de Paris) e de suas produgies na metad XIX. As gravuras 131 e 132 mostram de que modo pega mitologica, The Kingdom of the Fishes (O Reino dos Peixes), eram vestidos, um século antes desses Zéfiro e Eros. Cada ator representando um peixe usava uma mascara que re- produzia com exatidio a cabeca de um peixe, e de um peixe perten cente a uma variedade particular, no um “peixe” em geral, Uma mu surgia com a cabega de perca-do mar, varios homens surgiam com cabega de peixe-espada, e assim por diante, Além disso, as roupas feram recobertas de escamas, de modo qu tratava de um peixe, de fato, ¢ nfo de uma figura a que acon- tecia estar representandi dos peixes, nessas gravuras, usava uma coroa. A coroa tinha um rabo cuja forma repro do peixe real no qual se baseava a mascara Nesta mesma col Mystéres de Paris (Os Mistérios de Paris), um melodrama popular nas décadas de 1830 ¢ 1840, baseado em Mercier, As personagens de L. Mystéres de Paris eram apresentadas como enigmas da classe inferio de Paris, no muito compreensiveis para os burgueses fora costumes eram tentativas esmeradas para se produzir figuras da classe operaria e da classe média baixa. Estamos longe dos belos criados e dos “nisticos pitorescos" do teatro de meados do século XVIII. A colecto de costumes histéricos de Edith Dabney, também nos arquivos do Lin- coln Center, mostra vestidos de mulheres da classe média reproduzids ara o paleo sem qualquer tentativa de mudanga ou teatralizagio dos trajes — muito ao contriirio. O que se v8 no palco é 0 que aquela pessoa realmente é. Os gestos do paleo adquirem a mesma légi devia se mover exatamente da mesma maneira que 0s corpos se moviam. na ‘‘vida real". Até mesmo no melodrama, movimentos melodram. ticos por parte de um ator eram considerados de mau gosto 1880." © corpo 1S anos Criticos como Carlos Fischer consideram que a paixto pela vera- cidade nos costumes foi inimiga da liberdade © da imaginacio nas montagens das pecas. Devemos, por estético, De um lado das huzes, havia homens ¢ mulheres vestidas de maneira que no se poderia “conhece! ‘mente para ele ou ela. Ainda assim, essas pessoas acreditavam que um “conhecimento”” intimo estava contida nas roupas. O que estas pessoas tentavam encontrar no teatro era um mundo onde se pudesse de fato ter absoluta certeza de que as pessoas que se viam eram genuinas. Os atores efetivamente representavam aquilo que encenavam. Nao havin 220 ‘um mundo em que as aparéncias fisicas nao outras palavras. em condigdes de ilusio. radas, havia mais verdade aces que havia nas ruas. Quando Moyr Smith falou da by iecessiria"™ que todas essas incursbes hi legaram. 0 que ele queria dizer € que para que uma pega fosse crivel ela teri belecer uma verdade de tempo e de espay atores e a platéia nao poderiam estab: Aristoteles nos diz que o teatro envol pensio do descrédito”. As roupas de paico das caj XIX transcenderam esse ditame. Na cidad depender da arte para ac alcancar por meio de um processo freqitentement partir de pistas miniaturizadas. Vale dizer que a rel essa forma de arte comecou a se tor O teatro estava fazendo por elas aquile que na modern: nnao poderiam fazer por si mesmas. AS decepedo, de um lad bes entre mist lade, de outro, na metade d esforgo de descodificagao, aparecia apenas so dopaleo, Assim sendo, 5 novos termos da person Iago entre palco e ruas dentro do dominio pablico. Estes termos. ‘mesma forma, alteraram o relacionamento entre o pablico e o priv Eo fizeram, nfo apenas tornando blico o sentimento privado, mas também afetando a da privacidade, a familia, arama re A PERSONALIDADE E A FAMILIA PRIVADA Na abertura deste livro, cheguei a mencionar qu revelado problemas dentro de meu tt necessirio levantar agora, Concerne a ui 21 ‘Sy | tuigdo de meados do século XIX visto como a antitese da vida piiblica ¢ de seus dissabores: a estivel familia burguesa. socidlogo P. I, Sorokin foi o primeiro a perceber que as trans- formagées da cidade no século XIX estavam ligadas @ tr bisicas na familia. Ele acreditava que 0 cresci transformagse tensiva’” a fat duas geragdes. ou entao mais do que um par conjugal dentro da mesma gerasiio, num lar. Sorokin acreditava que as complexidades da cultura tensive, O discipulo de Sorokin, Talcott Parsons, adotou su sica e a desenvolveu de modo surpreendente. A familia nuclear, nos es- critos de Parsons, torna-se uma forma de fami -arera uma resposta positiva para uma sociedade nova, simbolizada pela cidade grande, estruturada pela bu: impessoal, pela mobilidade social e pela grande divisto do trabalho. A familia nuclear deveria ser mais eficiente nesse ambiente, Porque atava menos os individuos as familias. Por exemplo, ao invés de se pensar o que uma mudanca de emprego faria a um av6 que tra- balhou por anos anos, no momento em que a familia passa & se cons- tituir da pessoa, sua esposa e seus filhos, a pessoa ter apenas que pen- sar no trabalho em si mesmo, com suas vantagens ¢ desvantagens pes soais. Desse modo, Parsons reunia o individualismo, a familia nuclear e anova sociedade industrial? linze anos atrés,* esta era ainda a teoria dominante sobre ‘moderna; a teoria havia sido modificada, desafiada, mas per- como foco de atencao dos circulos de socidlogos. O problema era que os historiadores sabiam que ela estava factualmente errada, Os XIX nunca as tiveram como instrumentos de maior eficiéncia, nem tampouco alguma invisivel mao impelira as pessoas a se comportar mais eficientemente nessas fa do que nas familias mais extensas. De fato, sem o apoio dos familiares, a5 pessoas freqiientemente agiam sem diego e rapidamente se des- trufam nos repentinos desastres econdmicos, tao comuns na época. A idéia de Sorokin de uma chuva radioativa a partir dos desastres Parecia estar mais proxima do registro histérico, mas nao sugeria mui- ia, Além ¢ ji se sabia o suficiente para se poder dizer que a familia nuclear, hem tampouco, enquanto uma forma, algo de exclusive & cidade gran. de. © que parecia estar mudando no sé mifia nuclear urbana, Os autores que se interessam tanto pela histiria quanto pela ciologia, como eu préprio, estamos diante de um problema para nectar o proceso familiar & forma familiar. Como o estudo historico da familia comegou verdadeiramente quinze anos atrés, chesamos ra pidamente — demasiado rapidamente — a uma férmula para orientar nossas pesquisas sobre a familia do século XIX: a famflia nuclear era o instrumento que as pessoas usavam para resistir as transformacdes econdmicas ¢ demogréficas da sociedade, mais do que o meio de parti cipar delas. A funcio da familia era vista entio como um abrigo, tum refiigio: nfo era um meio de “adaptagio ¢ integragio”. como all ‘maya Parsons. Num estudo que dirigi sobre as famflias de classe média de Chicago, Families Against the City (Familias Contra a Cidade), en: contrei algumas evidéncias que demonstravam que a familia nuclear poderia, de fato, ter sido contraproducente, uma ver que nela as pes- soas estavam menos estaveis do ponto de vista da ocupagdo, e tendiam a ser menos mobilizaveis para cima, do que as pessoas na cida viviam em familias extensivas. Outros pesquisadores, preocupados com 4 posi¢io das mulheres, chegaram a focalizar da mesma maneira as fungbes da familia nuclear no século XIX: a familia era um lugar o colocar mulheres ¢ criangas contra a sociedade, ao mesmo tempo abi sando-as e suprimindo-as. As nogdes marxistas sobre a privatizagao 1 ceberam vida nova com o trabalho tedrico de pessoas como J Mitchell © Margaret Bensman, e um estudo exaustivo dos escritos do steulo XIX sobre 0 euidado com as eriangas, os problemas eon © imaginério familiar mostrou que a ideologia do retraimen| leceu e cresceu cada vez mais no decorrer do sée' todo este trabalho tem como base o traba Antigo Regime, um trabalho que tet clear como um forma nova, mas como, por volta do fungdo.® © embaraco com essa perspectiva no esti em que seja err ‘mas, antes, em que esteja analiticam um quadro estitico do processo familiar, exempl formulacao, extraida de um estuda da vida far no final do século XIX: indo na seguinte r burguesa em Viena 223 (0) esabildade inka um lugar de honra entre a vt feng cone jas era lar da dito de ordem e da segran | Eo significado do far nae se oxtngin s. A competi 0 pai era o guar. absolute autoridac todos os encargos da vida tho tros termos dessa citagdo que promovem uma pin: iea dos processos familiares burgueses: a estabilidade é valo rizada porque a sociedade é instivel; familia se torna um agente de estabilidade servindo como meio para o tetraimento em relagao A socie- dade; é portanto is bem-sucedida nesse isolamento encorajando conscienciosamente, propositadamente, os seus membros a evitarem introduzir os encargos da vida dentro das relagées familiares. Uma tal ‘a em dois niveis, Em primeiro lugar, ela supde que a economia da vida burguesa era o suficientemente gerencidvel para que as pessoas pudessem exclui-ta das relagdes familiares simplesmente por um acordo comum e ticito de nfo discuti-la. Numa época em que a respeitabilidade se fundamentava na sorte, a economia nao estava for das cogitacdes, muito embora dinheiro fosse um assunto im para as conversas a mesa. Em segundo lugar, e de modo mais ¢ familia “isolada, retraida”, poderia ter sentido no sé suas idéias da personalidade imanente a todas as relacies sociais. E certo que as familias burguesas desejavam se retrair do frémito da so- ciedade; € certo que acreditavam que se podia fugir a esse frémito. No entanto... As relagdes humanas no mundo pil ‘com as mesmas reeras que determinaram as re Estas regras faziam com que pequenos e cambiantes detalhes da per- idade se tornassem simbolos; estes deveriam dizer tudo a respei ico se for lugar onde as pessoas podiam expressar suas person: sim que “inflassem” algum det mando-o em simbolo psiquico, teriam contra seu desejo, contra sua tade, que vivene a instabilidade das relacdes sociais mais uma vez. Em piblico, nao era 0 fato bruto da sublevagio econ’mica ria sozinho um senso de sublevagdo social, Este pro. Ws termos em que esses fatos eram percebidos, em qu tratada como hierogli 24 ‘Se membros de uma familia tratassem roglifos, a ser entendidos extorquindo-se nessas aparéncias instaveis, entio o inimigo chegara a esconderijo. A personalidade produziria uma vez mais que as pessoas estavam tentando evitar. Assim sendo, livros como o de T. G. Hatchard, Hints for the Improvement of Early Education and Nursery Discip para 0 Desenvolvimento da Primeira Educagio e da Disciplina cola Maternal), cuja décima sexta edigio foi publicada em 1853, afir mam que as regras para criar a ordem dentro da far Para estabilizar as aparéncias que os membros sentam uns aos outros. Hatchard estabelecera todas as regras correntes para a infancia na época — “criangas pequenas devem ser v ‘ouvidas”; “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu satide se consegue acordando cedo”. Todas sko precaugies contra comportamentos espontincos. Hatchard explicava que ¢ somente im: butindo na crianga 0 conceito de que ela precisa dar uma “apresen- tacdo ordenada” dela mesma, s poderao de desen: obedigncia ¢ a sen: lade diante dos outros. Mas a mie ¢ o pai também estio unidos por essa mesma regra. Para que a crianga os ame, também eles pre- cisam regularizar seus comportamentos diante dela, Ao saber 0 que es erat, a crianga desenvolve a confi ‘0 que esté ausente em Ha natural entre pais e Ao invés 4a personalidade; ter uma personalidade estivel significa, para ox prs ccessos familiares, a necessidade de se tornarem fixos dentro de “apre- sentagoes ordenadas” feitas pelas pessoas, umas para as outras. Os ais precisam estar “vigilantes” quanto a seu préprio comportamento. ‘20 mesmo tempo em que esto vigilantes quanto ao comportamento da crianga, Justamente porque a personalidade é criada pelas aparéncias € que o relaxamento se torna um perigo, uma vez que nao ha mais uma ‘ordem da natureza onde se recair a partir de uma disposicio laxa. Esta € a grande diferenca entre a velha teoria da afinidade natural ¢ a no lade, O amor criado exige apa: relagies mi sentido a part desorient Estes foram os termos em qi uma personalidade dentro do dem: pressdo natural do carter ter se introx E por essa razio que a ordem na familia era algo mais do que uma reacao contra a desordem material no mundo. A luta pela ordem no proceso se desenvolveu a moderna de 228 familiar foi gerada pelas mesmas regras de coeni que as pessoas vissem as obras da sociedade em termos pessoais. Ess: Inta pela ordem nos processos familiares tem, no entanto, uma es- tranha afi pessoa da familia precisa desempenhar. Cada adulto s6 precisava ter dois papéis: esposo (esposa) e pai (mich; sem os avés em casa, a crianga ianca tera uma nica imagem do amor adultoe da expectativa do adulto para com ela. Ela nio sera obrigada a discernir o que hé de diferente entre a maneira que esperam que se comporte diante dos pais ¢ a maneira como se ¢ comportar diante dos avés ou dos tios. Em outras palavras, a forma nuclear permite as aparéncias humanas se resolverem ordenadamente, ‘numa questio de relacionamentos humanos simplificados. Quanto ‘menos complexos, mais estéveis; quanto menos a pessoa tar, mais sua personalidade poderd se desenvolver. Tais crengas surgem de modo mais espantoso nos decumentos do séeulo XIX, que foram precursores do famoso "Moynihan Report” (Relatério Moynihan}, sobre a familia negra dos anos 1960, Nos anos 1860, assistentes sociais de Londres ¢ de Paris temiam a desmorali- zagio dos pobres, ¢ ligavam essa desmoralizagiio com as condigbes fa miliares em que 0 pobre vivia. Nos anos 1860, como acorrer em 1960, ‘um “ar desfeito” era habitualmente o culpado, ainda mais com a mu- Iher sendo usualmente o cabera do lar. Em 1860, como em 1960, 0 que era percebido como lar desfeito era, de fato, um segmento de uma fa: milia extensiva, A a esposa abandonada fariam, na verdade, arte de uma rede em que as eriancas eram passadas da mae para a tia, da tia para o tio, ou onde os maridos podiam desaparecer para tra har em outras cidades e entao retornar. O grupo familiar se tornow to multidimensional quanto © Gnico meio possivel de lutar contra as transformacdes de fortuna familiar entre os pobres. Ao invés de per- cceber a fai de rede defensiva, ao inves to, as catastréficas transformagées nas for- tunas das classes trabalhadoras fosse com e média falaram do amor incerto ¢ do conseqiiente espirito dila das criangas em casa, Talvez 0 espirito dilacerado existisse de fato; a questdo estava em que as interpretagies desses assistentes sociais tor- navam obscuro o poder de ruptura da economia, através de imagens da simples familia nuclear como tinico meio através do qual a erianga po- eria se tornar emocionalmente estiv Na sociedade moderna, hé um padrio de atividade, que suscita a crenca de que 0 desenvo dade s6 pode ocorrer através da estabilizagio das int la da familia nuclear parecia adequada enquanto um me 4s pessoas tentem colocar essa cxen¢a em pratica. Se cada det aparéneia ou do comportamento “simboliza”” um estado da person: dade como um todo, no entanto, a propria personalidad pode se des. membrar, na medida em que os detalhes do comportamento mudam, A ordem na aparéncia externa torna-se um req ando a perso: nalidade é coesa por muito tempo. Sentimentos elementares sao tidos por “bons” sentimentos. Sentimentos complex: dores; nao podem ser estabilizados: para saber quem se é preciso discemnir as partes, descer aos principios essenciais: biente despojado da familia nuclear, a crianga desenvolverd os seus tragos de person nando a variedade e a complexidade de sua propria aparéncia e aprendendo a amar e a confiar nas imagens simples e fixas dos pais. Ela pode “‘contar com eles", que serdo criveis ¢ consistentes. A opiniao de Hatchard, que teve eco entre os especi em delingiiéncia juvenil como Frederic Demety e Johann Wiehern, na nova geragio de pediatras do Hospital de Londres; em Lord Ashley e sets argumentos sobre as eriancas abandonadas, que apresentou & Ci mara dos Comuns: dizia que se devia lutar para c que guardassem a crianga das ameagas das experiéncias am! conflitantes. Era a tinica maneira de formar. ou re-formar, a criang: ‘modelando-a como uma pessoa forte.*” Até onde as pessoas viam a complexidade como inimiga do iter duravel, formavam uma atitude hostil diante da i que diante da conduta, de uma vida pu ameaga a personalidade, a complexidade ‘no menos ica. Se a complexidade é uma xa de ser uma experiéncia venga, criavam uma clareza, ainda que uma rigidez formal, em py blico, © quao bem essa estabilizago da familia nuclear funcionou pode ser julgado a partir do catilogo de “‘queixas” da medicina fami iar do século XIX. As queixas consistiam em afligdes fisicas nfo catas. tréficas, originadas em ansiedade. prolongada tensto nervosa, ou te mor parandico. A “doenga verde” era um nome comum usado para designar a pristo de ventre crénica nas mulheres; Carl Ludwig, um mé dico da Universidade de Marburgo, pensava que a causa dela estava no temor que as mulheres tinham de peidar depois de comer. levando a0 227 constante aumento de tensio das anquinhas. A “doenga branca” aco- rmetia as mulheres que temiam sair de casa, até mesmo para os seus Dor causa do medo de serem espiadas ou observadas por es ficavam assim sem fazer exercicios, de modo que seus rostos imi cores palidas. Na obra de Breuer sobre a histeria (anterior a tomas tais como o riso compulsive sto apresentados como TeagGes a depressBes no lar, que evitavam que a pessoa fosse consisten, temente agradavel; essa teacdo era “‘uma queixa tio comum entre mu Iheres respeitiveis" que parecia comportamento normal. Com certeza as anilises médicas dessas queixas eram fisiolagicas, mas todos os rela: trios de diagnéstico irradiavam a partir de um ponto comum: meda da involuntariedade, de se expressar erroneamente, medo das necessidades corporais de sentimentos no cireulo familiar. O eatilogo de “queinas” encontrado nos textos médicos do séeulo XIX é um testament para os ibunais na tentativa de criarem ordem no comportamento ¢ na ex pressio em casa, Isto pode ser colocade de outra maneira: quando uma sociedade propae a seus membros que a regularidade e a purera de sentimentos so o prego que pagam para ter uin ev proprio, a histeria se torna a rebeli Sendo a tinica. Nao se pode refrear um certo sentimento de horror quando se Ié passagens como esta, tirada de The Way We Live Now (O Modo como Vivemos Hoje), de Trollope: (Paul Montague) tinha the dito a verdade, pela primeira vez desde que se conheciam, Que verdade maior poderia uma mulher deseiar? Sem di Vida, cla Ihe dera um coragao virgem. Nenhum outro hiomem havia ja mais tocado seus labios, ou tido a permissto de tocar sua mao, of de othar nos othes dels com admiragdo sem censura. (.,,) Tudo © que ela ueria, a0 aceitéto, era que ele Ihe dissesce a verdade. agora e de agora em diante, Virgindade, pureza, permanéncia de sentimentos, auséncia de Gualquer experiéncia ou de qualquer conheeimento de outro homem: Como poderiam os executantes lutar com essa complexidade crescente da notacao? No trato desse problema, surgem duas escalas mutuamente hostis. Na primeira, havia Schumann e Clara Wieck e, depois deles, Brahms e nna Europa Central: esporadicamente. Bizet e entio, Saint-Saéns, Fauré e Debussy. na Franga. Todos acred' tavam que, por mais complexas e extramusicais que fossem tagdes, 0 texto como tal era o tinico guia para aq veria ser. Se a finguagem da misica se expand guagem melhor, ¢ mais completa: via. A outra escola comecou a tomar forma no inicio dos anos 1800, ¢ foi esta escola que comegou a conectar o trabalho do ex algumas qualidades especiais da personalidade em piilico. & uma es cola que concebia x misica como uma ess@ncia para além do poder de notaglo. Tomava a crescente complicagdo da notacio apenas a admissdo desse fato. O executante era a figura pris escola: ele era 0 criador, enquanto o compositor era seu instrutor. A ida que fosse menos ffeil, era um 247 fidelidade ao texto ndo tinha nenhum sentido para os mais extremistas dos executantes dessa escola, uma vez que para eles o texto no tinha ualquer afinidade absoluta com a mésica. Por que iriam eles espelhar fielmente as pginas de Mozart, quando essas paginas impressas no espelhavam a miisica que Mozart fizera? Para dar vida a essa miisica, 0 executante deveria, por assim dizer, tornar-se ele proprio um Mozart tal e qual um mago que traz uma estampa A vida, apenas esfregando uma limpada magica. Essa escola comecou, portanto, a tratar a mic sica de duas maneiras: a primeira, como se se tratasse de uma arte com significagdes is s, mais do que com significagdes congeladas num texto; desse modo, ela se tomou ums arte baseada no principio da imanéncia. A segunda maneira, como se a execugdo piiblica depen- esse da intensa demonstragio de sentimentos intensos, no proprio executante quando estiver tocando. O novo relacionamento entre o executante e 0 texto esta corporificado na famosa observaco de Franz Liszt, “O concerto sou eu”. As ages especificas do artista, a nota ou a linha musical belamente modeladas passavam agora a ser pensadas como produtos de uma personalidade artistica, mais do que de um tra. bathador altamente habilitadi Um laco similar entre arte imanente e personalidade se desen- lveu em todas as artes sob a ascendéncia do Romantismo. Raymond iliams mostrou, em Culture and Society (Cultura e Sociedad como, por exemplo, as proprias palavras associadas & atividade dora mudaram, nos anos 1820, sob a égide do Romantismo: enfase na habilidade como defi mente substituida por uma & cera sustentada pelas O artista intérprete tem que ser, no entanto, um tipo diferente de “pes- soa especial”, do que o poeta, 0 pi icos. Devia ja, numa situacao diferente da do xento pode conceber suas imagens e rimas para criar um nobre eu. Além da presenca direta de sua pli verstio roméintica da arte, a partir da habilidade, para o eu, tinha que ser diferente para o pianista e para o pintor, tendo em vista a diferenca de relacionamento entre o executante e 0 seu medium. Pot mais que a torne pessoal, a atividade do pianista romAntico ainda esté ligada a um 248 texto. 0 mais das vezes um texto que nfo é sua prépria composigao, criada num outro momento do que aquele momento ‘est trazendo a vida diante de uma platéia. O a0 fazer da miisica uma experiéncia imanente, lum texto, mas também converté-to para si mesmo, contemporaneas sugerem 0 modo pelo qual se deveria tomiintico tentando fazer com que a mtisica parega imanente: pausas, atrasos, rubato, tornariam importante 0 momento em que um som era produzido. A deformacio do ritmo de Tinhas acentuadamente longas, de um tr ‘0 em que ele inte romantico, !@ portante que tocar faria A custa alternineia das partes. Estas, em qualquer evento, deveriam ser as Preocupagdes exclusivas de um executante apresentando um texto. O faque imedi \Genicas para se tornar a misica absolutamente real aqui agora. Que tipo de personalidade era percebida num miisico que pu: desse fazer isso? No dia 23 de agosto de 1840, Franz Li obituério de Paganini; comeca esse ensaio com as pi Quando Paganini... aparecia em pil ‘como se fosse um ser superior. O arrebatamento que provecava era the inabitual, a mAgica que reatizava com a fantasia dos ouvintes era the odeross, que les nao podiam sesatisfazer com explicagdes natursis, © mundo admirado 0 ol Estas palavras no exageravam a recepeo piiblica de Pagani Violinista, nascido numa pequena cidade da Hungria, recebia, por ta de 1810, uma adulagao constante, no somente pelas platéias bur. Suesas, como também pelas operrias, igualmente. Tornou-se 0 pri meiro miisico a ser considerado her6i popular. as atengées para ele proprio. A platéia, num concert Paganini, podia testemunhar o fato de que o vi ‘duas ou até trés cordas de seu violino, de modo que no final de um con. certo dificil todas as notas estavam sendo tocadas em uma s6 corda, Ouviriam certamente suas improvisagdes de cadéncias, que eram tio complicadas que qualquer semelhanca com os temas originais era apa- gada. Os ouvintes deveriam ficar deslumbrados por suas simples sarai- vadas de notas. Paganini gostava de aparecer repentinamente diante da platéia saindo de um esconderijo na orquestra, ao invés de esperar ‘nas coxias, Uma ver visivel, esperaria um, dois ou trés minutos, olhan- do fixamente a platéia, fazendo com que a orquestra precisasse parar 249 abruptamente e, em seguida, comecava a tocar. Paganini preferia co- mecar diante de uma platéia hostil, pronta para vaié-lo, e entdo redu- Zila A mais coga adulagao, pela forga de sua execugio. Exceto no caso. de uma de suas excursdes a Inglaterra, foi universalmente aclamado, mas os criticos nunca podiam dizer o que havia de to extraordindrio rele, “Sabem que ele ¢ grande, mas niio sabem por qué", escreveu um critico. Ele havia feito da apresentago piiblica um fim em si mesmo; de fato, a sua grandeza estava em que fazia suas platéias esquecerem texto musical.” Paganini cativou a imaginagio de homens que ao mesmo tempo ficavam estarrecidos com sua vulgaridade. Berlioz, que gostava da Paganini, freqiientemente se revoltava contra sua miisica, Essa ‘idéia” estava no fato de que Paganini fizera eom que 0 momento da verdade na miisica fosse 6 momento da execugao publica. A miisica imanente, no entanto. é uma experiéncia tensa. A apresentagio se torna uma questio de chocar o ouvinte, de fazé-lo ouvir repentina mente como jamais ouvira antes, desfazendo-se de seus sensos musi cais. Assim como o compositor estava tentando fazer com que aquilo que punha no papel tivesse vida, acrescentando toda sorte de termos literdrios deseritivos, os executantes da escola de Paganini estavam tentando fazer com que seus concertos tivessem vida, fazendo com que a platéia ouvisse dimensdes que nunca antes havia ouvido, mesmo nas pecas mais familiares. O imanente e o senso do chaque: a execugdo que Paganini fazia da misica mais familiar, era como ouvir uma obra total- mente nova. Assim sendo, 0 vulgar herdico demonstrou aos miisicos que era possivel rejeitar a afirmagao de Schumann, de que “o manuscrito ori- ginal permanece sendo a autoridade & qual devemos nos referir™. Era possivel trazer para a sala de concertos os fogos de artficio do bel canto ‘cantados por um instrumento de orquestra, o drama o arrebatamento da épera.” trago essencial da personalidade de um artista que faz misica imanente é sua qualidade de choque: administra choques aos outros, e ele mesmo uma pessoa chocante. Nao € assim que um homem que tem esse poder é qualificado de uma personalidade “dominant”? Quando se fala sobre uma personalidade dominante em socie- dade, o termo pode ter trés sentidos diferentes. Pode significar alguém que fez para os outros aquilo que estes nfo podem fazer por si mesmos: a nogao que Weber da do carisma, ao analisat a vida dos antigos reis. Pode significar algitem que parece fazer pelos outros aquilo que nem ele pode fazer por si mesmo, nem os outras podem fazer por eles mes ‘mos: & a nog de carisma de Erikson, 20 analisar a vida de Lutero. Ou 250 mostra aos outros que ele pode fazer Aeveriam fazer por eles mesmos: ele “sente" em publica. Verdadeira. mente, ele choca a sua platéia com seu sentir. Mas 0s espectadores 130 poderiam absolutamente tomar esse sentimento levando-o para for que os 01 eram Em termos modernos. aqueles que caem sob influéncia daquele que apresenta em piiblico apenas podem assist extraordinarios the dio a aparéncia de se habilidade de suscitar sentimentos momer rente deles, coi "sendo™. Seus po vas est perman ionar. Essa visdo aparece pessoa. (...) 0 Ientado e triste “Eu","* as tarefas de personal ante? Para o espectador, ela c imentos 4} mesmo tempo anormais ¢ seguros. Parece sentir espontaneamente em PUblico, e isto é anormal: através de suas taticas de cl que 0s outros sintam. Mas o choque momentaneo & seguro, por causa de seu préprio isolamento, Nao ha a que a platéia precise par em Iuta contra todos as seus poderes; acima de tudo, trata-se de um homem extraordindrio, Desse modo, surzem ambas as identidades piblicas produzidas pela person: lado, um ator extraordinario; de outro, espect vontade em sua passividade, Tém eles menos no os desafia; ele os “estimule Esta situagio difere muito do controle q Regime exerciam sobre atores ¢ mis para eles. ¢ conhecido por eles, de! fazer. Quando Madame Favart os chocara, fire dasse de roupa. A platéia de Paganini tornava-se tio entus cle podia administrar os chogues. Bis uma me de uma ponte entre 0 paleo e as ruas. para wi pendéncia do paleo para as imagens de sentimento le podem fiear & mis do que ele, mas ele as platéias do An 251 sugetido por esse gosto pela roupa elaborada, de um lado — que as aparéneias nesse dominio contam a verdade —, ou pelas roupas libe- Fadas, de outro — que somente no paleo as pessoas sentem livremente =, ovirtuoso sintetiza Uma personalidade publica ativa dependia de um tipo especial de poder. Entre os romfinticos, que se q) dades pail om © proprio poder se tornard no: nos aproximarmes cada vez mai representacio. A necessidade de empurrar para a frente a personalidade de al euém com a fin impossivel. Os Etuds de Liset ievem ser ouvidos”, escreveu ele, porque pecas terrivelmente dificeis 15 Mos; © somente as ia também ver © compositor virtuose pode elevar e re ido mais faz a visto do pri (0, domanilor, fazen © que havia de sér prio meio (medium) pai parar necessariamente a misiea do som: ¢ simples som desejado er: refratoriedade do meio expressive pro fase no virtuose, Nao que 0 ‘thor do que os ‘outros; somente os que so muito excepcionalmente dotados é que po- dem ser artistas nesse esquema, uma vez que somente dons m: excepcionais poderio tornar musicais os sor A virtuosidade tinha uma conseqiién: era um meio de se conseguir a mestria sobre aqueles que nunea entenderiam o que uma pessoa sente, sofre ou sonha dessa multidao sem valor — c1 iar, mas ymos nds da arte como de uma luta; no pensamas ouvir um Quarteto em Fa M de Mozart bem diferente, quando tocado pelo Quarteto de Budapeste. do que quando 0 ouvimos tocado por um conjunto honesto, sério. mas sem inspiracdo? Permanecemos debaixo do encantamento do cddieo Tomintico da apresentagtio em piiblico. segundo 0 qu: cende o texto; mas f paixio, au les podiam se levar tio a séro. Ser expressivo.e ter um talento extraordinario: eis a formula cos qual a personalidade adentra o do: ‘era peculiar as artes da interpretagao musical; acontecera também no atro. O mais espantoso é que poderes especiais, expressividade pi € uma personalidade crivel em piiblico estavam reunidos drama, pois 0s textos melodi de 1820 e cram representados por grandes atores parisienses como Marie ®, principalmente, Frédérick Lem: No ail lodrama a esséncia da eseritura de u tem se apresentar um “tipo de cariter puro’ 0 poderia ser imediatamente re do vildo, da virgem, do her da jovem moribunda, do rico patrde; todos estes eram ex: tipos de pessoas, mais do que de personalidades sin 1 pesso giram atores como Dorval ¢ Lemaitre para desempenhar esses papiéis que eram pessoas de grande indi conjuntos de papéis, os atores o fa como vefculos para transmitir um certo sentido de, como a imprensa hhuniea se eansou de repetir, suas proprias “personslidades inefaveiy Dorval e Lemaitre comecaram a transformar a r melodramas por volta da época em qui de Goubaux, Trente Ans (Trinta A saram a falar naturalmente, ao invé convencionaimente se esperava nos momentos de Comecaram a se concentrar nos detathe: fundir detalhes de ago com signi tre foi o primeira grande ator do século XIX 2 pereeber que a ss poder deveria consistir num andar a passos curtos ¢ afetados, como se esti: vesse com medo de ser visto pela platéia: @ partir do momento em que surgia, sabi fa ele. Quando Lemaitre surge, nos melo- dramas familiares dos anos 1830, no papel de um vilio, simplesmente entrou a largas passadas em cena, naturalmente, como se ele fosse gual a qualquer outra das personagens. Isto causou sensagao na pla téia € foi considerado como um grand geste (algo de magistral): por certo, sabiam aquilo que ele representava na pega, mas ao alterar tais, detalhes de encenagio, ele proprio, Frédérick Lemaitre, era visto como mostrando sua prépria personalidade criativa — e nao mostrando algo sobre as profunderas escondidas da parte do vila no texto. As pecas apresentadas no Boulevard du Crime 10 do teatro popular) tornaram-se ocasides para se ver Lemaitre representar. Os bons melodramas e as pegas romanticas de 1839 somente teriam chan- ce de se tornarem sucessos populares caso Frédérick Lemaitre repre- sentasse; e se ele estivesse nelas, eram vistas como grandes peas de teatro. Essa elevagao do texto foi mais espantosa, talvez, numa pega em cuja composigao Lemaitre também participara, Robert Macaire, 0 drama mais popular dos anos 1830, no qual o melodrama, as idéias romanticas de revolta contra a sociedade ¢ o hh aresco estavam pela primeira vez unidos, e da maneira mais bem-sucedida, nfo é mes: ‘mo? Eisa deseri¢o da pega por Gautier: Robert Macaire foi o grande triunfo da arte rev aRe mnéria que se seguira 8 de Julho, (..) Hi algo de especial nessa psa em particular, iste no ataque agudo e desesperado que desfere contra ordem wiedade e contra aespécie Em tomo do ea. de Robert Macaire, Prédérick Lemaitre criow uma figura ctmica senvinamente shakespeariana: alegria terificante. uma gargalhada si amarga derrisio(...)e, acima de tudo isto, uma surpreendente efegincia, fexibilidade e graga que pertencem & aristocracta de vie, Ainda assim, a pega hoje esta esquecida. De fato, essa pega é irrepre- sentivel, porque ndo ha mais Frédérick Lemaitre, Nao se pode dizer que um critico como Théophile Gautier estivesse tao ofuscado pelo ator ue nio conseguisse ver os defeitos do texto — esta é uma regra da itica que ignora a arte que Gautier estava vendo: tratava-ser da cria sdo de um texto significativo através do poder de um ator extraordi nério.! Frédérick Lemaitre recebeu as mesmas aclamagées apaixonadas que 05 misicos como Liszt haviam recebido; ao contrario de Liszt, ele era um her6i popular, no sentido de que as platéias para as quais re- 254 presentava eram mais mescladas em Paris, ¢ homem do povo. O trabalho de um ator como Lemaitre também deve ser levado em conta ao considerarmos a significacio do virtuose 4 XIX, porque serve como um corretive € uma precauigdo em apenas grosseiros heréicos, como Paganini, por modelo. A arte de Paga- nini se fundava no exagero; a de Lemaitre, na naturalidade. Foi neces sério ter tanta arte e tanta habilidade excepeional para se parecer agir naturalmente em piiblico, quanto fora preciso para torcer e defort ‘com precisio as linhas da misica escrita. A virtuosidade residia der de dar ao momento da representagio @ aparéncia de ser co ‘mente ao vivo, e nao uma pratica de qualquer truque téen cular. Tornando-se as tinicas pessoas piblicas ativas, as imagens desses intérpretes consistiam dos seguintes elementos: usavam titicas de cho: que para tornar o momento da representacio o mais importante de tudo; aqueles que podiam suscitar choques eram considerados pela platéia como pessoas poderosas e, portanto. como pertencendo status superior, a0 contrério do status de criados que tinham os no século XVII, Nesse sentido, ao elevar-se acima de sua intérprete pide, ao mesmo tempo, transcendero sev texto." OESPECTADOR As testemunhas desses intérpretes viam os seus poderes a satisfatoria. Seria no entanto um grande erro pensar que o silencioso fosse, portanto, um homem satisteito. O seu silé sinal profundamente autodubitativo. Quando desapareceu a primeira geracdo romantica de personalidades piiblicas, ironicamente cresceu a divide do espectador. Observemos primeiramente o espectador foc: zado do ponto de vista de uma person: quando focalizado apenas em si mesmo. “Querem saber uma coisa nojenta?” seu Paris s'Amuse, um guia da cidade. ‘Théitre de la Porte Saint-Martin, pergunta Pierre Véron, em mM voga nos anos 1870. No -omparegam a esse teatro apes para testemunhar a lamuriante sinceridade desses trabatha 0s, desses pequenos burgueses, 255 Escarnecer das pessoas que demonstrassem suas emogdes numa pega ou num concerto era de rigueur (obrigatério) nos meados do sée\ XIX. Refrear as emogies no teatro passou a ser um trago distintivo para que as classes médias das platéias se separassem das classes ope- arias. Uma platéia “respeitivel”, por volta de 1850, era uma platéi que podia controlar os seus sentimentos por meio do siléncio. A espon- taneidade antiga era tida como “primitiva”. O idea! do Belo Brammell, de restrigo na aparéncia corporal, estava sendo acoplado por uma nova idéia de auséncia respeitivel de barulho em publica." [Nos anos 1750, quando o ator se voltava para o piblico para fazer onto”, uma sentenca ou mesmo uma palavra, poderia provocar assovios ou aplauso. De modo semelhante, na 6pera do séeulo XVIII, uma frase em especial ou uma nota alta bem atingida poderia fazer com que a platéia exigisse que a pequena frase fosse cantada nova: ‘mente: o texto era interrompido, ¢ a nota era atingida uma, duas, ou mais vezes. Por volta de 1870, o aplauso adquirira uma forma nova, Nao se interrompia os atores no meio de uma cena, mas esperava-se até final dela para aplaudir. Nao se aplaudia um cantor antes do final da ria, nem tampouco entre os movimentos de uma sinfonia num con- certo. Assim sendo, até mesmo quando o intérprete romantico trans- cendiao seu texto, o comportamento das platéiasia em diregio oposta!™ fato de que a pessoa deixava de se expressar imediatamente, ao se sentir tocada por um intérprete, estava ligado a um novo silencio nas is de concerto, como no teatro. Nos anos 1850, um aficionado do teatro parisiense ou londrino nao tinha qualquer receio em falar com seu vizinho em meio pega, caso ele ou ela tivesse repentinamente lembrado de algo a dizer. Por volta de 1870, a platéia se policiava. Falar parecia entdo de mau gosto ¢ rude. As luzes da sala foram bai xadas para reforgar o siléncio e focalizar a atengio no paleo. Charles Kean dera inicio a essa pratica em 1850, Richard Wagner tornou-a lei absoluta em Bayreuth e, por volta de 1890, nas prineipais cidades, a ‘escuridio era universal refreamento de sentimentos numa sala escura e quieta era uma ina. E necessdrio conhecermos suas dimensdes. Nas XIX, a autodiseiplina das platéias a 6s teatros populares das ruas, mas estava mais forte ¢ desenv muito antes, nos teatros legal salas de concerto. As pressdo instanténea e ativa quando se set cena; mas a medida que o século avangava, o “ultraje” se tornava cada ver mais uma excegio..* A disciplina do jo era um fenémeno cosmopolita diferente. 256 Nas casas provincianas da Inglaterra e da Franca, os espectadores ten- diam a ser mais barulhentos do que em Londres ou em Paris, para des- sto das estrelas visitantes provenientes das capitais. Essas casas de terior, em geral uma ou duas por cidade, nao separavam ainda mui claramente as classes médias das classes trabalhadoras. mas todas e tavam mescladas na platéia. Por outro lado, era a “gafe do provin: ciano”, segundo a expresso de Edmund Kean, responder demonstra- tivamente num teatro de Paris ou de Londres. A imagem de Véron do caipira no teatro, acima referida, era a de uma pessoa de classe mais baixa e, ao mesmo tempo, a de um provinciano vindo de lugar nenhum —esse lugar nenhum sendo Bath, Bordéus ou Lille. século XIX foi, para Paris, para Londres e para outras cidades grandes européias uma época de construcio de novos teatros. Estes ‘eram bem maiores em capacidade de espectadores sentados do que as casas do século XVI il, e até 4 mil pessoas se amontoavam nessas salas. O seu tamanho significava que as pessoas deveriam se manter mais quietas do que numa casa menor, a fim de escutar, mas 0 silencio nao era tao facil de se conseguir, até mesmo numa sala grande com aciistica ruim, como na Opera de Garnier (i. & a Opera de Paris) A concepgio arquiteténica do proprio teatro estava orientada para um novo tipo de espectador. Comparemos dois teatros muito diferentes um do outro, completados nos anos 1870: a Opera Garnier, em Paris, ¢ a Opera de Wagner, em Bayreuth. Através de caminhos opostos, ambe chegam a um mesmo resultado.” ‘A Opera de Paris, de Garnier é, segundo padrdes medernos, uma monstruosidade. Como um enorme holo de casamento vergando sob 6 peso de sua decoragao, é um edificio agachado, decorado em estilos stego, romano, barroce ¢ rococé, dependenda de para onde se estiver olhando no momento. Sua magnificéncia se eleva quase, mas ndo 0 bastante, ao nivel da farsa. “A marcha do espectador”, comenta Ri: chard Tidworth, “da calgada da Place de Opéra até a sua cadeira no € uma experincia hilariante, destinada a ser provavelmente a rriante da noite Esse edificio inverteu todos os termas da Comédie Frangaise construida em 1781, O edificio da Opera nao era uma cobertura que cencerrava pessoas, nem uma fachada contra a qual a platéia se divertia no interior dela mesma, nem tampouco uma trama na qual os atores surgiam. O edificio existe para ser admirado independentemente de ual seja a atividade que as pessoas tenham nele. As pessoas deve notar 0 prédio, e no umas as outras. Os imensos espagos internos ser- viam a esse propésito. Somente uma guia poderia reconhecer com fa- lade os individuos da platéia neste vasto espaco, ou ento perceber claramente aquilo que se passava no paleo. O interior esta de tal ma- neira ornamentado que se torna um cenario que sobrepuja qualquer ccenario montado no paleo, A magnificéncia da Opera de Paris no deixava lugar para o in: tereambio social. A conversa e os murmérios intimos, no vestibulo, de- viam ser apagados num edificio cujo tnico propésito era o de dominar um “pasmo silencioso”, nas palavras do arquiteto, Garnier escreveu também sobre esse edificio: Os othos comegam a ser atraidos a (8 acompanha numa espécie de s sentimento de bem-estar.10 radavelmente,¢ entdo a imaginaco ho: a pessoa se deixa levar por um Um teatro-anestésico como esse poderia definir a nogio que Richard ‘Wagner tinha do mal que sua Casa de Opera de Bayreuth deveria com- bater. Mas o ambiente que ele construiu levou, por uma rota oposta, & ‘mesma imposigao do siléncio, Bayreuth havia jada em 1872 ¢ foi completada em 1876. A parte externa do prédio era nua, quase de- soladora, porque Wagner desejava focalizar toda a atengao na arte que se realizava no interior. Este era espantoso por duas razes. Em pri- meiro lugar, todas as cadeiras estavam arrumadas & maneita de um anfiteatro; cada membro do auditério tinha uma visto do paleo sem ualquer obstéculo; nao tinha, porém, uma visio clara dos demais membros da platéia, pois esta nio era a razto p segundo Wagner, ir ao teatro, O paleo era tudo. Num arroubo ainda mais radical, Wagner escondeu a orquestra da vista da platéia, cobrindo 0 pogo da orquestra com uma tampa de couro © madeira. Desse modo, a misica era ouvida, mas nunca era vista se produzindo. Mais tarde, Wagner constréi um segundo arco de Proscénio, acima das extremidades do pogo de orquestra, além do arco sobre o paleo. Esses dois arranjos deveriam produzir o que ele chamava de mystische Abgrund, um “abismo mistico”. Com essa te, ele escreveu: qual deveriam, Isso faz com que o espectador imagine que o paleo esti bem distante cembora consiga vé-lo com clareza de sua posi to faz ‘com que surja a ilusio de que as pessoas que aparecem nele sto de esta ‘ura maior, quase sobre-humana. 10 10: Por sua ver, a, neste teatro, era produzida pela tentativa de dar ao paleo leta total. A concepgao do teatro formava uma mesma pega com @ melodia continua das éperas de Wagner: ambas eram instru- ‘mentos para disciplinar aqueles que eseutavam. A platéia nunca era liberada para deixar de ouvir, porque a mésica nunca acaba. As pla téias do tempo de Wagner nao entenderam verdadeiramente a sua mii- sica. Mas sabiam 0 que Wagner queria delas, Podiam entender que deviam submeter-se & misica, cuja continuidade e « vidas que no poderiam ter”. Tanto em Bayreuth quanto em Paris, a platéia se tomna testemunha de um ritual, “maior” do que na vida re: pape! da platéia é 0 de ver, nao o de responder. O sew silénci hiavia feito contato com a Arte." Aqueles que testemunhavam a experiéncia ativa, plena e livre de um intérprete em piblico preparavam-se por um ato de auto-supres- so. O artista os incitava; mas, para serem in. terem tornado pa: incerteza que assombra o espectador. Em pablico, ele nto sabia como se expressar. Isso the ocorria involuntariamente, Nos dominios do teatro e da mniisiea, portanto, em meados do século XIX, as pessoas queriam que Ihes fosse iriam sentir ou 0 que deveriam sentir. Bis por que tor tanto em pecas como em concertos, 0 programa explicativa, cujo pri eiro utilizador de sucesso foi Sir George Grove Aceritica musical de Robert Schumann, na década de 1830, tinha © tom de um amigo falando a outros amigos pela imprensa, a respeito dos entusiasmos comuns, ou a respeito de algo novo que o esctitor achava que deveria partilhar com os outros. A critica musical que to mara forma com Grove e dominara o resto do século tinha um outro carater, ou melhor, tinha trés formas diferentes que levavam ao mesmo resultado. ‘A primeira explicagdo feita as pessoas de como deveriam se sentir foi ofeuilleton, 0 programa ov o jornal em que oeseritor contava a seus, leitores 0 quanto a Arte o fazia palpitar. Carl Schorske captou assim sua glorificagao do sentimento s Oeeseritor de feuilleto balhava com aqueles detalhes e epi gosto que o século XIX tinha pelo conereto, ( reporter ou do critica a uma experiénc adqviriam uma clara primazia sobre ‘um estado de sen rmento,ti2 Ouentio, o critica, como Grove, explicava ou como 0 miisico tocava, como se tanto 0 ¢! 259 ‘ouviam, pessoas sensiveis, estivesser nfo funcionaria sem um folheto de instrugdes. Ou ainda o eritico, como Eduard Hanslick, era professoral: a miisiea era vista como um ““pro- blema”, que somente poderia ser destrinchado com a ajuda de uma teoria geral da “estética". Julgamento ou “gosto”, ambos deman- davam agora uma forma de iniciagao.""3 Todos eram, para os seus leitores, modos de se assegurarem. Esses meios interpretativos aumentaram na musica porque o publico estava perdendo a {6 em sua propria capacidade de julgamento. A antiga ¢ familiar mdsica era submetida ao mesmo tratamento que a misica nova de Brahms ou de Wagner ou de Liszt. O programa explicativo — que a partir dos anos 1850 floresceu também no teatro — e o critica ue destrinchava os “problemas” da miisiea ou do drama eram com: Plementares & platéia que desejava estar segura de que as personagens no palco eram exatamente como deveriam ser historicamente. As pla- téias de meados do século XIX, em concertos como em teatros, temiam embaraco, temiam ficar envergonhadas, ‘‘serem feitas de tolas”, em termos tais e a um ue seria incompreensivel na época de Voltaire, quando as platéias divertiam-se, gracas aos esforgos de uma alta classe de eriados. A ansiedade em ser “culto” era difusa um sécul antes; mas nas artes de representacdo piblica esses temores eram par- ticularmente intensos. 4 Alfred Einstein aponta uma cegueira no miisico romantico: ele sabia estar isolado do ptiblico, mas esquecia-se de que o piiblico tam bém se sentia isolado em relagao a ele, O isolamento da platéia era até certo ponto confortante, porque era interpretado facilmente como filis- tino, A platéia, como notara Rossini, tinha um medo profundo de que todas as palavras duras ditigidas contra isso fossem efetivamente ver- dad iante de um objeto estranho que ra px itamente razotivel que homens ¢ mulheres tivessem pro- bblemas ao “ler” uns aos outros nas rua, e se preocupassem em ter 0 sentimento certo no teatro ou na sala de concerto. Eo meio para lidar com essa preocupacio era similar & protegdo praticada nas ruas, Nio mostrar qualquer reacdo, encobrir as proprias emogées, significam que 4 pessoa ¢ invulnerivel, imune a ser desajeitada, Em seu aspecto obs: ‘euro, ¢ como marea da incerteza, 0 siléncio era correlato da etolngia do século XIX. O intérprete romantico, enquanto uma personalidade fazia com que a fantasia da platéia fosselevada a imaginar como ele era fnticos saira de cena, Esse investimento de fantasia numa personalidade publica sobre- 260 vive ao lado do espectador passivo, De fato, o investimento de fantasia em pessoas que tinham personalidade piiblica tornava-se mais forte ¢ ‘mais politico em seus termos, Estes eram duplos: 0 espectador autodi 1ado coloca um fardo de autoridade fantasiada sobre a personali dade piiblica e apaga todos os limites em torno daquele eu publi ‘Temos uma nogio intuitiva da “autoridade” da personalidade. como um trago de um lider: alguém a quem as pessoas querem obe. Mentos? As mimicias da vida da Bernhardt eram devoradas a fim de se encontrar 0 segredo de sua arte; niio havia mais li Piiblico, Tanto na fantasia da autoridade quanto no apagamento dos li- rites do eu publico, constatamos 0 fato de que 0 espectador investe sem torno do eu 262 ~| aquele que se apresenta em piblico com uma personalidade, E eis a razio pela qual, afinal, no se pode falar sobre a relago entre espec- tadores ¢ atores como uma relagio de dependéncia de muitos em re ago a poucos. A fraqueza dos muitos fazia com que buscassem e in- vestissem qualidades de personalidade naquela soas que foram outrora seus antigos criados, Colocando isto tudo numa outra perspectiva: o artista nfo faz ‘com que 0s espectadores dependam dele; essa nogio de dependéncia provém de uma nocdo tradicional de poder carismatico apropriado para descrever uma figura religiosa, mas no uma personalidade ar- real”; assim sendo, essas pessoas procuravam por aqueles poucos que a tivessem: uma busca que somente se concluia por meio de atos de Um resultado disto foi a nova imagem do “artista” na socie- As regras de emoco passiva que as pessoas usavam no teatro. usavam também fora dele, para tentarem compreender a vida emo cional num ambiente de estranhos. O homem piblico, como espec- tador passivo, era um homem relaxado ¢ liberado. Havia sido liberado dos encargos de respeitabilidade que carregava em casa e, aléin disso, estava liberado do agir, propriamente dito. O silencio passivo em pt blico é um meio de retraimento; na medida em que o siléncio pode ser conseguido, cada pesson é livre dos proprio lagos sociais, Por essa razio, para se entender 0 espectador como uma figura piiblica, deve-se finalmente entendé-Io fora do teatro, nas ruas. Pois, ‘0 seu siléncio esta servindo a um propésito mais amplo: aqui esti aprendendo que os seus cédigos para interpretar a expressio emo- ional so também cédigos de isolamento em relac2o aos outros: aqui. cle est aprendendo uma verdade fundamental da cultura mod que a busca pela percepedo pessoal ¢ pelos sentimentos pessoai defesa contra a experiéncia das relagdes sociais. A observacio € 0 zer as coisas darem voltas na cabeca"” tomam o lugar do discurso, ‘Vejamos agora como 0 foco de concentragao das atencBes passa da figura do artista de paleo para o estranho nas ruas, Em “O Pintor da Vida Moderna”, um ensaio sobre Constantin Guys. Baudelaire dis: secou a figura do fléneur, o homem do boulevard, que "se veste para ser observado", cuja propria vida depende desse suscitar 0 interesse dos outros na rua; 0 flaneur & uma pessoa ociosa que nfo é um abastado aristocrata.-Ofldxeur que Baudelaire toma como o ideal dos parisi- enses da classe média, Poe, em "O Homem na Multidio”. o toma com: 263 ‘ideal dos londrinos da classe média, assim como Walter Benjamin o foma, mais tarde, como 0 emblema do burgués do século XIX que imaginava como ser interessante,” Como é que esse homem que se mostra pelos boulevards, essa criatura que tenta captar a aten¢do dos outros, deixa neles uma im- Pressdo, como é que os outros respondem a ele? Uma historia de E. T. A. Hoffman, “A Janela do Primo”, fornece uma pista. O primo ¢ aralitico; olha para fora de sua janela e vé a grande massa urbana assando por ele, Nao sente qualquer desejo de ir se reunir & multidao, nenhum desejo de encontrar com as pessoas que conseguissem atrair sua atencio. Ele diz a um visitante que gostaria de ensinar a todo homem que pode usar as suas pernas “os prinefpios da arte de ver", O isitante € obrigado a se dar conta de que nunca poder entender a multidéo enquanto nao estiver cle proprio paralisado, quando puder assistir sem se mover. Assim € que se deve apreciar o fendmeno do flaneur, Deve ser Assistido, nao abordado, Para entendé-lo, deve-se aprender a “arte de yer", que significa tornar-se como um par Esses mesmos valores aplicados & observacao dos fenémenos, mais do que a interagio com eles, regulou muito da ciéneia posi da época. Quando o pesquisador introduzia os seus valores préprios, Hando com seus dados”, ele os distorcia, Dentro da propria psico. logia, os primeiros a adotar terapias da fala explicavam o seu trabalho ara o piblico através de um contraste tipico feito com 0 consolo ofe recido pelos padres: os padres no ouvem, propriamente; interferem bastante aportando idéias préprias, e dese modo nfo podem real- mente entender os problemas trazides ao confessionario. Por sua vez, Psicélogo que ouve passivamente sem oferecer sua opinito de imediato, entede melhor os problemas do paciente por nao ter interferido na ex Pressio falada, “‘colorindo" ou “distorcendo"-a com seu prdprio dis curso, E ao nivel psicolégico que essa idéia de siléncio ¢ de apreciago prende a nossa atengao. No século passado havia um relacionamento intimo entre 0 tomar as aparéncias como sinais da personalidade e o so na vida corrente. A primeira vista, 0 re- aréce ilégico, uma vez que tomar as aparéncias de al imente, como sinais do eu, implica uma intrusio al mesmo de intromisso, em sua vida. Lembremo-nos, entretanto, das ‘transformagées na dramaturgia da compra e da venda, na vida didi, que ocorrem com a loja de departamentos: também aqui, unia-se silencio de uma pessoa com u no teatro, nas ruas, numa concentragio ps ate 264 Personalidade exigiam novos cédigos de discurso, A expresso piiblica odia ser compreendida apenas através da imposicio de refreamentos sobre si mesmo; isto demonstrava a subservineia em cos que agiam. Era também mais, Essa disci ato de purificagao. A pessoa queria ser esti adulteracdo dos gostos pessoais, da hist Fora disso, a passividade passa loei ara o conhecimento, Assim como havia um relacionamento entre a silénci nna platéia de teatro, da mesma mancira ambos se ‘na multidae das ruas. O siléncio pablico entre operarios e1 burguesia como um sit © ope. uurbano estaria ao menos submisso. Esta crenea surge de uma erpretaciio, feita pela primeira vez e sobre o relacionamento entre a revolugio e a liberdad tre oper: isse aos peri rigs se reunirem, eles iriam comparar as injusticas, maquinar ¢ pirar, fomentar intrigas revoluciondrias. Assim sendo, aparecem Icis comoas de 1838 na Franea, proibindo a discuss pil ros de igu: i se uum sistema de espil Felatarem os locais onde as pequenas moléculas de ‘congregavam: em quais cafés, a que ho Com a finalidade de se protegerem, os operiirios comecaram ingir que suas idas juntos aos eafés tinham o & bberem algo de mais forte e consistente ap: ressito boire um lirre (“beber tum gada em 1840 entre operarios. alta para que o pat Nada havia a se temer dessa sociabilidade: o beber os faria se \da totalmente, sem a 1 do desejo de responder. 2 parece: a entre opera na cidade para Ihadores se calar.! As restrigdes no di to de reuniao dos trat temores da classe média eram os mesmas. ¢ em. Ps rece ter reforgado informalmente as rédeas para refrear as associagies, coisa que na Franga era questao de decreto. © mesmo surto de ismo, a mesma camuflagem das associagies eram. portanto, encom: trados nas classes trabalhadoras de Londres como de Paris. mesmo que legalmente nio houvesse necessidade para tanto, Ninguém pode negar o fenémeno do hi pismo apresentado por m coutras cidades grandes do s relagio entre al to de beher por ese importante porque revela as cone ¢ londrinas fizeram entre a estat riado. Quando 0 café se tornou 0 local de conversagio entre pares no trabalho, ameacava a ordem social; quando 0 café se tornou um local onde o aleoolismo destruia o discurso, mantinha a ordem social. A condenagao dos pubs das classes baixas pela sociedade respeitavel pre- cisa ser vista com othos desconfiados. Ao mesmo tempo em que essas condenagées eram sem divida sinceras, muitos exemplos de fecha- mento de cafés e de pubs ocorreram nao quando a beberagem tumul- ‘tuosa ficava fora de controle, mas, antes, quando se tornava evidente que as pessoas no interior dos cafés estavam sobrias, zangadas € con- versando. relacionamento entre o alcool e a passividade piblica avanca nda um passo a mais. Gracas aos trabalhos de Brian Harrison, po- ‘dem ser feitos mapas da Londres do século XIX, onde se podem loca- lizar os pontos de venda de bebidas alcodlicas nas diversas regi cidade. Em distritos residenciais da classe trabalhadora, havia no do século XIX, em Londres, um grande niimero de pubs e uma conce tragao nfo muito grande de lojas especializadas em bebidas. Nos dis ritos da classe média alta havia poucos pubs, € uma grande concen- trago de lojas de bebidas. Ao longo da Strand, na época uma area predominantemente de trabalhadores de escritérios, existia um enorme mimero de pubs, que eram freqientados durante o almogo. O descanso proporcionado pelo pub e pelo “traguinho” da hora do almogo era respeitivel; era um descanso de trabalho. O pub, no entanto, enquanto descanso do lar, era, ao contrario, degradante. Harrison nos relata que por volta de 1830: que as classes médias parisienses lade social, o siléncio e o proleta- Os homens de negécios de Londres, entretanto, estevam bebendo em asa, por essa época; beber priv 7 A PUblico, estava se tornando uma marca de respeitabilidade A capacidade para excluir pubs, lugares barulhentos e de convivio era lum teste para a capacidade de uma vizinhanga passar a ser respeitavel Embora se saiba bem menos sobre esse processo de exclusio na Paris do século XIX do que em Londres, é razoavelmente certo que a taverne, ou pior ainda, a cave situada abaixo de uma loja de vinhos a granel eram um dos idade feita por Haussmann: este nfo que! las das vizinhangas dos bur- gueses. O siléncio ¢ ordem. porque o silencio é auséncia de interacio social 266 ia do silencio dentro do proprio estrato burgués t significado conexo. Tomemos por exemplo as transforma bes ingleses desde a época de Johnson. Em meados do sé pessoas iam ao clube para poderem sentar-se em siléncio. sem serem perturbadas por ninguém. Se quisessem, poderiam ficar absolutamente sozinhas numa sala repleta de amigos. No clube do séeulo XIX, o silén- havia se tornado um direit Este fenémeno nao se limi lubes menores, 0 si um fendmeno dist vineias diziam de ‘impassibilidade m Por que esse siléncio nos clubes das cidades grandes? Ha uma explicagio simples, a saber, que Londres era arrasadora e fatigante, © as pessoas iam para seus clubes a fim de escaparem a tudo isso. Isto em grande parte é verdadeiro, mas coloca sua propria questo: por qi deixar de falar com as outras pessoas era “relaxante"? Afinal de co tas, esses cavalheiros, nas ruas, no ficavam livremente papeando com todos os estranhos que pudessem en: aquele monstro impessoal e cego que a mitologia popular criara, a pe soa deveria assumir que a maneira para fugir a toda essa is dade das ruas seria encontrando um lugar onde ela pudesse falar sem restrigdes, Para compreendermos esse quebra-cabega, ser ‘mos o clube londrino com o café parisiense nao-prol acomparacio é desajeitada, Os cafés estavam abertos a 's clubes eram exclusivos. Mas a comparagio ainda ida, porque tanto os cafés quanto os lubes comegara: de regras similares de silénci de protecdo contra a sociabilidade, A partir da metade do século XIX, os cafés de ‘mecaram a se esparramar pelas ruas. O Café Procope, no século XVIII ‘também pusera cadeiras e mesas do lado de fora, em ocasides raras, ‘como apés uma grande noite na Comédie Frangaise, mas essa pratica inabitual. Com a construgio dos grands boulevards pelo bario Haussmann na década de 1860, os cafés ganharam mais espago nas muas. Os cafés de ruas tipo grand boulevard tinham uma client Pessoas se sentava do lado de fora das portas, na primavera, veriio ¢ outono, ¢ durante o inverno ficava por detrés de um envidragado que daya para a rua, ém dos boulevards, havia ainda dois centros de vida de café. Um ficava em torno da nova Opera, de Garnier: perto um do outro, ficavam o Grand Café. 0 Café de ta Paix, o Café Anglais e o Café de Paris. 0 wa no Quartier Latin: os mais famosos eram 0 d'Or e o Francois Premier. No calé de boule a espinha dorsal do negécio era do que o turista ou o elegante que saia com uma cor. utilizava 0 café como um lugar onde estar Quando olhames para © quadro “O At ‘uma mulher num banco de café sozi 6 talvez uma mulher respeitavel, to" de Degas, vemos @, olhando para o seu copo. Ela wo mais; senta-se ithada de todos os outros a sua volta. Ao apontar a classe média, em sua busca pelo lazer da burguesia parisiense, Leroy-Beaulieu, em Question Ouvriére on AiXe Siécle (A Questo Operaria no Século XIX), pergunta: “O que estilo fazendo essas fileiras de cafés em nossos boulevards, pululando de ociosos © bebedotes de a Zola nos fala das “grandes esilenciosas multiddes que assistiam a vida das russ": obser. vamos as fotos de Atuct do café que hoje se ect Latin, no Boulevard Saint-Michel, e vemos figuras isoladas sentadas a uma ou duas mesas de distancia umas das outras, olhando vagamente para a ‘ua. Parece ser uma transformacao simples. No café, pela primeira ver, havia um grande niimero de pessoas amontoadas, juntas, relaxando-se, bebendo, Iendo, mas separadas por paredes in Em 1750, 05 parisienses e os londrinos concebiam suas familias como dominios privados. As bons manciras, 0 diseurso ¢ as roupas do grande mundo comegavam dos dentro da intimi dade do lar. Cento e vinte e eines anos mais tarde, esse div lar eo grande mundo havia, teoricamente, se uma vez mais 0 cliché histérico no § m criava o isolamento, nao era motivo suficiente para considerarmos a distingdo piblico/privado como um par de opostas. O espectador silen- cioso, sem ninguém de especial para assistir, protegido pelo seu direite de ser deixado sozinho, poderia agora estar também absolutamente Perdido em seus pensamentos, em seus devaneios; pa Ponto de vista socidvel, sua consciéneia podia voar livrement soas fugiam do parlatério familiar para o elube ou para o café, a cata de sua privacidade. O silencio, portanto, superpunha o imaginario pi. blico privade. © siléncio tornava possivel que se fosse ao mesmo 268 vel aos outros, e isolado dos outros. Aqui estava o nascedouro de uma idéia que o moderno arranha-céu, como vinhamos vendo. cam: pleta de modo ligico. Esse direito de escapar para a privacidade piblica era gozado de modo desigual pelos sexos. Até a década de 1890, uma mulher s nio poderia ir a um café em Paris ou a um restaurante respei Londres, sem suscitar alguns comentirios e, ocasionalmente, ser ba Tada a porta, Ela era recusada, supostamente, por causa de sua neces. sidade de uma maior protegao, Se um trabalhador abordasse tum cav theiro nas ruas para saber as horas, ou para se informar sobre as ruas, nao causaria revolta. Se esse mesmo trabalhador tivesse abordado mulher da classe média para as mesmas informagies, teria cometide ‘um ultraje, Colocada de uma outra forma, “a multidao solitaria” um dominio de liberdade privatizada, e © homem, quer estive plesmente fora da dominagio, ou livre de uma necessidade maior. e ‘mais provavel que conseguisse escapar a isso, As regras do século XIX para o entendimento das aparéncias fo. ram além das regras através das quais Rousseau havia analisado a ch dade. Ele podia imaginar o piblico cosmopolita como tendo uma vida apenas ao retratar cada qual na cidade como um ator: na sua Paris {todos estavam engajados em procedimentos de auto-exagero e de pro {cura pela reputagdo, Imaginara uma pera perversa, em que cada qui ‘martelava o seu papel para fazé-lo valer tudo 0 que pudesse. Nas o tais do século XIX, ao invés disso, a forma teatral apropriada era ‘mondlogo. Rousseau aspirava por uma vida social em que as mascaray fivessem se tornado rostos, ¢ as aparéneias, sinais de carter. De e modo, Na década de 1890, cresce uma forma de entretenimento so em Paris e em Londres, que corporificava perfeitamente gras. Tornaram-se populares nas cidades os banquetes pitblicos em massa. Centenas e, as vezes, milhares de pessoas eram reunidas, a maioria das quais conhecia muito poucas pessoas no recinto. Um jan- tar uniforme era servido, apés o que duas ou trés pessoas faziam seus discursos, lidos em seus préprios livros ou de ou juete em massa era 0 embley sociedade que se aglutinava no dor importante para a experiéncia pessoal; mas ela o esvaziara de todo sentido, em termos de relagées soci Por essas razdes, no final do século XIX, os termos fundamentais da platéia haviam-se transformado. O siléncio era o agente da depen- déncia na arte, e do isolamento-como-independéncia na sociedade. O Principio todo da cultura publica se esfacelara, A relago entre palco ¢ ‘ua estava agora invertida. As fontes da criatividade e da imaginacdo, ue existiam nas artes, nao eam mais validas para nutrir a vida de todos os dias. 270 CAPITULO 10 A PERSONALIDADE COLETIVA Tendo chegado a esse ponto da histérie da vida tuno perguntarmos de que maneira 0 séet ‘mentos dos nossos problemas atuais? Hi soal parece carecer de sentido, ¢ a com; ameaca incontrolivel, Por contraste, a experiéneia que sobre o eu, ajudar a defini-lo, desenvolvé-lo, ou transform: se uma preocupagio arrasadora. Numa sociedade intima, todos os fendmenos sociais, por mais que fossem impessoais em sua es! eram convertidos em questies de pers ym a finalidade de adquirirem um sentido. Os confit rpretados em ter- ‘mos do jogo das personalidades po termos de “credibilidade”, mais do que em termos de se” de alguém parecia ser o produto da condugao e d lade s6 pode ser bem-sucedida quando as complexas contingéncia e da necessidade estio retiradas de cen A entrada da personalidade para dentro do domi sfeulo XIX, preparou a base para essa sociedad intim 8 pessoas a acreditarem que os intere: monstragdes da personal da personalidade que os cont zar, e desse modo engajando diivel de pistas de cor

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