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Ss ng oes a * Ftica, Satide e as Praticas Alternativas Tntrodug&o: ética, morada e satide O ambito da ética O termo ‘ética’ usado como adjetivo, como por exemplo nas expressdes “conduta ética” ou “dimensao ética da existéncia humana”, nos remete espontaneamente e sem precisar de muita reflexdo ao Ambito das relagdes de um individuo com outros individuos; como se vera a seguir, estes ‘outros’ podem, em cer- tas circunstancias, ser ‘individuos’ nao humanos (como animais e plantas) e mesmo aspectos nao individualizados inanimados do mundo, como as terras € Aguas dos ambientes naturais. Em. acréscimo, 0 termo sempre parece implicar a consideragio de principios, valores, normas de agdo é ideais, ou seja, NAO Se trataria apenas de considerar as relagdes no que tém de necessé- rias, naturais ou eficientes, mas de atentar para a sua convenién- cia e legitimidade diante dos valores e normas acima referidos. = Texto preparado para servir de base a uma palestra na }* Conferéncia Mineira de Etica e Satide, Belo Horizonte, 13 de maio de 1994. 4a Finalmente, a dimensao ética, engloba todas as consideragdes acerca das metas da agdo humana, nao se restringindo, portanto, 4 considerago da adequagao de meios a fins, diferenciando-se, ssim, do 4mbito de competéncia do conhecimento técnico. No entanto, todas essas determinagdes ainda nao dao conta da di- mensdo ética. Falta dizer que tanto na escolha e na avaliagao das metas legitimamente desejéveis como na escolha das formas le- gitimas da agdo interativa estara em jogo nao apenas ou princi- palmente a sobrevivéncia do agente como a sua imagem a sua estima diante dos outros e diante de si mesmo. Efetivamente, ha sempre uma reflexividade, uma relagao de si para consigo, um autocomprometimento do sujeito, implicados na conduta ética. Ja quando se fala de ‘ética’ como substantivo, como por exemplo na expressio “a ética dos politicos brasileiros”, estamo- nos nos referindo em geral aos padrées implicitos efou aos cé- digos explicitos que prescrevem ou proihem determinadas condutas. Nesse caso, 0 termo ‘ética’ esté sendo usado como sin6nimo de ‘moral’. Contudo, além dos cédigos e padrées im- plicitos de moralidade, a “ética dos politicos brasileiros” também inclui os modos de implicagio e obediéncia dos sujeitos. Duas pessoas podem compartilhar os mesmos cédigos (ou seja, ter as mesmas nogGes de “certo” e “errado”) e, nao obstante, agir de formas muito diversas em fungao de diferencas nos modos de serem e se sentirem submetidas, isto 6, de se sentirem obrigadas a exercer sobre si mesmas um certo dominio em nome dos pa- drées adotados. No ambito das culturas, igualmente, ha éthos mais rigidos e outros mais frouxos em termos das exigéncias de obediéncia impostas aos sujeitos e das formas de relagao consigo exigidas. Finalmente, a ‘ética’ é uma parte da filosofia encarregada de refletir e elaborar argumentos acerca dos fenémenos anterior- mente mencionados. Essas elaboragdes visam, via de regra, ex- plicitar o sentido (proveniéncias, implicacdes) da dimensao ética da existéncia humana (situando a ética no contexto de uma an- tropologia filos6fica) e, eventualmente, sistematizar e Justificar 42 racionalmente um determinado cédigo ou padréo de conduta, um determinado quadro de normas e valores e uma determinada postura a ser ensinada aos e exigida dos sujeitos. Nao sou filésofo. As consideragées que se seguem tratariio da ética, melhor dizendo das éticas, sem qualquer pretensio sis- tematizante e muito menos fundacional. Quanto as dimensdes hist6rica e antropolégica da(s) ética(s) arriscarei, contudo, algu- mas idéias. A variedade e a eficdcia das éticas Antes de prosseguir, todavia, convém ainda que se diga nessa introdugao que, tomada no segundo sentido acima aludido —a de éthos — nao ha uma tinica ‘ética’ (no sentido de um padrao implicito e consuetudindrio de moralidade ou de um cédigo ex- plicito de prescriges e/ou proibigdes) comum a todas as culturas e épocas, comum a todas as formas de subjetivacao, e justificdvel num plano de racionalidade absoluta e transistérica: mesmo a “€tica dos politicos brasileiros” é uma evidente generalizagio que provavelmente nao da conta da variedade de éticas efetivamente em agao entre eles. De cultura para cultura e de época para época podem variar os padrées implicitos e os cédigos. Eles de fato variam em relagao tanto (1) aos aspectos da conduta (ou mesmos das intengbes) a serem considerados e colocados sob controle como (2) as formas de impor e exigir obediéncia aos sujeitos e de punir eventuais transgressdes. Assim sendo, variam também os modos de sujeigdo dos individuos aos ditames morais e, con- seqiientemente, a forma e a intensidade dos esforcos de auto- transformagiio dos homens no rumo eticamente exigido'. Poderiamos entéo, acompanhando M. Foucault, afirmar que as “Gticas’ nao s6 ‘refletem’ diferengas nos modos de subjetivacao, mas participam da constituigGo das subjetividades; em outras 1. Ver a propésito: Foucault, M. Histoire de la sexualité Il. Liusage des plai- sirs, (Gallimard, 1984); em especial, 0 item 3 da Introdugao. 43 palavras, podemos yer as éticas como dispositivos ‘ensinantes’ de subjetivagdo: elas efetivamente Sujeitam os individuos, ou seja, ensinam, orientam, modelam e exigem a conversio dos ho- Mens em sujeitos morais historicamente determinados, A ética e o habitar sereno e confiado No entanto, ao longo de todas as variagGes poderfamos tam- bém dizer que as éticas tm, em comum, algo a ver com 0 habitar o mundo”. Ja no plano etimolégico, ethos — 0 objeto da ética tomada como reflexdo ou “teoria” — se refere tanto aos costumes e hdbitos como a morada, Na verdade, habitos e habitacdes com- partilham a mesma raiz. O homem é arremessado num mundo, que ele nao escolheu, e ai ele é como a abertura ao que deste mundo the vem ao encontro, ou seja, ele existe no sentido preciso de ser fora de si mesmo, de “ser o seu fora”, vale dizer, de ser- no-mundo, Nessa expressio, “no mundo” nao indica um lugar em que se €, mas o préprio modo de ser do homem, Que se 2. Para as consideragées que se seguem vali-me dos trabalhos de M. Heidegger ~ “Batir habiter penser” (1951) e “Sérénité” (1955), publicados respectivamente em Essais et Conférences Gallimard, 1986) ¢ Questions IIT e 1V (Gallimard, 1990), ambos traduzidos por A. Préau, ¢ da leitura de Heidegger proposta por Z. Loparic em “Btica e infinitude”, em Nunes, B. (org.) Possibilidades de uma nova ética (Universidade do Pard, 1984). Foi-me também de grande valia a fenomenologia do habitar — “le séjourner chez soi” ~ La demeure — efetuada por E, Lévinas no seu trabalho Totalité et infini (Kluwer Academic, [1961] 1990). Como se sabe, Lévinas enfatiza, em contraposigo ao egofsta ‘habitar- sua-casa’, 0 encontro com o absolutamente outro; € este outro, que se furta a minha posse de indole totalizadora, quem me desaloja instalando de um sé 8olpe a infinitude como transcendéneia do mesmo (a metafisica) ¢ a ética, Nessa dimensio minha liberdade de possuidor é limitada pela presenga do outro na sua alteridade irredutivel e na sua exigéncia de submissio. Contudo, mesmo em Lévinas 0 “séjourner chez, soi” ¢ um acontecimento inaugural da separagdo egoista do mesmo, condigao primordial da vida sem a qual se aboliria a pos- sibilidade do préprio transcender, de encontrar ¢ ser afetado pelo “visage” do Outre sem a mediagio desses dispositivos de captura que sao a representagio © 0 conceito. pense no recém nascido e se terd a imagem exemplar deste ser incompleto, vulneravel, dependente e padecente. Por sua vez, 0 mundo, na verdade, deve ser pensado antes de mais nada como © que se abre e dé a ver para este ser — o humano — que se define exatamente pela e como abertura e incompletude. Ora, sustentar-se nesse existir no mundo — e s6 assim se existe — exige um espago de separagdo e tecolhimento, de pro- tegdo, que nao encerre o existente em uma clausura, mas The oferega uma abertura limitada (portas e janelas) a partir da qual sejam possiveis encontros — safdas e entradas — em que se redu- zam os riscos dos ‘maus encontros’, dos encontros destrutivos e traumAticos. Portas e janelas por onde uma verdadeira alteridade possa insinuar-se e eventualmente impor-se. E claro que uma casa, qualquer feitio ela tome e em qual- quer nivel de sofisticagéo que esteja construida, pode ser conce- bida como um aparelho para morar ou mesmo como uma obra de arte, um monumento a ser apreciado de fora’. No entanto, uma casa para quem a habita e enquanto a habita néo possui © cardter objetivo e utensiliar caracteristico dos demais entes com que nos encontramos no mundo. A casa, a morada, a ha- bitagao tém, como o préprio mundo, uma natureza pré-objetal endo utensiliar: ela é como que uma parte do mundo, mas exa- tamente aquela parte em que podemos nos sentir relativamente abrigados: nela a abertura tem alguns limites, Pois bem, consi- derar o &thos como casa, instalagao, é ver nele — nos valores, nas posturas, nos costumes e hdbitos — algo equivalente & mo- radia de onde podemos contemplar a uma certa distancia as coisas ‘ld fora’ (como a casa organiza o espaco e gera uma série de diferenciagées internas e externas, Os costumes organizam NOSsO espago e nosso tempo); aonde podemos cozinhar e nos 3. Estas duas possibilidades, levadas as dltimas conseqtiéncias, geram respec- tivamente uma arquitetura ‘funcional’ e uma arquitetura ‘esteticista’. Em ambos 08 casos pode ficar seriamente comprometida a habitabilidade da casa, sua capacidade de deixar morar. Os edificios de Oscar Niemeyer costumam ser bons exemplos das conseqiiéneias de uma arquitetura esteticista, 45 alimentar sossegados, aonde podemos gerar e criar wna familia, aonde podemos conviver com os familiares e receber a visita de estranhos, aonde podemos tratar de nossos males e, mais que tudo, repousar. Etica, morada e satide Nessa medida ha uma estreita vinculag&o entre o habitar Sereno e confiado proporcionado pela casa e a saride. Se pensar- mos que a satide para além de qualquer critério médico ou psi- colégico, pode ser vista como o usufruto do corpo (e da mente), nao serd dificil reconhecer que somente quando se tem um espago privilegiado de moradia é possivel despertar no corpo (e na men- te) toda a sua capacidade de fruir, trabalhar e pensar. O habitar sereno e confiado é condigdéo do gozar, ou seja, de experimentar 0 corpo como fonte de prazer, livre dos riscos e das incertezas da sobrevivéncia, imerso nos elementos selecio- nados de que despreocupadamente vive e se nutre o homem (o ar, o sol, a terra, as 4guas, seus produtos, etc.).4 Mas o habitar sereno e confiado deve ser visto também como condigdo do trabalhar, ou seja, do apropriar-se pelo tra- balho dos elementos naturais do mundo ‘ld fora’ de forma a que, pouco a pouco, relativamente livres de uma pura dissipagao, eles também se convertam em habitagao, alimento e gozo. O proprio trabalho de edificar uma morada pressupée uma morada prévia: s6 quem ja é capaz de habitar pode construir uma casa. Finalmente, é no relativo distanciamento dos acontecimen- tos do mundo ‘Ié fora’, propiciado pela habitagio, que podemos desenvolver nossas capacidades cognitivas, tanto na via do co- 4, Os riscos e incertezas, contudo, se insinuam como resultado da absoluta dependéncia em que 0 fruidor se acha dos elementos de que vive ‘gratuitamente’ © que podem amanhé faltat, Em Lévinas (op. cit.), 1é-se: “o alimento vem como um acaso feliz” (por isso, como um infeliz acaso ele se pode ir...). 46 nhecimento representacional, calculador e cientffico, como na do jogo e da criagao (criaco de uma familia, criagao artistica), como na da meditagdo filosdfica. Assim sendo, o habitar sereno e con- fiado é também a condigGo do pensar, do representar, do brincar e do experimentar, exatamente porque o abrigo da casa nos dis- pensa uma acolhida que dispensa qualquer representagdo: tam- bém neste sentido a casa liberta. Enfim, tomando a savide como usufruto e incremento dos po- deres do corpo, e reconhecendo que o éthos de uma comunidade equivale a uma morada coletiva para seus membros, deve ficar clara a relagdo direta que pode ser explorada entre ética e satide. Poderfamos, também, chegar a resultados semelhantes to- mando como ponto de partida a psicanilise, principalmente a psicanélise desenvolvida pelo grupo independente da chamada ‘escola inglesa’ e pela ‘psicologia do self’, cujas afinidades com a filosofia heideggeriana ja foram assinaladas em outros lugares’. Estudos psicanaliticos daf provenientes, nos revelam como o de- senvolvimento psiquico de cada individuo exige que, nos inicios de uma existéncia individual, a crianga seja acolhida e tenha a oportunidade de uma insergaio pré-objetalizada e pré-repre- sentativa no mundo, o que Balint denomina de “amor primario” e Margaret Little de “unidade bdsica”. A mae como “ambiente facilitador”, na denominagao de Winnicott, ou os pais como “self- objetos”, segundo a terminologia de Kohut ou, segundo Bollas, como “objetos transformacionais” remetem-nos a esta condigao em que os outros ainda nao estéo plenamente diferenciados na 5, Ver a propésito: Dias, B. O. “A. regressio & dependéncia ¢ o uso terapéutico da falha do analista.” Comunicagao no II Encontro Latino-americano sobre 0 pensamento de D. W. Winnicolt, Montevidéu, 1993; Figueiredo, L, C. “Acon- tecimento ¢ fala em anilise.” Texto das aulas do curso ministrado na P6s-gra- duagiio em Psicologia Clinica da PUC-SP no 2° semestre de 1993; Loparic, Z. “Prefiicio”, em Figueiredo, L. C. Escutar; recordar, dizer: Encontros heidegge- rianos com a clinica psicanalitica (BscutalEduc, 1994). O texto de E. O. Dias explicita claramente as ressonancias Heidegger- Winnicott no tocante ao “habitar o mundo”, 47 sua alteridade, mas, ao contrario, cuidam da crianga como se fossem uma parte dela mesma’, As obras desses autores mostram, também, que experiéncias dessa natureza, continuam ocorrendo durante todo 0 processo normal de desenvolvimento, ao longo de toda a vida. Ha sempre ocasiées em que partes do ambiente social e fisico nos oferecem — gratuitamente — um certo Tesgate dessa relago priméria, com o entorno’. Em contrapartida, a au- séncia precoce destas experiéncias que dao ao individuo “a quie- tude do centro”, nas palavras de Margaret Little, deixa marcas profundas no processo de desenvolyimento, embora, natural- mente, seja o destino de todos nés o enfrentamento de situa- goes de maior diferenciagio, isolamento, responsabilidade e¢ risco. Contudo, é somente a partir de um primordial sentir-se em casa que se criam as condig6es para as experiéncias de encontro da alteridade e para os conseqiientes acontecimentos desalo- jadores.® 6. Ver a respeito: Balint, M. A falha bdsica (Artes Médicas, 1993); Bollas, C. A sombra do objeto (Imago, 1992); Kohut, H. A restauragao do self (Imago, 1988); Little, M. “Sobre a unidade basica (indiferenciagtio primaria total)”, em Kohon, G. (org.) A escola briténica de psicandlise. A tradigéo independente (Artes Médicas, 1994) e Winnicott, W. “O desenyolvimento da capacidade de se preocupar”, em O ambiente e os processos maturacionais (Artes Médicas, 1990). 7, Isto é mais nitido em situagées criticas, como por exemplo quando o indi- viduo é vitima de uma doenga; nessa situagdo uma dependéncia objetiva cos- tuma deflagrar um processo regressivo ‘normal’ e mesmo necessério A cul Os profissionais da satide sio freqiientemente solicitados a ocupar essa posicao de “ambientes facilitadores da cura”, solicitago a que nem sempre conseguem responder, j4 que na tradic&io dominante os agentes da sade so concebidos apenas como “instrumentos da cura”, Chamo a atengao para 0 fato de que essa distingao corresponde “grosso modo” & proposta por Winnicott entre as “duas mies do lactente”: a “mie-objeto” e a “mie-ambiente”, ambas necessarias ao desenvolvimento psfquico. 8. Ver, a respeito da nog&o de ‘acontecimento’ ¢ do seu potencial disruptivo, Figueiredo, L. C. “Fala e acontecimento em anélise”. Percurso, 11:45-50 (1993), Entre as partes do ambiente que, num processo normal, con- tinuar&o sempre a exercer, num nivel pré-reflexivo, estas fungdes protetivas, sustentadoras, acolhedoras, que nos oferecem renova- damente “a quietude do centro”, ressaltamos as moradas, as ha- bitagdes, sejam as casas materiais — de madeira, pedra, tijolos ou mesmo papelao — sejam as moradas simbélicas, vale dizer, as proporcionadas pelo éthos, Uma ética, na verdade, institui uma troca regulada de afetos e obrigagées reciprocas entre os indi- viduos; € esta reciprocidade que permite que cada um possa, dentro de certos limites, confiar, contar com a presenga de alguns outros — em maior ou menor ntimero, dependendo do contexto sociocultural — como “self-objetos” em algumas circunstncias. Mais que isso: a reflexividade implicada nas éticas, ou seja, a énfase mais ou menos intensa, mas nunca desprezivel, nas rela- ges de si para consigo, faz com que partes de um individuo possam assumir, com alguma autonomia e diante dele mesmo, certas fungdes antes exercidas pelos ‘outros’; estas partes podem também construir artefatos culturais com essa finalidade, Pode- rfamos dizer, entdo, que 0 sujeito ético pode desenvolver a ca- pacidade de edificar sua prépria morada com uma relativa independéncia. Mais adiante nesse trabalho veremos o que sucede quando a morada simbélica do éthos entra em colapso. As formas hist6ricas da subjetividade e do habitar’ Nao tenho aqui a pretensdo nem as condigées de tragar uma historia da ética, seja no sentido de uma histéria dos ‘éthos’, seja 9. Nesta segio estarci apoiando-me com liberdade nos trabalhos de Dodds, E, R, Os gregos ¢ 0 irracional (Gradiva, 1988); Eliade, M. Le sacré et le profane (Gallimard, 1965); Foucault, M. Histoire de la sexualité Il e Histoire de la sexualité IM (Gallimard, 1984); MacIntyre, A. Justiga de quem? Qual racionalidade (Loyola, 1991) e Vernant, J-P. “O individuo na cidade”, em Veyne, P. et alii. Individuo ¢ poder (Bdigdes 70, 1988). Minha divida maior, porém, no conjunto desse trabalho, é para com os dois tiltimos livros publicados por Foucault e acima referidos. 49 no de uma histéria dos sistemas filoséficos que tentaram siste- matizar e justificar racionalmente valores, posturas e habitos. Ainda assim, penso que pode ser interessante uma rapida vista d’olhos sobre algumas formas caracteristicas que as relagdes dos homens entre si e consigo mesmos foram assumindo ao longo do tempo. A ética coesiva O testemunho de antropdlogos dedicados aos estudos de culturas ‘primitivas’ e o de arquedlogos, historiadores ¢ fildlogos dedicados aos vestigios — arquiteténicos, utensiliares e literarios — de civilizagdes ‘arcaicas’ nos ensinam um pouco acerca do éthos das chamadas civilizagdes fechadas. Observa-se af um en- raizamento quase fusional da comunidade na natureza — ambas miticamente interpretadas — e de cada ‘individuo’ na sua comu- nidade. O mundo e a ordem da familia ou do cla se confundem; nele e nela as posigdes de cada um estio perfeitamente definidas deixando um reduzido espago para uma individualizagao singu- larizada. Destacar-se como ‘individuo’ numa sociedade assim — assumindo, por exemplo, a estatura de um herdi mitico ou de um mago — implica, de certo, numa relativa separagao; contudo, nesse estado de isolamento esses superindividuos superam os de- mais exatamente na efetivagio dos mesmos ideais coletivos. Cor- po, vestes, casa e mundo (e seus varios objetos); narrativas, rituais e atividades cotidianas estao perfeitamente entrelagados e integrados a um mesmo sistema de compreensio e agiio. No cen- tro dessa ordem, os espagos, tempos, personagens, gestos falas sagrados, em que a realidade se mostra verdadeiramente e em torno dos quais se estende a trama de sentido. Para 14 dessa ordem é 0 caos. Transgredi-la é sair do mundo e ser tragado pelo caos, € marginalizar-se e eventualmente morrer simbdlica e fisi- camente. O risco da transgressao é tanto mais pavoroso porque seus efeitos incidem nao apenas sobre o transgressor individual- mente, mas sobre a comunidade de que é membro. Em compen- 50 sagao, ‘obedecer’ é da ‘natureza mesma dos seres’ (humanos, animados e€ inanimados), j4 que a separagao entre cultura e na- tureza nao pode ainda ai ser explicitada (e por isso as aspas em obedecer ja que, a rigor, o que se dé naturalmente dispensa co- mandos e obediéncias). Tudo é ‘natural’ para quem assim vive; tudo é cultural, para quem, de fora, observa e analisa. Um éthos coesivo domina esse estilo de vida, englobando sob o mesmo teto os seres humanos, os animais, as plantas e as forgas da na- tureza, dispensando todos de qualquer esforgo reflexivo mais ni- tido em torno do que fazer e de como fazer. Ao mesmo tempo, © que nao pertence a esta morada é uma abertura para o nada; é, mais que um excluido, a exclusao ela prépria. Daf a necessi- dade de se fechar para o ‘la fora’ e de destruir as vias que dariam acesso a ele; dai 0 pavor e, freqiientemente, o édio ao estrangeiro; dai a necessidade de exorcismos; daf a necessidade de retornar periddica e ritualisticamente 4 ‘quietude do centro do mundo’, as encarnagées do sagrado. A emergéncia de uma razdo pratica O que sera que se passa quando o éthos coesivo comeca a ceder diante do avango, de infcio lentissimo, de tendéncias dife- renciadoras e individualizantes? Abre-se, entao, 0 espago para uma razdo prdatica, ou seja, para uma reflexiio e para uma ten- tativa de sistematizagao dos modos desejaveis e legitimos de con- duta interativa. Natureza e sociedade j4 n&éo coincidem na ex- periéncia dos homens e cada homem se vera, cada vez mais, inter- namente dividido entre tendéncias naturais, obrigagdes sociais e imagens de si mesmos, sendo que essas estarao cindidas e com- prometidas, em doses varidveis, com aqueles dois pdlos. Surgem entao as quest6es: como se conduzir ‘adequadamente’ diante dos outros e diante de si? Como e sobre que condutas exercer um autodominio? Como moderar-se, como conter sua natureza, na convivéncia com os outros e consigo mesmo? Como educar-se e trabalhar-se na construgéo de uma subjetividade plenamente Sl realizada e bem sucedida? Como cuidar de si? E com que fina- lidades se efetuam todas essas reflexdes e todas essas praticas éticas? E no enfrentamento pratico € tedrico dessas questdes que se vdo constituindo, e, ao longo dos tempos, se transformando Os sujeitos éticos. A ética da exceléncia Em muitas sociedades e épocas; perguntas dessa natureza ainda podiam ser respondidas tomando-se como pressupostos as posigées dos sujeitos na trama social em que existiam com seus Staius e papéis institucionalizados. Gerava-se, assim, 0 que po- demos designar como uma ética da exceléncia (MacIntyre) ou uma estética existencial (Foucault): cada um era chamado a rea- lizar por conta propria um trabalho que, contudo, lhe era proposto pelo coletivo, embora sé se efetivasse mercé do esforco indivi- dual. Nesse trabalho cada um era exigido na sua capacidade de auto-dominar-se, de superar-se na direcdo de uma exceléncia, de impor-se um estilo de vida que se orientava no rumo de uma perfeigdo, seja a perfeigaio no exercicio de uma atividade mais ou menos especializada, seja a perfeig&o no exercicio de sua con- digéo de superioridade social. Exemplo pioneiro e cristalino de uma ética da exceléncia é a que regulava a vida dos herdis ho- méricos: cada um deles destaca-se do grupo na sua individuali- dade, mas cada individualidade heréica tipifica a perfeigio no exercicio de um dado papel (a perfei¢éio da coragem, a perfeig&o da forga, a perfeigao da astticia, a perfeicfio da sabedoria e da prudéncia, etc.). Esta é uma ética de dominantes. Na Grécia clas- sica, por exemplo, ficavam dela exclufdos os seres considerados inferiores, como os escravos, as mulheres e as criangas. A inca- pacidade relativa de responder a esse desafio ético gerava, entao, nao mais uma pura e simples marginalizacio, mas formas ‘bran- das’ de exclusiio em que avultavam os sentimentos de vergonha © menos-valia: 0 destino dos que fracassavam era um ultrajante esquecimento, Ja as transgress6es, nao tanto a esta ética, mas ao 52 cédigo legal de interdicdes sociais, comegavam por esta época a implicar em julgamentos que responsabilizavam individualmente os faltosos. E interessante observar como na ética da exceléncia, ana- lisada por Foucault tomando como base o éthos da polis grega, a administracdo da casa (a economia que vem do termo grego oikos que significa ‘casa’) e a conservagdo da savde — na forma de regimes, dietas e medicinas — aparecem unidas uma a outra © ambas as questées que, mais facilmente hoje, associamos ao campo da moralidade e das condutas éticas. O sujeito moral ple- namente realizado devia administrar bem seu patriménio e cuidar de sua satide. K, enfim, interessante observar como a constituigfo do sujeito ético nas suas origens jé revelava a relacio intima entre a ética, a casa e a satide anteriormente apontada. Vale as- sinalar que essas mesmas associagées Pperseveraram em algumas formas mais pronunciadas de individualizagao e volta e meia re- (ornam, como veremos adiante ao tratar das praticas alternativas, contrariando a tendéncia dominante da civilizagao ocidental mo- derna, em que economia, medicina e ética nao poderiam andar separadas. Os processos de individualizagao e 4 crise na ética da exceléncia ~ as prticas de si Em niveis mais avangados de individualizagao, porém, co- megam a faltar os pressupostos para uma ética da exceléncia exclusiva e dominante, embora, como veremos depois, existirao mesmo em sociedades fortemente individualistas, espagos e tem- pos em que uma ética da exceléncia conservard algum vigor. Ocorre nesses primérdios de uma civilizag&o individualista, uma fragilizagao das identidades posicionais, tal como Foucault acom- panhou nas relagdes conjugais e na vida politica dos dois pri- meiros séculos de nossa era; em decorréncia, dé-se uma inten- sificagdo da problematizagao das condutas individuais. O resul- tado foi o surgimento do que Foucault denominou de cultura das praticas de si, dos cuidados do sujeito consigo mesmo. 53 Autotestes (provagGes), exames de consciéncia e uma atengao vigilante a vida “psiquica”"® transformaram-se nas vias régias da sujei¢ao do individuo aos seus préprios cuidados: é como se cada um se convertesse no edificador de sua prépria mo- vada, de uma morada ainda bastante padronizada, mas jé par- cialmente feita sob medida para cada um. E claro que o status € os papéis continuam organizando uma boa parte das condu- tas. No entanto, cada vez mais cresce 0 espago e a exigéncia de uma elaboragao pessoal e de um estreitamento das relagdes de cada um consigo mesmo. Os cuidados de si continuarao a set exercidos nos campos da casa, mais particularmente das relagdes conjugais, e da satide. O que muda € a énfase que vai da exceléncia no desempenho do papel, como condigio dé exercicio e da exibi¢ao da superioridade social, ao dominio de si, tomado como processo de subjetivacdo relativamente inde- pendente das questdes do poder sobre os outros. Acentua-se, enfim, a dimensio ascética da conduta ética: mediante uma ascesis cada sujeito coloca 0 dominio de si como condigao, nao mais de superioridade, mas de independéncia." 10, E bastante discutfvel ter havido na antiguidade greco-romana uma nogao e uma experiéncia do psiquico (do mental) tal como a viemos conhecer na modernidade. Contudo, creio que a reflexividade implicada na ética das praticas de si nao poderia deixar de gerar alguma experiéncia de “vida interior” relati- vamente separada do “mundo externo”. 11. Independéncia diante dos outros, diante das vicissitudes da vida e, cada vez mais, diante das urgéncias ¢ inclinagdes naturais do corpo. Foi desse quadro ético que © Cristianismo primitivo arrancou muitos elementos para fazé-los fermentar na sua escalada introspectiva e ascética, sob o impulso da tradigao judaica de submissao incondicional, e inevitavelmente culpada, a um Deus todo- poderoso, onipresente e onisciente. Vale registrar que, também, na cultura ju- daica da época do surgimento do cristianismo ganhava forga, na comunidade dos Ess¢nios, uma ética de tigoroso ascetismo com quem o cristianismo pri- mitivo guarda muitas semelhangas (cf. Wilson, E. Os manuscritos do Mar Mor- to. Companhia das Letras, 1994). Constitufa-se, assim, uma cultura em que os cuidados de si eram incentivados, mas em que o individualismo era contido pela obediéncia a Deus, A comunidade dos crentes ¢ a seus representantes legais, pela obediéncia & Igreja Catdlica 54 O individualismo e a emergéncia das éticas da eficdcia Podemos agora dar um pulo para sociedades em que o in- dividuo nao s6 teve a permissao (como a obrigagiio) de se cons- tituir como sujeito ético mediante um cuidado de si intenso e permanente, mas em que este processo yeio a carecer quase que completamente de uma base coletiva, consensual e tradicional na definigdo das metas e das formas legitimas da acio, Sao situagdes de desenraizamento profundo tanto das sociedades em relagao as suas condig6es naturais como dos individuos em relagdo as suas comunidades. Sera possfvel, desde entio, as coletividades huma- nas comegarem a tratar a ‘natureza’ de uma forma puramente te6rica e técnica — é a natureza despida de qualquer sentido que nao seja o de fonte de matérias-primas a serem conhecidas, do- minadas e exploradas; simultaneamente, os individuos puderam comegar a lidar com a sociedade em geral e cada um com todos Os outros de uma maneira estritamente utilitaria e mercantil. B natural que nesse contexto 0 espaco de exercicio de uma razaio pratica e de renovados e muito intensos cuidados de si tenha-se ampliado imensamente, a0 mesmo tempo em que as condigdes desses exercicios tomavam-se excessivamente problematicas, Por um lado assiste-se af a uma subjetivacgao e individualizagao dos ideais, valores e normas que perderam toda a aparente objetivi- dade que antes lhes era assegurada no plano de um consenso e de uma tradicao. E como se, repousando apenas nas subjetivida- des individualizadas, as ‘éticas’ nao pudessem aspirar a nenhuma universalidade e a nenhuma racionalidade. Seriam moradas rigo- rosamente individuais c, no maximo, familiares, e mesmo isso apenas enquanto a familia ainda conservasse um pouco daquela coesividade j4 perdida no plano macrossocial. Contudo, mesmo numa sociedade individualista os individuos nao vivem sozinhos. Ao contrario, costumam multiplicat-se nessas condigGes as pos- sibilidades © necessidades de interagiio entre individuos que, as vezes, nem se conhecem nem jamais se verio (quantos clos ha, por exemplo, entre produtores e consumidores numa sociedade moderna de mercado internacionalizado?). Isto significa que al- 55 guma ‘morada coletiva’ precisa ser construida ou A forga ou por livre consentimento dos individuos. Instauram-se ent&o, nitidamente, dois campos éticos, dois éthos: de um lado, 0 éthos da vida privada e familiar, ainda for- temente marcado pela coesividade e pelas posigées, status € pa- péis familiares, determinados em geral pela idade e pelo sexo”; de outro, um éthos da vida piblica. Nesse campo vai imperar 0 que, acompanhando MacIntyre, poderfamos chamar de ética da éficdcia: as éticas coletivas serao ‘escolhidas’ e justificadas — as vezes impostas, as vezes acordadas — em funcao de uma avalia- ¢do dos seus efeitos, das suas conseqiiéncias para a vida, para o sucesso, para o progresso, para a felicidade de cada um ou do conjunto. Nessas éticas da eficacia hé uma tendéncia, 4s vezes latente, mas freqiientemente manifesta, de pensar a conduta se- gundo o modelo da técnica, mais precisamente, da técnica de con- trole dos fendmenos naturais: é como se a escolha ética de- pendesse cada vez mais de uma op¢iio pelo que “dé certo”. O problema que subsiste, e resiste aos avangos do pensa- mento técnico, diz respeito A possibilidade de consenso mesmo em relagao ao que seriam os efeitos e conseqiiéncias desejdveis para cada um ou para a coletividade: afinal, o que é “dar certo”? Na auséncia desse consenso espontaneo restaria, em principio, o apelo, que pode até ser racionalmente justificdvel, como em Hob- bes, a uma obediéncia ao poder superior e unificado do sobe- rano, consagrado como instaurador e representante de uma ordem a servico de todos. Mas, se esta obediéncia quase cega (embora eventualmente prudente, j4 que afasta o perigo maior de uma guerra de todos contra todos) fere um dos poucos valores com- partilhados em uma sociedade individualista, que é 0 préprio individuo como liberdade e autonomia, a melhor alternativa Seria a procura, num plano de racionalidade suprema e transcen- 12, Ocorre mesmo um recrudescimento da estratificagao intrafamiliar, ou seja, uma acentuagdo das relagSes hierarquizadas em termos de sexo e de idade. Faz Parte désse processo a “invengio” da infancia estudada por Ph. Ariés, em His- t6ria social da crianca e da familia (Zahar, 1981). 56 dente, de uma ética universal que, fundada numa ‘verdade’, im- pusesse a todos um mesmo ‘dever’, exigisse de todos 0 mesmo esforgo de autoconstituig&o como sujeito moral, Kant e sua dou- trina do imperativo categérico ilustra exemplarmente este movi- mento’, No entanto, a este nivel de sofisticagdo ética, de relagao consigo mesmo e com os outros, muito poucos podem-se alcar, se € que alguém que nao o préprio Kant. Para a grande maioria a 6tica publica vai-se caracterizar, na modernidade, por uma so- brecarga de moral, por uma intensificagio dos controles codifi- cados nas etiquetas, nos receitudrios de decoro e nas preocu- pages obsessivas com a ordem e a eficiéncia e pela internali- zagao desses controles na forma de uma consciéncia envergo- nhada, hipécrita e culposa, inimiga dos instintos, inimiga dos excessos e da animalidade dos corpos, inimiga do estranho.'* O duplo aspecto da ética liberal e suas vicissitudes A 6tica do liberalismo com sua énfase nos direitos naturais do individuo (principalmente, os direitos a liberdade e A proprie- 13. Zeljko Loparic analisa essa ética denominando-a de ética infinitista, Vale a pena transcrever integralmente: “O infinitismo 6 0 princfpio organizador da metafisica ocidental. Na ontologia, busca-se causas ¢ verdades, na ética, méa- ximas e regras que sejam ao mesmo tempo primeiras e vigorem incondicional- mente, que sejam infinitas. Quais sio as esperancas depositadas na infinitude do fundamento? As de encontrar um solo sobte 0 qual seria possfvel, pelo menos em tese, assentar uma vida humana plenificada, eterna e integrada em uma totali- dade césmica e social. Em outras palavras, visa-se achar um antfdoto universal para a falta, a transitoriedade e a particularidade, os trés elementos constituintes da finitude humana, todos assinalados pela dor” (Loparic, Z. “Btica ¢ finitude”, em Benedito Nunes [org.] Possibilidades de wma nova ética, Universidade do Paré, 1994). Nos termos que estamos adotando no presente trabalho, trata-se de um retorno, pela via da razo, & confiabilidade anteriormente gozada gratuitamente nas sociedades miticas, s6 que agora racionalmente conquistada e universalizada. 14, Processos meticulosamente estudados por N. Elias em classicos como O Processo civilizador 1 e 2 (Jorge Zahar, 1990, 1993) e La société de cour (Flammarion, 1985). on dade) sanciona o duplo regime ético: o de uma ética privada e doméstica em que a liberdade — efetivamente a liberdade do ho- mem adulto — € condigio para 0 exercicio de seu poder sobre si mesmo, sobre sua familia e seus negécios e uma ética publica em que a liberdade daquele mesmo agente é a condigao para o seu engajamento em atividades comerciais e politicas em pé de igual- dade com outros agentes da mesma espécie em um regime com- petitivo garantido pela obediéncia consentida de todos a um poder democraticamente instituido e reduzido ao minimo necessério. Contudo, a ‘morada’ da privacidade e da familia, com sua &tica da exceléncia no cumprimento das obrigagdes e scus mo- radores idealizados - “a boa mae e esposa”, “o bom esposo e pai”, “o bom filho” — 6 em uma certa medida e durante um certo tempo a Unica que asseguraria plenamente o abrigo, 0 acolhi- mento, 0 repouso de que falei na introdugio: ela 6, para usar a expressao de Lash, “o reftigio num mundo sem coracao”!*, Esse estilo de funcionamento, porém, sera rapidamente erodido no contato com as novas condigées de vida social (em particular, com as novas formas de vida urbana) e, para se manter, exigira uma espécie de moralizagao reativa e defensiva, marcada pelo estreitamento das ‘portas e janelas’, profundamente daninha ao desenvolvimento de seus membros no rumo da autonomia e da flexibilidade que, no entanto, Ihes sio cada vez mais exigidas. A ‘morada’ ptiblica, por sua vez, mesmo em teoria, apenas parcialmente garante alguma protecao: ela evitaria algumas for- mas mais contundentes de violéncia fisica, ela garantiria uma certa paz social e alguns direitos individuais, mas ela nio evitaria, por exemplo, 0 fracasso nos negécios, a faléncia, o desemprego, a miséria, 0 ostracismo, etc. Na pratica, a situagao é ainda pior: a ‘morada’ oferecida pela ética liberal 6 em grande parte uma ficgao que jamais ofereceu uma sustentagiio adequada aos indi- viduos, mesmo aos dominantes. Quanto aos dominados, 4s mu- Theres de todas as classes, aos trabalhadores dos campos e, 15. Ver Lash, C. Refiigio num mundo sem coragdo. A familia: santudrio ou instituigéo sitiada? (Paz e Terra, 1991). 58 principalmente, das cidades, a ética liberal nao oferecia qualquer prote¢ao seja na vida ptiblica, seja na vida doméstica e na pri- vacidade: a ética liberal, por exemplo, jamais assegurou As clas- ses trabalhadoras uma vida familiar e privada protetivas e sustentadoras; ao contrério, 0 avango da urbanizagao sob o im- pulso da economia de mercado destruiu macigamente as moradas e as familias das classes trabalhadoras. Tornaram-se_necessdrios vastos dispositivos da administragao publica ou privada — como Os sistemas previdencidrios — para dar a esses individuos desgar- rados e desamparados alguma seguranga. A emergéncia e os avangos da ética disciplinar Efetivamente, a marcha dos acontecimentos econdmicos e politicos nos séculos XIX e XX tornou a ficgaio liberal cada vez mais precdria e impds modos de ordenagiio da vida ptblica pro- gressivamente mais restritivos e autoritarios. Refiro-me ao cres- cimento das praticas disciplinares, ja perceptiveis para estudiosos do século XIX como Tocqueville e Foucault, e que vieram a ser as principais caracteristicas do capitalismo tardio e da sociedade administrada. Tais praticas foram levadas as titimas conseqiién- cias nos regimes totalitarios de ‘esquerda’ e de ‘direita’. E im- portante observar como as disciplinas, para além do que trazem de mais ébvio — um arsenal de técnicas de controle — sao, mais que tudo, modalidades éticas: elas contém um padrao implicito de ideais, normas e posturas em que ressaltam, por exemplo, as nogdes de ‘unidade’, ‘ordem racional’, ‘economia’, ‘controle’, “eficiéncia’, ‘obediéncia’, etc. A proliferagao e aprofundamento das restrigdes e das inter- vengoes disciplinares dos poderes ptiblicos no Ambito das exis- téncias individuais, freqiientemente, refletiram-se, também, no campo em que, até ali, vigorava a ética da exceléncia familiar: © pai, bom ou mau, conserva 0 patrio poder, mas niio Ihe compete mais decidir a respeito da escolaridade basica e obrigatéria de seus filhos, por exemplo. Em acréscimo, suas praticas discipli- 59 nares estao cada vez mais sob a jurisdi¢&o do Estado. Finalmente, é facil perceber que esse campo da privacidade domiciliar tendeu a se restringir € a se diluir devido as transformagées que incidiam diretamente na esfera doméstica e privada. A redugao no tamanho e a nuclearizagao da familia urbana e a instalagdéo de um movi- mento predominantemente centrifugo na dindmica familiar — a familia orienta para fora seus membros, seja para se educarem, Se tratarem, se realizarem, etc. — tornam os espagos e tempos domésticos extremamente pobres e desérticos, reduzindo sobre- maneira a quantidade de recursos disponiveis para o acolhimento primordial dos moradores'®, A igualdade entre sexos e a reducao das desigualdades entre faixas etdrias e dos poderes paternos, ou seja, a relativa dissolugdo da estratificagio hierarquica no seio da familia, por mais saudados que sejam, nao foram incondicio- nalmente saudéveis, na medida em que retiram as bases de fun- cionamento de uma ética da exceléncia familiar sem colocar nada em troca além de uma certa instrumentalizagio das relagdes hu- manas, propria das éticas da eficdcia.”” 16. Criangas, velhos © doentes sito, seguramente, os que mais sofrem nessa situacao. Mas quem nao é, independente da idade ¢ das condigées fisicas, um pouco ou muito dessas trés condigiies? 17. Por exemplo: uma boa mae, segundo a ética da exceléncia, era a que ocu- Paya ¢ representava muito bem o papel de mae segundo os cédigos tradicionais. Hoje, uma boa mae sera a que instrumentaliza sua conduta de forma a produzir filhos fisica e psicologicamente ‘saudéveis’. Mas como faz6-lo? A quest4o de ser uma boa mae tal como formulada em uma ética da eficécia exige para ser respondida, quase que necessariamente, 0 recurso a um especialista, o pediatra, © psicdlogo infantil, o fonoaudidlogo, etc. Isto ocorre exatamente. porque, desde © momento em que a mie se concebe € constitui como instrumento e jA nao mais como posigao € papel, ela se sente obrigada a orientar sua conduta de acordo com um conhecimento cientffico e com uma técnica, Uma das peculia- tidades de um autor como Winnicott é a de, enquanto especialista, revalorizar a competéncia materna ‘espontanea’. “Nem Freud nem a psicanilise foram hecessérios para se dizer As mics como providenciar essas condig6es”, diz ele, teferindo-se s bases do desenvolvimento mental propiciadas pelo ambiente materno. No entanto, 0 que assistimos hoje com grande freqiiéncia sao mies A ética romantica Esse trituramento de certos valores ¢ posturas liberais pelas praticas disciplinares no contexto da vida publica e doméstica, somado ao desmantelamento das condigdes de exercicio de uma ética da exceléncia familiar, gera o confinamento da esfera da liberdade privada em espagos cada vez mais restritos e fntimos das existéncias individuais, espacos cada vez menos sustentados no plano das relagdes do individuo com os outros humanos e nao humanos. Como respostas tipicas a essas press6es vamos encontrar, de um lado, o fortalecimento de um eixo axiolégico romantico, com versdes nostalgicas ou revoluciondrias, mas sem- pre de indole restauradora. Nesse cixo se expressam as deman- das de casa: demandas de integracdo no cosmos, de pertinéncia a comunidade, de participagéo na historia, de enraizamento na na- tureza. A ética do sobrevivente e a desterritorializacdo Numa contraposigao absoluta a essas demandas expressas na ética romantica irrompe, como um fenémeno social, a ‘ética do sobrevivente’, encarnada na figura denominada por C. Lash de “o minimo eu”"*; este self reduzido ao minimo vem a ser um personagem proeminente na “cultura do narcisismo”. Para com- preendermos a posigfo deste “eu minimo” Pprecisamos situd-lo no confronto entre os vértices liberal, disciplinar e romantico e nos processos de desterritorializagao dai decorrentes. Efetivamente, apesar de todas as vicissitudes, a ética liberal nao deixou de funcionar como um dos pélos estruturadores das subjetividades contemporaneas, ou seja, ela continua fornecendo um padrao de condutas interativas legitimas, um sistema de va- desconfiadas de sua prdpria capacidade e mics efetivamente incapacitadas Para a oferta daquelas condigdes, Nesse ponto as idéias de Winnicott, em si mesmas muito plausfveis, exigem uma complementagiio histérico-cultural, 18. Lash, C. O minimo EU (Zahar, 1988). 61 lores, normas e ideais, e, principalmente, um modelo dos modos legitimos e desejaveis de telagéo consigo mesmo do individuo, tanto nas esferas ptiblicas como na privacidade. Essa ética cons- titui o sujeito individual como unidade e soberania. Sucede, po- rém, que os homens contemporaneos encontram-se internamente Tepattidos entre este eixo e os eixos romantico e disciplinar. Vale dizer: a questo contemporanea ja nfo € a de cada um habitar uma casa ‘propria’, faltando a todos uma morada coletiva. O que Se passa é que cada um esta disperso entre trés ‘casas’ e, a rigor, nao habita integralmente nenhuma. Nisso reside a mais radical e verdadeira experiéncia de “desterritorializagéo’. E dessa expe- riéncia que se alimenta a cultura do narcisismo. A ‘ética de so- brevivente’ do ‘minimo eu’ é 0 fruto mais esponténeo desta con- figuragaio. Nao se trata, enfim, de faltarem as condi¢des de con- fianga intersubjetiva, tio precariamente assegurada pela ética li- beral e hoje ja tao fracamente defendida pela ética da exceléncia familiar, em répido processo de extingaio. A confianga que falta € a de cada um em relacao a si mesmo, em relagao a propria existéncia e continuidade, 4 propria capacidade de assumir uma hist6ria e fazer promessas’”. Um macigo investimento de si no ‘si mesmo’ (sem passado nem futuro), um investimento concen- trado ¢ excludente, parece, entdo, ser a condigio indispensavel a sobrevivéncia fisica e psiquica do individuo. J4 niio lhe parece bastar uma casa fixa que o abrigue e defenda, por mais singular que seja, mas precisa de um casulo que ele, sem solo e verda- deira morada, possa carregar nas Costas, como o personagém de O turista acidental.” 19. Assumir uma historia pessoal, mesmo que sujeita a revisdes permanentes, © fazer promessas, mesmo que renegociaveis, implica em estabelecer com o ‘st-passado © com 0 futuro-'si’ uma relagio de confianga. Por exemplo, eu $6 Prometo ¢ sé me comprometo quando posso minimamente confiar em mim mesmo, confiar na minha capacidade de continuar ‘eu mesmo’ no futuro. A élica de sobrevivente do minimo eu, ao contrario, é totalmente avessa a pro- Messas € muito resistente a qualquer historizagao, 20. Baseado no livro de Anne Tyler, Lawrence Kasdan dirigiu este filme que € uma preciosa ligiio da ética do sobrevivente ¢ das condicées de sua emer. 62 Etica, satde e praticas alternativas A faléncia das moradas disponiveis Como pensar a ética nestas condig6es? Como edificar uma morada individual, singular e coletiva? Como constituir-se como Sujeito ético nos dias de hoje? Uma coisa parece evidente: nem a ética liberal, nema romantica, nema disciplinar so alternativas vidveis e cada uma delas exclui parcelas significativas da expe- riéncia de cada um de nés que acabam retornando como sintomas e mal-estar!. Também nao parecem viaveis simples combinagdes entre elas, conforme a anélise que fiz das figuras do excéntrico esteticista e do militante.” géncia. No mondlogo inicial, em off; 0 personagem principal expe sua Filosofia de vida que poderia ser resumida assim: em uma viagem, como na vida, carregue uma bagagem minima ¢ bem empacotada, evite problemas estranhos, esqueca de sua ndo-pertinéncia aos lugares, esteja preparado para {udo — para win sibito funeral, por exemplo — mas nao se deixe tocar por nada. Nao se exponha a nenhuma perda, O filme revela igualmente 0 back- ground familiar do turista acidental: uma familia amedrontada ¢ incomunicavel em um mundo obsessivamente ordenado © que se desorienta quando vai as compras na esquina. & interessante assinalar que a ética do sobrevivente de- senyolve-se num mundo em que proliferam 0 que Mare Augé chamou de “nao lugares” (cf. Augé, M. Nao lugares. Introdugiio a uma antropologia da super- modernidade. Papirus, 1994). “Nao lugares” so espacos de transito aonde se existe sem raizes e sem relagdes, ou seja, 0 oposto cabal da morada, 21. Ver a respeito: Figueiredo, L. C. A invengéio do psicolégico. Quatro séculos de subjetivaeao (1500-1900) (Escuta/Educ, 1992), principalmente o capftulo “A gestagao do espaco psicolégico no século XIX: liberalismo, romantismo e regime disciplinar”, e 0 texto, neste volume, “Os lugares da psicologia”. 22. Ver, respectivamente, A invengdio do psicoldgico. Quatro séculos de subje- tivagdo (1500-1900), especialmente o capitulo “Para além do estilo, Um lugar ara a psicologia”; e “A militincia como modo de vida. Um capitulo dos (maus) Costumes contemporaneos”, em Cademos de Subjetividade, 1, 2, pp, 205-216 (1993), 63 A ‘ética do sobrevivente’, por seu turno, é a que leva mais longe o carater mortifero da contemporaneidade, convertendo o desligamento e desenraizamento — impostos aos que transitam pelos “nao lugares” estudados por Mare Augé ~, em desligamento e desenraizamento “desejados’. A rigor, trata-se de reduzir os ‘de- sejos’ as dimensdes do que cabe em um saquinho de Viagem, como diz Macon Leary, o turista acidental (“hé muito poucas necessidades neste mundo que nao caibam em sacos de viagem”). Aquelas outras necessidades, as necessidades de acolhimento e moradia, serdo expressas apenas como siibitos invalidamentos — uma perna quebrada, uma forte dor nas costas — que 0 colocam na dependéncia e A disposigo dos familiares??, Ou seja, trata-se de uma ética frigil e que oferece condigdes muito Precdrias A Conservagao da satide.” A dimensio ética das praticas alternativas Creio que é diante destes impasses éticos que proliferam muitas das chamadas praticas alternativas”*. De uma certa forma © guarda apenas a foto do filho morto), que Macon Leary se torna apto a uma nova possibilidade de contato, apto a comprometer-se com Muriel. 24, Pode-se aventar também a hipétese de que existéncias transcorridas em ou ameacadas por “nao lugares” poclem reagir através dle tentativas de Testauragdo Volenta de seus limites teritoriais, Neste caso, em vez da ética da sobrevivernia volvido numa nota de rodapé e fica para uma outra ocasiao. 25. Apesar das diferengas entre elas, algumas das quais sero referidas adiante, cteio poder falar cm préticas alternativas em geral como constituindo 0 “com. Plexo alternativo”, tal como mencionado por J. Russo, em O corpo contra a Palavra Terapias corporais nos anos 80 (UFRJ, 1993) e tal come foi muito bem exposto e analisado por L. E. Soares no artigo “Religioso por natureza. Cultura alternativa e misticismo ecolégico no Brasil”, em O rigor da indisci- lina. -Ensaios de antropologia interpretativa (Iset/Relame Dumaré, 1994) © em uma certa medida elas sao de fato alternativas As tendéncias dominantes da cultura ocidental em que as quest6es reconhecidas como 6ticas pairam a léguas de distancia das quest6es médicas, sendo estas concebidas como envolvendo apenas conhecimentos naturais e técnicas curativas ou preventivas. Nao é por acaso que muitas das prdticas alternativas incidem diretamente nas ques- tées da satide sob a forma de dietas (naturalistas, vegetarianas, macrobisticas, etc.), regimes de exercicios fisicos (gindsticas, ca- minhadas, corridas, antiginasticas, exercicios de Tespiragao, yoga, massagens, etc.) e medicinas (acupuntura, homeopatia, florais de Bach, exposigaio a pedras e cristais, alquimias, etc.). Dada esta incidéncia, somos levados spontaneamente e sem muita reflexao a julgé-las em termos de conhecimentos naturais e eficdcia téc- nica, segundo nossos padrées modernos de avaliagao. A confusiio aumenta porque muitos dos defensores dessas praticas procuram justifica-las apelando para evidéncias pseudo-experimentais e¢ adotando argumentos aparentemente comprometidos com a jus- tificagao racional dos Processos € com a mensuragio dos efeitos das intervengdes”*. Nessa mesma dire¢do trabalham certas esco- Ihas conceituais — como a da no¢ao chave de “energia”, presente em quase todo o complexo alternativo — que permitem a estes discursos uma aparéncia de contato com o campo das ciéncias naturais”’. No entanto, penso que estas Praticas, em que pesem estes namoros com o discurso cientificista e tecnol6gico, antes de mais nada dizem respeito as relagées dos homens uns com 08 outros, com todos os elementos e Sorgas da natureza e consigo 26. A presenca destes ingredientes nos discursos alternativos atesta, como se vera adiante, a alianga de um P6lo predominante romantico com tragos dos POlos liberal ¢ disciplinar. 27. Na yerdade, como mostra L. E. Soares, na obra citada, a “cnergia” dos alternativos funciona como uma espécie de passaporte que d& aos que a Sam 0 direito de atravessar todas as fronteiras em que a cultura ocidental orators Rec psetva 08 limites dos diferentes domfnios de conhecimentos Prélicas, Nenhuma semelhanga, portanto, com o uso do termo nas ciéncias haturais. 65 mesmos e é nesta dimensao que elas séo de fato alternativas. Por exemplo, parece estar muito presente na maioria destes cui- dados de si uma demanda de comunicagéo genuina, imediata e simpdtica entre os individuos, entre cada um e as forgas e ele- mentos naturais e entre cada um e si mesmo. Parece haver sem- pre, de forma manifesta ou latente, um projeto de restauragao de uma certa harmonia. Que se compare, por exemplo, o acolhi- mento que se recebe em uma consulta com um médico homeo- pata com o que se verifica na consulta 4 maioria dos alopatas em atividade ¢ ver-se-4 delineado um conjunto completo de ou- tros ideais, outras normas e posturas que vao muito além das diferengas quanto aos procedimentos médicos no sentido estrito da palavra.”* Outras prdticas alternativas concernem menos diretamente a satide, embora estas distingdes aqui nao fagam muito sentido, mas nem por isso pertencem menos ao campo da ética: sugiro que as praticas esotéricas, misticas e espiritualistas, a astrologia, © tar6, etc. dizem respeito diretamente A questo da morada. Sao modos de habitar 0 mundo que permitem que, na vastidio de nossos horizontes, se reserve um espago e um tempo para a reins- talagao da “quietude do centro”, de renovagao de uma experién- cia primordial, mas hoje deficiente, de estar em casa. A astro- logia, por exemplo, enraiza cada atribulada exist@ncia individual no plano regular, previsivel ¢ etemo em que transitam planetas € estrelas. Destinos e identidades, até entio probleméticos, rece- bem dos astros a garantia de um assento definitivo. Todo o uni- verso € reconduzido imaginariamente A condi¢éio de morada 28. H claro que nao 6 posstvel generalizar, mas oreio que estas diferengas sfio reais, bem como costuma ser yerdade que entre os alopatas sao os clinicos gerais os que mais espagos concedem ao acolhimento do cliente nesta moda- lidade alternativa. Numa nota anterior dizia que muitos profissionais da satide tendem a se ver como instrumentos de cura e tém dificuldade de fTesponder a certas demandas dos pacientes que Ihes pedem para funcionar como ambientes de cura. E exatamente a esta demanda que os clinicos e os homeopatas res- pondem espontaneamente. 66 humana”. Com uma outra plataforma, mas pertencendo ao mes- mo conjunto, atuam os movimentos ecolégicos, desde os mais Politizados até os mais teligiosos (0s do chamado misticismo ecolégico): eles propdem, ao mesmo tempo, uma critica as rela- goes dominantes do homem ocidental com a natureza, marcadas por exploragao e ganancia, e novos modos de contato; estes mo- dos, mesmo quando pretendem se basear em conhecimentos cien- tificos, vo muito além da ciéncia e se efetivam na verdade como novas formas de subjetivagio e eticidade, como novas possibili- dades existenciais. No conjunto nao se poder negar completamente a estas praticas uma certa eficdcia, muito embora esta nem sempre coin- cida com 0 verbalizado pelos praticantes e adeptos. Elas podem Ser eficazes, contudo, no plano da constituig&o das subjetividades €, a esta altura, nfo devemos nos surpreender que esta eficdcia Possa ter, inclusive, incidéncias diretas no plano do bem-estar e no da satide fisica ou mental. Problematizando as praticas alternativas Nao obstante, seria, creio eu, ing€nuo acreditar que qual- quer uma destas praticas alternativas esteja qualificada para oferecer ao homem uma nova morada condizente com os de- safios da civilizagao contempordnea. Esta posi¢ao critica, po- rém, nada tem a ver com a epistemologia ou com a meto- dologia cientifica”, Nao sera em nome da ‘cincia’ que me 29. Tem-me chamado a ateng&o, por exemplo, o uso exacerbado ¢ compulsivo destas técnicas de enraizamento ¢ auto-identificagao por pacientes com fortes problemas no eixo do desenvolvimento narcisico, 30. No primeiro capitulo, “Os lugares da psicologia”, discuto mais longamente as vicissitudes por que passa todo o pensamento epistemol6gico metodolégico a contemporaneidade e as razOes por que os tribunais epistemolégicos ¢ me- todolégicos tornaram-se Incapazes de operar com a arrogincia de antigamente, 67 agradard posicionat-me, criticamente, diante destas prati- cas. Para esclarecer este ponto, um confronto com o campo do conhecimento e das técnicas oficiais da psicologia pode ser elucidativo. Praticas alternativas e praticas oficiais no campo psi: comentarios finais Embora muitas das prdticas alternativas digam respeito satide fisica e apesar de nesse campo os confrontos com as me- dicinas poderem ser muito violentos, ha algo nas praticas alter- nativas que inevitavelmente as conduzem a um embate muito mais direto com os conhecimentos e técnicas psi. Os confrontos com as medicinas cientificas Uma das caracteristicas das ‘alternativas’, mesmo quando visam diretamente 0 corpo, é a de nao operar uma ciséo muito acentuada entre corpo e mente. Por exemplo, as dietas alternati- vas nao visam apenas satide somética, mas também satide psi- quica. As proprias nogdes de “harmonia” e de “energia” de que falava anteriormente ajudam a desfazer uma barreira muito nitida entre os dois dominios. Com isso, estas praticas alternativas po- dem ser, mais facilmente, desqualificadas como charlatanice pelo discurso médico oficial que, de acordo com suas bases na filo- sofia da modernidade, separa nitidamente os dois campos. Ha, inclusive, um discurso médico “tolerante”, que afirma que no tratamento de doengas graves e mortais a medicina oficial € im- bativel, mas que para doengas crénicas, permanentemente incd- modas e parcialmente imaginarias, as medicinas alternativas ‘po- dem ajudar’. No primeiro caso, estarfamos diante de uma docnga puramente somitica a exigir um tratamento sério ¢ cientifico; no 68 outro, diante de uma “somatizagao” FE como se dissessem: para uma doenga imagindria, uma medicina de mentirinha.”' Os Confrontos com as Psicologias Ditas Cientificas No que concerne a maioria dos conhecimentos psicolégicos, a situagfio é muito diversa; de uma certa forma, quase todas as psicologias contemporaneas sao efetiva ou potencialmente alter- nativas ciséio corpo-mente. Em acréscimo, todas ou quase todas mobilizam processos e geram efeitos que concernem 4 dimensdo ética da existéncia, reproduzindo velhas formas ou instituindo formas novas de relagéo com os outros e consigo mesmo, pos- sibilitando assim, eventualmente, novos modos de estar no mun- do, novas instalagées do humano. Isto significa que 0 confronto entre as praticas alternativas e as praticas psi oficiais sao muito mais diretos e ineludiveis, j4 que ambas parecem disputar um mesmo terreno. Ora, a resposta mais facil dos psicélogos a este desafio tem sido a de reivindicar para si, genericamente e sem considerar a propria diversidade teérica da area, um estatuto de cientificidade que excluiria os “alternativos” da competigao. Como tenho ar- gumentado em diversas ocasides, esta linha de defesa ¢ dupla- mente problemitica. Em primeiro lugar, nado considera, como dis- se acima, a diversidade que reina no campo psi e que exigiria avaliag6es epistemoldgicas e metodolégicas precisas de cada teo- ria e avaliagées da eficdcia e eficiéncia de cada técnica. Se isso fosse feito seriamente, nao duraria muito o entendimento entre escolas e sistemas psicolégicos que parece existir nestes momen- tos em que 0 importante parece ser a demarcacao entre uma pra- tica legitima e uma pratica suspeita; na verdade, esta alianga entre 31. & interessante assinalar que esta compreensdo das coisas parece muitas vezes estar por tras de alguns encaminhamentos que alguns médicos fazem de certos pacientes ao atendimento psicolégico, principalmente em ambiente hos- pitalar. 69 psicélogos de diferentes orientagdes costuma ser puramente es- tratégica, pois se mantém apenas para dar uma certa credibilidade a estes profissionais na sua luta contra os ‘invasores’. Por outro lado, e € 0 mais grave, esta linha de defesa esté completamente aquém do nivel de reflexdo ‘epistemolégica’ e ‘metodoldgica’ ja alcangado nos campos da filosofia e de muitas outras disciplinas cientificas. Bfetivamente, trata-se, quase sempre, de um uso opor- tunista e/ou ingénuo de velhos conceitos de ‘cientificidade’. Creio que a questo exija ser trabalhada em um outro plano, ou seja, que tanto as chamadas prdticas alternativas quanto as diversas escolas e sistemas da psicologia sejam confrontados no plano da ética, enquanto dispositivos éticos tomados como dis- positivos de constituigao de subjetividades. Ora, j4 tive a oportunidade de mostrar” que a diversidade tedrica da psicologia corresponde aos diversos lugares que estes sistemas ocupam na configuragado contemporanea das praticas so- ciais. Ocorre, entao, que no plano da ética no seria correto co- locar de um lado o conjunto das prdticas alternativas e de outro © conjunto dos conhecimentos e praticas da psicologia oficial. Creio que, em determinados aspectos, ha muita coisa em comum entre eles. Na verdade, vejo muitas das conquistas do pensamento psicolégico como reais alternativas aos impasses éticos contem- poraneos e nao gostaria de associar 0 termo ‘alternativo’ a algo suspeito e desqualificdvel. Por outro lado, o que me parece me- recer uma postura critica nas praticas alternativas também esta presente em muitas das praticas oficiais. Tomemos como exem- plo a questao da ‘familiaridade’, intimamente ligada 4 da morada. A demanda por casa, raiz, pertinéncia, participagao e fami- liaridade, como disse antes, foi inicialmente expressa em muitas vertentes do movimento romantico desde os séculos XVIII e XIX. Estou adotando aqui uma nogfo bastante ampliada de ‘fa- miliaridade’: ser familiar 4s pessoas, mas também As plantas e animais, as forgas da natureza, enfim, uma familiaridade césmica. 32.-No ja citado “Os lugares da psicologia”. 70 Hoje, muitas das prdticas alternativas renovam este veio romén- tico de familiarizag&o com o cosmos, seguramente porque a con- figuragao sociocultural contemporanea vem gerando condigdes existenciais para as quais as éticas liberal e disciplinar nao ofe- recem qualquer resposta®’. Cabe, porém, a pergunta: serd que esta indole romantica também niio estar4 presente em muitas for- mas de pensar e fazer psicologia?™ Em alguns casos a propria teoria favorece e patrocina a familiarizacao, como ocorre nas chamadas psicologias humanistas. Mas, independentemente da teoria, uma certa familiarizagaio nao estard presente em toda cli- nica psicoldgica e psicanalitica? Nao serd verdade que 0 setting clinico responde de um certo modo a esta demanda de uma re- lagao familiar, a esta necessidade de um estar-em-casa, de um habitar sereno e confiado? No entanto, e aqui reside o cerne da questio, ha diversas maneiras de lidar com esta demanda. Ela pode ser teoricamente ignorada, embora, silenciosamente, respondida, ou ela pode ser convictamente justificada e satisfeita. Nos dois casos, contudo, penso que a satisfagdo se daré sempre no plano do imagindrio. Embora este plano seja constitutivo das identidades, ele nao com- preende toda a dindmica existencial nem tem os recursos neces- sdrios para um desenvolvimento psiquico saudavel. Em outras palavras: embora a sugestio tenha a sua eficécia, nem tudo se resolve com sugestao. Ao contrario, tanto a procura como a oferta de solugdes imagindrias sio da ordem do sintoma. Realmente, nao importa quao integrado ao cosmos se sinta o individuo diante de seu ‘mapa astral’; nao importa quao seguro de sua identidade 33. Nao obstante a dominancia do pélo romantico, que da o tom dos discursos alternativos, convém, todavia, assinalar como neles também se manifestam tra- gos dos eixos liberal e disciplinar. Uma nocao polivalente como a de “energia” © a valorizagaio da nogio de “trabalho” (como na expresso “trabalho corporal”, Por exemplo), analisadas por Soares na obra mencionada na nota 25, sao, sem diivida, tributdrias destes outros polos da cultura contempor‘inea. 34. Acerca disto, yer meu livro Matrizes do pensamento psicoldgico (Vozes, 2* ed., 1993). 7 e de seu destino se sinta o individuo que consulta os biizios ou © horéscopo: 0 fato é que muitos aspectos de sua experiéncia permanecerao desligados deste esquema compreensivo e con- tinuardo ameagando e destruindo sua capacidade de integra- los, frut-los, pensd-los, tornd-los produtivos, etc. Por exemplo, © préprio modo (fundamentalmente experimental e instrumental) de escolher, comprometer-se e lidar com estas crencas e praticas alternativas revela, como bem mostrou Luiz Eduardo Soares, a presenga subterranea entre os seus adeptos de um padrao moder- no, subjetivista e individualista de conduta, caracteristico, exa- tamente, daquela ética da eficdcia a que as praticas alternativas procuram dar respostas e solugdes"’. Em outras palavras: 0 éthos Jamiliarista do complexo alternativo engendra, 4 sua revelia, ex- periéncias que reafirmam o desenraizamento, o estranhamento; estas experiéncias estranhas, contudo, ele nao pode reconhecer e acolher: Coisa diferente seria reconhecer a demanda de familiariza- ¢o para nomed-la, interpretd-la, elabord-la. Nesta forma de li- dar com a demanda de familiaridade tratar-se-ia de, simultaneamente, oferecer o familiar e propiciar a admissao do e 0 encontro com o estranho: 0 estranho dos outros e, principalmente, o estranho de/em cada um. Estariamos, assim, eticamente implicados em uma dupla vertente que poderiamos nomear tomando de empréstimo algumas palavras da filosofia: Serenidade (Heidegger) — 0 habitar sereno e confiado como condigao para a abertura e 0 encontro; Amor facti (Nietzsche) — amor aos fatos e aos fados, acolhimento do ines- perado e aleatério, escuta paciente de outras vozes apenas en- treouvidas, espera do outro que nos vem ao encontro e desaloja. 35.Vale a pena citar: “Se a caracteristica chave da modemidade, do ponto de vista teol6gico... é 0 deslocamento da religiao, afastada do centro da vida social, € sua substituig&0 por principios laicos de legitimidade politica, proceso que resulta na transformagéo do compromisso religioso em mais um exercicio de opetio da subjetividade individual... poder-se-ia sugerit que 0 fendmeno da ‘no- va consciéncia religiosa’ representa a realizagdo, talvez mais rigorosa e radical, da experiéncia religiosa moderna” (Soares, op. cit., p. 211; grifos meus). Ora, a linha que separa esta ética do que seria a pura acei- tagdo da demanda de familiaridade nfo coincide com a linha que divide os saberes e prdticas psi convencionais das praticas alter- nativas. Sem dtivida que estas tiltimas, em geral, nasceram e se expandiram satisfazendo estas demandas. No entanto, 0 mesmo poderia ser afirmado de grande parte da clinica psicoldgica e mesmo psicanalitica. Enfim, nesta questo, como sempre, deve- mos renunciar a qualquer solugao pré-fabricada e preconceituosa para nos dedicarmos @ paciente tarefa do pensamento, 7B

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