Você está na página 1de 37
JOAO. GUIMARAES ROSA FICCAO COMPLETA VOLUME I INTRODUCAO GERAL PREFACIO Eduardo F. Coutinho CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA DIALOGO COM GUIMARAES ROSA Giinter Lorenz FORTUNA CRITICA Antonio Candido / Alvaro Lins / Euryalo Cannabrava Antonio Candido / Manuel Cavalcanti Proenca / Bernardo Gersen Graciliano Ramos / Tristao de Atatde / Benedito Nunes Henriqueta Lisboa / Angela Vaz Ledo / Braga Montenegro Paulo Rénai / Rui Mourdo / Fernando Py BIBLIOGRAFIA Paulo Roberto Dias Pereira SAGARANA / MANUELZAO E MIGUILIM NO URUBUQUAQUA, NO PINHEM NOITES DO SERTAO A Soa arersper rpms ene eb aie i) DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILARSA. sa0e 9028q Primeira edigto, 1994 Reimpressio da primeira edigao, 1994 ISBN 85-210-0011-1 © 1994, by Vilma Gimaraes Rosa, Agnes Guimaraes Rosa do Amaral e Barcelona Participagdes S/C Ltda Direitos de ediggo da obra em lingua portuguesa em edicao de luxo adquiridos pela EpITORA NOVA AGUILAR S.A. VY Rua Bambina, 25 — Botafogo — CEP 2251-050 Rio de Janeiro, R) Teli 537-8770 — Fax: 337-8275 B 869.364 Gi ay Ly v. CIP-Brasil, Catalogag3o-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Rosa, Jodo Guimaries, 1908-1967 Ho694f Fico completa, em dois volumes / Jodo Guimardes Rosa. — Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994. 2v. ~(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) Conteddo: v. 1. Introdugao Geral — Sagarana - Manuelzdo ¢ iguilim — No Urubuquaqu, no Pinhém ~ Noites do sertéo ~ v. 2, Grande sertio; veredas ~ Primeiras estérias - Tutaméia - Estas est6rias — Ave, palavra, Inclui bibliograt ISBN 85.210.0011-1 1. Ficgdo brasileira. 2. Rosa, Jo’o Guimaraes, 1908- 1967. I. Titulo. II. Série. CDD - 869.93 94-0806 CDU - 869.0(81)-3 DIALOGO com GUIMARAES Rosa Giinter Lorenz GUNTER LORENZ: Ontem, quando escritores participantes deste Congresso! debatiam sobre a Politica em geral eo compromisso politico do escri- tor, vocé, Jodo Guimaraes Rosa, politico, diplomata e escritor brasilei- | ro, abandonoua sala, Embora s pela expresso de seu rosto e pel 6 zir que o tema em questao nao JoAO GUIMARAES Rosa: verdade; agi daquela forma Porque o tema nao me agradava. E para que nos entendamos bem, digo-lhe que nao abandonei a sala em sinal de Protesto contra o fato de estarem discu- tindo politica. Nao foi absolutamente um ato de Protesto. Saf sim- plesmente porque achei monétono. Se alguém interpreta isto como um protesto, nada posso fazer./Embora eu Veja 0 escritor como um homem que assume uma grande responsabilidade, creio entretanto ~ que nao deveria se ocupar de politica; nao desta forma de politica. Sua missao é muito mais importante: é 0 Proprio homem. Por isso a poli- tica nos toma um tempo valioso. Quando os escritores levam a sério o seu compromisso, a politica se torna supérflua. Além disso, €u sou escritor, e se vocé quiser, também diplomata; politico nunca fui GL: E uma bela opiniao sobre a importancia do papel do escritor: mas nao seré demasiado idealista? Foram discutidos muitos aspectos do cotidiano politico; e além disso acho que um escritor nao teria mui- tas probabilidades de éxito se, como vocé quer, tratasse apenas do homem em geral, deixando de lado a vida didria desse mesmo ho- mem. r Jer: Posso compreender isso e também sei que aqui provavelmente are Pensam de modo diferente do meu. Entretanto, me propus p See claramente: tenho a impressdo de que todos eles discutem demasia- _ i i icanos”, realizado em Génova, em Thtase do de Escritores Latino-Americanos”, rea n ine isos ng oportunidade, teve lugar este dislogo. Como resultado do Congres wo fod 19655 na op uma tonica fortemente politica, a primeira ciedade de be areata Atierioeaoe” da qual Guimaraes Rosa e Asturias foram eleitos vic ino- , identes. Compare o didlogo com Asturias. q 8 JoAo GUIMARAES Rosa / FiccAO Comper, 2 ealizar tudo 0 que desejam. Perdem muito tempo, que empregariam melhor escrevendo, Mesmo supon do-se que tudo aquilo que dizem estivesse certo, aa ver deen nes mais acertado que cada um escrevesse sua opiniao, e! ae Pres. sé-la perante um auditério tao limitado. A palavra ne opis maior eficdcia e além disso estas discussdes secas me entediam, pois sio muito abotrecidas. Desconfio que 86 sao feitas para alguns deles poderem se confirmar a si préprios sua importancia € roreretn as. sim se desligar de sua responsabilidade sem peso de consciéncia, Na- turalmente isto nao vale para todos, pois quando homens como Asturias falam pro domo, terio também suas raz0es. Mas vocé ja ob- servou que os que mais falam de politica sao sempre aqueles que tém menos livros publicados? Quando os tém, nao sao livros onde ex. pressem idéias sefnelhantes as expostas aqui. Noto a falta de coerén- cia entre suas obras e suas opinides. GL: Vocé quer dizer entao que aprova que um escritor discuta sobre Polt- tica, apenas quando também as suas obras der um acento politico, e nao quando se mostrar politicamente neutro em suas obras? JGR: Sim, é verdade que, embora eu ache que um escritor de maneira geral deveria se abster de politica, peco-lhe que interprete isto mais no sen- tido da nao participacao nas ninharias do dia-a-dia politico. As gran- des responsabilidades que um escritor assume s4o, sem dtivida, outra coisa... GL: Bem, Joao Guimaraes Rosa, creio que neste circulo vocé é 0 tinico a pensar desta forma, ja que Borges nao estd presente para nos dar seu testemunho de apolitico. JGR: Acho que vocé me entendeu mal. Aparentemente esté se referindo ao que aconteceu em Berlim,? Acerca disto queria dizer que estou do lado de Asturias e no de Borges, Embora nao aprove tudo o que As- turias disse no calor do debate, nao aprovo nada do que disse Borges. As palavras de Borges revelaram uma total falta de consciéncia da res- ponsabilidade, e eu estou sempre do lado daqueles que arcam com a responsabilidade e nao dos que a negam. Eu nao queria que dedicssemos a tais assuntos as poucas horas qué temos para conversar durante este cadtico congresso; nao obstante, creio que eles nos conduzem ao nosso tema, do, e por isso ndo conseguirdo r GL: ? Durante o Cold; IyrroDUCAO GERAL / DIALOG Com GurmarAts Rosa 29 JGR: Certo, ja estamos nele, $6 quis dizer h4 pouco que a maioria dos que aqui expressam suas opinides nao examinam o verdadeiro sentido de suas palavras antes de pronuncid-las, e Por isso nao prestam aos de- mais, que jé citei, nenhum bom servico, GL: Penso que, para encaminharmos nosso didlogo a uma certa direcdo, sss medio estabelecermos uma espécie de itinerario. Vocé esté de acordos JGR: Estou. Deixo que vocé determine a direcao. GL: Pois bem, estes assuntos politicos que abordamos hé pouco nao esta- vam €m meu itinerdrio, Cheguei a eles Porque as circunstancias os trouxeram. HA outros temas que me interessam muito mais, uma vez que tenho a extraordinéria Ocasido, a sensacional oportunidade, por assim dizer, de haver conseguido uma entrevista com o inimigo de toda a espécie de entrevistas e terror dos reporteres: Guimaraes Rosa... JGR: Devo fazer duas objecdes. Primeiro, e JA disse isso, agrada-me conver- sar com vocé, pois escreveu a meu Tespeito coisas tao encantadoras e interessantes que gostaria de tratar delas novamente, ainda que fosse unicamente por razées de egoismo. Em segundo lugar, peco-lhe que nao use essa horrivel expressiio “entrevista”. Eu certamente no teria aceito seu convite se esperasse uma entrevista, As entrevista sao tro- cas de palavras em que um formula ao outro perguntas cujas respos- tas jd conhece de antemao. Vim, como combinamos, porque deseja- vamos conversar. Nossa conversa, ¢ isto ¢ o importante, desejamos fazé-la em conjunto. GL: Considero isto uma honra, e esteja certo de que sinto uma grande ale- gria por podermos estar aqui juntos e conversar. Isto nao é nada co- mum e, no que se refere a vocé... nes fi JGR: Chega. $6 me oponho a matar o tempo com insignificdncias e com gente que nao sabe nada de pace Fao jeito desfruto de uma estranha rretanto, sou bras: . ‘ GL: Cena nee oe fama e provavelmente nao sem razao. No Brasil também, Mas vamos nos dar por satisfeitos. Os motivos de nosso i idos, e voltemos ao nosso “itinerdrio”. encontro ficam assim esclarecidos, Nar Cite ce Gostaria de falar com vocé sobre o escritor Guimar: eee » : Mancista, o magico do idioma, Gea aaatay icc caameesd zem parte, penso eu, do tema diver’ eee estes trés ou quatro pontos Sim, acho que se quiséssemos i i tarfamos conver- izer, daqui a um ano ainda es! tudo o que temos de dizer, ‘a setiia ieaapel Suponbe ner oe vocé nem eu tem i ao E ad ‘as coisas que lhe interessam a meu respeito nao tem eras uma seqiiéncia estrita... 7 JoAo Guimaraes Ross / FICCAO Compt py ny 30 ed arcane Nair a ranth npr Te caebeacs pelo que Voce JGR: Precisamente, e por isso gostaria que Me AShiémt do bertae mencionou como tema final.|Chamou-me “0 ho! h Sertao”, Nada tenho em contrario, pois sou um sertanejo € ac eens so que voce deduzisse isso lendo meus livros, eae significa que vocé os entendeu. Se vocé me chama de “o homem do sertao” (e ey realmente me considero como tal), e queremos patie gh Sobre este homem, jé estdo tocados no fundo os outros pontos. E que eu soy antes de mais nada este “homem do sert4o”; e isto ndo é apenas uma afirmagao biogrdfica, mas também, e nisto pelo sera 4 acre: dito to firmemente como vocé, que ele, esse “homem do sertao”, est4 presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.) GL: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um inicio convencional: 0 biografico, embora ele ja nao seja tao convencional, se minhas conclusées sobre 0 que disse hd pouco estiverem certas. Nasceu no sertdo, aquela estepe quase mistica do interior de seu pafs, encarnada como um mito de cons- ciéncia brasileira... JGR: Sim, mas para sermos exatos,. devo dizer-Ihe que nasci em Cordis- burgo, uma cidadezinha nao muito interessante, mas para mim sim, de muita importancia. Além disso, em Minas Gerais; sou minei- ro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Nao acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma Parte de mi- nha familia é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migragées era Guimaranes,’ nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitania? Portanto, pela minha origem, estou voltado para © remoto, o estranho. Vocé certamente conhece a histdria dos*sue- vos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os luga- Tes sem poder langar ratzes em nenhum. Este destino, que foi t40 intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado Por meus antepassados se apegarem com tanto desespero aquele pe- ice de terra que se chama o sertéo. E eu também estou apegado a Voce esté se referindo ao seu “cardter literério” que o inclui no aa grupo de literatos brasileiros denominados regiona- istas? GL: ? Esta cidade do norte de Portugal Gado Minh ports oe For atualmente se chama Guimaraes. Situa-se na provi” antiga cidade real e de Peregrinacao, a ee IntRODUGAO GERAL / DIALOGO COM GUIMARAES ROSA 3 JGR: Sim e nao. £ necessério salientar pelo menos que entre nés 0 “regiona- lismo” tem um significado diferente do europeu, e por isso a referén- cia que vocé fez a esse respeito em sua resenha de Grande sertao é muito importante, Naturalmente nao gostaria que na Alemanha me considerassem um Heimatschriftsteller.’ Seria horrivel, uma vez que é para vocé o que corresponderia ao conceito de “regionalista”. Ah, a dualidade das palavras! Naturalmente nao se deve supor que quase toda a literatura brasileira esteja orientada para o “regionalismo”, ou seja, para o sertéo ou para a Bahia. Portanto, estou plenamente de acordo, quando vocé me situa como representante da literatura regio- nalista; e aqui comega o que eu ja havia dito antes: é impossivel separar minha biografia de minha obra. Veja, sou regionalista porque o pe- queno mundo do sertao... GL: Pequeno talvez para o Brasil, nao para os europeus... JGR: Para a Europa, é sem divida um mundo muito grande, para nés, ape- nas um mundo pequeno, medido segundo nossos conceitos geografi- cos. E este pequeno mundo do sertao, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o simbolo, diria mesmo 0 modelo de meu uni- verso, Assim, o Cordisburgo germanico, fundado por alemaes, é 0 co- ra¢ao do meu império suevo-latino. Creio que esta genealogia havera de Ihe agradar. GL: O que importa é que além disso ela é exata. Mas voltemos a sua bio- grafia... JGR: Creio que minha biografia nao é muito rica em acontecimentos, Uma vida completamente normal. GL: Acho que nao é bem assim. Em sua vida vocé passou por uma série de etapas muito interessantes, até mesmo instrutivas. Estudou medicina € foi médico, participou de uma guerra civil, chegou a ser oficial, de- pois diplomata. Deve haver ainda outros fatos, pois estou apenas ci- tando de memoria. JGR: Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que 0 ho- mem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado, Foram etapas importantes de minha vida, ¢,a rigor, esta sucessdo constitui um paradoxo. Como médico conhe- cio valor mistico do sofrimento; como rebelde, o valor da conscién- cia; como soldado, o valor da proximidade da morte... GL: Deve-se considerar isto como uma escala de valores? JGR: Exato, é uma escala de valores. GL: E estes conhecimentos nao constituiram, no fundo, a espinha dorsal de seu romance Grande sertio? Citado em alemao por Guimaraes Rosa. h Joko GUIMARAES ROSA FICCKO Cony, JGR: E sao; mas devemos acrescentar alguns ea te ate aes ain de falar. Mas estas trés experiéncias formaral agora m La : eca demasiadamente simp) mundo interior; e, para que isto nao pare¢ indo a di Ples, queria acrescentar que também configuram meu mui a diploma. cia, 0 trato com cavalos, vacas, religioes € idiomas. : GL: Parece uma sucessio e uma combinagéo um tanto curlosa de mo. tivos. , JGR: Bem, tudo isto é curioso, mas 0 que nao € curioso na vida? Nao deve. mos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de inse. tos contempla os seus escaravelhos. ; Gostaria de concluir que todos esses assuntos enumerados tiveram grande importancia em sua vida: a diplomacia, os cavalos, as reli gides, os idiomas. Vocé goza também de uma fama legendaria: zem que vocé domina muitos idiomas, e que aprendeu alguns deles apenas para poder ler um determinado autor em sua versao original, Sabe-se também que como diplomata e exercendo as funcées de consul geral do Brasil em Hamburgo, vocé provocou Hitler fora das normas da diplomacia, e salvou a vida de muitos judeus... JGR: Tudo isso é verdade, mas nao se esqueca de meus cavalos e de minhas vacas. As vacas e 0s cavalos sao seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida ea vida dos outros.Isto pode surpreendeé-lo, mas sou meio vaqueiro, e como vocé também é algo parecido com isto, compreendera certamente 0 que quero dizer. Quando alguém me narra algum acontecimento tragico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, ver4s muito da tristeza do mundo!” Eu que- ria que 0 mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Entao tudo andaria melhor. | GL: Desculpe, mas relacionado com sua biografia isto nao parece um tan” to paradoxal? GL: JGR: E nao apenas isto, mas tudo: a vida, a morte, tudo 6, no fundo, pare doxo. Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir alg° Para o qual nao existem palavras. Por isso acho que um paradoxo be ree é mais importante que toda a Matematica, pois ela propria tea pats os porque cada formula que o homem pode empreg@! GL: finte ae tentado a chamé-lo o Unamuho da estepe, o Unamuno 4° JGR: E teria razao; Unamuno, Dele herdei minha fortu: um filésofo; sem Unamuno foi uw sim! Unamuno poderia ter sido meu a¥° : ina: meu descontentamento, Unamuno & Pre se equivocam, referindo-se a ele nesse sentid? m poeta da alma; ctiou da linguagem a sua propt® INTRODUGAO GERAL / DIALOGO COM GuIMARAES ROSA 33 metafisica pessoal. £ uma importante diferenca com relacao aos cha- mados filsofos. Além disso, Unamuno inventou também a nivola’ e o nadafsmo; e sao invengdes proprias de um sertanejo. GL: Vocé tem alguma coisa contra os filésofos? JGR: Tenho. A filosofia é a maldicao do idioma. Mata a poesia, desde que nao venha de Kierkegaard ou Unamuno, mas entdo é metafisica. } Mas adiante vamos ter que considerar com mais calma 0s seus con- ceitos filos6ficos, isso que vocé chama de metafisica em seus roman- ces e contos, pois me parece que esta muito ligada ao “homem do sertio”, e com uma parte, pelo menos, do que ha de inédito em suas obras. Mas ainda queria lhe perguntar alguma coisa de sua biografia. Portanto, vamos ficar um pouco mais com ela, com sua pessoa, j4 que tudo isto é muito importante para a compreensio de seus livros. Depois de haver sido médico, vocé participou de uma rebelido, e, de- pois de se tornar novamente legalista, participou da Tepressdo a essa mesma rebeliao; em seguida foi soldado, diplomata e finalmente che- fe da seco para problemas de fronteira do Ministério das Relacées Exteriores, algo parecido com um secretério de Estado. Depois destes antecedentes nada literdrios, comegou a escrever relativamente tarde. O que o levou a se tornar escritor? Em resumo, como chegou a escre- ver, j4 nao muito jovem, Sagarana, seu primeiro livro de contos e que se tornou imediatamente um sucesso sensacional? Conte-me alguma coisa sobre este processo de sua vida. JGR: Bem, antes devo dizer que sua suposicao nao é totalmente certa. Co- mecei a escrever quando ainda era bastante jovem; mas publiquei muito mais tarde. Veja vocé, Lorenz,‘nés, os homens do sertao, somos fabulistas por natureza. Est4 no nosso sangue narrar estérias; ja no’ bergo recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que as vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, € narra est6rias que correm por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertao é a alma de seus homens. Assim, nao é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No Sert4o, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a ndo ser con- tar estérias? A unica diferenca é simplesmente que eu, em vez de conté-las, escrevia./Com isso pude impressionar, mas ainda sem per- seguir ambic6es literdrias. J4 naquela época, eu queria ser diferente dos demais, e eles nao souberam deixar escritas suas estorias. Isto, 6 GL: sella * Argumentando que o conceito usual de “novela” (romance em portugués) nao era sufi- ciemte, Unamuno “inventou” 0 conceito anagramitico “nivola”, escrevendo Niebla. 34 JoAo GUIMARAES Rosa / FiccAo Comper, dé reputagao. £ légico ques sendo erlanga, a Bente se sente entao muito orgulhoso disso/ Eu trazia ee 8 OUVidos atentos, escutava tudo o que podia e comecel a a formar em lend, o ambiente que me rodeava, porque este, em sua esséncia, era € cont, nua sendo uma lenda.|Instintivamente, fiz entéo 0 que era justo, mesmo que mais tarde eu faria deliberada e conscientemente: disse a mim mesmo que sobre o sertdo nao se podia fazer literatura” do tipg corrente, mas apenas escrever, lendas, contos, confissées. Nao é neces. sario se aproximar da literatura incondicionalmente pelo lado intelec. tual. Isto vem por si s6, com o tempo, quando o homem chega a sua maturidade, quando tudo nele se amalgama em uma personalidade propria. Quem cresce em um mundo que ¢ literatura pura, bela, ver- dadeira, real, deve algum dia comecar a escrever, se tiver uma centelha de talento para as letras. £ uma lei natural, e ndo é necessario que atras disto haja ambigoes literdrias, Tive certa vez um professor que fazia tudo menos literatura; entretanto, escrevia contos magnificos. Assim 840 as coisas e assim comecei eu também. Quando mais tarde chegou © tempo em que eu nao quis continuar escrevendo, instintivamente, eu que quis ser “poeta”, comecei a fazé-lo conscientemente. A princi- pio foram poemas... claro, impressiona e GL: Isto quer dizer que comegou sua carreira como lirico? JGR: Nao, tao mal nao foi. Entretanto, escrevi um livro nao muito peque- ® Magma, premiado em 1936 pela Academia Brasileira no de poemas,® que até foi elogiado. Mas logo, e eu quase diria que Por sorte, minha carreira profissional comegou a ocupar meu tem- Po. Viajei pelo mundo, conheci muita coisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escrever simplesmente nado me ocupava mais. Assim se passaram quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente a literatura. E revisando meus exercicios lfricos, nao 0s achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes, Princi- palmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve mane- ja-la na elaboracdo de poemas, pode sera morte da Poesia verdadei- ta. Por isso, retornei a “saga”, & lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos € a vida e nao a lei das tegras chamadas potti- cas, Entdo comecej a’ escrever Sagarana, Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como ja lhe disse; e desde entao nao me inte- Tesso pelas minhas poesias, e raramente Pelas dos outros, Natural ae ps ra Porque éum dado biogréfico, Pois nao acontece4 z ia, eu simplesmente decidisse me tornar escritor; ist Tam este livro tao importante, do que nao era possivel uma comparacao, INTRODUGAO GeRAL / DIALOGO COM GUIMARAES ROSA 35 s6 fazem certos politicos. Nao, veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci- me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia. No meu entender, o que é extraordindrio é a interrupgdo. E velho e conhecido o fato de que o caminho da lirica conduz ao romance. Mas vocé sugeriu que esses dez anos de intervalo foram seus anos de pere- grinacao e aprendizagem, que o Wilhelm Meister’ do sertao reunia nessa época as ferramentas que mais tarde o capacitaram, lingilfstica e tematicamente, a converter-se no maior romancista do Brasil. _ JGR: Nao, nao sou romancista; sou um contista de contos criticos./Meus ! romances e ciclos de romances sao na realidade contos nos quais se unem a ficcdo poética e a realidade. Sei que dai pode facilmente nas- cer um filho ilegitimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeca/ Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma portugués, tal como 0 usamos no Brasil; entre- tanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma préprio, meu, e pode-se deduzir dai que nao me submeto a tirania da gramitica e dos diciondrios dos outros. A gramitica e a chamada filologia, ciéncia lingii{stica, foram inventadas pelos inimi- gos da poesia. | GL: Quem escreve livros como os seus deve permitir que lhe perguntem como se consegue isso. Qual éa origem de seus livros? Existe em prin- cipio uma gag tematica que depois vocé elabora, prepara, ou tem, e isto em seu caso é muito importante, uma idéia lingiifstica 4 qual de- pois é acrescentada uma ac4o? Ou simplesmente vocé inventa uma estéria que depois vai pouco a pouco vestindo com sua prépria rou- pagem lingiiistica? JGR: Acho que nao h nada disso. Nao preciso inventar contos, eles vém a mim, me obrigam a escrevé-los. Acontece-me algo assim como vocés, dizem em alemdo: Mich reitet auf einmal der Teufel,’ que neste caso se chama precisamente inspiracdo. Isto me acontece de forma tao conse- qlente e inevitavel, que as vezes quase acredito que eu mesmo, Joao, sou um conto contado por mim mesmo. E téo imperativo... | GL: Vocé quer dizer que hé uma forca interior que o impulsiona para 0 trabalho. Vocé tem fama de ser um autor terrivelmente trabalhador, cuja aplicacdo é superada apenas por seu tradutor alemao... JGR: (rindo) Meyer-Clason, se estivesse aqui para nos escutar! Pretende sempre que tudo seja feito com muita exatidao. Para ele a literatura é + GL: Wilhelm Meitser, titulo de um romance didatico de Goethe. De repente o diabo me cavalga”. Citado em alemao por Guimaraes Rosa. Joao GUIMARAES Rosa / FicgAo (COMPLETA 36 dade mesmo, ele é um diabo de homem, um génio uma religido. Vert hi r que eu conheso. da tradugdo, o melhor De ard muitissimo quando conhecer GL: Meyer-Clason certamente se alegr ened meee eabie Gad ini io nos sua opinido sobre ele, Mas nao ; tores e traducdes € a possibilidade de traduzir, sobre esse tema em geral teremos de falar mais detalhadamente F aot NG re tor conseguiu me deixar tao nervoso jurante uma J ina descuida, vocé se afasta mesmo um fabulista; mal seu interlocutor sé 4 do tema se este nao Ihe agrada. Mas eu ainda nao o vou libertar de sua biografia e de suas obras, embora pelo jeito vocé nao goste de falar nisso. Por favor, continue a nos explicar o seu proceso de trabalho, pois ¢ interessantissimo. JGR: Vocé, Giinter, parece um professorzinho de escola, invejoso do meu prazer em falar sobre o que eu queria. Continuemos, pois, falando do que nao me parece importante! Se depois me considerarem um char- lato, vocé sera o responsdvel. GL: | Nao vejo nenhum perigo disso, mas assumo plena responsabilidade. JGR: Veja, nés, os escritores, somos uma raga realmente estranha, e eu sou certamente o mais estranho deles todos/Tem raz4o; no estou me elo- giando, quando digo que trabalho duro e aplicadamente. Mas lamen- to que, apesar de todo meu empenho, trabalhe niuito lentam: Sem divida, comeceia escrever no tempo certo, de +t Sa Apesar de ser verdade, iso também € um paradoxo, Nao ane tncee permitir uma morte prematura, pois ainda a lox. Nao me posso tas, muitissimas estérias. Mas nasci em C, inion aa mat Pessoas chegam a ficar muito velhas. mas iburgo, e ld as vezes as Seu sol, fica resistente como carne-s iro € secado por seu pais ¢ até noventa anos. Portanto, sim; Me vonente nheci pessoas de oitenta ¢ eh tera talvez me baste para eu contae iat se adeeha, pois afirmard certamente ‘0 © que queria contar. ‘i e que sou u contar. GL: ters ec Alemanha, mer Vogel? Esta expressio Chervactes aan leitor de seus livros, mn tao éstranhas. Tenho digo-lhe que nao acho suas le nasci no ano de Nek ai lografi; eria me pedir ‘tempo, feria ser cruci ia, sobretudo x 7 Porndo tem princfpig ~~ anos. As Macatee oe jo tem ot ‘Ay i py 7 Ve Tara”. Citado em al Us livros sao aventu: 40 por Gi i ras; para uimaries Rosa pal i ne RT ee yee InTRODUGAO GERAL / DIALOGO COM GUIMARAES ROSA 7 mim, so minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedago de infinito. Vivo no infinito; 0 momento nao conta. Vou lhe revelar um segredo: creio j4 ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava Jodo Guimaraes Rosa. Quando escrevo, repito 0 que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas nao me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de'ser um crocodilo vivendo no rio Sao Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafisica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois sio profundos como a alma do homem. Na superficie sio muito vivazes e claros, mas nas profundezas sao tranqililos e escuros como os sofri- mentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra magica para conjugar eternidade. A estas alturas, vocé j4 deve estar me considerando um charlatdo ou um louco. GL: De modo algum. Penso que esta é a autocaracterizacao mais original que ja escutei. Suas palavras soavam quase como um credo. Serao elas o credo de um sertanejo de Cordisburgo? JGR: Estou adivinhando.seu pensamento! Agora, além de tudo, quer me exigir um credo. Mas eu lhe digo uma coisa: apenas alguém para quem © momento nada significa, para quem, comoeu, se sente no infinito como se’estivesse em casa, 0 crocodilo com as duas vidas até agora, somente alguém assim pode encontrar a félicidade e, 0 que é ainda mais importante, conservar para si a felicidade. Au fond, je suis un so- litaire,'° eu também digo; mas como nao sou Mallarmé, isto significa para mim a felicidade. Apenas na solidao pode-se descobrir que 0 dia- bo nao existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é a minha mistica. GL: Dizendo a verdade: em seus livros vocé nao menciona 0 diabo, o que sempre faz das suas, justamente para demonstrar que ele nao existe, ou melhor, que pode ser eliminado, vencido, destrocado? JGR: Isto poderia ser absolutamente certo. Provavelmente, eu seja como meu irmao Riobaldo. Pois o diabo pode ser vencido simplesmente Porque existe o homem, a travessia para a solidao, que equivale ao infinito. Mas vocé, Lorenz, é muito astuto; vocé me faz falar e falar, e me leva pela mao exatamente onde me deseja fazer chegar. Ja sei qual Serd a sua proxima pergunta. GL: Pois agora estou curioso. '® “No fundo eu sou um homem solitério”. Frase de Mallarmé, citada em francés por Guimaraes Rosa. Re eer Bie eas Mee AU Re eae 38 JOAO GUIMARAES Rosa / FicGAO COMPLETA JGR: Eu também. Vocé quer me comprometer com a palavra creio e por isso evocou o diabo, cuja presenga, titil em meus livros, nao posso ne- gar. Vocé quer me seduzir para que eu lhe faga confissoes. GL: Adivinhou. Pois entdo, por favor, confesse! f r JGR: Absolutamente nao consigo entender por que me deixo extorquir as- sim por vocé, S6 agora me ocorre o seguinte: aqui esto discutindo dois vaqueiros. Vocé é um, jé disse por escrito! e torno a repetir ago- ra, E quando dois vaqueiros discutem, ou ha cabecas quebradas ou confissdes. Os vaqueiros sao assim. ) b y GL: Felizmente sei que os vaqueiros gozam de sua simpatia e por isso es- tou disposto a ser vaqueiro. Mas, por favor, diga-me de uma vez, a rigor, o credo pelo qual vocé escreve. JGR: Sim, veja, penso desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capa- cidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir 4 verdade e aos homens. Conheco meu lugar e minha tarefa; muitos homens nao conhecem, ou chegam a fazé-lo quando é dema- siado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e so espero fazer justica a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética sio uma mesma coisa. Nao deve haver nenhuma diferenca entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invengao dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. Acho isso ridiculo, A vida deve fazer justica a obra, e a obra a vida. Um escritor que nao se atém a esta regra nao vale nada, nem como homem nem como escritor. Ele esta face a face com 0 infinito e é responsdvel perante o homem e perante a si mesmo. Para ele nao existe uma instancia superior. Para que vocé nao tenha de me interrogar a esse respeito, gostaria de explicar meu com- Promisso, meu compromisso do coracao, e que considero o maior CarpPromisso possivel, o mais importante, o mais humano e acina de pote eee companion ge 0 hm ete credo, et Estas asleis de minha vida, de men epee nae a8 reco lidade. A elas me sinto obri d alae feabalh, deminiia responssh mo coma melhor by ay Por elas me guio, para elas vivo. Mes- que tudo que possa an eee Boma fazer mais confissdes, por- ky pena ser chamado de confises na vida esté contido af, ou nao vale a : Depoi i Te eee een inte eu francamente J4 nao esperava que esta poderia ser uma re; ha i Jena feito, e creio finceramente Bra basica da literatura, se o homem nao s€ "Na dedicatéria de seu Grande sertdo: veredas, ee ae eM ee e a AR en ne ate tence ee ie crassa Tt chet at INTRODUGAO GeRAL / DIALOGO COM GUIMARAES ROSA 39 opusesse a ela. Mas, 0 que pensa de seus colegas? Atualmente fala-se tanto em compromisso, afirma-se que nao existe autor sem compro- misso. Mas tenho a impressdo de que principalmente na América La- tina — na Europa, Sartre pés um pouco de ordem neste assunto — muitos autores, naturalmente nao todos, freqiientemente confundem © compromisso para com 0 homem com o compromisso para com um partido, uma ideologia. Entre os grandes autores do continente isto é sempre compensado pela sua poténcia literdria, e entre os de segunda e terceira categoria vocé sabe como é quase sempre. JGR: Nao preciso ser diplomata de carreira para me negar redondamente a fazer declaraces respondendo sua pergunta. Vocé me induziu a fazer confissdes e agora pretende levar-me para um terreno perigoso. Te- nho de conviver com meus colegas e néo me agrada guerrear por as- suntos aos quais nao atribuo a minima importancia. Portanto, nao es- Pere que eu qualifique meus colegas. Ademais, e se quiser pode tran- qiilamente considerar isso como um delirio de grandeza, eu me contento com o que é meu. Nao me agrada julgar meus colegas. Sim, portanto, nao insista; ¢ melhor falarmos de Dostoievski, Goethe, Tolstoi ou de Schweijik, de Flaubert e Balzac, mas nao de meus com- patriotas escritores. Um autor jamais deveria falar de outros autores, mesmo que nao 0 aprecie. Disto nao resulta nada de razodvel; pene- tra-se em mundos estranhos, e isto nao conduz a nada. Bem, esta é uma opiniao que deve ser respeitada. Mas qual é, no fun- do, sua opiniao acerca da critica literaria em rela¢do as suposigdes que vocé mencionou ha pouco? Deve o critico constantemente, para con- servar a sua propria terminologia, “entrar em mundos estranhos”? JGR: A tarefa do critico é diferente da do autor. Além disso, nao tenho uma opinido muito favordvel sobre a critica, pelo menos sob esse aspecto. Esta nao é uma declaracao de princfpios; refere-se mais ao conceito que muitos criticos tm, ou nao, de seu trabalho. No come- ¢0 de minha carreira varios deles me atacaram sem absolutamente me compreenderem, pois me lancavam ao rosto que meu estilo era exaltado, que eu permanecia no irreal, e assim toda espécie de reté- tica. Nao é posstvel dialogar com pessoas que manifestam por escrito a sua incompeténcia, pois lhes falta a condigdo basica para o did- logo: o respeito mituo. Por isto 0 que essa gente escreve ndo me perturba; simplesmente nao leio mais jornais. E por favor, nao me interprete mal: um critico que me trate duramente mas baseado na compreensao, que apresenta razées, pode continuar sendo meu interlocutor e amigo, por maiores que sejam as diferengas de opiniao que nos separem. Mas aquele que escreve tolices é macante. Eu odeio a tolice. GL: 40 GL: JGR: GL: JGR: Tola nao éa palavra exata. Quero e: GL: JoAo GuimarAes Rosa / FiccAo COMPLETA Apés este protesto em que transparece @ raiva, seria ioe e onset qiiente pedir-lhe sua opinido sobre como deveria ser 0 “cr itico ideal”. Bem, um critico que ndo tem o desejo nema capacidade de completar junto como autor um determinado livro, que nao quer ser intérprete ou intermedidrio, que nao pode ser, porque lhe faltam condicoes, de- veria se abster da critica. Infelizmente a maior parte deles nao faz isso, € por isso acontece que téo poucos deles, geralmente, tem algo aver com a literatura. O que tal critico pretende, em resumo, € vingar-se da literatura, ou sabe Deus que motivos 0 impulsionam. Talvez como passatempo. £ um palhaco, ou um assassino. A critica literéria, que deveria ser uma parte da literatura, s6 tem razao de ser quando aspira acomplementar, a preencher, em suma a permitir 0 acesso aobra. S6 muito raramente ¢ assim, e eu lamento, pois uma critica bem enten- dida é muito importante para o escritor; ela o auxilia a enfrentar sua solidao. Mas raramente é assim, quase sempre a critica nao tem valor nem interesse, é apenas uma perda de tempo. Uma critica tal como ewa desejo deixaria de ser critica no sentido préprio, tanto faz se julga autor positiva ou negativamente. Deve ser um didlogo entre o intér- prete e o autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes. Ela exerce uma fungao literaria indispensavel. Em esséncia, deve ser produtiva e co-produtiva, mesmo no ataque e até no aniquilamento se fosse necessario, Apés seu credo.do escritor, vocé quis formular seu credo do critico, Esem divida tem razdo, Ha exemplos suficientes de critica negligen- te, inadmissivel, S6 nao sei se realmente a maioria dos criticos é tio tola como vocé pensa. xplicar melhor: 0 escritor, o bom escritor, é um arquiteto da alma. O mau critico, irresponsdvel ou es- tupido, neste.caso ¢ a mesma coisa, é um demoli dedicado aembrutecer, a falsificar as palavras a eases de; pois acha que deve servir uma verdade s6 conhecida por ele, ou aaa ate i. penne: seus Fa iepape Oescritor, natural- e 0 bom es »€um descobridor; 0 mau critico é seu ini- anise, ponies ie dos descobridores, dos que procuram riuiuden ae es 0) lombo deve ter sido sempre ildgico, ou entao nao Cescoberto a América. O escritor deve ser um Colombo. Mas 0 instrufdo pertence 4quela ca- santa lgica, O bom ena Por ser contréria a sua sacros- : rgiCa, ico, ao i timoneito assim ous ate contrario, sobe a bordo da nave como Vocé exige muito, Mas o, Tromancista? Falou de sua queria impedir a partida in exige de si mesmo como autor, como t1ga¢4o para com os homens ¢ isto é um INTRO! DUGAO GERAL / DIALOGO COM GUIMARAES ROSA 41 pouco vago, deveria ser formulado com maior exatiddo, vocé tam- bém nao acha? JGR: Como romancista tento o impossfvel. Gostaria de ser objetivo, e ao GL: mesmo tempo me olhar a mim mesmo com olhos de estranhos. Nao sei se isso é possivel, mas odeio a intimidade, Novamente um paradoxo magnifico: “eu tento o impossivel”. Entre- tanto deveriamos ser ainda mais concretos. Temos essa questao do compromisso, que talvez pudéssemos utilizar nesse sentido, Como vocé definiria, por exemplo, sua concepgao do dever de um autor, diferenciando-a de Asturias ou, naturalmente, de Jorge Amado? JGR: Gosto de Asturias, porque se parece tao pouco comigo. Este homem é um vulcdo genial, uma excecdo, segue suas préprias leis. Nés nos en- tendemos e nos admiramos, porque somos muito diferentes um do JGR: Q i! JGR: GL: JGR: outro, Mas ele vive de um modo que gera perigo: ele pensa ideologi- camente. E Jorge Amado? Vocé nao acha que este grandioso fabulista e amigo dos homens também pensa ideologicamente? ‘Sem duvida, ele também é um idedlogo; mas sua ideologia me é mais simpatica que a de Asturias. Asturias tem algo do distanciamento in- corruptivel de um sumo-sacerdote; sempre enuncia novos dez man- damentos. Isto é admirdvel, mas nao encanta. As palavras de Astu- rias sao palavras de um pai, de um patriarca que emite sentengas no sentido do Antigo Testamento, Amado é um sonhador, e sem diivida alguma um idedlogo, mas adota a ideologia do conto de fadas com suas normas de justica e expiagao. Amado é um menino que ainda cré no Bem, na vitéria do Bem; defende a ideologia menos ideoldgica e mais amAvel que j4 conheci, Asturias é a poderosa voz do juizo fi- nal. Amado vai dando pinceladas a mais nao poder, e certamente quer mandar ao diabo muitas coisas, mas o faz de forma tao encan- tadora, que nos convence com maior razdo. Asturias se expressa com palavras de ferro, Esta diferenga nao é resultado, digamos assim, de unidades de expe- riéncia de diferentes graus? Atrés dessa definicao também se oculta muito de politica. E exatamente isso! /A politica é desumana porque dé ao homem o ¢ mesmo valor que uma virgula em uma conta. Eu nao sou um ho- mem politico, justamente porque amo o homem. Deverfamos abolir a politica, Foi isto que em Hamburgo levou vocé a se arriscar perigosamente, arrebatando judeus das maos da Gestapo? Foi alguma coisa assim, mas havia também algo diferente: um diplo- mata é um sonhador e por isso pude exercer bem essa profissdo. ee ny pin end ee eg he re JoAo GUIMARAES ROSA 1 FicGAo COMPLETA i i de remediar o que 08 politicos arruina- diplomata acredita que po! i aa Por isso agi daquela forma e ndo de outra. E Cra Per isso mesmo gosto muito de ser diplomata. E agora o que houve em Flam- tar mais alguma coisa. Eu, 0 homem do ser- burgo é preciso acrescentar mais ) tao, rag posso presenciar injusti¢as. No sertdo, num caso desses ime- t so nao era possivel. Precisa- iatamente a gente saca o revélver, ¢ ld is: c : vel ELECIs id por ‘Bs idealizei um estratagema a ee e ree ina tao perigoso. E agora me ocupo de problemas de limites de fronteiras e por isso vivo muito mais limitado. GL: Nao estou muito convencido de que seus colegas, neste caso seus co- legas diplomatas, aprovardo incondicionalmente esta defini¢ao. ; JGR: A maioria deles, que ndo sao verdadeiros diplomatas mas apenas poli- ticos frustrados, vai me considerar louco. Espero que vocé também nao me considere assim. Mas eu jamais poderia ser politico com toda essa constante charlatanice da realidade. O curioso no caso é que os politicos esto sempre falando de légica, razo, realidade e outras coi- sas no género e ao mesmo tempo vao praticando os atos mais irracio- ) nais que se possam imaginar. Talvez eu seja um politico, mas desses que s6 jogam xadrez, quando podem fazé-lo a favor do homem. Ao contrario dos “legitimos” politicos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou escritor e penso em eternidades. O politico pensa ape- nas em minutos. Eu penso na ressurreigdo do homem. GL: Parece que estamos novamente nos afastando do nosso tema. E por outro lado creio que nos aproximamos bastante do ponto central, pois © que voce disse h4 pouco foi também como sertanejo, embora no fundo se referisse a qualidades de cardter. Permito-me supor que um Psicélogo poderia tirar muitas conclusdes disto. Em que reconhece, meena uals regras voce julga uma qualidade de cardter do ho- JGR: Pode-se conhecer faclliscnie atten Pere nd ae imudntémn cori o idionicd ter de um homem pela relacdo que *_Penso que Kari Kraus disse-algo parecido, JGR: ae Flaubert e Stendhal. Sio muitos Os que pensaram desta GL: “O homem é seu estilo”? JGR: Sim, mais ou menos, Isto certamente vai Pi dade da vida. Tamb: estilo. Elegancia demasiada é suspeita, Nao, Considero o idioma como uma dade € capacidade de senti x entir minha fé no futuro de meu alec Ocarater do homem € seu estilo, sua linguagem. arecer doutrinério; entretanto é uma simples ver- eferir 4 elegancia ou selecao do Porque encobre um vazio. Nao; metdfora da sinceridade. Sinceri- © homem so os fundamentos dé O brasileiro, até mesmo no sentido ne tana InTRODUGAO GERAL / DIALOGO COM GUIMARAES Rosa 43 filoséfico, fala com sinceridade. Ele ainda deve criar sua propria lin- guagem. Isso também o obriga a pensar com sinceridade. GL: Asinceridade, no que se refere ao escritor, tem ainda outra face. Mui- tos autores que se consideram comprometidos, alguns deles comu- nistas, sentem-se confortaveis, pensando que seus livros fazem cres- cer constantemente suas contas bancarias. Acho que esta contradi¢ao também pertence ao capitulo escritor e politico, ou melhor, ao que vocé colocou como escritor e deslealdade. JGR: E verdade. Casos assim existem. Até mesmo autores famosos partici- pam deste jogo, e vao tao longe que chegam a diminuir 0 éxito de seus livros para nao dar a impressao de terem ganho dinheiro com eles, como se isto fosse motivo de vergonha. Quanto a mim, ao con- trario da maioria dos meus colegas, nao me envergonho em admitir que Grande sertao me rendeu um montao de dinheiro.\Nao me inte- ressa o dinheiro: venho de um mundo onde ele nao adianta muito; la se necesita de pao, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio de troca, Naturalmente, nao fico infeliz quando tenho _dinheiro sufi- ciente para viver como quero. Mas nao nego esse fato.\A esse respei- to, quero dizer uma coisa: enquanto eu escrevia Grande sertao, mi- nha mulher sofreu muito porque nessa época eu estava casado com 0 livro. Por isso dediquei-o a ela, para lhe agradecer sua compreensao e paciéncia. Vocé deve saber que tenho uma mulher maravilhosa. Como sou um fanatico da sinceridade lingiiistica, isto significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto todo o dinheiro gan- ho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele, Nao necessito dele, tenho meus vencimentos; uma verdadeira mulher sempre sabe encontrar utilidade para o dinheiro, tanto no sertao como no Rio, Pode-se achar precipitada esta atitude, principalmente, quando depois 0 livro obtém grande éxito. Mas uma dedicatoria é uma promessa, e devemos cumprir nossas promessas. _ GL: Sem duvida, sua senhora ser4 invejada por muitas esposas de escrito- : res, Nesta acdo deve ter influido também o seu cardter de sertanejo, que é generoso, liberal. Até mesmo nos, estrangeiros, podemos notar isso em sua hospitalidade. Mas o sertanejo também é um homem sonhador. Tem muito tempo para pensar e matuta muito; freqiien- temente é a tinica coisa que pode fazer. Vocé é um pensador, um mistico? 3 JGR: Sao duas perguntas. Sou mistico, pelo menos acho que souj Que seja também um pensador, noto-o constantemente durante meu trabalho, €.ndo sei se devo lamentar ou me alegrar com 0 fato. Posso permane- cer imével durante longo tempo, pensando em algum problema e es- perar, Nos sertanejos somos muito diferentes da gente temperamental eae eae JOAO GUIMARAES Rosa / FICGAO COMPLETA do Rio ou Bahia, que nao pode ficar quieta nem at pate Ses tipos especulativos, a quem o simples fato de medita! ii a Gostarfamos de tornar a explicar diariamente todos os en 1 s do mundo. Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer. E por isso que normalmente nao costumo conversar se ne nao posso pensar tranqililamente € até o final. id Naat a primeira vez, me induzir a fazer 0 contrario. E também choco meus livros, Uma palavra, uma tinica palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias. Para isso, ndo preciso forgosamente de um escritério. Gosto de pensar cavalgando, na fazenda, no sertao; ¢ {quando algo nao me fica claro, nao vou conversar com algum douto “professor, e sim com algum dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que so todos homens atilados. Quando volto para junto deles, sinto-me vaqueiro novamente, se € que alguém pode deixar de sé-lo/Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; dai se- riam escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pen- sa; 0 ato de escrever j4 é a técnica ea alegria do jogo com as palavras. GL: Eassim chegamios ao capitulo que deve ser, queira ou nao, o capitulo central de um diélogo com vocé: sua relagao com a lingua. Lembro- me de haver lido em algum lugar que sua linguagem apenas Jongin- quamente tem algo a ver com as linguas vivas ou mortas. Ha em seu pafs um professor que afirmou ter sua linguagem chegado a tal pon- to, que a futura historia da literatura teré de cit4-la como literatura de um tinico homem. Fizeram-se numerosas brincadeiras sobre isso. Uma delas: um tradutor, para se recomendar a um editor, declara oe certa quantidade de linguas vivas e mortas, inclusive a de SHlnDibsy perPaue he oN © gosto pelos paradoxos deve haver ver alguma verdade nelas. Sua lingua a ee pas ote eg ees inguagem, sem divida, é algo unico, algo onde se pode cair e quebrar os dentes; mas, principalment Seen: ee de ler seus livros, a gente actedita te desabtets undo completamente novo, = . ‘ce tei et a lingua, sua tinpiapee pier reat ree ben Ser ate aia eee algum dificil de explicar. Olhe, nao “a lingua Guimaraes Rosa”, ~ eons Pelo que deram de chamar ples. Muitos dos que terete que é uma coisa completamente sim- sustentando que abordaram fds tratados geniais sobre este assunto, a tactonalitente, SaHSUARE enue muito “logicamente”, mui- . -se, falando de meus livros, de modo = en Sg creak Meyer-Clason, vocé e alguns outros deram, et eae Teen muito mais que esses doutos senhores que se entalmente. Meyer-Clason nos textos em que me

Você também pode gostar