Você está na página 1de 14
O paraiso dos outros Maria de Lourdes Urban Kleinke" Nelson Ari Cardoso" Clovis Ultramari™ Rosa Moura™” Este trabalho tem como objetivo estudar o espago configurado pela relacdo de trés cidades em fronteira internacional: Foz do Iguacu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazi (Argentina). A partir de uma leitura do espago e da andlise de dados secundarios, pretende-se discutir a submissiio da esfera local (aqui entendida como © territério de cada uma dessas cidades) diante de uma dinamica regional (o complexo dessas trés cidades) particularizada pela inter- nacionalidade dessa agremiago e por uma expressiva populacio flutuante. ‘Na confluéncia dos trés paises, 0 espago € cortado pelos rios Paran4 e Iguacu, fronteiras naturais transpostas por duas pontes: a Ponte da Amizade, que funciona para Foz do Iguacu e Ciudad del Este como uma avenida de um mesmo espaco urbano; ¢ a Ponte TancredoNeves, que liga Foz do Iguacu a Puerto Iguazi, constituindo um eixo em que parques nacionais do Brasil e da Argentina compoem uma barreira institucional & continuidade da ocupagao. Essas pontes funcionam ora como facilitadoras do acesso a esses centros, ora como instrumentos de bloqueio. Ao mesmo tempo em que viabilizam os fluxos diretos, filtram ou estancam esse movi- mento conforme mudam as politicas € os interesses nacionais, que Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 23 * Sociloges, pesquisadores do TPARDES. "* Arquiteto, pesquisador do IPARDES. 9° Geos rapa, pesquisadora do IPARDES. (0 PARAISO DOS OUTROS acabam por formatar a comunicagao entre as partes desse espaco continuo ao impor 0 controle nos seus territérios particulares. ‘O espaco em andlise destaca-se pela presenga de alguns icones universais: as Cataratas do [guagu, localizadas na fronteira Brasil/Ar- gentina, dentro do Parque Nacional do Iguacu, um dos mais impor- tantes fenémenos turisticos naturais do mundo; uma drea de reserva florestal com 170 mil ha, tombada pela Organizacao das Nagoes Unidas para Educagdo ¢ Cultura (Unesco) como patriménio da hu- manidade; a hidrelética de Itaipu e seu gigantesco lago formado pelo tTepresamento das aguas do rio Parana (projeto binacional entre Brasil ¢ Paraguai que constitti a maior central geradora de energia do mundo); ¢ 0 pélo comercial de Ciudad del Este, um dos mais impor- tantes do mundo, compardvel ao de Miami e Hong Kong, que oferece grande variedade de produtos importados segundo a revista Forbes, Ciudad del Este é 0 terceiro mercado mundial, movimentando apro- ximadamente 14 bilhGes de délares por ano. Aatratividade desses elementos garante a permanénciade uma populagao flutuante por vezes maior que a populacdo residente nas trés cidades, tomando complexas as relagdes cotidianas daqueles que “ndo partem no dia seguinte”. $6 em 1994, 4.500 mil turistas passa- ram por Foz do Iguacu, dos quais apenas 900 mil (20%) visitaram as Cataratas — uma participago que vem decrescendo diante do turismo de compras. ‘Ao se analisar este espaco na individualidade da dimensio local de cada uma das trés cidades que o compoem, percebem-se heterogeneidades sécio-econémicas, diferentes graus de autonomias diante de centralizacées politicas e administrativas, consolidagdes da configuragao urbana em distintos padres, assim como niveis diver- sificados de relagGes com seus respectivos paises. Pretende-se a seguir discutir a complexidade dos mecanismos de conciliagdo de interesses pactuados localmente para viabilizar a gestdo dessa realidade comum no que se refere a seus conflitos continuos ¢ mutantes — exacerbados pelas pressdes externas, préprias de dreas de fronteira, ¢ agravados pela pujanga e caracteristicas do comércio ali estabelecido. A DIMENSAO LOCAL Foz do Iguacu Foz do Iguacu é um municipio que concentra 98,03% da popula¢ao total (190 mil habitantes) na 4rea urbana. Situando-se entre 24 Rev. parana. desenvolv, Curitiba, n.88, maia/ago., 1996, p.23-36 aria de Lourdes Urban Kleinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Ultramari ¢ Rosa Moura as cinco maiores cidades no ranking-da populacdo urbana do Estado, divide com Cascavel, distante aproximadamente 100 km, a polariza- ¢40 do extremo-oeste do Parand. Entre 1970 e 1980, com as obras da hidrelétrica de Itaipu, sua populacdourbana cresceu expressivamente (17,53% ao ano). Entre 1980 e 1991, com o término das obras, embora tenha reduzido essa taxa, sua popula¢ocontinuou crescendo (6,27% a.a., 0 dobro da média do Estado no perfodo) a um grau compardvel ao dos grandes municfpios periféricos da area metropo- litana de Curitiba. E um dos maiores pélos geradores de renda do Estado, participando com 6,6% do valor adicionado total, advindo principalmente do valor gerado com aproducao de energia por Itaipu. Os atrativos da regido fazem com que um contingente da ordem de 12.300 pessoas/dia passe pela cidade, constituindo uma categoria peculiar de populacao flutuante, que se estabelece pela renovagao diéria de visitantes numa intensidade continua, compondo um adicional constante de popula¢Zo presente no municipio. Esse aspecto distingue Foz do Iguacu de outras cidades que convivemcom oafluxo de visitantes. # 0 caso das cidades balnedrias, cuja populacao flutuante caracteriza-se por uma marcante sazonalidade, exige uma prestagdo de servicos e uma oferta de infra-estrutura urbana — que permanecem ociosas durante um grande periodo do ano ~e estabe- lece vinculos com a cidade, seja na condigio de proprietirios de iméveis, seja na identidade que cria com a cidade. No caso de Foz do Iguagu, a populagao flutuante nao estabelece vinculos de posse, tampouco de identidade, Desse contingente de populagao flutuante, a grande maioria nio permanece na cidade por mais de um dia. Desembarca na cidade pela manhé, atravessa a ponte para fazer as compras e retorna para embarcar A noite, voltando, muitas vezes, a longinquos estados do Pafs. Esse tipo de afluxo acarreta demandas — diferentes daquelas dos moradores — que exigem respostas imediatas, a despeito da constante tentativa de isengao do poder municipal com relacio a esse problema. Assim, o poder municipal se vé obrigado a inverter recursos a demandas de uma populagio que oferece um baixo retomno financeiro ¢ nenhuma compensa¢ao em termos de apoio politico/eleitoral. Ve- rifica-se grande dificuldade em compatibilizar 0 atendimento as demandas estruturais dos moradores com as pressGes por atengao imediata dos visitantes, sem desgastar sua base de sustentacao elei- toral. Esse cendrio exige maior ateng3o do administrador local na gestio dos interesses, muitas vezes antagénicos, de uma populagio que ndo mora na cidade. Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.88, maiolago., 1996, p.23-36 25 (0 PARAISO DOS OUTROS Exemplo marcante do impacto dessa popula¢ao flutuante usu- ‘ria da infra-estrutura urbana € o envelhecimento acelerado do siste- ma vidrio, causado pela intensa circulacao de 6nibus que transportam ‘os “compristas”. Cabe ao poder piiblico nao apenas prover a manu- tengo desse sistema, mas igualmente possibilitar a sua adequaco, submetendo-se a interesses dos visitantes. A estrutura disponivel no terminal rodoviario também é um exemplo da inversao de recursos para os “outros”: o crescente afluxo de passageiros, que ndo se instala na rede hoteleira, exige a diversi- ficagdo e a qualificagio da oferta de servigos coletivos de apoio dentro do terminal para cumprir minimamente as fungdes de hospedaria de passagem. O refiexo desse movimento continuo pode ser avaliado pela gravidade dos indices sociais, como prostituicao infantil, uso e tréfico de drogas — problemas comuns em 4reas de fronteira por ser um espago que facilita a fugae dificulta a ago da policia, impossibilitada de agir em territ6rio vizinho. No caso de Foz do Iguacu esse aspecto se agrava devido ao répido crescimento demogréfico, fundamentado em acontecimentos mais uma vez externos a sua autonomia. A construgao de Itaipu entre 1975 e 1985 fez com que a populagao crescesse de 34 mil para 136 mil habitantes, gerando 50 mil empregos diretos ¢ um mimero elevado de empregos indiretos. No entanto, a oferta de apenas 1.300 moradias e disponibilidade de infra-estrutura € servigos somente aos bairros habitados pelos barra- geiros da Itaipu Binacional provocaram déficits, especialmente nos bairros periféricos que se avolumaram na cidade. Ressalte-se que entre 1980e 1994, a prefeitura concedeu 9.055 alvaras de construgao, incorporando & cidade 4.260.000 m*. Com o fim da obra, grande mimero de ex-barragistas permaneceu na cidade sem encontrar em- prego em outras obras. Recentemente, uma reviso no quadro funcio- nal da usina provocou novas demissées, agravando ainda mais 0 problema social, jé de dificil enfrentamento pelo poder municipal. Evidentemente, aspectos positivos também advém desta popu- Jago flutuante. Dos 70 mil habitantes economicamente ativos, 35 mil trabalham em atividades direta ou indiretamente ligadas a0 turismo de compras. Percebe-se também a dinamizagao de segmentos do comércio local, principalmente 0 de pequenos lojistas, pequenos restaurantes e lanchonetes ~ um comércio que se adapta As necessi- dades de localizacao e & reduzida disponibilidade de gasto do consu- midor. 26 Rev. parana. desenvolv,, Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 Maria de Lourdes Urban Kleinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Ultramari « Rosa Moura Os ajustes feitos pelos diversos setores de Foz do Iguacu para adequar-se 4s demandas do consumidor externo sio imimeros. O sistema hoteleiro, construido fundamentalmente com incentivos go- vernamentais, j4 no se sustenta atendendo apenas os héspedes tradicionais, mais voltados ao turismo. Recentemente, com o incre- mento do profissional informal que revende produtos importados, um novo padrao de servico de hospedagem € oferecido, dirigido ao comprista que passa o dia mas nao pernoita, ou que pernoita mas tem poder aquisitivo limitado e menor grau de exigéncia. Dos 48 hotéis clasificados pela Embratur, 36 enquadram-se nas categorias de 1a 3 estrelas, mais compativeis com esse tipo de visitante. Além destes, 142 hotéis sem classificagao estao disponiveis na cidade, compondo uma rede hoteleira consideravel, mesmo se comparada com outros importantes pélos turisticos nacionais. Apesar dessa disponibilidade de servicos, 0 balango entre o que seria gasto no hotel e o que poderia ser adquirido com esse valor no mercado de importados faz com que a opgio do consumidor seja mesmo a compra. Quanto a rede hoteleira de alto padrio, voltada sobretudo a receber os turistas que vo as Cataratas, verifica-se uma demanda comparativamente bem menor, seja por localizar-se num ponto tu- ristico isolado de um circuito maior, seja pelo prego do transporte aéreo, que seleciona o niimero de héspedes. Parao comprista, mesmo diante de uma incipiente oferta de v6os charters, 0 preco da passa- gem aérea ainda no é acessivel, dada a reduzida margem agregada na revenda dos produtos em outros mercados, Foz do Iguacu, por seus aspectos particulares, conta com: elementos que 0 colocam em situagdo privilegiada em comparagio a outros municipios do Parand. A presenca de parte do Parque Nacional do Iguagu e de parte da represa de Itaipu no municipio garante um acréscimo de receita, decorrente de legislagdes de com- pensages financeiras. Na transferéncia estadual do ICMS, é a exis- téncia de areas de preservacio ambiental que lhe confere um adicional significativo na partilha de recursos. Além disso, a area de alagamento para fins de produgao de energia elétrica por Itaipu é responsével por outra fonte de compensagio financeira, oriunda da lei dos royalties — um beneficio que se repete nos outros municipios da “costa-oeste” paranaense. A despeito de tais beneficios e do crescimento do mimero de empresas instaladas entre 1991 e 1994 (de 4.970 para 7.007, respec- tivamente), o municipio nao consegue destacar-se no quadro da crise econémica nacional. Seus repasses federais passaram de US$ 57,17 Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 27 0 PARAISO DOS OUTROS mil em 1991 para US$ 45,37 mil em 1993, ea arrecadacao de ICMS reduziu-se de US$ 21,65 mil em 1991 para US$ 12,43 mil em 1994. Outro aspecto que a beneficia € 0 fato de Foz do Iguacu ter sido, repetidamente, objeto de planejamento através de planos ¢ programas dos governos do Estado e da Unio — caracteristica que parece ser comum a outras cidades de fronteira. So exemplos disso Programa parao Desenvolvimento do Oeste do Parand, implantado pelo governo federal como suporte & construcdo de Itaipu, os intime- ros planos setoriais, sobretudo na rea de turismo e, mais recente- mente, a incluso da chamada Costa-Oeste como um programa do governo do Estado. Foz do Iguacu € hoje um entreposto, com 400 exportadores empregando 7 mil trabalhadores. Vende ao Paraguai autopegas, confecgdes, produtos hortigranjeiros e varias mercadorias de super- mercados locais. No entanto, nao so otimistas as perspectivas de seu futuro imediato. Com a globalizacao da economia, os comerciantes paraguaios passam a ter como op¢ao a negociagao direta com as grandes empresas importadoras brasileiras, no restringindo-se mais a intermediac’o de Foz do Iguacu. Concomitantemente, adefasagem cambial provocada pelo Plano Real vem desfavorecendo as exporta- ‘ges brasileiras. Como resultado ja é possivel verificar o fechamento de intimeras empresas exportadoras em Foz do Iguacu. Algumas transferem-se para Assun¢do (Paraguai), estabelecendo-se no comér- cio importador de produtos brasileiros. Com 0 Meroosul, a previso € de um desaquecimento entre 50% e 70% do comércio local, acirrando 0 caos social e o crescimento da violéncia urbana. Puerto Iguaza Puerto Iguazu surge como cidade de fronteira organizada inicialmente a partir de um atracadouro que permitia a ligagZo com © lado brasileiro. Seu crescimento se deu sobre o potencial turistico das Cataratas, de seu Parque Nacional e, evidentemente, do comércio de fronteira. Esse comércio, diferentemente do praticado em Ciudad de] Este, fundamenta-se em produtos nacionais, uma vez que a legislaco argentina (muito parecida com a brasileira) sempre prote- geu a sua economia, favorecendo, em particular, o setor de alimentos. A intensidade de tal comércio varia de acordo com as diferengas cambiais que, em determinados momentos, favorecem o comprador brasileiro. O fato de ndo haver um volume como o observado em Ciudad del Este fez com que Puerto Iguazi mantivesse uma confi- guragio urbana mais harménica, de fungdes diversificadas, com uma 4rea comercial bem definida, compatibilizando, enfim, os interesses 28 Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 Maria de Lourdes Urban Kleinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Ultramari e Rosa Moura de quem compra, de quem visita ¢ de quem habita. E importante questionar se essa apropriacdo urbanistica se confirmaria mesmocom uma explosao de seu comércio local aos moldes do observado no lado paraguaio. No momento, Puerto Iguazii conta com um movimento comer- cial de baixo volume de negécios, sofrendo os efeitos da valorizacao do austral ¢ dependendo de um comprador disposto a gastar ali o que sobrou de suas compras em Ciudad del Este, ou daquele visitante que se dirigiu ao lado argentino das Cataratas e acaba por conhecer a cidade. Para incrementar esse movimento é fundamental o marketing das trés fronteiras e a oportunidade de visitar um segundo pais. O volume dessas visitas, evidentemente, é muito pequeno quando com- parado com o de Ciudad del Este. ‘A recente instalacio de um novo cassino ¢ os reflexos do aumento do turismo em nivel mundial poderao contribuir para aumento desse volume. Ciudad del Este ‘A zona franca de Ciudad del Este, criada em 1980, tormou-se rapidamente importante pdlo comercial internacional. De seus 133.893 habitantes,’ o que significa a segunda maior aglomeragao do pais, 95% trabalham no comércio de produtos importados, sendo 15 mil mesiteros ou ambulantes. Nesse setor, 8 mil brasileiros dividem com os paraguaios os postos de trabalho. Outros 17 mil brasileiros dedicam-se 4 economia informal de sustento ao comércio de impor- tados. ‘A urbanizacio de Ciudad del Este caracteriza-se por uma ocupagio das ruas de comércio iniciada a partir da cabeceirada ponte, que une a cidade ao lado brasileiro. Isso confirma uma estruturagio que foi comandada por um rapido aumento do volume do comércio intemacional, na qual nenhuma ago do poder municipal conseguiu se impor ao desenho formatado pelo interesse desse mesmo comér- cio, multiplicado por pequenos pontos de venda a varejo. E desne- cessdrio afirmar que tal ocupagio ocorreu independentemente de qualquer limitago imposta por seu substrato natural ou por raciona- lidades de um modelo técnico-urbanistico. A valorizacao dessa area como mercado atraiu imigrantes como se fosse um eldorado, resul- tando num substancial crescimento demografico (7,9% ao ano na década passada) e fazendo de Ciudad del Este importante pélo urbano num pais de aglomeracdes de pequeno volume demogréfico. Essa distingdo demogréfica € também observada na formatagio de sua Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maialago., 1996, p.23-36 29 "PARAGUAY. Direecién General de Estadisica, Breasiasy Cosas, Cos de problacisny ad Prbireitn Genera de Encuestas y ‘Censor, 192. 259. 0 PARAISO DOS OUTROS elite empresarial, constituida fundamentalmente por estrangeiros, que ver obtendo uma representacdo politica cada vez mais atuante que procura manter seus interesses na manutengdo de importagbes livres de impostos, caracteristica marcante da economia paraguaia. Essa elite conta entéo com poder paralelo, em nivel de estrutura politica e administrativa nacional, regido pelos interesses econémi- cos de seu comércio. Uma elite compartimentada entre um forte grupo de importadores e um outro, de distribuidores, capilarizados, porém menos influentes. Até o momento, Ciudad del Este é um paraiso singular. Com baixos niveis de qualidade urbana para seus habitantes, torna-se paradoxalmente confortével para quem af consome, entregando-se ao risco e & sedugdo do consumo proibido ¢ da contravencdo. A cidade é uma vitrine de oportunidades, pouco importando aqualidade ou a durabilidade dos produtos ofertados. A diversidade desses produtos e a magia de sua atracdo compensam o controle de fiscais da Receita Federal, os calotes de sacoleiros € 0 risco de assaltos a Gnibus. Em Ciudad del Este, 0 produto vale por si s6: marcas de renome (Sony, Panasonic, Aiwa, etc.), suas c6pias “malfeitas” mas com prego competitivo (Soni, Panasom, Saneo) ou mercadorias de sucesso e alta rotatividade (patins, licores da moda, determinados bringuedos, utensilios, objetos de decoragio) prescindem de um aparato de marketing local, porque eles se apropriam da publicidade dos proprios fabricantes, os quais procuram relacionar o uso de seus equipamentos com a residéncia do usuério final ou com lugares de apelo mais universal. Quando isto nao acontece, o préprio consumi- dor estabelece um valor de consumo, uma credibilidade resultante do préprio uso, uma satisfago que 0 comprador se oferece pela relagdo custo/beneficio. Afinal, nfo se exige muito de um produto cujo prego é extremamente acessivel. Um relégio de qualidade duvidosa torna-se um Patec Philippe. ‘A simples insercdo nesse mercado consumidor ¢ motivo de satisfag3o, pois consumir produtos importados € “moderno”. Nin- ‘guém exige certificado de garantia: “la garantia soy yo”. A imitagio barata e a ameaga que esse consumo consciente vem provocando no mercado de produtos de primeira linha fazem com que seus fabrican- tes reajam por meio de campanhas institucionais objetivando fixar suas marcas e ressaltando a qualidade e a durabilidade expressas em certificados de garantia por redes autorizadas de atendimento ao consumidor. Como num filme classe B, fachadas se transformamem lojas e grifes ligeiramente alteradas confundem os consumidores 30 Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.88, maia/ago., 196, p.23-36 ‘Maria de Lourdes Urban Kteinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Ultramart e Rosa Moura apressados. Alteragdes sutis em marcas consagradas dao nome a produtos de segunda linha: o Mac Donald’s virou Mac Doland’s.O resultado visual deste cenério € uma reprodugdo quase fiel; no entanto, a fragil fidelidade da falsificagao nao se sustenta devido 4 baixa qualidade da estruturagao urbana, Paradoxalmente, a aquisi¢o de produtos quase sempre descartveis passa a assumir a importancia de uma compra de bens duradouros. De modo genérico, o Paraguai nfo tarifa importagdes. Seu lado nacionalista tenta revitalizar a economia do pais, mas é uma forca insignificante diante do lado que explora o importado, resistin- do até implementagdo do Mercosul, o que constitui uma posigao que tenta garantir a competitividade na comercializacao dos produtos isentos de taxas num contexto regional de altos impostos. Para um mercado comum que pretende equiparar inclusive restrigdes impos- tas A entrada de produtos alimentares, evidentemente deverdo ser definidas medidas que levem a uma ago mais veemente no caso do contrabando, importante fonte de renda paraguaia numa economia cujos tnicos produtos protegidos so 0 arroze a carne. Hoje, alguns escritérios de representagao de produtos brasileiros tém sede em Foz do Iguagu para facilitar a exportagao desses produtos. Como o consumo interno do Paraguai € inexpressivo, nao hé estimulo para qualquer possibilidade de articulago intema do setor produtivo nacional. Arrisca-se a dizer que Ciudad del Este é uma cidade que existe e que cresce em fungdo de uma voracidade compradorae que, para garantir esse consumo de importados a pregos acessiveis, ne- cessita preservar seu atual status quo. Defensoresregionais, ou seja, aqueles diretamente ligados aos interesses de Foz do Iguacu, permanecem atentos ao que ocorre em outras areas nacionais de comércio incentivado, seus reais concor- rentes. Se, por um lado, a duplicagao da Ponte da Amizade ea criagao do chamado portal em Foz do Iguacu — que traria para o territério brasileiro parte da liberdade comercial assistida em Ciudad del Este ~ameagam os interesses da Zona Franca de Manaus, por outro, cotas maiores, como aquelas praticadas em Macap4, podem influenciar diretamente o volume de vendas paraguaio. A DIMENSAO REGIONAL Trés em Uma Embora as trés cidades analisadas guardem aspectos bastante particulares e relativa autonomia, € evidente que sua estrutura urbana e sua dinamica derivam do fluxo de relagdes que se estabelece entre Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 3h ‘0 PARAISO DOS OUTROS elas, estruturando-se fisicamente a partir de maiores ou menores restrigdes e incentivos & apropriagdo do solo urbano. A ocupacio desse espago regional como um todo resulta do amalgama de interes- ses observado na totalidade da ocupaco urbana internacional, cons- tituindo, assim, aquilo que se pode chamar de um zoneamento esponténeo. O arranjo dessa ocupago repete os mesmos elementos da légica de crescimento de qualquer cidade: valorizagio de determi- nadas areas, formaco de 4reas periféricas por ocupagio de baixa renda, segregaco sécio-espacial e, sobretudo, localizago de fungdes especializadas. Como exemplo dessa especializagio, percebe-se que a quase inexisténcia de hotéis e restaurantes em Ciudad del Este leva a uma especialidade funcional urbana de Foz do Iguacu. Sua industria hoteleira, apesar de constantes baixas na utilizagio de sua capacidade instalada, vem sendo usada como suporte ao comércio da fronteira. A valorizagio dos iméveis comerciais na cidade paraguaia superaem muito qualquer investimento em outras atividades. Pode-se especular inclusive que a estrutura imobilidria implantada para a atividade comercial em Ciudad del Este ¢ muito mais adequada a possiveis alteragSes de mercado. Sendo a grande maioria dos iméveis de baixo valor de construgao, representariam poucas perdas no caso de retragdes ou depressdesno mercado. Constata-se, hoje, umnimero muito pequeno de lojas com grande inversio imobilidria de capital - como € 0 caso de shopping centers, que se tornam de dificil reutili- zagao para fins habitacionais no caso de uma reversao do atual fluxo de compras. Contribuindo para a especializagiio, de modo geral, as cidades brasileiras contaram com uma invers%o maior de recursos para a infra-estratura urbana, se comparadas com as dos paises vizinhos. Tais intervengdes séo fundamentais para investimentos de maior porte, como é 0 caso da rede hoteleira de padrao médio a elevado. Esse mesmo montante de inverses nas cidades brasileiras acabou por ordend-las de modo a facilitar a ocupagao da classe média e alta. Desse modo, Foz do Iguacu surge como pélo para investimentos em iméveis de maior valor agregado e até como op¢ao de moradia a comerciantes nao brasileiros. Fala-se mesmo que um percentual de ‘70% dos novos iméveis verticalizados, de alta renda, pertenceria a esse tipo de proprietério. O mesmo raciocinio vale para outras funcoes urbanas dirigidas ao mesmo segmento social, tais como clubes, restaurantes, cinemas e similares. Nessa distribuigio de fungées, Ciudad del Este, além de seu papel de zona de consumo, torna-se atrativa para empresarios brasi- 32 Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maiofago., 1996, p.23-36 Maria de Lourdes Urban Kleinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Ultramari e Rosa Moura leiros ¢ argentinos e de outros paises interessados em investir no setor de comércio de produtos importados. Cabe a Foz do Iguacu a prestago de servicos especializados por profissionais liberais. O proprio porte demogréfico desta cidade proporciona uma demanda minima para a instalagio desses servigos em seus limites, além do que, sua posigiio de pélo na rede de cidades do Parané reflete sua estruturago como a de uma cidade completa — fato comum a outras cidades pélos que, num processo cumulativo, dio origem a especia- lizagdes cada vez mais complexas ¢ diversificadas, A caoticidade quase consentida em Ciudad del Este, em termos de ocupagao do solo, é uma dificuldade a mais para a instalagao de capitais que nao sejam de ordem comercial. Para uma cidade que se forma fundamentalmente sobre a pressio do mercado, mais vale todo 0 seu espago ser submetido aos interesses da venda de produtos importados do que & tradicional prestagdo de servigos publicos e & oferta de infra-estrutura urbana. Iméveis subdividem-se para aumentar o mimero de lojas, vias séo ocupadas por vendedores ambulantes, enquanto os espacos piiblicos, como pragas, s4o igno- rados pelo alto custo imobilidrio e a operacionalizagao de determi- nados servicos, a exemplo da coleta de lixo, inviabiliza-se pelo movimento constante de recebimento, venda e transporte de metca- dorias. O Movimento de Oportunidades Ao observar a estrutura s6cio-econémica dessas trés cidades chega-se concluséo de que a especialidade de fungées urbanasentre elas significa uma forte complementaridade ¢ interdependéncia, sempre submetidas a decisdes externas a elas. O setor comercial, que disponibiliza produtos importados em Ciudad del Este, esta & mercé das futuras decisGes do Mercosul, das polfticas nacionais de cada um dos trés paises, dos interesses de fortes setores industriais brasileiros ¢ argentinos ¢ de um eventual fortale- cimento do chamado bloco nacionalista paraguaio. A imposigo de limites nas cotas de importacao para as compras na fronteira para- ‘guaia influencia diretamente esse mesmo setor nos diversos segmen- tos de trabalho de ambos os paises. No lado brasileiro, o setor de servicos de apoio 20 comércio e importagies abre ou fecha suas portas dependendo do volume comercializado. O capital, ao impor seus interesses, forga os controles adua- neiros a se tornarem cada vez mais liberalizantes, no somente como resultado de iniciativas govermamentais — que propéem novas legis- Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maio/ago., 1996, p.23-36 33 o Paraiso DOS OUTROS ages, agora modeladas pela abertura de mercados-, mas sobretudo pelo proprio pragmatismo do fluxo desse capital. Convivendo com essa dependéncia inerte diante de fatores ‘exégenos, o complexo formado por essas trés cidades, tal qual outras cidades de fronteiras, passa a usufrair de oportunidades que vagueiam de um lado ao outro desse espaco tinico e dividido. Oscilagées cambiais ativam positivamente uma das diregdes do fluxo de consumo, voltado ao atendimento de necessidades coti- dianas e que busca ofertas de pregos menores, repetindo na travessia da fronteira aquilo que se faz corriqueirramente em qualquer espaco de negécios. Ora produtos alimenticios, ora combustiveis, oraeletro- domésticos, fazem o desenho de idas e vindas entre as cidades, ofertando oportunidades de assimilacao imediata e praticamente indistinguivel para qualquer uma delas, Outro fator que contribui para esses direcionamentos no consumo é a conjuntura de precos, favorecendo ou desfavorecendo determinados produtos. Podendo contar com as alteragées de mercado, o habitante desse complexo urbano evidentemente beneficiado, restando a0 comerciante a necessidade de redirecionar seus negécios com agili- dade, as vezes implicando mudanga de territrio. Politicas nacionais de maior rigidez na legislacao trabalhista podem fazer, por exemplo, com que os mercados de trabalho se apresentem mais ou menos atraentes. A despeito da seguridade virtualmente ofertada por um contrato com carteira assinada no Brasil, é grande o ntimero de brasileiros que hoje trabalha ilegalmente nocomércio varejista paraguaio. A possibilidade de um salério maior — diretamente relacionado com o montante vendido no comércio ~ compensa uma eventual inseguranga trabalhista. Esse fato altera positivamente os atuais indices de emprego/desemprego observados em Foz do Iguacu e Ciudad del Este. Outras oportunidades institucionais, como diferentes aliquotas de impostos, legislacaoe controles mais ou menos rigidos, incentivos fiscais, disciplinas de uso do solo, etc., podem constituir vantagens que so 20 mesmo tempo diversas e efémeras, garantindo ganhos temporérios a populacdo residente nessas cidades. A temporalidade, quase uma sazonalidade, passa a ser importante, construindo um cendrio continuo de oportunidades que, ao se deslocarem entre as fronteiras, provocam mudangas nas respectivas dindmicas urbanas, ora positivas, ora negativas. A revelia das causas institucionais e/ou econémicas que pro- vocam alteragSes nas oportunidades e reforcam a demarcago das a Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.8, maiofago., 1996, p.23-36 ‘Maria de Lourdes Urban Kleinke, Nelson Ari Cardoso, Clovis Uliramari e Rosa Moura fronteiras, 0 cotidiano das relagGes estabelece um pacto, ainda que informal, de cooperagio e parcerias, nao propriamente entre os trés paises, mas sim entre as trés fronteiras. Um espago que nao pertence anenhum pais, um espago do mundo. Isto significa a préprianegagao da fronteira. CONCLUSAO A dinamica de Foz do Iguagu, Puerto Iguazi e Ciudad del Este exige que se discuta a viabilidade da integragio do planejamento e gestio numa Area onde a importincia das fronteiras territoriais en- contra-se cada vez mais enfraquecida a ponto de desaparecerem de fato diante das complexas realidades da ocupagio, persistindo, no entanto, apenas por uma imposic30 politico-administrativa. Nessa aglomerago, que se constr6i fundamentalmente segun- do interesses externos ao espaco urbano ocupado, evidencia-se a distancia entre o planejamento desejado e 0 possivel. Esses compo- nentes ex6genos dificultam ainda mais a ag4o do gestor publico, o qual vé serem submetidas as metas e prioridades locais a controlese decisGes decorrentes principalmente de interesses nacionais, macto- econémicos, de grandes grupos do comércio e do servigo, de grandes indiistrias internacionais, da populagdo flutuante e, mais recente- mente, de acordos do Mercosul. Assim, oportunidades e interesses diversos passam a ser 0 elemento formatador da estruturagdo das cidades desse aglomerado, tendendo a privilegiar mais os interesses externos que os do cidadio- morador. E evidente, pois, que se estabeleca uma disputa entre uma cidade para moradores e uma cidade para visitantes. Nocasodoaglomerado Foz do Iguacu, Puerto Iguazt e Ciudad del Este ¢ inegavel a necessidade de uma gestio integrada. &comum observarem-se esforgos nesse sentido em espagos de ocupacao que se sobrepGem a mais de um territério administrativo - como 0 que ocorre nao somente em cidades de fronteira, mas também em aglo- meragées urbanas e em regides metropolitanas. Entretanto, nio é apenas a integrago que garante a qualidade e disponibilidade de servigos e de infra-estruturas urbanas & parcela majoritiria da popu- lacio, Além do mais, a precariedade dos padrées minimos de infra- estrutura € servicos urbanos verificada nessas cidades fragiliza as inicativas de integracao. A integragdo que ocorre de fato resulta dos diferentes usos realizados pelos diversos agentes que atuam nesse espaco, de forma pontual e apropriada apenas por aqueles que podem adquirir os Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.88, maiofago,, 1996, p.23-36 35 0 PARAISO DOS OUTROS servigos, usufruir de determinada fungao ou infra-estrutura urbana. E assim no caso do transporte publico (a linha intra-urbana em nada se diferencia, em termos de qualidade e de freqiiéncia, da intermuni- cipal); no servigo de téxi (disponfvel em qualquer rota para passagei- To.pagante); no uso dos meios de comunicagao, a exemplo da televisdo e do radio (acessiveis segundo a op¢ao do usuario e nao 20 limite territorial das concessées), Enfim, uma integragao feita pelo consumidor que a deseja e dispde de recursos para realizé-la. Se, por um lado, necessidades geram integragdes pontuais, situagdes emergenciais também contribuem para que servicos e infra-estraturas das trés cidades sejam apropriados integradamente. Servigos publicos especializados de satide, por exemplo, a despeito de suas limitagdes, so usados muitas vezes independentemente da corigem do paciente. Assim, definitivamente 0 que mais conforma a integracdo — e & ai que esse complexo se distingue de outras aglomeragies urbanas ~ so as oportunidades apropriadas independentemente do lado da fronteira em que sao ofertadas, criando a idéia de “paraisos” eféme- ros. Paraiso para os moradores do complexo que conseguem apos- sar-se das oportunidades territorialmente mutantes e paraiso para os habitantes de fora do complexo que, apesar de muitas vezes trazerem impactos negativos, geram empregos ¢ renda por meio de turismo, compras e negécios. Conscientes ou inconscientes da integragao, as populagdes residentes e flutuantes cruzam a fronteira e, buscando oportunidades efémeras, formatam, igualmente, uma integraco efémera. Diante dessa din&mica, constitufda por avancos pontuais, por situagdes emergenciais e pela busca de oportunidades, é ainda maior © desafio do planejamento como instrumento capaz de redirecionar ocupagées, constituir relagdes ou mesmo ordenar integragies. 56 Rev. parana. desenvoly., Curitiba, n.88, maia/ago., 1996, p.23-36

Você também pode gostar