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@ frou NABUCO pane pa Comnnssxo CENTRAL Esta PAZETERRA i A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE Este é um mundo que se acaba, (...) Sente-se 0 ranger das pecas de um edi- (ficio que se esboroa. Tavares Bastos, 1867. bs O movimento intelectual da gerag&o 1870 surgiu em meio a desagre-,-’ gacao da ordem politica imperial. Até entao, embora a sociedade brasilei- ~ a estivesse passando por transformages profundas, sua ordem politica’ mantivera-se como um universo fechado. Os valores e 0 funcionamento efetivo das instituicdes politicas limitavam a cidadania plena e o espaco de debate priblico a um seleto cfrculo de iguais. Neste capitulo reconstituo a tradigao politico-intelectual do Segundo Rei- nado, seus valores, esquemas de justificagao intelectual e dindmica politico-:, institucional. Pretendo mostrar, também, como os dilernas estruturais da socie- dade imperial foram convertidos em dilemas politicos, quando, em principios dos anos 1870, tentou-se reformar a ordem desde dentro, de cima para baixo.” Este processo afetoui as conexdes usuais entre Estado e sociedade e fertilizou o terreno para a crise do Império, gerando a estrutura de oportunidades polt- ticas para a emergéncia de um movimento de contestacao. 1. A TRADIGAO IMPERIAL: REPERTORIO EUROPEU, EXPERIENCIA NACIONAL Um estudioso da monarquia nota que até “a década final do Império nao se constituira ainda a teoria do regime” (Oliveira Torres, 1957:154). Isto € verdade, mas-a razio € mais profunda que o acanhado da vida inte- lectual nativa, como avepta 0 autor. 52 IDEIAS EM MOVIMENTO — A GERAGAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPER(O As instituigdes e cédigos vitais do Segundo Reinado tornaram-se con- sensuais, depois de selada a Conciliacéo entre luzias e saquaremas no inf- cio dos anos 1840." A estrutura de poder do regime, a sociedade hierdr- quica, a forma monarquica eram uma espécie de senso comum da elite, percebidas como a ordem natural das coisas. ‘Expressavam, 0 espirito da~ regime, a esséncia do modo médio de pensar, encarnado nas praticas so- ciais ¢ nas préprias instituigdes politicas. ‘0 status quo imperial esteve mais representado em modo toninae uma espéde ‘de minimo denominador comum da elite palit ca, circunscrevendo a agenda de debate, o espectro de temas imaginaveis e, mesmo, os participes legitimos desta arena. Esta “letra nao escrita do regime” (Holanda, 1972) se expressou no funcionamento efetivo das ins- i arlamentares, na tomada de dé- os pilares da ordem ea sendo quando entraram em risCo Sie deans desapa- recimento. Apenas n na crise ‘desta formagio social, quando Wal ganharam clarificagao (Ringer, 1992), sendo expli- citamente P oanados'e faders pelos agentes. A justificacio das instituigdes Velo a conta-gotas, c mas mentais do universo politico tos em reacio a ameacas concretas, que efi livros de doutrina. Os valores compartilhados estavain cristalizados como tradigdo. A tra- digo politico-intelectual do Segundo Reinado demarca os recursos inte- * Coneiliagéo foi a palavra-chave que terminou por designar o perfodo, mo- mento em que se afastavam as perspectivas de ruptura e em que, depois da série de convulsdes de toda ordem que assaltara o pafs na Regéncia, se consolidava a unidade politica e territorial do pais em torno de um rei brasileiro, Esta tendéncia pacificadora efetivou-se na politica com a “Transacao” entre luzias € saquaremas, originando um arranjo que equilibrava as regides ¢ os partidos A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUICGES © CRISE lectuais disponiveis para os agentes: um conjunto limitado de padroes ana- liticos e de significados — nogdes ¢ conceitos, formas de abordagem, es- quemas explicativos, formas estilisticas e formulas retdricas a partir dos quais, a sociedade pensava a si mesma (Swindler, 1986). ad (a tradigao se construiu a partir de duas balizas: a experiéncia nacio-" nal €0 repert6rio europeu. O primeiro clemento especifica o segundo, de = quadros mentais europeus foram “aprendidos, compartilha- nes em acao através de um processo relativamente deliberz a. Este grupo se.alimeritava do répertérie europeu, con- Seqiiéncia natural da formacdo cléssica que recebiam muitos ainda em Coimbra, ou a moda de Coimbra nas escolas de direito nacionais.? A “po- rica” em _termos de. referéncias politicas ¢ intelectuais é O repertério europeu chegava nao sé por experiencia pessoal direta como também pelas revistas de divulgacao filosdtica e literdria. A morosi- dade das comunicacées retardava e encarecia a importac&o de livros. As revistas faziam-Ihe as vezes. E 0 caso especialmente da Revue des Deux Mon- ‘ovavelmente a publicacao estrangeira mais popular no Império, dis- iribuida na Corte, em Sdo Paulo e na Bahia. Era um filtro ¢ um vefculo do repertério europeu. Revista de variedades, quinzenal, trazia sessées de Literatura, poesia, belas-artes, arqueologia, religido, filosofia ¢ moral, cién- ria tica, Dava 0 assunto das conversas de saldo e era fre- qiientemente citada em optisculos, artigos de jornais € discuisos parla- mentares.* A Quaterley Review fazia, subsidiariamente, 0 filtro do universo infelectual inglés. Ambas informavam a elite imperial sobre o iitindo oci- dental ( (Leite, 1978 36) ? A maioria dos estadistas do Segundo Reinado, como Eusébio, Ferraz, Sinim- bu, Saldanha Marinho, Zacarias, Wanderley, Teixeira de Freitas, se diplomou j4 em Olinda (Nabuco, 1897:45). > Fica expressa também na predilegéo dos Senadores pelo velho mundo em detrimento da América: entre 1870 ¢ 1889, 27,4% viajaram para Europa e ape- nas 1,76% para os Estados Unidos (Leite, 1978:56) “ Mas nao ficava bem a um homem piiblico declarar que extrafa dela 0 esto- fo de seu saber — Saraiva sofreu galhofas por ter transposto essa norma técita, assu- mindo ingenuamente que nao lia outra coisa. D. Pedro o defendeu: “6 quanto bastal” (Werneck Sodré, 1966) 54 (DEIAS EM MOVIMENTO - A GERAGKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO Destas fontes européias se adotava mesmo 0 rebuscamento do estilo. A formula do debate politico obedecia aos canones de uma espécie de romanis- mo que foi a sensagio do reinado até quase seus estertores: 0 discurso anti- ga, recheado de alegorias greco-romanas e de figuras de linguagem. A ret6r- a era parte essencial da formagio. A oratéria foi o trunfo de politicos como Bonifacio, o moco, que ainda impressionava, no final dos anos 1870, pela gran- dilogiiéncia da expressao, 0 recurso ao exemplo de grandes estadistas euro- peus e de pensadores dassicos, como Arist6teles, Homero, Pedro it encarnou festa face publica do Império, alimentando etiquetas ¢ cédigos socials que res- soavam as formas de uma sociedade de corte do ancient réginme. ‘As referéncias européias se apresentam também nas formas de pensal -sobiétudo literatos € politicos do século xvar ¢ inicios do xmx € a filosofi politica do liberalismo francés da Restauragao compareceram como aeie- réncia intelectual e/ou modelo politico. A regra de entrada concomitante © ra politica € nas Tetras, que vigorou diate todo o reinado de Pedro 1, ali meritou a admiracao pelo tipo de “intelectual politico” do Segundo Impé- Wo francés, como Guizot ¢ Cousin, cujos nomes assomam em quas¢ todos bs discursos, mesmé eiti projetos de lel, da élite imperial desde os ahios 1850. G Regéliand Victor Cousin foi talvez a maior influéncia da época, dissemi- nando um espititualismo vago, uma teleologia muito afinada com 0 ro~ mantisnié € que era, sobretudo, uma filosofia harmonizadora dos contra- ios (cruz Costa, 1956; Paim, 1966; Mattos, 1987) Nos temas, esta clite andava sempre perto do que corria nos parlamen- tos europeus. A par do que se passava na politica externa, muito atenta particularmente a Franca € & Inglaterra, seus pardmetros de civilizacio Nos anais do parlamento na década de 1870 nao predominavam referén- cias a Bentham e Locke, como Mattos (1987) registra para 0 inicio dos anos 1840, periado de formacao dessa elite politica, Os autores mais freqtiente- mente lembrados eram aqueles concomitantemente pensadores ¢ atores politicos, como Tocqueville ¢ John Stuart Mill? Nabuco de Aratijo, por 7 Segundo Matios (1987:141), os termos da disputa nos anos iniciais do Segun~ do Reinado opdem duas concepcdes liberais de representacéo. A dos luzias era a ; liava as teorias a partir de um problema brasileiro, o sistema eleitoral, ar- 5 gumentando que Stuart Mill apoiava as eleigdes indiretas apenas para 0 Senado nos Estados Unidos, por l4 haver federalismo, ¢ que Tocqueville, “mesmo partidério da indireta, se persuadiria do contrério se conhecesse ,” 1 o Brasil” (Gdes e Vasconcelos, 1876:14). Eram as teorias que tinham de se. adaptar ao pafs e nisto esta o caréter empirico, pragmatico, do pensamen? to politico do Segundo Reinado. vs Isto porque 0 outro vetor da tradicao imperial era a prépria experiéncia reduzida a cabeca do regime, A Corte, a¥-regides economicamente mais 56 1DEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO passado recente como era “revolticionétia” manteve acesos 0s perigos que questdes centrais, como a escravidad € a fe am € alimen- mi de qite qualquer alteragao dé principio implicaria desfazer a inércia natural do regime que a custo se estabilizara. Donde a aversio ao novo € a op¢io pelas vias lentas, no no sentido de alterar a esséncia, mas de completar a obra civilizadora do-império. Daf a prudéncia, a refragio guase que a qualquer mudanga, evitando a todo custo reformas constitu- cionais. Ea opeao pela via gradualista, ponderada — discussdo nas duas camaras € no Conseiho de Estado, pareceres de eminéncias no assunto — a busca do consenso no animo da “opiniao publica” e a implementagao em. prazos dilatados, que sempre se postergavam.* ae O Segundo Reinado teve esta dupla fon repertério politico-intelectual europeu. Dosava os valores universais vin- x dos do mundo europeu civilizado ¢ a realidade nacional a civilizar. O mo- delo de suas institaicdes politicas deve A pedagogia legada pelas convulsoes européias e regenciais: a liberdade dependia da ordem. Mais que copiar os.eu- ropeus, a elite imperial se esforcou em evitar a maior de sitas desgracas: a < revolugao. Este cardter pragméatico mo do da elite imperial deu_conteido novo ao repertorio europeu. A experiéncia brasileira particularizou os es~ quemas mentais estrangeiros. Deste acoplamento resultou a tradicao im perial, esteada em trés nticleos significativos: 0 indianismo roméntico, 0 liberalismo estamental, 0 catolicismo hierarquico. Assim a elite, imperial definiu a identidade nacional, imstifuid numa forma de organizacao poli- ptica que limitava a cidadania e produziu uma representagao simbdlica de stia ordem social. 0 indianismo romantico: a nagdo imaginada No romantismo fica claro como a assimilagao do repertério europeu “obedeceu a um critério seletivo Jocal. Assimilou-se.p.tom arrebatado, a { “idealizagao de tipos e eventos, a forma de romance. Nao a veia revolucio- ‘néria que 0 movimento romAntico alcangou em algumas partes da Bu- © O presidente do Senado sintetizou este ritmo: "Em matéria de reformas, a minha regra é festina lente” (Abaeté, Anais do Senado do Império, 7.11.1878) A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE ropa. Aqui o romantisme nao vinha contestar o tradicionalismo de modos ¢ sentir de uma sociedade aristocrética enraizada. Vinha™ ‘crid-los. Foi especificamente a forma literdria.do romance francés de outro politico, Chateaubriand, que forneceu a chave de transi¢&o entre o univer- so de Teler@ncias politicas da civilizacéo ocidental ¢ a realidade brasileira. 0 conselheiro José de Alencar completou no romance o trabalho de for- ja da identidade nacional que o também conselheiro Gongalves de Maga- Ihaes comegara na epopéia: gerar uma imagem da nacio brasileira como sintese americana de europeus e aborigines, africanos excluidos (Candido; T993S:2008s). : O componente local foi crucial para Gefinir tha nacao brasileira e um Estado nacional. Para esta tarefa, nao bastavam modelos estrangeiros. For- mas da civilizagéo européia ganharam, por isso, os contetidos nativos do novo continente. Gongalves de Magalhaes, em A confederagio dos tamoios (1856), € José de Alencar, n’O guarani (1857), amalgamaram formas 1e- ménticas curopéias aos propésitos politicos nacionais,’ O americanismo con- ciliava a afirmagio de uma especificidade nacional com as aspiracées de produzir um sucedénco da civilizacdo européia. Tinha o sentido de autée- tone das Américas, em gontraposigéo ao Velho Mundo, querendo afirmar uma diferenga espectfica em relacao a ex-metropéle. O indianismo romAntico foi a consumagao deste projeto. Ponto car- deal de uma nagao imaginada (Anderson, 1989). Nada havia nele do Bra- sil empirico. O romantismo europeu dava o molde para uma estereotipa- cio: os nativos eram estilizados como aristocracia autéctone. A idealizacao ignalidade tinha por epicentro a fusio de um colonizador épico com _um_bom selvagem. Assim se congelavam as caracteristicas positivas em_uma imagem idflica da nacionalidade.¢ se expurgava 0 processo.de co- lonizagao.* Digo projeto porque este processo foi deliberado. A sintese americana do indianismo nao foi mero artificio intelectual. Era parte substantiva da qtiacdo de vias de legitimagao das instituigdes imperiais. A singularizacéo brasileira requisitou uma invencao de tadigées (Hobsbawn, 1984). Para 7 0 indianismo “denota tendéncia para particularizar os grandes temas, as grandes atitudes de que se nutria a literatura ocidental, inserindo-as na reali- dade local, tratando-as como préprias de uma tradigao brasileira” (Candido, 1993:221). * Para um tratamento mais apurado das relagdes entre projeto intelectual € politico no indianismo roméntico, ver Alonso (1995; 1996) 37 58 IDAIAS EM MOVIMENTO — A GERAGAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO que a nacio fosse brasileira era preciso gerar uma diferenciagao com a anti- ga metrOpole, uma origem nativa, Tratavarse de dotar 0 Brasil de uma iden- fdade, uma lingua, uma hist6ria, um povo, enfim, inventar uma tradigao Gaactonal, Os romances de Alencar fizeram parte deste trabalho, dando “Gadigéo inventada uma forma acessivel ao gosto médio. Mas o projeto era mais amplo ¢ ganhou corpo também ern instituiges ¢ préticas sociais. Este espftito animou uma sociedade de corte a brasi- Jeiea, A criagao de titulos nobiliérquicos de inspiragio indianista reconhe- da win certo grupo social como aristocracia, vinculando-o @ imaginria wnbreza da terra, legitimando a estratificagao social. © mesmo vale para a pequena eniourage de poetas ¢ pintores da sociedade de corte, no caso dos membros da revista Niteréi — Revista Brasiliense de Ciéncias, Letras e Artes. ‘Tinham a missio — € o subsidio estatal — para desenparem¢ versificarem a identidade nacional. 0 braco diretamente politico da mesma empreitada est4 na construcao dos simboles nacionais. O Instituto Histérico e Geogra- fico Brasileiro, inspirado no Institut Historique de Paris, foi a instituicao caltural fundamental da elite imperial nesta missao de definix uma visio brasileira do Brasil. Produziu uma hist6ria nacional ¢ uma definigéo da bra- silidade que unificava Nagao, Estado e Coroa, em versdo oposta a européia que seccionava as esferas (Salgado Guimaraes, 1988:6-8, 12, 78, 128). Afi- nada com.o indianismo, a histariografia do mics compensava a auséneia de historia com a recuperacdo das civilizagbes indigenas ja desaparecidas, dando-ihes 0 carater de substitutivo da Idade ‘Média européia que nao tivernos, Seus estudos fixarar e difundiram os temas e s{mbolos de um Es- tado nacional, centralizado, com territério unificado ¢ povo mestico, Bus: cavam uma posicao simbdlica para africanos e indfgenas, efetivamente des: titufdos de cidadania. © desenbo intelectual ¢ 0 propésito politico se afinavam tanto pordue nao bavia uma camada letrada auténoma no Império: politica, historiogra- fig ¢ letras compunham facetas de uma carreira publica unificada. Nao foi, pois, por acidente que as figuras de maior destaque nas letras nacionais do perfodo, Goncalves de: Magalhaes ¢ Alencar, tenham também exercido a deputacao ¢ chegado ao Conselho de Estado pelo partido conservador. O- ~indianiismi literdrio ¢ 0 ensaismo historiogréfico do mice vinham dar acaba- tmento simbélico 20 processo de pacificagao que a Conciliacdo empreendia na politica institucional. Ambos edificaram uma imagem (a nacionalidade ca cintonia com as instituigdes politicas criadas com o Segundo Reinado: 2 jnarmonizadora € hierarquizante. 7 | | | | ordem (Fernandes, A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE 59 0 liberalismo imperial: a reproducéo politica da desiqualdade social Flory designou com muita propriedade o liberalismo imperial de “em- pirico”, atentando para sua relacéo mais préxima da circunstancia politica do que de valores transcendentes: Ble préprio um corpo de pensamento € comportamento em transi- 40, 0 liberalismo brasileiro era de fato menos dependente em relacao a modelos estrangeiros ¢ mais uma resposta reflexiva, pratica, as condigoes de transi¢éio politica € socioeconémica do perfodo nacional inicial. (Flory, 1981:6) O matiz de liberalismo que informou o processo de formagao do Es- tadq nacional obedecera sobretudo a motivagGes econdmicas: promovera a superacao. do. estatuto colonial no ambito juridico-politico ao mesmo tempo em que interiorizava seu substrato material, social ¢ moral. Fica‘ vam mantidos 0 escravismo, a monarquia e a prépria dominagao se- ohorial, A Independéncia brasileira foi, assim, uma mudanga dentro da. 75:57). Nao universalizou uma cidadania “brasilei- va”, nem destruiu a hierarquia social da Coldnia. Como “revolucao” de gais. Do ponto de vista politico, a cidadania plena foi criada ndo como direito individual, mas como prerrogativa de um grupo circunscrito, os “{GlaMeNts dominalites ¢ intermediérios” que eram os senhores de ter- "1977:44; 50) ‘A estrutura sociopolitica do Segundo Reinado manteve esse caréter, Yo. Era uma sociedade do antigo regime: possufa uma estrutura éstamental ¢ oie ima socedade de corte. A casted. se estratificava, tendo em seu apiceyer’ ies, 1977). Na base estavam os homens livres pobres. O Império manteve uma relagao ambigua com os escravos: nao lhes conferiu estatuto de cida- 60 IDEIAS EM MOVIMENTO — & GERAGAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO i daos, mas nao formalizou sua situagéo de mercadoria. Ndo produziu um t cédigo civil para nao ter um cédigo negreiro? Esta hierarquia de recursos sodais, de poderes econdmicos e de direi- tos politicos estruturou t ‘tant a polit social fechavam politica e sintbolfcamiente o regime. . dé dispuras intemas ao estamento senhorial. A libe tamental da coat estabelecendo posicées precisas e mesmo inamo- iveis. A com olitica tifiha dois limites: um na base, 0s escravos, “*< gutro no épice, o monarca. O sistema politico imperial foi montado para + jimitar o principe e excluir 0 “povo". A “opiniéo publica”, requisitada pelo © ‘sistema representativo, designava nao 0 conjunto dos brasileiros, mas os proprictarios, restringindo 0 exercicio da cidadania a wma elite seleciona- da dentre os socialmente iguais. Embora houvesse diferencas programéticas entre os partidos, jamais dissentiram quanto aos principios ¢ instituigdes gerados para solver o pro- blema politico ne momento fundacional: manter a unidade nacional e re- grar os conflitos intra-elite (Carvalho, 1980). A divergéncia era na énfase: “a verdade € qe assim o Partido Conservador como o Liberal querem a conciliagao da liberdade Com a ordem. A diferenca esté (...) no modo como 08 dois partidos procuram resolver esté grande dilemma da Ciéncia Politica” i (Rio Branco, 29.5.1871:289-90). AS, Havia consenso em que a melhor forma de governo era o sistema ‘representativo. As formas de governo consideradas eram ainda as clas- sicas. Os termos em uso — como deifiocracia, despotismo, ditadura — ©. egam remiissGes &s formas de governo antigo, portanto sem a reverberacao da idéia de goveino do povo comid Yovetno de massas. O romanismo 7 A restrigdo da escravidao a assunto comercial obstruira a plena evolugao do direito civil no Segundo Reinado. Haja vista as tentativas malogradas de criacdo de um cédigo civil, a mais célebre de Nabuco de Aratijo, que nao viam como burlar 0 mesmo obstaculo: ou bem havia direitos civis para todos os habitantes do Impé | rio, inchufdos estrangeiros, africanos e seus descendentes, ou bem uma parte da populagao ficava de fora das asas desia lei, tendo de ser regulada por legislacio especifica, como se fazia nos Fsados Unidos, A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE 61 impregnava a comparacéo entre as formas “antigas « modernas’, como 0 fizera Benjamin Constant para as duas liberdades. 0 governo representa- tivo era um estado intermediério, barreira tanto & degeneracao da monar- quia, pelo excesso de poder no centro, quanto & anarquia democritica, a ‘equpgi0 do povo na politica. = “Neste sentido, a concepgio de liberalismo presente nas instituicdes “ impetiais foi sobretudo negativa. 0 sistema politico i imperial era liberal no ©. monarquia € muito limitada. O monarea, que é delegado da taco, é um. stidito com diadema, é a expresso do mais completo liberalismo” (Gées e Vasconcelos, 1876:2, 3). © regime imperial era uma monarquia constitucional baseada na sobe- rania popular. Mas a énfase vinha no substantivo “soberania”, sinalizando sobretudo “uma transagio da realeza com a democracia (...) um meio dey, que (...) a vontade do povo nao se pronuncie com tanto rigor” (Gées € Vas-_“"= concelos, 17.8.1876:8). O Poder Moderador deveria equilibrar o legislative € 0 executivo, mas sua fungao no sistema era sobretudo simbélica. Institui-. &o nacional, por exceléncia, devia harmonizar as origens regionais da elite*s.. sob 0 manto da nacionalidade: “O Poder Moderador é 0 ew nacional, a cons- ciéncia ilustrada do povo (...) plaina sobre os outros meros poderes poli- ticos, (...) Chamo-o poder nacional para significar a quase comunidade em que se acha com a nagéo” (Alencar, 1866:1082,1087, grifo do autor). O Senado € 0 Conselho de Estado cram duas insténcias aristocréticas funcio-,, nando como corpos.intermediérios_entre a opiniao volatil da Camara eo “elemento. mondarquico’ ) é antemural da reale- . za ¢ 0 seu imediato. auxiliar na defesa das instituigdes juradas”.(Soares de Souza, Anais da Camara dos Deputados, 28.2.1880:212) temor das reacdes extremas da Regéncia fez prevalecer a concepgio de liberdade come responsabilidade piiblica (Mattos, 1987:153), néo como... dircito individual. De seus autores de predilegio, esta elite politica herdou=" @ nocio de desigualdade natural entre o5 homens ¢ a conviecao de que a. Rousseau, como prevaléncia numérica; a de Guizot, como governo da ra- 10 De modo que nem as impressties grosseiras predominem ¢ arrastem 0 governo, como acontece na demagogia, nem os governados se destinem ao avil- tamento da obediéncia passiva, como no despotistno” (Belisario, 1872:21) 62 1DEIAS EM MOVIMENTO ~ & GERAGKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-INPERIO “$0; € a de Thomaz de Aquino, que significava a “comunhao" Fi ‘irava Sua Sua éstabilidade combinando os dois ‘itim _O Império representativo” espelhava a hierarquia social. Quem se “ha dife- = renga entre o poyo.sem escolha de condicdes e aptiddes, como o quer Jean-Jacques Rousseau, € 0 povo que forma a comunhao civil perfeita “tomo entende Sao Thomaz”, argumentava Zacar ic em Royar Collard e em Guizot conchufa:.“A nossa. constituicao a¢ soberania do povo no bom sentido (...) as familias que se retinem tém 0 direito de governar o pais. Daf resulta a comunhio perleita” (Gées ¢ Vas- concelos, 1876:38-9). A unidade da representacas politica era, portant, a familia, no individuo. ~ Sr a 0 governo representativo gerava uma “comunidade politica” interme- \didria entre 0 rei € 0 povo, hierarquizando os membros do Império, sem excluir diretamente nenhum grupo social. © prinefpio estava cristalizado “na propria lei come um “regime de capacidades”: selécionava 6s superio. “Fes por condigo (os livres), por sexo (os homens), por idade (mais de 25 anos), por renda (proprietérios) e mesmo por credo, uma vez que 0 cato- licismo era a religido de Estado. A maior distincao era por ocupacao ¢ pro- priedade (cada nivel do sistema exigia um censo pecunidrio, mas res- tringla por escolarizagao). 0 sistema de eleigdes indiretas garantia, assim, anteparos aos “excessos” da democracia direta, limitando 0 governo aos homens de prol, proprietarios, por isso dotados da independéncia pessoal requisitada para o exercicio da liberdade positiva, de opinides.” © voto nao era concebido como direito individual, mas como fungéo | social. O representante “exerce o direito eleitoral por si e em nome daque- Jes que ficam privados dessa fungao social” (Rio Branco, Anais do Senado do i Império, 13.2.1873:47), a saber: as mulheres, os menores, 05 escravos € 0s i economicamente inativos. A cidadania plena, o direito a candidaturas aos | postos de mando, era restrita a quem tinha maioridade moral e econd- mica: o chefe de familia, representante natural na arena politica de unida- des sociais completas. "A justificativa era a impossibilidade de participar da comunidade politica sem a independéncia financeira que protegeria contra o aliciamento e a fraude. Os cleitores seriam “s6 aqueles em quem por sua riqueza, cultura de espfrito e posi- do social, se devesse presumir que resistiriam mais facilmente a presséo da auto- ridade, as exigéncias dos chefes, & fraude e, enfim, corrupgao de qualquer gé- nero” (Bom Retiro, Anais do Senado do Império, 7.11.1878). kal A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE 63 O sistema politico nao era excludente, antes franqueava 0 voto, com /g, o “sufrdgio generalizado”. Em 1872, aproximadamente um milhao de pes- @... soas — um décimo da populacio di é ‘ipar do pro- a * Império. | (Carvalho, 1988:14). Destes, segundo 0 relatorio do minis-v., Yo do Império, cerca de vinte mil individiios preenchiam as condighes de pleitear um cargo politico. Os politicamente impedidos eram representa- : dos Simbolicamente pelo voiante, por sua vez representado pelo eleitor ea que clegia o deputado. Em 1870 havia 1.039.659 votantes: cada 51 votan. tes correspondia a um cleitor, cada 33 eleitores a um deputado provincial;” cada 163 eleitores a um deputado geral; cada 344 eleitores a um senador~" (Belisdrio, 1872). Embora a participacao cleitoral efetiva fosse relativa < mente alta — 50,6% em 1872 (Graham, 1990:107-9) —, tinha por con-" traparte o interdito ao corpo politico principal. A estrutura centralizada dos cargos ¢ 0 proceso eleitoral davam ao mando um cardter extremamente restrito: apenas 342 pessoas ocuparam cargos altos ao longo de todo 0 pe- rfodo imperial (Carvalho, 1988:98). A sociedade imperial distinguia, portanto, qualitativamente seus in- tegrantes. Separava.seus. cidadaos-politicos, oriundos dos estamentas se- nhoriais dominantes ¢ intermedidrios, encarnacao da “opiniao publica”, do “povo". Esta ultima nocao designava 0 conjunto da populacao de homens libertos. O sistema representativo retirava sua legitimidade da “opiniéo_publica”,.do conjunto.de proprietarios. 0 “povo” nao ficava excluido. Sua representacao politica se fazia através do pater familia. 8 nes- te sentido, como restrigdo do exercicio.pleno das prerrogativas de cidada- hieraérquico como uma. lem estamental.'* Embora esta faceta estranha aos regimes contemporaneos, ¢ nisso 0 liberalismo bra- | sileiro deva pouco aos seus sucedaneos, pode-se afirmar que este regime, | com mais propriedadé que seu sucessor, pds.0 povo como espectador bes- O liberalismo do Segundo Reinado foi um “realismo conservador” (Fer-~” nandes, 1975:35), epiteto que os saquaremas deram ao seu partido. Seu : epicentro estava antes na idéia de ordem que na de liberdade: visava man- “~~ = » "De modo que a adogio das instituigdes representativas nao fol um passo para excluir 0 Fovo do poder, mas um artificio para manter a concentracao social do poder nas maos dos estamentos sociais dominantes e intermedidrios” (Fernandes, 1977:50, grifos do autor). 64. IDEIAS EM MOVIMENTO - A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO ter inalteradas as “liberdades constitucionais” € as bases do “sistema repre- sentativo” para no turvar o dificil equilibrio que ciara a monarquia ¢ a reiterara com a instituicao do Segundo Reinado. Os principios deviam la af um. conformisms, ;mantenedor da O catolicismo hierérquico (0 terceiro pilar da tradi¢ao imperial era o catolicismo. Como institui- mo lie gia. No catolicismo do Segundo Reinado nao compare- dade ¢ fraiemidade entre homens. An- “., Do catolicismo vinha a representagdo da monarquia como uma comu- nidade irmanada por um princfpio superior comum, supra-humano.' Por ©! esta via, a sociedade imperial encontrava um lugar para os homens livres pobres e os escravos: sua incorporacao era simbélica. O catolicismo dava 0s meios simbdlicos da legitimacao do trono: a forma littirgica do regime, a representacio hierdrquica da sociedade e 0 combustivel de uma sociabi- lidade tradicional (Freire, 1951). O catolicismo era também religido de Estado. A separagdo entre as esferas politica e religiosa nao se fizera, de modo que as instituigdes po- liticas nao eram laicas. A Igreja dava auxilio vital ao Estado no controle : social, especialmente onde os bragos estatais eram mais curtos: no meio rural. Cabia ao catolicismo ir “esclarecendo a populacao de nossos sertoes ¢ do interior do Brasil que, em geral, pouco ilustrada, tanto carece de quem, inspirando-lhes f¢ — a guie pelos meios suasérios & obediéncia as autoridades ¢ a chame ao caminho legal” (Bom Retiro, Atas do Conselho de Estado, 8.9.1875:37). A A Igreja_era era _um bracgo.avancado do Estado na i sociedade, desempenhando parte das fungGes administrativas ¢ eleitora — as votasets Ocorreny was capelas (Graham, 199 1990) —, além % Segundo o reconverso Joaquim Nabuco (1897:287,983), “o espirito dos i antigos estadistas era nessa matéria 0 mesmo”, que sintetizava em seu pai: “ele no compreendia a sociedade sem moral, moral sem igvela, e (...) nao via no cato- licismo um obstéculo, mas a cendicao do progresso humano”, A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE ‘A religiao de Estado era o veiculo necessério de controle social porque o Estado nao lograra ainda realizar sua tarefa pedagdgica de transformar todo 0 “povo" brasileiro em “opiniao pitdlica”. Sem esta pedra de toque, 0 cisterga representative careceria sempre de legitimidade ¢ a frande eleito~ ral geraria sua “falsificagao”. Uruguai (1862), um dos construtores das in: tituigdes do Segundo Reinado, invocava Tocqueville para justiigar a = go publica em escala como mei dominagio imperial, O Estado deveria agir como o ponto cardeal dissemi- Givilizacao e ci odo iluminismo pom ‘palino, queria civilizar, queria um Estado forte, um povo educado, um su? palin, pee fragio livies Mas a outra face do orgulho mondrquico, como fepresentan- fragilidade de suas bases. Seu “empirismo” vinha do conhecimento, que ac propria carreira politica provia (Pang & Seckinger, 1972), de que a ordem imperial mais se insiftuava dé que se inliltrava no interior. Os percalcos em interiorizar 0 Estado, o limite da sociedade escravocrata barravam a completide do projéto civilizador. : Todavia, as disputas entre facgdes da elite monopolizaram 0 debate ptiblico € as acdes do governo ao longo do Seguntlo Reinado, que esteve mais preocupado em regrar as disputas entre os proprietrios do que em ° educar 0 povo. consenso basico sobre os princfpios da tradigao imperial dava os con- tornos da agenda politica legitima: os “melhoramentos” do sistema repre- sentativo, como 0 valor do censo pecuniério, as circunscricées eleitorais, ou da ordem:saquarema, como o sistema de ensino. Outra ordem de pro- blemas era vedada. A forma de governo, o regime de trabalho, a religiao de Estado, 0 controle social da populagéo nao entravam em pauta. Nao porque a elite imperial os ignorasse, mas justamente por estarem na base da ordem sociopolitica. Inquestionados porque essenciais. 2. REGRA OLIGARQUICA E DISSENSO LIBERAL A imagem do Império como um “clube” (Carvalho, 1980:93) carac- teriza bem 0 fechamento do sistema politico, a necessidade de-uma carta de ingresso. A mesma estraco social, a socializacdo comum e a estrutu- 6 “Sera da carreira politica davam 4 elite politica imperial uma homogencida- “de social e cultural (Carvalho, 1980; Pang & Seckinger, 1972). Isto nao “Jazia dela um corpo sem fissuras. O sistema politico hierarquizava a pr6- pria elite. | « ‘A existéncia de dois partidos atesta uma diferenciagao regional, de in- teresses econdmicos e de programa. Os partidos que se solidificaram nos 66 IDEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO | anos 1840 tinham base essencialmente em seis provincias. Segundo Car- valho (1980:169), 0 Partido Conservador concentrava burocratas e donos Seqi-Vde terra de reas de agricultura de exportagao € de colonizacao antiga, so- ““pretudo do Rio de Janeiro. O Partido Liberal era composto de profissionais liberais € proprictarios que produziam para o mercado interno em areas de Minas Gerais, S40 Paulo ¢ Rio Grande do Sul. Ambes tinham enraizamen- Havia uma polarizagao interna na elite que se express na propria di- iso partidévia er liberais. Como mostrou Mattos (1987), c “de conservadores fluminenses suplantou os liberais ¢ se impos politica e mesmo belicamente, no inicio dos anos 1840. Desde ai se confi- } gura sua hegemonia : ‘Muito embora a dominncia do grupo conseryador nao tenha sido inin- terrupta, foi sua a condugao do regime. Saquaremas, Oligarquia, Patrulha, Consistério, as varias definigées dos contemporaneos reforgamn a centrali- dade dos “vermielhos” fliminenses na “consolidagéo monarquica”, arqui- tetos das instituicdes centrais que dao 0 corpo ¢ os rumos do Segundo Rei- nado (Mattos, 1987:125-6) “Os liberais jamais conseguiram alterar em esséncia as instituicdes i que consolidaram a hégemonia saquareina. Como argumenta Mattos (1987:155ss), a disseminada idéia de qué teria havido w zio de partidos no Segundo Reinado — operado pelo Poder Moderador uuila o fracasso de um. “projete de direcao liberal” e o estabeleci- irega Gional no inicio dos anos 1840, que ficou conhecida como “reagéo monér- quica”." Os conservadores “restauravam" as instituigées que 0 Ato Adicio- } ™ Para uma andlise minuciosa das medidas dos anos 1840 que configuram a dominacao saquarema e a filosofia politica que a informou, ver Mattos (1987, esp cap. 2 © 3). Para uma anélise da constituicao ¢ do funcionamento do sistema poll- tico imperial, ver Carvalho (1980; 1988) 4 SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUICOES E CRISE at nal de 1834 teria conspurcado. Este novo conjunto de leis criava a estru-, ura politico-administrativa centralizada do Segundo Reinado: reinstitufa ~ ‘o Conselho de Estado eo Poder Madezador, dormentes na Regéncia; cen- tralizava 0 sistema repressivo, limitando mesmo 0 habeas-corpus (Mattos, 987). A insténcia propriamente executiva, a presidéncia do Conselho de Ministros, detinha poder de indicar os presidentes de provincia ¢ contro- Java o preenchimento da burocracia estatal: as nomeacGes administrati- yas — da guarda nacional, do judiciario, dos cargos eclesidsticos, do corpo docente das faculdades € do Colégio Pedro 1 — e as promogoes militares (Graham, 1990). Consolidou-se assim a centralizagao politica. As institui-<~ goes politicas ganharam caréter nacional, pondo-se para além das guerras, de facgao provinciais, deixadas 4 prépria sorte," salvaguardando o Estado do poder centrifugo dos interesses locais (Mattos, 1987; Carvalho, 1980). ‘A instituigdo nacional por exceléncia era 0 Poder Moderador, franca- mente inspirado no modelo de Benjamin. Constant para equilibrar o legis- Iativo € 0 executivo na Franga (Flory, 1981). Mas o poder ficou concentra* do nas outras duas instituigdes vitalicias. O Conselho de Estado ¢ 0 Senado~ davam apoio mas também limite ao Poder Moderador; guardavam relati-“;,.'« va independéncia tanto do Imperador quanto da camara baixa ¢ eram for- mados pot — quase os mesmos — homens experimentados, no dpice da carreira politica: “O conselho era a coroagao da carreira e rarissimamente a se chegava sem prévia e longa experiéncia em variados cargos politicos” (Carvalho, 1980:98).'6 ‘A hegernonia conservadora se alirmou, consolidando-se na ciipula do sistema: a maioria no Conselho de Estado e no Senado (Carvalho, 1980:168), o que lhe dava ascendéncia sobre o Poder Moderador (Mattos, 1987). B se materializou na prevaléncia nos gabinetes. Embora os liberais tenham va- » Em termos muito simplificados: a maioria dos politicos do Império mante- ve seus lacos locais € operou politicamente em duas esferas heterogéneas: na Cor- te, com as instituicées nacionais, ¢ nas localidades, com os proprietarios, que cons- titufam o eleitorado de direito e de fato: As tentativas de nacionalizacao cfetiva do Estado, com a imposicao de instituigées e de legislacao desde 0 centro até a base, contaramn sempre com a resisténcia local representada nos partidos, sobretudo no Liberal (Carvalho, 1980). De modo que o Segundo Reinado parece mais uma solu- Go de compromisso entre 0 Hstado € 0 poder local do que a imposigao de um pélo sobre outro — como defende Graham (1990) “ Composto de 12 conselheiras fixos € 12 extraordinérios, a maioria jé sena- dores, nao era eletivo. Os primeiros foram os chefes politicos sobreviventes da Regéncia e que deram assento a si préprios. Os senadores eram 60, nomeados pelo 67 68 IDEIAS EM MOVIMENTO — & GERAGAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-1MPERIO rias vezes obtido a maioria na Cémara dos Deputados e chegado a presi- déncia do Conselho de Ministros, o fizeram menos que os conservadores ¢ s6 lograram forca'nos anos de dissolugo do regime, mesmo assim nun- ca o bastante para alterar o nticleo duro das instituigdes conservadoras. Durante o Segundo Reinado, os conservadores dominaram o executivo por 26 anos e, exclufdos aqueles em que uma dissidéncia do partido assu- miu o gabinete (a Liga Progressista de 1862-1866), seu dominio foi inin- terrupto de 1848 a 1878. ue ‘a de lizagdo politica dos saquaremas permitin 0 controle pleno das eleicoes pelo executivo, garantindo a reproducao legitima do sis- tema. A lei eleitoral de 1842 nomeava como fiscais das eleigdes locais os de- legados de policia, por sua vez indicados pelo poder centwal. © controle do judicidrio ¢ da policia, @ patronagem e a semi-institucionalizacao da frau- “de fizeram do Partido Conservador uma forga invencivel na maioria das ‘ocalidades. Um acordo tdcito garantia, porém, a continuidade a6 dominio liberal onde ele era mais solidamente estabelecido. Assim, o sistema elei- toral, segundo Graham (1990:55ss), evidenciava ¢ disciplinava diferencas intra-clite, substituindo a guerra aberta entre faccdes vigente no inicio do Segundo Reinado, Permitia um equilibrio precario entré dois contendores, um mais forte que o outro, mas nao forte o bastante para desconsiderar 0 adversario. Firmaram-se, assim, as regras mfnimas de convivéncia entre a propria elite. Os liberais quiseram sempre reformar a obra centralizadora saquare- ma, como repetiram em todos os seus programas, transformando-a em um, imperador a partir de lista eleitoral, com 0 requisito de idade minima (40 anos) e renda. O Senado visava compensar 0 peso regionalizado da Camara. No € tanto, o perfil dos senadores pendeu progressivamente nesta segunda direcio: 76,1% representavam a provincia de origem. As provincias melhor representadas eram Minas, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro (Taunay, 1941:84, 125). Entre 1870 e 1889, os senadores eram idosos (60% tinha mais de 60 anos) e politica~ mente experientes (56% tinham sido presidentes de provincia); a maioria tinha curso superior (82,3%) em direito (66,3%) (Leite, 1978:56). O sistema se com- pletava com 125 deputados gerais com mandatos de quatro anos (Rodrigues, 1978). ' Bmbora os partidos se equiparem em niimero de gabinetes (14 conserva dores, 15 liberais), os liberais dominaram por perfodos mais curtos [1840-1841; 1884-1848; 1862-1866 (Liga); 1878-1885; 1889] (Carvalho, 1980:163). Ha de se notar que as invers6es eram de situagao e nao de gabinete, o que significa que a duragéo do domfnio de um partido era continua. a SOCTEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE modelo as vezes mais (como em 1831), as vezes menos (como em 1869) {ederativo.’* Mas propunham aperfeicoar os mecanismos de representagio e nao revogar a ordem monérquica “A estabilidade do sistema politico se legit 4 violéncia eleitoral no interior. E também quanto ao critério de cidadania ~O regime era, porém, instavel porque se assentava sobre um campo mi- nado: @ propiledadé éra basicamente de terras ¢ de escravos. © Segundo Reinado nasceu sob a conviccao da impossibilidade de prosseguimento do trélico negreixo. A decisao dos conservadores de alterar esta base ficou le- galizada pela aboligao do wrafico e pela Lei de Terras de 1850, mas sua efe- tivagao plena, com a midanga do regime de trabalho, implicaria néo ape- nas minar a base da economia, mas necessariamente abalar os pilares da hicrarquia social e do sistema representativo. O risce era comprometer a ordem politica recém-consolidada."” i. Paes scando relormas internas ao status quo imperial. Seu slogan principal da esta medida: a liberdade na ordem. Seu liberalismo nada tinha de de- mocratico. Concordavam com os conservadores em manter 0 direito de voto ado”, desde que resguardada uma limitacao pecuniéria. Sua for- mnulacao do problema politico brasileiro era estritamente liberal; nao re- dundava na questéo democratica ao modo europeu ou norte-americano: :ngo visava expandir os direitos politicos para a maloria, mas garaniir a opi- * O primeiro programa do Partido Liberal, coalizio de moderados ¢ exaltados, de 1831, defen rquia federativa, por me Poder Moderador; Assembléia da lide independente (Brasil ta foi a proposta derrotad: aprovacao da Lei de Interpretacao praticamente dizimado com a repressio Minas em 1842 € de Pernambuco em 1848 (Carvalho, 1980). "A necessidade de reformar era cogitada por certos setores da elite desde a Independéndia, foi francamente admitida nos debates parlamentares de 1850 € nas decisées conjuntas em torno do tréfico e da Lei de Terras durante o gabinete Para- na (Alencastro, 1980; Carvalho, 1980; Mattos, 1987) iense, 1878:12). Bs- 1841, Este evollas de 69 70 1DEIAS EM MOVIMENTO — A GERAGAO 1870 NA CRISE BO BRASHA” © yura burocrético-legal, conforme principios racionais ¢ abstratos, sobre- tudo capacidade funcional e racionalidade administrativa. Doutra par te, para atender aos interesses patrimoniais da camada senhorial que 0 sustentava, o Estado imperial precisava preencher cargos e fungdes esta- - tais segundo o principio familista do favor. Assim, a burocracia estatal © ©." sao mesmo tempo criava.critérios de mérito, para seleco de parte de seus ©funcionéries (como os concursos piiblicos) ¢ os subvertia, afetada pela logica afetiva — tanto em sentido positivo, de apadrinhamento, quanto ‘egativo, de recurso a violéncia — da casa patriarcal (Carvalho Fran- co, 1978). Esta tensfio entre 0s principios da dominacao patrimonial que pertna- nece € a expansio da dominacao burocrético-legal, que vinha se amplian- ‘do desde a consolidagao do Estado nacional, ocorre no ambito do proprio _=sEstado como choque entre duas légicas. Trata-se, na verdade, de uma "qualidade estrutural” (Fernandes, 1975:84) que eclode na agenda publi- © Ga nas décadas finais do Império. + Outro pélo de tensao estrutural ganhando clarificagao vinha da esfe- ~23"ra da economia. Como demonstram varios autores (Viotti da Costa, 1986; 2 Rernandes, 1975; Holanda, 1972; Freire, 1951), a sociedade brasileira pas- sava por profundas transformagées na segunda metade do século xix, car- readas por dois movimentos simultaneos e convergentes: a decadéncia do modelo econémico colonial ¢ a urbanizacio. ® Ag telagbes Estado-sociedade no Império tém sido objeto de longa con- trovérsia, com as posigies escorregando ora para um ora para outro extremo a completa submisséo da politica 4 légica familista, praticamente sem media- ‘GBes, como na tese patriarcalista de Oliveira Vianna ¢ Gilberto Freire, reedita- da por Graham (1990); ou entdo, no outro extremo, a tese inversa: a subordi- nacao de toda a légica social e econdmica ao controle de uma elite encastelada no Estado, como defende Faoro. Hé ainda miltiplas definigbes de patrimonia- lismo no debate. Uma discussdo mais apurada sobre assunto foge ao escopo i deste trabalho. Aj SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUICOES E CRISE 77 A proibigdo do tréfico negreiro nos anos 1850 produzin um boom de~ &, envolviment ‘ou novas atividades econdmicas, novos gra-6 )e-« lavoura de café permitiu~s “ s provincias, enquanto o mercado interno perma-», giram novos grupos socials ligado coinpanhias de imigracao, ferroyias. As desequilibrio entre as provincias voltadas para o mercado intemo ¢ as ex Sa bandos, seguros/-5 partadoras, 6 te politico comecava a balancar. As lavouras.de café do Vale do Parafba € os engenhos Ue agicai. de Pernambuco € Bahia tinam prosperado, alimen- tada pela mao-de-obra eserava disponivel, mas davam sinais de esgotamen- to jd nos anos 1860, pondo as claras a progressiva decadéncia do trinémio jatifindio-escravidao-monocultura implantado:na Colénia. "6 crescimento das lavouras de café ao sul do pais, recrutando méo- | de-obra extensiva, fez do tréfico interprovincial um bom negécio para as provincias economicamente enfraquecidas ¢ progressivamente concen- jrou escravos em Minas Gerais, S40 Paulo ¢ Rio de Janeiro, sem garantir a eficiéncia que o sistema lograra ao norte. A imigragao crescia: vieram pequenas levas de europeus para colénias de parceria ao sul ¢ em Sao Paulo c grande volume de portugueses para o comércio da Corte (Alencastro, 1988) ‘Ambos 0s processos mudaram consideravelmente a composig4o popula- cional do Império: aumentando 0 mimero de imigrantes, diminuindo a pro- porcio de escravos ¢ redistribuindo geograficamente a populacao, atrain- do novos habitantes para as cidades.” ‘A vida citadina cresceu em importancia vis-a-vis 0 mundo rural, como pélo de novas atividades, servigos € negécios, ao mesmo tempo em que a a Minas tiniha um quinto dos escravos nacionais em 1872 e em 1888 era ainda 3 a provincia com o maior concentragio de escravos. “Até 1880, a producio de calé da Zona da Mata aproximou-se dos nivels atingidos no Oeste Paulista. Mas a par- tir desta data 0 oeste cresceu e Minas estancou” (Alencastro, 1989:126). Sobre as mudangas de base econémica do regime, ver Stein (1961), para a decadéncia do ca- 4€ fluminense, Mello (1984), para a crise do agiicar de Pernambuco, Dean (1977) para o crescimento do café em Sao Paulo, Freire (1951), para a urbanizagio ao norte, Morse (1970), para o crescimento da cidade de Sao Paulo e Alencastro (1997), para a Corte, 78 1DEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERAGKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO atividade agricola colonial. dos engenhos de agticar do norte declinou em > face do verdadeiro “centro de exploracao industrial” que eram as lavouras de café do Oeste Paulista (Holanda, 1990) Neste macroprocesso de mudanga as varias dimensdes da crise do Im- | perio encontraram seu centro de gravidade. As transformacGes socioeca- ‘Qi “endmicas alteraram.a base sobre a qual tinha sido construida a logica poli- Laie 10 €CO- fOmico. “Houve Novas possibilidadés para investimento, emprego, mobi- Jidade social e mobilizag&o politica, A mudan¢a ¢ econémica € social tornou rescentemente mais dificil para a elite politica dirigir a nacdo de acordo “com as regras tradicionais” (Viotti da Costa, 1985:731). O arcabouco juri- dico-politico centralizado dos saquaremas se prestara bem ao dominio con: servador e a economia escravocrata, mas 0 surgimento de novas ativida- des esbaifava Ireqtientemente nos entraves da lei, que dificultava a vinda x "do investidor estrangeiro, nao Ihe dando cidadania, ¢ o desenvolvimento do 105, NAO proprietarios de terras nem de escravos, nao representados no parlamento. ss08 concomnitantes pro- ‘feitos da emergéncia “de 2guma “ordem social eampeuaea na estrutura patrimonial do Império (Fer- -nandes, 1975). Vigoravam tanto processos de racionalizacao impulsionan- expansao da primeira quanto outros tantos movimentos da tradigao » Fesguardando os privilégios da segunda. coe “Neste contexto, a elite politica se viu mum dilema vis | social de origem, vis seu grupo s senhoriais: manter suas estruturas de pres- se Asal bastante para ao mesmo tempo produzir € controlar a expansao }da ordem social competitiva, para modemizar o pais sob tutela a estamentall ‘0s da elite politica formularam diretamente este problema necessidade de uma reforma controlada. O eixo liberdade-ordem indicava as modalidadés' de solucao concebtveis. Os liberais, como vimos, defendiam a incorporagao parcial da nova sociedade no sistema politico € a abOligao dos entraves juridico-politicos a sua expanséo, como, por exem- poe ere aera er ae ee A SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE plo 0 Cédigo Comercial. 0 trabalho livre era 0 corolério de uma reforma politica, Os conservadores, por seu tumno, preocupavami-se sobretudo com amanttengio da ordém ¢ com as medidas que garaiititiam siia continui- "Feacao mondrquica” tinha alcancado certo excesso que “su- focava” a sociedade, como admitiu um de seus mentores (Uruguai, 1862). periada” argumentou consistentemente que as formas de nizagio do sistema jurfdico-politico ¢ a estrutura da sociedade tinham sev; arguitetado tao entrelacadas que a reforma © a dissolugao da outra “"Reformas, portanto, nao se fariam por consenso € a aversio aos con>® flitos fez dessa elite politica a propria encarnacao da cautela em matéria de mudanca. O ritmo natural das reformas no Império foi o de resolver 0 que urgia, deixando amadurecer no tempo medidas mais essenciais. A altera- «ao de conjuntura nao rebateu automaticamente nos principios da refle- xo politica, de tal sorte que as reformas inevitaveis foram gestadas pelos mesmos esquemas de pensamento presentes na criacdo das instituigées do Segundo Reinado. Toda proposta de reforma se apresentava sempre como “melhoramento”, sem questionar a légica do sistema. No inicio dos anos 1870, os assuntos a dominar o debate ptiblico eram quest6es politicas, dada a ciséo liberal, ¢ a guerra contra 0 Paraguai, que se conclufa. Que as transformacdes econdmicas pediam nova legislacao € especialmente um novo regime de trabalho, nao se negava, mas as ques- tes relativas escraviddo cram o mais melindroso dos assuntos, apare- cendo come objeto de estudos, nunca como medidas a serem implemen- tadas no curto prazo. A escravidao era tematizada, sem se transformar em objeto de deliberacdo. Embora fosse um limite reconhecido 2 expansao daquela sociedade, era continuamente escamoteada como problema poli- tico, protelando-se sua resolugdo. Todas as reformas da pauta liberal ¢ mesmo a questo servil apareceram anos a fio nas falas do trono, sem sur- tirnenbum efeito.” A declaracao anédina que o imperador fizera em 1867 Uruguai publicou 0 Ensaio sobre o direito administrative precisamente em 1862, ‘como resposta a Zacarias de Goés que lancara anonimamente 0 Da natureza ¢ limites do Poder Moderador, verdadeiro manifesto da Liga, em 1860. A simmultaneidade corro- bora meu ponto de que as explicitagies doutrindrias seguern as contestacdes. » Ver, por exemplo, a fala de 1865, quando se pede reforma judicidria da guarda nacional e do recrutamento, ¢ a famosa de 1867, quando vem mencionada pela primeira vez.a escravidao. A instrugaa piblica vem reclamada em praticamen- Te todas a partir dai (Calmon, 1977) onan ge © uma delas nao s¢ faria sem", Peps 19 80 IDEIAS EM MOVIMENTO — A GERACKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO 4 Junta de Emancipacio em Franca — a ninguém menos que os {dolos da elite imperial: Guizot, de Broglie, Laboulaye ¢ Montalembert — expressava perfeitamente o espirito da ordem sobre a escravidao: “questao de forma € de oportunidade” (Nabuco, 1883:62). Dada esta conjuntura, a expectativa em torno do gabinete de conser- vadores moderados que subiu em 1871 era que retomasse os projetos pa rados pela guerra, compensasse os militares que voltavamn dos campos de batalha, resolvesse os litfgios partidérios com nova lei eleitoral, serenando os animos exaltados dentro da elite. Mas, ao invés das questdes politicas candentes, seu programa converteu a escravidao em problema central da agenda politica. Trazia como ponto capital o Ventre Livre, que considera- va condigéo da modernizacao da economia ¢ da sociedade. ‘A dissensao liberal, sua opcao pela abstencao eleitoral em 1869, dei- xara aberto 0 caminho para os conservadores assumirem a posi¢ao de re- formadores. Quem tomou cargo da tarefa foi um tipico estadista do Im- pério: 0 Visconde de Rio Branco, que impés a seu pr6prio partido uma independéncia de acdo: escolheu para ministros homens novos como Joao ‘Alfredo Correa de Oliveira, ainda deputado, e reservou para si mesmo a fazenda e a guerra. Sua {érmula para solver o dilema politico era a conci- liagio do “principio da liberdade na ordem” com as exigéncias da conjun- tura, procedendo A “aplicagao desses principios as necessidades de-aosso tempo” (Rio Branco, 8.5.1871, in Chacon, 1997:289-90) 30 José Maria da Silva Paranhos (1819-1880) galgara todos os passos da car- reira politica cldssica no Império. Baiano, membro de uma familia de comercian- tes portugueses decadentes. Diplomou-se pela Escola Militar em 1841. Ingressou na politica como deputado liberal provincial pelo Rio de Janeiro em 1847, mas migrou logo para 0 Partido Conservador pelo qual foi deputado geral em varias legislaturas, presidente de provincia, ministro dos Negécios Estrangeiros, da Mari- nha, da Guerra e da Fazenda, senador por Mato Grosso ¢ membro do Conselho de Estado extraordinario a partir de 1866. Feito visconde por sua atuagao no Prata (ministro residente, chefe de legacao e enviado especial na Argentina, Uruguai e Paraguai, onde Ihe coube a organizacéo do Governo Provisério em 1869-1870). Membro das associagées “intelectuais” do Império: presidente da Sociedade Au- xiliadora da Industria Nacional, grao-mestre do Grande Oriente do Brasil, sécio do Instituto Historico Geogréfico Brasileiro desde 1847, diretor do Jornal do Co- mércio em 1851, desde 1863 professor da cétedra de economia politica da Escola Militar ¢ diretor da Politécnica em 1874. Ao deixar o gabinete a 26 de junho de 1875, tornou-se consul brasileiro na Inglaterra. Sua tiltima atividade publica foi a presidéncia honordria da Sociedade Brasileira contra a Escraviddo, em 1880 (Be- souchet, 1985). ——_ ; socleONDEaMMBE REAL VALORES. | NeimUlGmmeemciisis: (8) Quando da apresentago de seu gabinete 4s cAmaras, Rio Branco pon- derou que a situagao internacional tornava @ escravidao insustentavel €co- pomicamente (apud Besouchet 1985:172). Reconheceu também que a! abolicdo atingiria a estrutura da economia e de todas as instituigdes sociais, mas exatamente por isso jamais contaria corn unanimidade. Dai a vanta~ gem de fazé-la no momento de menor resistencia € sob a forma de menor prejuizo. A conjuntura de divisdo liberal dava a oportunidade de operar a- Pljorma por dentro da ordem, porgue “se ¢3'2 reforma encontrasse contra." si os preconceitos, a resistencia combinada de wm partido, ninguém a pow deria resolver sem causar grandes danos ao pais” (Rio Branco, Anais dota = Senado do império, 23.5.1871). & forma mae adequada era paulatina. 0.” ventre Livre seguia um. exemplo b in-sticedido noutros paises, N40 afeta~< fia a propriedade presente € estipulava essa marcagao de décadas, tao cara ye reformas imperiais. Iria solucionar 0 problema gradualmente, dando @ escravidao uma sobrevida de vinte anos, ‘ao estabelecer 0 protetorado do senhor sobre 0 ingénuo. Mas suprimia por completo a perspectiva de re- produgio do sistema escravista. ~grgumeéritava o Visconde que o firn da escravidao era condicao para a modernizacéo econdmica do pais, como “requerem nossa civilizacao ¢ até os interesses dos proprietérios”. Seria mesmo, jndiretamente, “a melhor mmaneira de defender os intexesses agricolas” (Rio Branco, Anais do Senado pe oo de pastergar, conclufa: “os femores exagerados, essa demasiada prudéncia de alguns, esse aferro aos pabitos, ao status quo, € que provacam as solucées violentas” (Rio Branco, 23.5.1871, in Chacon, 1997:304), como a guerra fratricida em que @ ques- tao desaguara nos Estados Unidos. Rio Branco citave 4 Inglaterra € a Fran- ga como exemplos de aboligao imediata pem-sucedida. Era 0 coragio do siatus quo imperial que pedia a0 Senado apoio para feri ‘A resistencia veio dos dois partidos. A exacerbacao dos animos, as discussbes acaloradas no parlamento mostram bem a gravidade da prox." posta, Intimeros panfletos de liberais € de conservadores, protegidos por a: é pseud6nimos, reprovavam a medida, designando-a reiteradamente de, *revolugao”. Um panfleto de combate 20 gabinete, lancado por Tibur- cio Velasquez ainda em 1871, intitulava-se precisamente A revolucéi Ensaio politico. © ponto visceral da critica dos liberals moderados era que 0 programa conservador se compupha de “retallios roubados 4 bandeira liberal” (Sil- veita Lobo, Anais do Senado do Impéria, 8.5.1873) seu combatente mais de- nodado foi Zacarias de Goés € Vasconcelos, responsdvel por nada menos 82 IDEIAS EM MOVIMENTO — A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-INPERIO que 15 dos 47 discursos contrérios A reforma.” Assim sintetizava a estra- tégia dos conservadores moderados: “Repelir de todo essas reformas era impossivel: néo h4 quem tenha forca para impedir 0 progresso de uma na- ¢&o que quer marchar. Deixd-los fazer o Partido Liberal (...) fora tratar face a face com a democracia.(...) [a decisdo foi] Facam-se sim as reformas li- herais: mas fagam-se coadas pelo filtro cor 1872:6). © efeito, advertia, seria a “desnaturacao” d ‘onsolida- dos, abrindo espaco para que se fortalecesse 0 republicano. O epicentro da platalorma dos liberais moderados nunca fora a escravidao. Reiormar era antes de tudo reverter ou ao menos equilibrar a dominancia conservado- 4a, extinguindo ou limitando as instituicGes vitalicias dominadas elos con- servadores, Por esta Iogita, a reforma capital deveria ser a eleitoral ¢ a tihi- ma questao, o regime de trabalho, numa jornada de,décadas. Rio Branco desgostou os liberais por sua inversdo de prioridades, deixava delongar a reforma eleitoral, além de roubar a medida mais radical que os liberais tinham posto em sua pauta Exatamente por se apropriar da bandeira liberal, Rio Branco atraiu o combate acirrado de seus correligiondrios “emperrados”. Paulino Soares de Souza, catdlico contrito, filho de Uruguai, de quem herdara fazendas de café c a lideranga saquarema, era entéo presidente da Camara e foi dai por diante lider do bloco conservador em dissidéncia que guerreou todas as re- formas. Fez o combate minucioso da plataforma e tentou mesmo a derru- bada do gabinete, alertando, como Zacarias, para a inverséo de posicées: “o papel do partido [conservador] era de resistir” (Soares de Souza, Anais da Cimara dos Deputados, 29.5.1871). Para os emperrados, as instituicdes imperiais eram vasos comunicantes, a alteragio em uma desandava todas ‘A discussdo do Ventre Livre produziu a primeira justificativa “explici ta da escrayiddo no Segundo Reinado. No discurso clogiiente de José de Alencar, a abolicao poderia ocorrer sob duas formas: a desejavel era a pau- latina “revolugéo dos costumes’, num processo de emancipagao volun- téria. J4 a alternativa do gabinete Rio Branco era a revolugio efetiva, com a desvantagem de ser a prazo: *! Outros discursos da oposigéo liberal vieram de Saraiva, Sinimbu, Nabuco de Aratijo, Silveira Martins, Pompeu, Silveira Lobo, Figueira de Melo, Silveira da Mota, Torres Homem. Para um resumo do debate ver Nabuco (1897:52ss). O chefe do gabinete foi achincalhado por aliados e inimigos e teve mesmo de ser prote~ gido dos tinteiros que voaram pelo recinto obrigando a suspensio dos trabalhos. Ver a descrigéo detalhada da sesso em Besouchet (1985) SOC)EDADE IMPERIAL; VALORES, INSTITULGOES & CRISE uma arma perigosa que se forja para os édios, as intrigas ¢ malquerencas das tocalidades; ¢ com a qual se ba de violar o asilo do cidadao, perturbar a paz das familias, e espoliar uma propriedade que se pretende garantir, A berda- de do ventre essa, senhores, € iniqua e barbara. (Alencar, 13.7.1871:97) ‘A seacéa de liberais ¢ emperrados era contra a reforma em si que, atentando contra o fundamento da propriedade, atentava em cadela con- tra todo o sistema econdmico, mas era também contra o modo como se re formava. Chamando sobre si o protesto combinado das duas pontas do espectro politico, 0 projeto emancipacionista explicitava a partitha dos va- lores fundarnentais entre liberais ¢ conservadores. O preco da ordem era a imobilidade. Branco afrontou 0 parlamento e-fez aprovar a férceps com ra- pidez surpreendente a primeira medida antiescravista desde o fim do tra- fico, o pior dos ataques ao status quo imperial. O efeito politico do trauma “Go 28 de setembro de 1871 foi solidificar 0 racha de ambos os partidos. ‘Kedisio intra-elite vulnerabilidade das instituicdes, transformou em objeto de debate politico” os pilares da sociedade imperial. A apro- vacéo do Ventre Livre obrigou a redefinicao das altemnativas politicas dai por diante. Como resumit um liberal radical: “a yecente lei abolicio- nisia langou-nios no meio do tufao. (...) 0 governo sinceramente parla- meniar ou republica, eis o dilema imposto” (Tavares Bastos, 23.12.1871 149,148). : - Contudo, a Lei do Ventre Livre, como Rio Branco enfatizou varias ve~ zes, era urna medida de natureza sobretudo econémica. Mesmo essencial, era apenas uma das medidas de um programa de modernizacao social que constituiu talvez o maior bloco de reformas do Segundo Reinado. Durante seus quatro anos de mandato, Rio Branco dirigiu o pais com pulso firme, implementando um programa de reformas que ia diretamen- te de encontro aos dois esteios do status quo de 1841: seu regime de traba- 2 debate foi acompanhado ¢ a medida festejada pelos jornais dos liberais radicais, que lotaram as galerias da cdmara com a mocidade das escolas superiores da Corte, “Durante varios dias procissées civicas se encaminharam a residéncia do Visconde de Rio Branco, encabecadas por Tuidosas filarménicas ¢ bandas de mui- sia, Ein $40 Paulo, os estudantes da Faculdade de Direito organizaram brilhantes reunides festivas” (Besouchet, 1985:175). 8 84 IDEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO Iho € seu sistema repressivo. A abolig&éo gradual da escravidao® deveria se fazer acompanhar de uma concomitante imigracao européia. Rio Branco planejou introduzix cem mil europeus no pais. Adicionalmente, instituiu leis de controle do trabalho livre e fez passar a lei de naturalizagao dos estrangeiros residentes no pais ha mais de dois anos (Decreto n. 1.950), a qual beneficiava imediatamente muitos portugueses clandestinos, mas que era um modo de atrair novos imigrantes. Com o mesmo intuito, man- dou medir as terras do governo central, criando a Comissao do Registro Geral ¢ Estatistica das Terras Puiblicas ¢ Possufdas (Decreto n. 5.788) e re- gularizar a situagao das propriedades do Estado no Amazonas, Pard, Para- nd € Mato Grosso (Decreto n. 5.655). Em 1871, criou-se a Diretoria Geral de Bstatistica que fez proceder ao primeiro recenseamento geral da popu- lacao da histéria do Brasil (Decreto n. 4.856). A reforma desmontou parte do arsenal repressor saquarema, que ga rantia 4 “ditadura” do Pa: Partido Const _desfez. ez todo, 2. ‘arcabouco de pode revogou a discriciondria Lei de 3 de dezembro de 1841, verdad te saquarema. Ampliou o habeas-corpus ¢ regulamentou a prisdo preventi ransteri do a guarda nacionabe abolindo o recrutamento forcado para a fora 1 publi ca, substitufdo pelo sorteio (Lei n. 602 de 10.9.73, Decreto n. 5.573; ¢ Lei n, 2.556 de 26.9.74). Fez também uma reforma parcial do Estado, de na reza sobretudo administrativa, com criagéo de novos postos ¢ departamien. tos burocrticos (Decretos n. 2.342; n. 5.456; n. 2.113; imperiais que 08 liberais requeriam: propés 0 registro civil de nascimentos, casamentos € Obitos (Decreto n. 5.604; Lei n. 1.829), 0 que retiraria parte significativa do controle que a Igreja exercia sobre a vida privada da populacdo. A mais drdstica alteracao do cotidiano veio com a introducio do sistema métrico, padronizando pesos € medidas, conforme o regime criado pela Revolugao » Em sintonia com a Lei do Ventre Livre, mandou proceder & matricula dos escravos e dos ingénuos (Decreto n. 4.835), numa espécie de censo da escravidao. Instituiu um imposto de importagio provincial, que por si mesmo desestimulava 0 1wafico interprovincial de esctavos; criou um imposto sobre transmnisséo de proprie~ dade (Decreto n. 5.581) que era ainda outro modo de incentivar as manumissdes em testamentos. Todos os decretos ¢ leis citados doravante esto em Javari (1889) , SOCHEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES & CRISE rrancesa (Decteto n. 4.712; Decreto n. 5.089; ¢ Lef n. 1.157). 0 dinheiro pebém mudou de face: uma reforma monetéria alterou os valores, pesos, Holos e médulos das mmioedas de prata e de nfquel (Decreto n. 4.822). (© ponto forte de sua agenda foi promover uma modermizagao da infra- estrutura do pais, visando gerar condig6es para a expanséo econdmica ¢ para novas atividades. Rio Branco fez aprovar varias pequenas medidas le- fislativas de incentive ao comércio ¢ alterou as relacdes com os paises vizi- ___- hos ao reformar o cédigo comercial (Decreto n. 4.882) ¢ efetivar uma reforma aduaneira (Decreto n. 5.580). Expandiu as comunicagies inter- nas, vitalizando o transporte de cargas e de pessoas. Duplicou a rede fer- roviéria, financiado por grandes empréstimos ingleses, de tal sorte que em 1880 havia 11 companhias inglesas de estrada de ferro no Brasil (Gra- ham, 1968}. Bstabeleceu um cabo telegréfico submarino que conectou 0 Brasil com a Europa, a América e mesmo as ‘apitais provinciais entre si Em 1873 0 correio da Corte a S40 Paulo Jevava cinco dias a chegar; as no- ticias estrangeiras vinham em vapores, com atraso de semanas (Werneck Sodré, 1966:257). No ano seguinte, 0 pais passou a receber noticias diarias da Europa ¢ dos Estados Unidos. gabinete preocupou-se também em criar cidadaos aptos para aten- der as exigéncias da modernizagao em dois sentidos. De um lado, incorpo- rando efetivainente os homens livres pobres, nao na politica, mas na eco- oma, Nesta seguiida direcao, ideou a expansao do alunado, abarcando Giangas € adultos dos estraies Socials até entdo sem acesso ao sistema de ‘@isino Sia feforiia educacional de 1874 propunha ensino técnico, pro- fissionalizante, através de “escolas industriais” provinciais, e programas ded, de adultos, bem como inaugurava dez escolas pitblicas pri- preocupago como ensin© ‘enico ¢ 0 direcionamento ) das facul obravam. bacha- a expansao do ensi lava professores. Em consonancia, a refor- ma do ensino superior visava diversificar as carreizas. Por um Jado, 9 fomen- ‘10 4 profissionalizagao do mogistério viri ado em letras do Colégio ‘Pedro II, na orte, € a criagdo de 13 escolas 85 QB, 86 1DEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERACAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO 2 normais, quase uma por provincia (Haidar, 1972:125). Por outro, criava es- % colas técnicas superiores, abrindo carreiras praticas para grupos sociais néq_ (0 senhorial. A Escola de Minas de Ouro Preto lum novo tipo de elite (Carvalho, 1978). A.divi- : séo da Escola Central em. Militar e Politécnica separava militares e enge- p pheiros, chamando os menos abastados para suprir os postos indignos para ‘a elite, que continuaria exercendo a magisitatura, a medicina e a politica Ofereciam pregos mais médicos e exames mais faceis do que os cursos de direito (Haidar, 1972:59, 88). A reforma efetivamente ampliou a popula- cao com acesso a educagéo superior no Império (Moacyr, 1937:506). © espirito da reforma era 0 corolério da obra saquarema: a condigio para a formagao da opiniao publica, essencial ao verdadeiro regime repre- sentativo, era-a educagao do povo e a civilizacao da elite. A perspectiva de fim da escravidio € a constatacdo de que os homens livres pobres cram despreparados* criavam tanto um problema de substituicéo de mao-de- obra quanto de manutencéo da propria ordem. As medidas respondiam, assim, a necessidade de criar um povo de trabalhadores — 0 que ia em consonancia com a encomenda de uma Lei de Locagao de Servigos a Na- buco de Aratijo em 1872 — e & expectativa de formar um.estrato interme- diario entre os homens livres pobres e a elite extrafda dos estamentos se- nhoriais, capaz de executar as tarefas que o crescimento ¢ a diversificagao econdmica do pais requisitavam. 0 resultado destas medidas foi semelhante ao do Ventre Livre: apro- ©. varam-se no legislative trig6es, nao se implementaram com- © pletamente. Produziram assim um duplo efeito: géraram uma moderniza- < *©<¢30 incompleta, sem concretizar inteiramente a incorporagao da sociedade externa ao cénizo do sistéma politico, ¢ erodiram a sustentagao politica do regime, ao acirrar 0 conilito intra-elite. Rio Branco vislumbrou a existéncia desta “nova sociedade” beirando as ' portas do mundo oligérquico. Sua reforma das instituigées seguia a légica saquarema de dilatar minimamente o sistema politico. Mas ponderava que era melhor disciplinar a mudanca da economia € da sociedade, temendo que deixada & propria sorte ela deitasse abaixo toda a ordem imperial 1ério,do Império, que era a pasta responsavel pelo ensino, para 1869 era mil alungs numa populagao de oito milhGes de livres. Os telatorios dos ministros ¢ os projetos de reforma estéo em Moacyr (1937) 4 SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES & CRISE 87 AA CONFIGURAGAO DA CRISE © processo de cisdo politica ¢ a tentativa de madernizacao da socieda- de ¢ da economia dos anos 1870 geraram uma crise que desestabilizou a prdem saquarema. Os partidos politicos se desfiguraram, exacerbou-se a d- ao liberal ¢ 08 principios de legitimacao da ordem sociopolitica foram rei terados por uma ala reaciondtia, Além disso, a reforma conservadora abriu ovas vias de acesso ao universo politico para agentes sociais até ento alijados. DO REGIME Bees, ‘As reformas do inicio dos anos 1870 geraram uma crise interna a elite, politica, Quebraram duas regras técitas do regime. Na forma, violaram 0°, principio do consenso na tomada de decisdes no Império, que Ihes dava 0 cay, rdter de responsabilidade coletiva. Substantivamente, abriram as questes,. ” indiscutiveis, a escravido, a religio de Estado, o sistema representativo,..~-- inserindo na agenda politica os fundamentos do status quo imperial. “=o, No momento em que as reformas mais profundas foram tentadas, os , principios da ordém Sociopolitica se clarificaram (Ringer, 1992). A amea a as imstituigbes-chave suscitou a reafirmacdo das instituigdes ¢ a reitera-* “= Gao dos valores da tradico imperial por membros de ambos os partidos, cujag vores pontificaram em diferentes loci do espectro politico em defesa dos’ imodos tradicionais de pensar ¢ agir. ea ‘Alguns autores distinguem matizes de liberalismo (Bosi,1988; Faor0, 1976) e procuram identificar possiveis tedricos de uma modernizagao con- servadora, como os “positivistas ilustrados” (Paim, 1981) ou os “autoritarios instrumentais” (Santos, 1978). Todavia pouco atentam para a presenga no“ interior do liberalismo brasileiro de um. corpus de pensamento que € mesmo reaciondrio: no sentido lato, de reagio e resisténcia A qualquer mudanca na ordem sociopolitica. Embora seus argumentos nao espelbem a opinido da maioria, pdem em alto-relevo as estruturas tacitamente aceitas também pelos reformadores imperiais € resguardadas pelas instimicdes vitalicias. E enunciam elogiientemente as razdes da indesejabilidade da mudanca: a mais sutil alteracdo poderia por a perder o proprio padrao civilizacional do Império. Este grupo bombardeava mesmo a, de resto consensual, dilatagao das instituigdes politicas, sem reviso de seus prinefpios. Discussbes particular- IDEIAS EM MOVIMENTO — A GERACKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO mente agudas se deram em torno das grandes ameagas & ordem sociopo- Iitica, na reforma do regime de trabalho, como j4 vimos, mas também na secularizacao das instituigdes ¢ na reestruturacao do sistema politico. Mais do que uma exposigéo de principios, os emperrades construfram fundamen- tacdes ad hoc em defesa das instituigées € valores atacados, dando mais uma vez provas do cardter pragmético de sua reflexao politica. As justificativas surgiram pari pass com os ataques ao regime. Quan- do em 1862 a Liga se insurgiu contra a sobreposicio entre Poder Modera- dor, Poder Executivo e Partido Conservador, os saquaremas Uruguai, S40 Vicente e Bras Florentino sairam em defesa das prerrogativas do quarto poder. Este tiltimo reinterpretou Benjamin Constant, advogando um “po- der executivo supremo” e revidou os liberais com “o rei reina, governa ¢ administra” (Oliveira Torres, 1957).2° Uma ala fez a mea culpa dos excessos da centralizagdo na administracao.(Uruguai, 1862) e mesmo na politica (Alencar, 1866), mas sempre enfatizando sua superioridade sobre a pulve- rizagdo localista. Mesmo a restrigéo da liberdade individual que a Lei de Interpretagao implantara foi defendida, quando da reforma judiciaria: “com 0 alargamento do habeas-corpus (...) a autoridade ficou menos bem garantida (...) € perigosa a manutengao de semelhante poder, enquanto nossa educagao € costumes forem 0 que sao” (Theodore da Silva, Anais da Camara dos Deputados, 24.5.1877) ‘Na questo religiosa® que surgiu em compasso com a proposta de ex- tensao de direitos politicos aos nao catélicos — questao visceral para a » A critica de liberais (Zacarias, Silveira da Mota, Pompeu, Nabuco, Silveira Martins, Ferreira Viana, Saraiva) a0 Poder Moderador visava garantir a indepen- déncia do ministério, transpondo a maxima de Thiers, um dos fcones da Monar- quia de Julho: o rei reina, mas nao governa * O epicentro da questao religiosa esteve na iniciativa de setores do clero nacional de implementar prescrigdes ordenadas pelo Vaticano quando de sua gui- nada reacionéria. Os bispos de Olinda ¢ do Paré proibiram os magons de entrar nas igrejas. A medida foi tomada como afronta por Rio Branco, que era grao-chefe de uma das duas lojas nacionais. Iniciou-se entao o processo por desobediéncia civil, j4 que 0s eclesiasticos eram funcionérios do Estado. © Conselho de Estado interpretou a atuago dos bispos como rebeldia civil, endossando o gabinete. Zacarias e Can dido Mendes foram advogados dos bispos, que acabaram condenados a prisio em margo de 1873. O empenho pessoal do imperador, pedindo a intervengio do pré prio papa, em nada alterou a situaco, evidenciando o poder que Rio Branco lo grou concentrar em suas m4os. Os bispos s6 foram anistiados pelo gabinete se. guinte (Moura & Almeida, 1985:328ss) | doc euene DwRNeINL) VeLenh. INS TERTIGB Gy Ct)RS ae yinda de imigrantes de paises protestantes — formou-se uma ala “ultra- vrontana”, que defendeu a religido de Estado ¢ reafirmou a base catélica Toregime, exibindo seus tragos reaciondrios: condenow a laicizacéo do Es- tado ea proptia “civilizagZo moderna”, que “enfraquecendo 0 espfiito (...) srasta-o a maior corrupgao ¢ depereeimento moral. (...) Esta civilizacao tem dado exclusiva atengao as ciéncias fisicas as invengdes industriais(...) tlesprezando a verdade religiosa” (Mendes de Almeida, Anais do Serado do Império, 30.6. 1873). Candido Mendes (Anais do Senado do Império, 10.3.1872) defendeu ainda a supremacia “da lei moral sobre a politica ou a civil”, acu sando a separacao Igreja/Estado como extravagancia legada pela Revohu- ao Francesa. Os argumentos exam. antimodemos e retomavam temas do; Século xvii € inicio do xxx, pondo mesmo a questao como dilema entre a soberania divina ¢ a popular.” ‘Quando o item mais candente para 0’ Partido Liberal, a reforma elei- . toral, finalmente entrou em pa -vadores se Yesguardaram em, ploco. Andrade Figueira, Mendes de Almeida e Alencar (1874:81,.61) de-%, fenderam 0 sistema indireto. O proprio Rio Branco, tao reformador nou~. tras matérias, argumentava que a “monarquia democratica” redundara “<\_° ‘em revolucio na Franca em 1848 justamente por visar abaixar 0 cense,, pecuniario @ que nos Estados Unidos, onde havia eleicoes diretas, havia iambém fraude € corrupcao. A superioridade do sistema indireto estaria em hierarquizar 4 participagao da “uiliversalidade dos cidadaos ativos” sem ientés da “soberania do numero”, “que a falta de discerni- mento em muitos poderia causar, se eles tivessem de escolher imedia~ ‘amenté of maridataiios da nagao” (Rio Branco, Anais do Senado do Império, Y3.2187547).— ae Em suma, 0 espirito do regime imperial manifestou-se acerbo contra a quebra de sua constitui¢ao nao escrita, resultando numa explicitacao dos pilares da ordem sociopolitica imperial ¢ na reiteragao de seus valores fun- damentais, obstando o prosseguimento das reformas. Embora as manifestacdes em prol da ordem tenham vindo fundamen: ~ talmente dos conservadores fluminenses, nao se pode separar as posicoes » Também Figueira de Melo, Cotegipe ¢ Muritiba nao consentiam a laiciza~ Gio do Estado: “nao devern os que a recusam [a religiéo catélica], exercer os altos cargos, cuja influéncia The podem ser dicetamente nociva” (Muritiba, Anais do Se nado do Império, 7.11.1878). O presidente do Senado, Visconde de Abaeté (Atas do Conselho de Estado, 3.6.1873), defendeu 0 catolicismo: “Em materia de religiéo a minha é a do berco, e a da minha familia”. Ver também Guimaraes (1872). 90 IDEIAS EM MOVIMENTO ~ & GERACKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO pr6 ou contra-reformas em termos partidarios. Explicar os programas de reformas em termos de linhagens de liberalismo (Faoro, 1976, 1992, 1993; Bosi, 1988) implica tirar de foco tanto a barreira de uma ala liberal as re- formas quanto o empenho de uma faccéo conservadora em sua realizacdo. As oposicées regionais por si mesmas também sao insulicientes como ex- plicagéo. A crise ¢ a substituicao geracional de lideres contribuiram para tur- var @ formacio regional dos partidos: Dantas, Ferraz ¢ Saraiva, vindos de familias dos engenhos baianos, e Sinimbu, ele proprio proprietario de um engenho nas Alagoas, estavam agora no Partido Liberal, enquanto paulis- tas ligados ao café, como Anténio Prado, estavam no Conservador (Leite, 1978). Ademais, a renovacéo geracional algava as posicées de proemi- néncia, como as instituigées vitalicias, individuos que nao tinbam vivido pessoalmente 0 transe da instituicéo do Segundo Reinado e que estavam ~,. menos empenhados em sustenté-lo. Le, As reformas cindiram internamente os partidos. Como_os proprias.agen- a2" S-fes Percebiam, as designacaes liberal € conservador ja estavam inaptas ‘repara expressar as divergéncias de opinido, Cristiano Ottoni (1890103) opi- nava por sua supress4o em favor de dois partidos possiveis: um de monar- quistas, outro de “democratas” — isto é, republicanos. A desagregacao par- /tidaria foi uma conseqiiéncia da crise, que obrigou a redefinigao do jogo de forgas’e redividiu a elite entre partidarios ¢ contyariés das Feforinias. As Adivergéncias diziam respeito aos projetos de futuro, as formas ¢ aos limi- tes da mudanga. Desde o fim do mandato de Rio Branco houve continuos reagrupa- mentos, com ameagas disruptivas pelo lado dos reformadores ¢ prognésti- cos apocalipticos pelos emperrados: a rebeliéo escrava do Haiti ¢ a seces- so americana, o esfacelamento da hierarquia social, a “anarquia” Isto porque o programa de reformas de Rio Branco provocara os con- servadores emperrados sem ter apaziguado os liberais radicais. A demanda liberal por uma reforma eleitoral viria mitigada no proxi- Pee, mo gabinete. A Lei do Terco, de 1875, dilatava a conta-gotas o regime para =>". 0 acesso pleno dos liberais (Graham, 1990:182ss). O regime desarmou par- “te do protesto liberal, também ampliando seu assento nas instituigdes vita- licias: nos anos 1880, os partidos estariam quase equilibrados em ntimero no Conselho de Estado € no Senado (Leite, 1978:48). Outro golpe certei- ro sobre a dissidéncia foi 0 convite aos recém-republicanos para compor 0 governo, Os liberais chegaram mesmo, em 1878, a chefia de gabinete. Todavia, nao lograram solver a questdo politica nem implementar seu programa. A rogad6s, 4 SOCIEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUICOES E CRISE contraparte requerida para a revogagao da Lei de Interpretacéo, a extin- gio do Conselho de Fstado ¢ da vitaliciedade do Senado née tinkam sido vem mesmo mencionados no programa de Rio Branco € continuariam a gbstar as reformas. Além do mais, 0s liberais ganharam o gabinete pelas maos do imperador, depois de terem exposto vigorosa ¢ pedagogicamente srtese da “arhitrariedade do Poder Moderador” como a pedra de toque da falsificacdo do sistema tepresentativo no Brasil. Embora D. Pedro se mos- trasse mais simpatico a seus ex-combatentes, a critica liberal s instituigdes nacionais criadas pelos saquaremas contribuira para esmaecer em muito 0 poder de coacao moral do quarto poder. © enfraquecimento simbélico das instituigées nacionais saquaremas teve por correlato inverso o fortalecimento do exército. A vitéria na guer- ra contra o Paraguai dignificou 0 exército, dando-Ihe uma inédita fei¢ao de corporagao. Seus membros passaram a Se pensar como institui¢ao au- tdnoma tanto em relac&o ao poder patrimonial dos proprictaérios quanto em relacdo aos partidos e suas liderangas e comecaram a falar em nome da “classe”, reclamando promogoes € salarios (Castro, 1995; Costa, 1996) ‘A abolicao da escravidao no Paraguai como fecho do conflito ¢ a alianca com a Republica da Argentina seriam amplificados na Corte no ano em que se criava um partido republicano ¢ se propunha a emancipacao dos escravos. A guerra seria denunciada na imprensa como massacre de uma monarquia escravocrata contra uma reptiblica de pobres e aguerridos com- patentes, invertendo a imagem de civilizacdo ¢ barbarie que motivara a propria mobilizacdo bélica. Varios focos de dissenso vieram & tona no momento em que a conso lidacdo das instituigdes e a reforma controlada delas dependiam mais que nunca do espirito de consenso minimo que permitira as reformas de Para- na duas décadas antes. Mas enquanto o gabinete que solidificou as bases do Segundo Reinado foi chamado o da “Conciliacao”, por sua tentativa de induir mais plenamente os liberais nas instituig6es modeladas pelos con- servadores (Nabiico, joland 72; € Mattos, 1987), 0 de Rio Bran- ra Saquarema, sinalizando o fim da alianca en- “Gre oF dois partidés € 0 inicio de uma era em que a palavra de ordem voltou casera da Regé Cp luca. © equilibrio fora rompido. Agora existiam trés partidos: além de con-; servadores @ liberals, [a estavam os republicanos. Os fundamentos juridi- ‘pressos na Lei de Interpretacao, esiavam der- do ite criow urn clima de incerteza que afetava nao 86 as préprias instituigGes politicas como todas as instincias sob pro- 92 IDEIAS EM MOVINENTO ~ A GERAGKO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO formar. O fim do regime bipartidario evidenciou as divisdes da elite mesmo para @ sociédade quié vivia & margem do sistema de poder do Império. A Gtise extravasava 0 perimetro da elite. Rio Branco nunca visara re- volucionar o status quo imperial nem estender 0 circuito do poder para além dos proprietarios, mas dera um largo passo de ingeréncia do Estado na sociedade, desafiando a propriedade e a religido. Além de aprofundar as fissuras intra-elite, suas tentativas de reformas geraram manifestaces reacionérias carreadas pelo préprio “povo”, que se levantou em revoltas violentas contra a alteracao do sistema de pesos ¢ medidas, especialmente no Para e Pernambuco, com 0 Quebra-Quilos, e contra a secularizagaéo do Estado, no Rio Grande Sul, na Revolta dos Mucker (Fala do Trono, 1875 in Calmon, 1977). Manifestagées populares de protesto surgiram. em série nos anos 1870 € 1880, especialmente na Corte (Souto Maior, 1978), indican- do que o préprio regime monérquico perdia legitimidade. 4.2. A MODERNIZACAO INCOMPLETA O gabinete Rio Branco representou 0 ultimo esforco concentrado de auto-reforma da ordem imperial, expressando a compreensao de que a monarquia, para sobreviver, teria de reestruturar sua economia em mol- des no escravistas ¢ abrir seu sistema politico. Quanto a isso, o resultado foi duplo. Houve uma alteracao significativa da prdpria face do pais. A moderni- zago deu campo para a expansio econdmica que sucedeu a guerra € acom- panhou a crescente produgio de café no oeste da provincia de $a0 Paulo. Apesar da crise mundial de 1873, as décadas de 1870 e 1880 foram de prosperidade econémica: houve uma melhora aprecidvel do estado das finangas do Império. As abundantes colhei tas, somadas & constante alta do café no mercado internacional, deram gran- des lucros aos fazendeiros. No rol das sociedades mercantis (...) que durante a guerra oscilavam por volta de 10 anualmente, o total registrado para 1872 € de 77, entre nacionais e estrangeiras. (Holanda, 1972:153) A acumulacao interna mais os vultosos empréstimos ingleses financia- Jarmente a Corte. A populacao do pais, estimada em sete milhoes.em 1850 (Graham, 1968), tina crescido somando cerca de nove milhées em 1872, ° isi sat pciendpe smpEmtn: VALORES. NST(TUI GOs seICRISE A ¢ estava dividida equitativamente entre norte € sul, conforme 0 C2050, do 6 eresitiento de dreas como, Sto Paulo-ane-ganhevam. SO Tingente, seja pelo trafico interprovincial, seja pela imigrag4o. Por razoes pniflas_a crise dos engenhos de aciicar (Mell centuara 4 witba- “pizacdo ac norte (Freire, 1951; Mello, 1997}. eee elorma conservadora, de outro modo, deu visibilidade politica 8 so-~ cjedade nao compreendida nos partidos. A urbanizacdo ampliara 0 comé: Go eo leque dé ocup. erciarias, a vitalidade econémica das novas. yreas agricolas adensara 0 volume de grupos socials. sem. Jaco diteto com. grarandes proprietarios que formavam a elite politica. Além dos grupos \.; sovos, bavia aqueles nunca plenamente integrados pelo regime monar: quigor 8 estaitcieiros do sul, os pequenos proprietéris, os pequenos ne gociantes ¢ toda sorte de homens livres. que ndo estavarn.em relagdes de: dependéncia direta com a ordem escravocrata (Carvalho Franco, 1978). A.* balanca entre o poder politico ¢ a estrutura socioeconémica se alierava. « "~~ Rig Branco procurar: sponder a diversidade ¢ s pressdes desta “no~. va sociedade”. O projeto de modernizagio conservadora, entretanto, ficou 50. Mutias reformas forain abandonadas a meio caminho..O regi- jue nao compensou o proceso de complexificacdo social com novas formas de incorporacao politica. Nao foram _avante as reformas, eleitorais; nao se efetivou a secularizagao do Bstado; nao se alteravam os mecanismos de &itralizacdo politica; nem_de representacao.das provincias. O sistema po- litico permaneceu restritivo. # que o impacto do Ventre Livre fora por demais violento no regime de decisoes I graduais do Império. A década de 1870 teria de purgar GTescaldo do Ventre Livre, da guerra contra 9 Paraguai, do embate do Esta do com a Igreja, da cisao dos partidos. Ao invés de prosseguir.o.pracesso de modemizagio ¢ abrir o, sistema politico,.coma vinhat ses contemporaneamente, o Império fechou-se em guinte ao de Rio Branco freou abruptamente sso de re et mando 0 Him € a Iépica do Segundo Reinado, fez retardar tudo quanto tinha sido prometic ‘a laidzagao do Estado, a reforma educacional, a ex- pansao da infra-estrutura. “—~K agenda de reformas desatiara os valores — como a religido de Es- tado — ¢ 05 fundamentos econdmicos — caso da escravidao — da socie~ dade imperial expunha sua incompatibilidade com as instituigdes mo- dernas que prometia. Mas nao se completando, 0 projeto, modernizador reditfidou na convivéncia entre os tracos dominantes da ordem tradicio- iial'e as inovacdes que anunciavam seu esboroamento “entre trabalho es- 3 94 1DEIAS EM MOVIMENTO ~ A GERAGAO 1870 NA CRISE DO BRASIL-IMPERIO cravo ¢ trabalho livre, entre citadinos educados ambicionando a carreira publica e< pavronagem, entee o crescente apelo a lisura eleitoral¢ 0 veto sada que acentuou a feigéo hibrida da sociedade. A sociedade para além dos partidos tinha sido reconhecida, mas_nao Gial, mas nao chegou a efetivé-las, Ficava irrealizada a promessa saquare- “ma de civilizar os homens livres pobres pela educacdo. O censo de 1872 “ pusera em niimeros sua distribuigdo geografica e seu nivel de “atraso”. A reforma do ensino atingia basicamente 0 Muniecfpio Neutro, sob tutela do “estado central.* A abertura de matricula nos cursos superiores para os “mogos de poucas posses” no teve contrapartida em critérios de mérito, ‘ nem houve reforma curricular significativa (Moacyr, 1937:493). Em vez dos profissionais técnicos que planejava,’a reforma gerou mais bacharéis em direito: entre 1830 e 1839 diplomaram-se 710; nos anos 1880, perto de dois mil (Graham, 1990:266). A carreira politica, dada a organizacio au- tocratica dos partidos, com apadrinhamento ¢ vassalagem, podia absorver individuos isolados, nao. grupos inteiros. A modemizacio da infra-estrutura trouxe, ainda, conseqiiéncias politi- cas inadvertidas. AS estradas de feito eo telégrafo implicaram uma verda- deira revolucao na I6gica da atividade econdmica, do deslocamento de pes- soas € da divulgacao de informaces. Alteraram as relagdes econdmicas ¢ politicas das provincias entre si € com 0 centro. A queda do prego das pas- sagens € a diminuigao do tempo de viagem democratizaram relativamente a mobilidade lisica no Império (Alencastro, 1997). Novos processos técnicos permitiram a disseminagao de tipografias.¢ da imprensa, nivelando 0 aces- 50 a teméticas politicas € culturais, nacionais e estrangeiras, a todos os gru- pos socials alfabetizados. Em 1874, instalou-se na Corte uma agéncia fran- Ss. Assim, 1, tanto eventos locais, como a seca no Cearé, quanto amplitude nacional € puderam ser aconipaihados d dia-a-dia na imprensa. 0 i barateamento dos custos_de edicao_¢.a queda da taxa de importacéo de livros avolumaram as publicagées disponiveis (Hallewell, 1989:151). A aber- tura de livrarias, editoras ¢ jornais intensificou a circulagao da informacio, expandindo 0 universo intelectual para além da elite politica ' % Nao logrou penetrar no sistema educacional por causa da autonomia pro vincial, garantida pelo Ato Adicional (Moacir, 1937; 67). | i | | aj SOCHEDADE IMPERIAL: VALORES, INSTITUIGOES E CRISE ‘A resultante da crise politica ¢ da reformmmeonservadora da virada dos anos 1860 para 0s 1870 foi, em sintese, a configuracio de uma nova “es ‘natura de oportunidades politicas”. Isto é, expandiram-se as “dimensGes ronsistentes — nao formais nem permanentes — do amnbiente politico que fornecem iacentivos para as pessoas se engajaremn em acdes coletivas, na medida em que afetam suas expectativas de sucesso ou fracasso” (Tarrow, }904:85). Significa dizer que a nova situacio gerou tanto motivacdes quan- to espago para que grupos sociais até entao alijados da grande politica se Jnanifestassemn publicamente. = —He iim lado, vias de ago politica inéditas se abriram: a alteragao de padrdo da imprensa ¢ a reforma do sistema de ensino ampliaram canals de expresso politica para grupos sem acesso aos partidos. Configurou-se assim uma espécie de microespago pubblico paralelo a vida parlamentar. De outro, a nova estrutura de oportunidades politicas forneceu um novo es- pectro de temas para a agenda publica. Ao justificar os prineipios da ordem social “natural”, a elite imperial acabou por descortinar seus dilemas € sus- cetibilidades mais viscerais: as dificuldades do sistema politico em lidar com a mudanca de padrao da sociedade, a indissolubilidade do vinculo entre a escravidao e a monarquia. Esta clarificacéo transformou os fundamentos - tacitamente aceitos da ordem sociopolitica imperial em temas de debate piiblico nos anos 1880, transpassando o cfrculo parlamentar. ‘A nova estrutura de oportunidades politicas era mais permedvel 4 ma- nifestacdo publica e coletiva de insatisfagdes por grupos sociais marginaliza- dos pela dominagio saquarema. Deu assim as condigbes para a emergéncia de um fenémeno politico novo, um movimento de contestacao politico- intelectual ao status quo imperial. litica do Segundo Reinado. A modemizacao material do pais ea decadén- Ga das instituicdes centrais do Império feriram 0 coracao da obra saquare- ma, abrindo uma crise apenas concluida com a queda do regime. Tinham sinalizado as possibilidades de mudanga e identificado precisamente os obs- téculos a ela: o apego as formas de um mundo em dissolugio, como bem ilustra 0 costiime de Ttaboraf de seguir ainda de coche ao Senado quando os jovens deputados tomavam o bonde; um reacionarisnio destituido de projeto, a alimentar-se de uma economia morta. a 9s 96 IDEIAS EM MOVIMENTO — A GERAGAO 1870 NA CRISE 00 BRASIL-IMPERIO mudan¢a geracional. Os experimentados estadistas do Império estavam sen, do paulatinamente substitufdos, na regra estamental, por seus filos ¢ afi Ihados. Nos anos 1880, a ala emperrada, fortemente identi 0 valores ¢ instituicées imperiais, passaria a ser capitaneada pelo flurninen- se Paulino Soares de Souza, filho do Visconde do Uruguay. Com 0 auxilio de outros tantos, como 0 catélico Carlos de Laet, ser. um denodado defen- sor de todos os principios saquaremas, resistindo sempre a tudo. De outra parte, os conservadores moderados serao carreados pelos ministros € prote- gées de Rio Branco: Alfredo Taunay e Jodo Alfredo, sobretudo, ¢, secunda- riamente, seu filho, Juca Paranhos.” Este grupo seguird defendendo 0 pro- grama economicamente modernizador ¢ politicamente moderado de seu inspirador. Os arquitetos do Segundo Reinado desapareceram antes de mudar o mundo a sua moda. Rio Branco, Zacarias, Nabuco de Aratijo, Bras Floren- tino, Itaborai, Ottoni, Furtado, Alencar no veriam 0 desfecho da crise ¢ das, reformas. A correspondéncia entre dois dos muitos lideres mortos nos anos 1870 indica o estado de 4nimo da elite imperial diante das mudancas: “Tris- tissimos tempos, sr. Conselheiro. (...) Vim buscar inspiragées A Europa. Levo-as, mas qudo diversas do que eu sonhava! Este ¢ um mundo que se acaba. (...) Sente-se 0 ranger das pecas de um ediffcio que se esborda” (Tavares Bastos, 1867, carta a Nabuco de Aratijo apud Nabuco, 1897:752) » © depois Bardo de Rio Branco passou, porém, a maior parte dos anos 1870 © 1880, exilado na Europa, em posto diplomatico que o pai lhe arranjara.

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