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MOVIMENTO NEGRO E EDUCAGAO DO NEGRO: A ENFASE NA IDENTIDADE Regina Pahim Pinto Fundacao Carlos Chagas RESUMO © artigo apresenta alguns dados comparatves sobre'a situago educational de brancos e negros @ discute @ reagao do movi- mento negro perante a situacao dos negros do Brasil, espacial- mente no que se refere & identidads étrica da crianga. Procura ‘mostrar também a configuracio que @ valorizagéo da identidade val assumindo om diferentes momentos da luta, proceso ro. ‘qual a recuperagéo das raizes culturais adquiro cada vox maior importincia Finalmente, 0 artigo comenta algumas experiéncias do movimen: to e propostas que apresentou em diferentes oportunidades, 20 longo deste século, quando péde atuar mals diretamente junto 208 6980s educacionais ofcais. NEGROS — MOVIMENTOS SOCIAIS — IDENTIDADE ETNICA — EDUCAGAO ABSTRACT ‘The article presants comparative data about the current condition of upbringing black and white people, drawing attention to the precariousness of black students and the black population on this issue, At a socond stage, it discusses the reacton of the black movement when facing the problem, and, in special, the ‘emphasis given to reinforcing the ethnic identity on the black children, It also atfemps to show the configuration that the identity value is taking In diffrent moments of this fight, and how, during this process, the recovering of cultural roots acquires more and more importance. At the end, the article comments fon some experiences and proposals ofthe black movement that ‘were shown in diferent accasions when they were able to work ‘more closely to the official educacional agencies. Cad, Pesq., So Paulo, 7.86, p.25-38, ago. 1993 25 Apesar de ainda ser bastante incipiente a pesqui- sa sobre a relagdo entre “raga” e educacdo, ja come- ga a se formar um acevo razodvel de conhecimento sobre esta questo no Brasil, pelo menos no que diz respeito ao segmento negro (pretos e pardos). Alguns estudos, utlizando-se de dados estatisticos, vém de- monstrando sistematicamente que os negros obtém Piores resultados que os brancos nos indicadores educacionais. A populagdo negra apresenta maiores indices de analfabetismo © 6 menos escolarizada do que a populagao branca. Proporcionalmente, maior nnomero de criangas negras em idade escolar esta fora da escola; maior numero de escolares negros se eva- de da escola ou apresenta atraso escolar, seja pela entrada tardia na insttuigdo, seja devido as continuas repeténcias. Além disso, os estudos tém demonstrado que 0 negro freqienta escolas de pior qualidade, seja quanto aos recursos pedagégicos humanos e mate- fais, seja quanto ao nimero de horas dos cursos ofe- recidos'. Alguns pesquisadores vém trabalhando com a hipétese de que o sistema escolar trataria a popu- lagao negra como populagao pobre e, nesse sentido, a crianga negra tenderia @ ser encaminhada para a escola carente. Esse mecanismo segregacionista en- contraria ressonéncia nas proprias familias negras que, desejosas de proteger os filhos de enfrentamen- tos traumatizantes, procurariam escolas e outros equi- Pamentos sociais frequentados por negros ou por po- pulagao branca mais pobre (Rosemberg, 1987). Essa traletoria escolar de pior qualidade, por sua vez," aliada a representagdo que a sociedade consti @ que 0 préprio negro introjeta, de que existe um “lu: gar do negro" no mercado de trabalho, tem levado es- tudiosos como Moro (1993) a levantarem a hipéteso de que aqueles poucos que chegam ao 3? Grau aca- bam optando por carreiras de menor prestigio social Segundo a autora, 0 perfil do estudante universtério negro também revela as maiores dificuldades que ele teve —e tem que enfrentar — para cursar uma uni- versidade. Em comparagao com os estudantes bran- cos do mesmo nivel, eles sao mais velhos, prestaram vestibular maior numero de vezes, uma proporgao me- Nor teve acesso aos curses preparatérios (os chama- dos cursinhos) e, mais freqientemente, trabalham e estudam, Esse 6 obviamente um fenémeno complexo, com raizes histéricas, mas cujas causas s6 aos poucos vem sendo desvendadas. Em primeiro lugar, no se Pode desconsiderar © peso da pobreza, dada a pre- senga dos negros nas camadas menos favorecidas da populagao. Também a distribuigdo espacial da popu- ago negra, macigamente concentrada nas regides menos desenvalvidas do pais, e, portanto, dotadas de uma infra-estrutura educacional mais precéria, é um ‘outro fator a ser considerado, De fato, a residéncia ‘em regiées que nao dispdem de equipamentos esco- fares adequados ou em quantidade suficiente © a po- breza, que obriga a crianga a trabalhar precocemente, contribuer, sem duvida, para uma trajet6ria escolar atribulada, curta e de qualidade duvidosa. 26 No entanto, 0 que os estudos vém apontando, que se configura como uma questo de suma impor- tancia quando se trata_de compreender a situagéo ‘educacional da populagao negra, 6 que mesmo con- trolando-se a influncia desses fatores, através de va- ridveis como nivel de renda, local e tegido de resi- déncia, 0s negros continuam a apresentar um perfil ceducacional inferior. Um “ambiente” escolar hostil, ou pelo menos in- diferente aos problemas enfrentados pela crianga ne- {gra tanto na sociedade como na escola, e, portanto, discriminador, tem sido apontado pelos estudiosos ¢ pelas liderangas negras como uma das eventuais cau- ‘sas desse fendmeno. Neste sentido, embora este tra- balho focalize a discrimina¢ao que ocorre na escola, ‘Ado significa que ela se restrinja ao contexto escolar, © qual, inclusive, reflete o que se passa na sociedade mais ampla. Esse ambiente hostil tem sido detectado no our- riculo, no material didético das mais diferentes disci- plinas, nas relagées entre alunos e entre professores @ alunos. Estudos sobre a representagao das categorias nico-raciais nos livros de literatura infanto-juvenil (Ro- ‘semberg, 1979) e de comunicagao e expressao (Pin- to, 1981, 1987; Silva, 1987; Triumpho, 1987) t8m de- runciado nao $6 a auséncia do negro nas estérias, mas a sua representagao estereotipada e linear, seja devido as atividades que as personagens negras ‘exercem ou ao papel que desempenham na trama, In- variavelmente, os negros s4o caracterizados como t- os; porsonagens negras mais complexas, com seus dramas © contradig6es, alegras e tristezas, sdo raras. 05 livros de histéna, de estudos sociais e de educa- (g40 moral e civica, por sua vez, ndo ressaltam — 4s vezes até sobre ele silenciam — o patriménio cul tural do negro, a sua participacdo nos acontecimentos histéricos e sociais do pais, os fatores hist6rioos e po- lticos que contribuiram para a sua situagao atual e, principalmente, o movimento de resisténcia que 0 ne- {970 vem desenvolvendo desde a escravidao até os dias atuais (Hollanda, 1957; Cerqueira Filho, Neder, 1977; Holing, 1981; Triumpho, 1987). Os livros didé- ticos estariam em consonancia com o préprio curriculo escolar, que é omisso em relagao as realizagdes do negro € & cultura negra (Gongalves, 1987) Pode-se dizer, inclusive, que essas denuncias, constantes de pesquisas que se iniciaram na década de 50 e se intensificaram em meados dos anos 70, ja repercutiram na propria produgao Iiteréria para criangas, embora com resultados nem sempre anima- dores. Estudo efetuado em livros de literatura infan- tojuvenil mais recentes (Negro, 1988) — escritos apés a intensa divulgagao dos resultados das pesqui- sas citadas e apés a realizagao de debates reunindo 1 Varios autores tom analisado as esttisticas aducacionais om fungi da varlavel“raga", entre os quais destaco: Hasenbalg, 1979; Hasenbalg, Siva 1990; Rama, 1989; Rosemberg, 1987,1991a,0; Rosemberg, Pinto, 1988; Barcelos, 1992. Movimento negro... editores, escritores, educadores — detectou um au- mento significativo de livros que tratam da questo ra- cial ou tém negros como personagens centrais, mas ainda sem a mesma dimensao de personagens bran- cas. Se houve uma mudanga consideravel — agora as personagens negras tém direito a existéncia, de sempenham papsis principais, so ilustradas em lo cais de destaque, aparecem em contexto familiar —, elas continuam pouco complexas, sdo ainda caracte- rizadas por tragos estereotipados e a sua presenca fra trama parece desempenhar a fungao de possibilitar a0 autor discutir temas e comportamentos polémicos, importantes na formagao de criangas e adolescentes, Por exemplo, Negréo (1988) encontrou nessa produ- ‘s40, principalmente nos livros destinados aos jovens, um grande némero de personagens femininas negras que, ao terem a sua sexualidade discutida, permitiam @ abordagem de temas como o aborto e a gravidez na adolescéncia, Pesquisas realizadas no ambito da prépria escola vém demonstrando a presenga do preconceito racial? tanto por parte do corpo docente como discente. © negro & visto de modo negative, em fungio dos atr- butos que the séo imputados, das suas possiblidades profissionais, da receptividade negativa a sua misc- genagao com 0 branco (Figueira, 1990). A reuniao e a consisténcia desses atributos negatives encontrados pela autora num mesmo sujeito sugerem que 0 pre- onceito racial forma um sistema ideol6gico concate- nado e seaiiencial. O preconceito também se mani: festa nas brincadeiras, nos apelidos alusivos a cor, na selegdo do colega de estudo ou de banco escolar (Fi gueira, 1990. p64). Alunos @ protessores reconhecem a existéncia de discriminagdes contra 0 aluno negro por parte da so- ciedade e da escola, ainda que muitas vezes as ex- pliquem em fungao da sua situa¢ao sécio-econémica © mesmo da sua atitude, ©, 0 que € mais intrigante, explicagdes em que se percebe muitas vezes uma tendéncia em culpabilizalo pela sua sorte. De fato, ‘numa das atividades propostas pelo projeto "Salve 13 de Maio?" de 1987, da Comissdo de Educagtio de Participagao e Desenvolvimento da Comunidade Ne- gra, professores, alunos ¢ diretores foram levados a discorrer sobre uma pergunta-estimulo’, cujas respos- tas foram classificadas nas seguintes categorias: “a crianga negra 6 timida’, “nao sabe entrentar a diseri minagao racial’; "a otianga negra é diferente na es- cola’; “a orianga negra se auto-diserimina’; ‘a crianga negra se tetra” (Oliveira, 1992. p.94), Ao que tudo indica, a escola, que poderia e de- veria contribuir para modificar as mentalidades ciscri- minatérias ou pelo menos para inibir as agdes ciscri- minatérias, acaba contribuindo para a perpetuacao das discriminagdes, seja por aluacao direla de seus agentes, seja por sua omissao perante os conteudos: didaticos que veicula, ou pelo que ocorre no dia-a-dia da sala de aula. N4o causa espanto, entretanto, que isso acontega. Pesquisas realizadas com professores tém denunciado a sua formagao deficiente, quase sempre inexistente, para tratar das diferengas raciais, Cad. Pesq. 1.86, ago. 1993 culturais e regionais dos alunos (Dias, 1979; Pinto, 1985; Figueira, 1990). Como conseqiéncia, € quase sempre na base da improvisagao, utlizando o bom ‘senso, que o professor enfrenta essas questées no ‘cotidiano escolar, isso quando nao se omite. Como agravante, parece que o professor nao tem consegui- do se afastar da imagem negativa que envolve 0 ne- {gro na nossa sociedade e, em geral, tem uma baixa expectativa acerca das suas possibilidades (Figueira, 1990), ‘Até que ponto a origem racial do aluno contribu para essa atitude é uma questdo dificil de equacionar, uma vez que as pesquisas tém demonstrado que os professores, em geral, tem poucas expectativas tam- bém em relagdo aos ‘alunos das camadas mais po- bres da populacdo, onde os negros esto maciamen- te presentes. Nas escolas que recebem predominan- temente essa populagdo mais desfavorecida, muitas vezes se instala 0 que os estudiosos chamam de ideologia da impoténcia: 0 professor percebe os seus alunos como nao educaveis, expectativa que acaba se confirmando. Atitude diferente tem sido detectada nas escolas de classe média, onde ha otimismo edu- cacional e, sobretudo, empenho em preservar a ima- gem da escola, 0 que se revela na procura de um om relacionamento com os pais @ no esforgo para que os alunos tenham um bom rendimento (Dias, 1979; Hasenbalg, 1987). A escola, por sua vez, @ no ser sob a forma de iniciativas isoladas, nao vem desenvolvendo qualquer trabalho sistematico efetivo de valorizagao do negro. ‘Aeeste respeito, alguns estudiosos criticam os agentes pedagégicos por néo reconhecerem o direito a dite- renga e, deste modo, contribuirem para mutlar 0 pa- triménio cultural do ‘negro (Gongalves, 1987; Siva, 1987). No entender de outros, ha uma tendéncia em se enfatizar a sua contribuigdo tradicional, pouco im- portante aos olhos da sociedade tecnolégica, como a culinéria, 0 ritmo, 0 candomblé, @ as datas do calen- datio escolar alusivas ao negro (Figueira, 1990), Qual tem sido a reagdo do negro frente a esta situagao? Retiro-me aqui, especificamente, aos ne- gros que atuam no movimento negro, mas nao signi- fica que 0 cidadao negro comum néo sinta e ndo se manifeste sobre esses problemas. Certamente, por 2 Embora neste trabalho sejam empregadas indistintamente as ‘expresses discriminagao e preconceito, ha diferengas entre ‘amas. © preconceito seria mais uma attude, enquanto a lsriminapso ja se configura como uma agao. Mas, de qual- ‘quer modo, coma lembra Hasenbalg (1978), no Brasil, a no: 80 de preconceito tom sido usada para indica tanto o pre Conceito como a discrminagao, 8. Esse projeto, que serd discutdo mais adiante, foi resultado o trabalho desenvolvido duranto trés anos junto & Secrotara de Educagdo de Sao Paulo. A questio ora a soguinia *Crianga negra na escola. De acordo com 0 censo de 1980, fem Séo Paulo, as criangas brancas das classes menos fa vorecidas tom om media cinco anos de escolardade, en quanto as ciiangas negras, perlencentes as masmas classes, ficam na escola menos de tr8s anos, Na sua opinido, qual € 0 motivo?” (Olvera, 1982, p54) or estarem os primeiros ligados a associagdes e a gru- Pos onde em geral se discuters @ se equacionam es- ‘sas questées, sua percepgao sobre os problemas que 0s afetam se dé num nivel mais elaborado. Além dis- 80, por ferem maior acesso aos meios de comunica- ‘go ou por manterem os seus préprios canais de di- vulgacdo, suas proocupagdes © posigbes sao exter- nadas de modo mais sistematico, estando, portanto, mais disponiveis para a andlise. E importante salientar que, neste trabalho, estou privilegiando o movimento negro que ocorreu na cidade de So Paulo a partir do inicio do século, embora também 0 movimento te- nha sido — e seja — ativo em varias cidades do in- terior de Séo Paulo ¢ em outros estados do Brasit. Neste sentido, a nao ser em casos excepcionais, re- firo-me apenas a experiéncias que se desenvolveram nna capital paulista. A REACAO DO NEGRO NO CAMPO DA EDUCAGAO Pode-se detectar uma dupla reagao do negro frente @ sua situacdo. Em primeiro lugar, na medida das suas possibilidades, tentou e vem tentando alterar 0 triste quacro em que se encontra no plano educacio- nal e social através de uma ago bastante consistente no campo da educacdo, seja empenhando-se para que a populagao negra se eduque, se instrua, seja tomando medidas para que isso se concretize. De fato, se considerarmos 0 movimento negro como um indicador da atitude do negro, percebemos que a edu- cagao sempre esteve no centro das suas preocupa- es. Nas primeiras décadas do século, surgiram na Cidade de Sao Paulo inimeras associagées negras que desenvolveram as mais diversas atividades edu- cacionais, desde a encenacao de pegas teatrais, ses- sdes de declamagao de poesias — os chamados fes- tivais litero-dangantes —, promogao de palestras edu- cativas, formagao de bibliotecas, até atividades edu- cativas mais formais, como cursos de atualizagao, de alfabetizacdo e mesmo um curso primério regular, como o mantido pela Frente Negra Brasileira. Essa associagdo, cujas atividades no campo educacional merecem ser conhecidas, tal o seu grau de abrangén- cia e organizagdo, promoveu cursos de musica, in- glés, educagao fisica, corte e costura, formagao social (Segundo alguns, uma espécie de preparatério para 0 Gindsio), além de atividades como carpintaria, costura, que, embora nao se configurassem como cursos pro- fissionalizantes, na pratica funcionavam como tal Associagdes como o Centro Civico Palmares, 0 Grémio Dramdtico e Recreativo Kosmos, a propria Frente Negra, o Centro Negro de Cultura Social, todas fundadas entre 1926 e 1932, s6 puderam levar avante suas atividades @ custa de grandes sacriticios e de- vido & colaboragao voluntéria de muitos, Alm daque- les que ministravam as aulas, havia os que se ocu- pavam das atividades burocraticas necessarias & or- ganizagao e divulgagao da entidade, @ também os que organizavam as campanhas visando a angariar 28 donativos @ material para a sua manutengdo. Isso, sem falar numa imprensa negra ativa e combativa®, que ndo s6 divulgava as atividades © abria espago para a produgao Iiterdria do negro, como debatia as questes educacionais, procurando sempre discorrer sobre a importancia da educagéo para que 0 negro superasse os seus problemas. Constituia-se, assim, ela prépria num veiculo educativo. Mas o importante a assinalar para as finalidades deste artigo 6 a feigdo de que foi-se revestindo a pos- tura e a apo do negro no campo educacional durante (© desenrolar do movimento. Focalizando-se 0 periodo ‘que se inicia nas primeiras décadas do século e pros- segue até os dias atuais, percebe-se uma mudanga substancial, Se antes 0 negro almejava simplesmente se educar, paulatinamente ele passa também a rei- vindicar do sistema educacional formal e da socieda- de brasileira 0 reconhecimento da sua cultura, do seu modo de ser e da sua histéria. E um esforgo que visa no apenas a mudar 0 branco, mas 0 préprio negro, através do fortalecimento da sua identidade étnica — a segunda teagéo a que me referi anteriormente. Cabe aqui uma observagao. A cultura negra, ou ‘© que geralmente se considera como cultura negra, sempre foi praticada pela populagao negra e, inclusi- ve, pelos brancos, dado o sincretismo que vem ocor- rendo. Mas ha, indubitavelmente, nesse esforgo por arte do movimento de conscientizacao da importan- cla dessa cultura, uma intengo politica de uniio em tomo de uma causa comum e, conseqientemente, de fortalecer 0 negro para que se imponha perante a so- cledade © expresse as suas reivindicagdes. Configu- ra-se nesse contexto 0 que Borges Pereira (Pereira, 1983) chama de transformagao de uma cultura resis tente em cultura de resisténcia @, no limite, a criagao de um grupo étnico no sentido politico — ou um grupo de interesse, conforme a acepeao de Cohen (1974). Transformagao que implica o incentivo ao sentimento de pertencer ao grupo, isto é, a identiticagao étnica, ‘elemento critico na configuragao de um grupo étnico (Barth, 1970), que passa entao a ser usado no rela- cionamento com os outros, 4 Para maiores detalhes eobre a atuagdo do movimento negro fa cidade do Sao Paulo, reporto 0 letor a minha tese de doutoramento O Movimento Negro em Séo Paulo: lute e identidade (Pinto, 1993), na qual analiso os aspectos ideo- Iégicos, politicos e étnicos da luta do negro na cidade de ‘Sao Paulo, desde © Inicio do século até os anos 80, tomando ‘como base quatro suportes empiricos: a impransa negra, a imprensa regular, os documentos produzidos pelas associa 5s e iderangas nagras e os depoimentos do pessoas que, fe algum modo, estiveram envolvidas com © movimento Esto amigo retoma algumas das quesibes que foram abor- dadas nesse ¥abalho, 5 Locaizel e analisel 19 ttlos de jomais editados por negros, tentre 1907 @ 1935, na cidade de Séo Paulo, mas a producao certamente foi maior. Muitas publcagdes constantes da lis- tagom organizada por estudiosos da imprensa negra, como Minam Nicolau Ferrara e Ubiajara Motta, nfo foram locali- zadas. Movimento negro... Esse empenho no fortalecimento de uma identi- dade negra permeia praticamente todas as iniciativas do movimento negro, mas, para as finalidades deste artigo, focalizarei os aspectos que tém a ver mais di- Fetamente com a educagao, tanto no seu sentido res- trito, como no seu sentido amplo, A énfase crescente numa identidade étnica pode ser percebida quando se comparam as agdes e 0 po- sicionamento do movimento frente a educagao, no ini- Cio do século e no final dos anos 70 e inicio dos anos 80. Nesse ultimo periodo, depois de uma fase de re- trago, principalmente nos anos dos governos milita- res, 0 movimento adquire uma feigao mais agressiva, ‘com 0 surgimento do MNU — Movimento Negro Uni- ficado. No inicio do século, principalmente na década de 30, época de muito ativismo, a palavra de ordem era ara que 0 negro simplesmente se educasse, A edu- ‘ago, tanto como sinénimo de instrugao, de escola- ridade, quanto no seu sentido mais amplo, abrangen- do manifestagdes culturais — em geral, manifestagoes valorizadas pela sociedade branca —, era reputada elas liderangas negras como “redentora’ do negro, uma maneira de combater a sua situago de inferio- ridade, a miséria em que se encontrava e os males que 0 afetavam: apatia, falta de ideal e de objetivos, Dai a critica as autoridades por ndo se terem preo- cupado com a instrugo do negro apés a aboligao, abandonando-o @ propria sorte. Havia uma busca constante de sugestdes © de solugdes para reverter a situagao: apelos para que se desenvolvessem cam- panhas de combate ao analfabetismo, para que os pais enviassem os filhos a escola, para que os jovens freqdentassem @ nao abandonassem os bancos es- colares, para que os treqientadores das associagées negras prestigiassem suas iniciativas na rea cultural Considerando a situagdo econémica extremamente precéria da populagao negra, a aluagao era bastante significativa nesse campo. A imprensa negra, principal veiculo através do qual as sugestées eram divulga- das, constituia, como ja foi dito, um veiculo educativo: usando uma linguagem direta, um tom professoral, muitos dos seus artigos configuravam-se como verda: doiras ligdes — ligoes de como se portar socialmente, moralmente, de como educar os filhos. Havia prele- {goes a respeito do valor do trabalho regrado @ ho- esto e da educagdo, tinica maneira de o negro con- seguir as mesmas oportunidades que branco, e da importancia de certas préticas como a economia, 0 comedimento, a caridade, a religiosidade (a religido catélica era entdo valorizada), a solidariedade, Para- lelamente, combatia-se 0 desregramento moral, 0 al- coolismo, a vagabundagem, a danga, quando pratica- da em excesso, e criticava-se ferinamente as associa- ‘ges que existiam exclusivamente em fungao do lazer. Nesse momento, 0 negro procurava pautar o seu ‘comportamento, seja no campo da educacdo, seja em outras dimensdes da vida social, pelos modelos da sociedade branca dominante, mas, sem divida, o Cad. Pesq. 1.86, ago. 1993 modo de agir dos imigrantes e até dos negros norte- americanos, também desempenhou um papel impor- tante. O imigrante, a despeito das criticas que recebia, em fungdo da concorréncia com 0 negro no mercado de trabalho, era apontado como modelo a ser imitado. SAo constantes as passagens @ os artigos da impren- ‘sa negra em que se chama atengao para 0 seu éxito financeiro, a sua capacidade de organizacao, de fazer poupanga, 0 seu cuidado com a educagao @ o valor ue atribuia ao trabalho e & educagao. Os jomnais lem- bbravam constantemente © programa educacional que, na América do Norte, proporcionou escolarizagéo 20 negro, ainda enquanto escravo, ao mesmo tempo em ue acentuavam 0 total despreparo do negro brasilei ro para entrentar a vida como cidadao livre. Compa- rando-se com o branco, com 0 imigrante, com 0 negro norte-americano, num primeiro momento, o negro bra- sileiro formula as suas necessidades em funcdo dessa comparacao, mediado pelo olhar do outro. Mas é tam- bém no decorrer desse processo que ele so volta para si mesmo @ comega a expressar 0s SeUS pro- blemas e as suas inquietagdes @ partir de uma pers- pectiva propria, Percebe-se 0 desenrolar desse proceso, no cam- po educacional, & medida que as liderangas negras, ainda que de forma incipiente @ intermitonte, come- gam a se preocupar com os contetidos escolares @ com as relagées raciais no cotidiano escolar. Nos jor- nals da época, jA aparecem alguns poucos artigos de- unciando escolas que recusavam criangas negras, professores que as tratavam de maneira preconceituo- sa ©, principalmente, a maneira enviesada, parcial © ‘omissa com que determinadas disciplinas, sobretudo fa histéria, retratavam a participagéo do negro nos acontecimentos. Subjacente a essa tomada de posi- G40, nota-se 0 infolo de um fendmeno que itia se tor- ar cada vez mais presente na luta do negro, ou seja, a busca de afirmacao da sua identidade, presente no fempenho em mostrar um negro participante, que deu a sua contribuigao para o engrandecimento do pais, engajado politicamente e capaz de lutar pelos seus direitos Com © correr do tempo, esse empenho se faz cada vez maior, nao sé através da insisténcia para que a escola reveja os contetidos que tratam da par- ticipag&o do negro na histéria, como também para que se integrem ao curriculo informagGes sobre as raizes culturais da populagao negra, sobre a cultura negra e sua importancia, configurando-se 0 que alguns mi- litantes denominam de estudos africanos, matéria que, na década de 70, 80, passa a ser reputada como de grande importancia para a formacdo da crianga negra. Mas ja antes disso, ainda na década de 40 e inicio dos anos 50, comega-se a observar nos eventos pro- movides pelo movimento negro uma crescente preo- cupagao com uma cultura especifica do negro e com a sua identidade. Essa tendéncia destaca-se na agao desenvalvida pelo Teatro Experimental do Negro, fun- dado em 1944 no Rio de Janeiro por Abdias do Nas cimento, que incentivou a discusséo da questéo do 29 negro no eixo Rio-Séo Paulo, nao sé através da ati- vidade teatral que desenvolveu, mas também em vit tude dos eventos que inspirou ou patrocinou, Por exemplo, na Declaragdo de Principios firmada pelo Comité Afro-brasileiro — fundado em 1945 no Rio de Janeiro, espécie de brago politico do Teatro Experi- mental do Negro —, reivindica-se a liberdade de culto para as religides afticanas @ um maior entrosamento das associagdes negras com organizagées religiosas negras e com escolas de samba. A Convengao do Negro Brasileiro, evento organizado pelo TEN ¢ rea- lizado em duas reuniées, a primeira em Sao Paulo, fem 1945, e a segunda no Rio, em 1948, segundo Maués (1988), tinha entre os seus objetivos resgatar ‘a meméria do negro brasileiro, substrato de uma iden- tidade a ser reconstruida, e que se constiuiria, entao, fem fonte possivel de agao social. Por sua vez, o t mario do 1® Congreso Negro Brasileiro, realizado em 1950, também no Rio de Janeiro, propde a discussao da hist6ria do negro no Brasil, com énfase especial, entre outros temas, nos movimentos de resisténcia dos escravos, na participagao do negro na historia do Brasil, nas figuras negras erinentes, nas sobrevivén- cias religiosas, folcidricas, e nas linguas afticanas. No final da década de 70, essas preocupacées ‘comegam a se incorporar de maneira mais evidente nas discussées sobre a educagdo. A tonica da ques- tao educacional 6, entao, a critica ao enfoque que a historia da a0 negro, ao seu modo de ser, as suas habilidades, a tendéncia a enfatizar a sua docilidade, esquecendo-se de todo 0 movimento de resisténcia, @, ainda, & omissdo dos interesses subjacentes & Aboligdo. A tecuperacdo da histéria do negro e dos seus herdis também 6 vista como uma maneira de se criar pontos de identificagao para a crianga negra, procedimento considerado essencial para o fortaleci mento de sua identidade. Nesse momento, continua-se a valorizar a educa- 0, as associagoes se mobilizam criando cursos de inglés e de madureza, embora ja ndo se encontre nos jomais aquela avalanche de conselhos sobre a neces- sidade de 0 negro se instruir, se educar e, sobretudo, de como se conduzir moral e socialmente. Ha também uma postura muito mais critica em relagéo a respon- sabilidade do sistema pela precdria situagao social @ educacional do negro, além de praticamente desapa- recerem da imprensa negra artigos que 0 responsa- bilizem pela sua situagdo, como muitas vezes ocorria Ro inicio do século, quando eram freqientes as ad- moestagdes aos pais, por ndo educarem @ nao enca- minharem adequadamente seus filhos, © aos jovens, or darem maior aten¢ao ao lazer do que ao estudo sério. Agora, ha como que um empenho em valorizar e estimular uma maneira de ser negra, diferente da do branco, Se observarmos 0 movimento negro numa pers- pectiva diacrénica, veremos que essa tendéncia se faz cada vez mais presente. E verdade que 0 esforgo em valorizar o negro, ainda que de maneira ambigua, sempre existiu. No inicio do século, sao freqdentes os artigos procurando mostrar um negro atuante e capaz 30 Ro campo das artes (embora em modalidades valori- zadas nos meios mais favorecidos, quase no haven- do mengao as atividades attisticas comumente iden- tificadas ao negro), da ciéncia, dos esportes; noticia- vam-se 08 eventos em que 0 negro se destacava, as homenagens que eventualmente eram prestadas a negros ilustres; transcreviam-se opinides favoréveis ao negro, &s suas realizagdes (ndo necessariamente vol- tadas para a causa do negro), bem como opinides que combatiam as crengas na desigualdade da capa- cidade das ragas. Concomitantemente, procurava-se inculcar nele © orguiho da sua condigao racial, de suas caracteristicas fisicas, elogiando os que se as- sumiam como negros e condenando os que procura- vam escapar da sua condigéo, negar as suas origens. Naquele momento jé vinha & tona um problema que ‘sempre afetou o meio negro: 0 preconceito dos mais claros para com os mais escuros. Enfim, observa-se que j4 comega a se esbogar um processo de conscientizagao da necessidade de assumir uma identidade negra, 0 que ganha maior evidéncia em fase mais atual do movimento. Enquan- to, antes, a afirmacao de uma identidade negra fazia- se com base numa valorizagao do negro, agora essa afirmagao faz-se sobretudo com base numa valoriza- 40 da cultura negra, de suas raizes africanas. Ha no- vas denominagGes referentes aos negros — agora se fala com frequéncia em afro-brasileiro — @ incentivo, explicito ou nao, para que 0 negro se identifique com suas raizes. Assim, elogia-se e dé-se destaque aos adeptos da negritude, aos que se esforam para cultivar a cul- tura negra, e condena-se aqueles que repudiam ou nada fazem em prol da divulgagao e perpetuagao des- ‘sa cultura, ‘A maneira como se passou a encarar a figura da mae negra, antes to cultuada pela impronsa, 6 outro sintoma da mudanga de postura do movimento. A orientagdo agora é no sentido de se rever 0 mito, pois seu culto ndo representa uma conquista, uma vez que ela foi a mae dos escravagistas e nao do negro. So inumeras as passagens em que se critica € até se satiriza 0 costume de lembrar a sua abnegagao, bon- dade, atualmente vistas como “subserviéncia forcada’. ‘A exaltagdo da origem africana, por sua vez, es- tende-se a cultura, que 6 invariavelmente chamada de cultura africana ou afro-brasileira. Como parte desse processo, denuncia-se a descaracterizacdo pela qual essa cultura tem passado, criticam-se as manifesta- (960s artisticas e Iiterdrias que nao retratam 0 negro ha sua autenticidade, estimulam-se 0 conhecimento & a divulgagao das tradigGes de origem africana. No fi- nal da década de 70, varias associagdes negras em- penham-se em organizar cursos, atividades e apre- sentag6es. Ao mesmo tempo, debatem-se nos even- tos as dirotrizes a serem adotadas na rea cultural Manifestagdes artisticas que antes eram ignoradas e mesmo reprovadas pelos jomais negros, agora sao prestigiadas. Um fato bastante significativo é a impor- Movimento negro... tancia que o movimento passa a atribuir ao samba ao carnaval’. Os jomais prestigiam 0 camaval, infor- mando sobre a sua origem, seu significado, dao destaque a sambistas, publicando artigos sobre seus feitos, suas carreiras, e também protestam contra a descaracterizagao que 0 samba, como manifestagao cultural, vem sofrendo devido & sua apropriagao pelo branco. Um outro indicio desse empenho em enfatizar as raizes culturais é a presenga muito freqdente, nos jor- nnais, de arligos sobre as religides afro-brasileiras, ‘como o candomblé, a umbanda, sobre as divindades africanas, ou de reportagens sobre suas ceriménias, fato absolutamente impensdvel nos primeiros jorais, A afirmagao da origem africana faz-se também através de uma série de outros indicios, as vezes su- tis, as vezes mais explicitos: a valorizacdo, por parte dos jovens, de sinais diacriticos que reforgam o sen- timento de pertencer ao grupo, como 0 uso de cabe- los estilo *afro", a frequéncia aos bailes souk o incen- tivo dos jorais para que os pais coloquem nomes africanos nos filhos, de acordo com o sistema africa no, @ nao como resultado de uma escola A maneira ocidental; a adogao do costume de se oferecerem co- midas tipicas nas ocasides festivas. Ha, nesse mo- ‘mento, uma intensa discusséo sobre a ideologia do fembranquecimento; discussao que se amplia para o problema da mestigagem, enquanto doutrina, conde- ada veementemente pelas liderangas negras. Mas, sem duvida, 6 através do espago que os jomais de dicam @ Africa que se percebe esse movimento em diregao as raizes africanas. A Africa, “a mae Africa’ comega a adquirir um sentido mitico, na medida em que passa a evocar as raizes, os antepassados, uma visdo e um modo de ser negros. Mas a Africa nao é apenas lembrada com esse intuito; 6 sobretudo 0 co- lonialismo, os seus desdobramentos, as suas conse- quéncias e, principalmente, 0 movimento de resistén- cla e de libertagao das nagées afticanas que se dis- cutem, questées que eram tratadas apenas tangen- cialmente ou ignoradas nos jomais mais antigos. Os jomnais da década de 70 @ inicio dos anos 80, condenam veementemente 0 colonialismo, procuram mostrar as seqielas e os estragos que ocasionou ao continente africano, elogiam os movimentos de liber- tago e os seus mentores, abrindo espago para estes externarem as suas opiniées e ponderagoes. Ao mes- ‘mo tempo, criticam todos os paises que, mesmo nao tendo participado da aventura colonial, dela se bene- ficiaram ou se beneficiam de algum modo. Neste sen- tido, os jomais cobram de varias nagdes, inclusive do Brasil, uma tomada de posigao diante dos conflitos que entéo grassavam na regido. © espago destinado a esses acontecimentos, re- Putados pelos jomais como fonte de ensinamentos ara 0 negro brasileiro © como influéncia indispensé- vel para ele aprender a lidar melhor com as suas ne- cessidades, mostra como os movimentos de liberta- {940 africanos provocaram forte impacto no movimento egro brasileiro naquele momento. O exemplo de luta dos povos africanos, a sua recusa em aceitar os va- Cad. Pesq. 1.86, ago. 1993 lores do colonizador e, sobretudo, a valorizagao das suas coisas parecem ter pesado nessa nova maneira de 0 negro ver-se a si proprio e nessa tomada de consciéncia a respeito das suas raizes. Em inume- Tos momentos os jomais relacionam a atirmacao da consciéncia afro-brasileira com os acontecimentos da Africa Trata-se de uma transtormagao radical se compa- farmos com @ maneira como a Africa era retratada nos jornais do inicio do século, se 6 que se pode dizer isso, dada a quase inexisténcia de matérias sobre esse continente, 0 que levou alguns estudiosos a ver ai um sinal de rejeigao (Bastide, 1951). Quanto a mim, prefiro qualiicar tal situagéo de ambigua, pois oscila entre a rejeigdo @ a aceitagdo, embora, na maior parte das vezes, essa aceitagéo nao consiga ir além do onto de vista ocidental na maneira de encarar os po- vos afticanos. Havia com certeza um esforgo em va- lorizar 08 paises africanos @ os seus habitantes, mas quase sempre em fungao da civilizagéo ocidental, Essa postura fica mais evidente quando os jomais do inicio do século publicam, ao mesmo tempo, artigos que condenam quem se refere aos costumes africa- ‘nos como bérbaros e selvagens, ao lado de artigos ‘que qualificam esses costumes como barbaros e sel- vagens. Os jomais raramente procuravam reportar 0 negro brasileiro as suas origens aficanas, fato muito frequente nos jornais mais recentes. Também nao se observa qualquer deniincia do colonialismo que, as vezes, parece ser considerado algo natural, dada a maneira acritica com que se noticiavam certos fatos ‘corridos nos territrios colonizados’. Um outro forte indicio dessa crescente tomada de consciéncia da importancia de ser negro e da defesa de uma identidade étnica negra encontra-se na ma- nneira de encarar as personalidades e os acontecimen- tos histéricos. No inicio do século, era muito comum 8 jornais publicarem artigos sobre os eventos histé- ricos que diziam respeito ao negro. Por ocasiéo de datas como 0 13 de Maio, 0 28 de Setembro, as as- sociagdes negras realizavam uma série de eventos, amplamente divulgados pela imprensa negra, e que jam desde o antncio solene da efeméride, salva de tiros, desfile de bandas musicais, até celebragao de missa e realizagéo de passeatas. Nessas ocasides, as 6 importante salientar que os primeiros jomais nogros, em- ‘bora abrissem espago para as programagdes camavalescas — 0 que levou Baste (1951) a considerar o carnaval como a festa maxima do negto —, informando sobre bails, con- Cursos de fantasias, ndo identficavam 0 camaval como uma avidade cultural. Essa modaldace de lazer era vista com ‘muitas restig6es por parte dos articulstas dos jomals negros, pois, segundo eles, absorvia as melhores energias do negro, ‘que ‘poderiam ser canalizadas para atividades mais provel: tosas, que contribuissem para a sua elevagdo social @ cul tural 7. Nao se pode deixar de ressalvar @ época em que tais op- rides foram emitidas, quando certamente nao havia a dis- posigéo dos que escreviam as informagdes que temos hoje s0br8 0 continent africano e sobre as consequéncias do co- loniaismo para suas cuturas. 3 diversas associagdes ¢ também os jomais enviavam representantes a coriménia. Personalidades do mundo literério © politico, eventualmente, também compare- iam. ‘A importancia que 0 negro dava a esses aconte- cimentos @ © aprego que tinha por eles expressam- por exemplo, no protesto contra a extingo do feriado do 13 de Maio, ocorrido em 1931, e, mais tarde, na campanha levada a efeito por algumas associagdes para reinstiur-lo. Ainda em 1975, a Associago dos Homens de Cor reiterou, em vo, 0 pedido a0 entao presidente Geisel De todo modo, como ja foi dito, ainda nas primei- ras décadas do século, de modo incipiente @ intermi- tente, inicia-se entre as liderangas um movimento no sentido de cultuar os feitos dos negros. Jé comega- vam a reivindicar a necessidade de lembrar os herdis, negros, como Zumbi, e 0 acontecimento histérico hoje é 0 mais caro as liderangas, ou seja, a formago dos quilombos, simbolo da resisténcia negra. Um acontecimento significative nesse processo ocorreu em 1973, quando um grupo de Porto Alegre, reunido para debater questdes ligadas ao patriménio cultural do negro, comeca a questionar a comemora- 40 do 13 de Maio. Como resultado, em 1978, du- ante a 2¥ Assembiéia Nacional do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminagao Racial, em Salvador (Santos, 1991. p.151), estabelece-se 0 20 de Novern- bro, dia da morte de Zumbi, como a data maxima para o negro. O 13 de Maio passa a ser repelido pelo movimento negro, que passa a discutir formas de ne- gar a data, ou, pelo menos, diminuir a importancia que lhe & atribuida. Conseqientemente, a aboligéo comega a ser en- carada sob um outro prisma. Ha énfase nos aspectos politicos, sociais e econdmicos que Ihe séo subjacen- tes, © “esquecimento" dos aspectos humanitérios do ato da libertagdo, antes tao presentes nos jomais. Para as liderangas negras da década de 70, a data da aboligao deve servir de incentivo para que 0 negro reflita sobre a sua trajetéria, suas conquistas fra- cassos, sobre o que ha ainda para ser feito e, prin- cipalmente, sobre os meios que devem ser buscados para methorar a sua situagao. Desaparecem também dos jomais da década de 70 as homenagens as per- sonalidades que participaram do processo abolicionis- ta, como a princesa Izabel, por exemplo. Cognomina- da de “anjo benteitor’, "a Redentora’, “brasil gélica’, “mulher sublime e santa’, “senhora mae dos escravos", “mae dos cativos” e apresentada como res- ponsdvel pela libertagdo dos escravos, sem duvida, a princesa Izabel 6 a personalidade mais homenageada nos jornais do inicio do século. Hé, porém, muitas ou- tras envolvidas na luta abolicionista, entre as quais se destacam Luiz Gama, José do Patrocinio, Anténio Bento, Castro Alves, Rui Barbosa, 0 Bardo do Rio Branco, José Bonifacio, Joaquim Nabuco, D. Pedro Il, que também sao homenageados pelos jomais. Os ar- tigos os apontavam como exemplos a serem seguidos @ procuravam inculcar no leitor 0 respeito, a admira- G80 € 0 sentimento de reconhecimento por seus feitos 32 ‘em prol da ‘raga’, esforgando-se para manter viva a sua lembranga. Assim, eram aproveitadas todas as ‘oportunidades para reiterar ao leitor 0 seu dever de gratido para com essas personalidades ou para co- brar das autoridades maior atengdo para com a sua meméria, bem como para com monuments que as homenageavam. (s jomais e as sociedades negras nao se limita- vam apenas & lembranga dos seus feitos e a publi cagao das suas biografias, homenageavam-nos tam- bém com uma série de ceriménias, como a promogéo de festivals, sessdes solenes, romarias aos timulos, ‘campanhas para a restauracao dos timulos e para a construgdo de monumentos. Luiz Gama, por exemplo, foi homenageado com um busto, erguido apés uma longa campanha de arrecadagao de fundos. A mae negra foi também outra personalidade que recebeu homenagem semelhante, além de uma proposta de data para homenaged-a. J4 as personalidades que ocupam as paginas dos jomais mais recentes s4o principalmente aquelas que ‘se assumem como negros, que contribuem para a va~ lotizagao do negro, seja participando de lutas que vi- sam & sua libertacdo e ao seu engrandecimento, seja desenvolvendo atividades culturais identiicadas como negras ou de origem africana, ou que enfatizem uma identidade negra. (© duplo processo em que esteve envolvido mo- vimento negro, ou seja, 0 combate a uma identidade ‘comumentemente estigmatizada — historicamente atribuida por outros — @ 0 empenho em transformé-la, fem construir uma identidade nao estigmatizada — ne- cessério para a consolidagao de um grupo étnico no sentido politico —, como nao poderia deixar de ser, do ocorre linearmente. E um processo carregado de ambiguidades, hesitagdes, incertezas @ que, na ver- dade, reflete as dificuldades enfrentadas pelo negro para se afirmar numa sociedade que, embora apregoe igualdade racial e a igualdade de oportunidades econdmicas e sociais, na verdade o discrimina, 0 re- jeita, ndo 0 valoriza. Uma sociedade na qual vigora, tanto no nivel da politica populacional®, como no nivel dos proprios individuos, inclusive negros, um ideal de branqueamento. Essa ambiglidade, que sempre es- teve presente no movimento negro, adquire, no en- tanto, caracteristicas diferentes conforme © momento. Nas primeiras décadas do século, ao mesmo tempo fem que 0 negro se esforgava por combater as ima~ gens negativas a seu respeito, também, de um certo ‘modo, contribuia para sedimenté-las, com express6es que embutiam 0 preconceitos deixando transparecer ‘assim 0 quanto ele proprio introjetara essas imagens. Inclusive, se havia por um lado um empenho em va- lorizar 0 tipo fisico do negro, por outro, negava-se esse tipo fisico, veiculando-se antincios de produtos destinados a desfiguré-lo. Na imprensa negra, como, alias, em geral ocorre em qualquer outro veiculo de {8 Estou me referindo aqui & influéncia das teorias racstas na daciséo do se optar pela Imigracdo européia para substiur ‘a méo-de-obra brasiira, Ver a respeito Azevedo (1887). Movimento negro... comunicagao, muitas vezes 0 negro e a cor negra ram identificados com o mal, com o feo. Em con- trapartida, 0 branco ou a cor branca, associados a0 bom, ao belo. Mas no eram apenas essas associacdes que expressavam ambigiidades. Representagdes do ne- gro presentes na imprensa negra ou nas declaragdes de liderangas negras chegam a identific-to como um ser préximo a natureza, primitivo, sensual, conotagdes que t8m sido comumente usadas para justificar a sua situagao de inferioridade @ que sao combatidas com ‘veeméncia pelo movimento negro attual No final da década de 70, essas formas de he- sitagdo e ambigiidades nao afloram de maneira tao evidente. Com maior freqdéncia, dizem respeito & identiicagao do negro com as suas raizes culturais, { definigao do que vem a ser a cultura negra. Nesse sentido, hé miltantes que confessam a sua dificuldade ‘em assumir as raizes afticanas polo fato de viverem fem uma sociedade ocidental, de terem sido criados ‘em familias que valorizam essa cultura e, portanto, na opiniao deles, qualquer proceso nessa direcao tem que ser gradativo, Outros, perguntam-se a que raizes africanas se reportar, visto nao s6 existirem paises afficanos com culturas diferentes, como a prépria Aft- «a ter softido um processo de transformagao e de in- fluéncia da cultura ocidental que no pode ser igno- rado. Outros, ainda, parecem ver com restrigbes cer- tas atividades culturais comumente associadas ao ne- ro, como 0 carnaval, por exemplo, atividade que, no seu entender, nao contribui para o seu engrandeci- mento. O que se percebe, entao, & que as liderancas egras, a despeito do empenho em valorizar praticas culturais identificadas como de origem africana, na verdade ainda nao conseguiram equacionar — tendo em vista 0 genérico “cultura afro’, que engloba reali- dades muito distintas — o que privilegiar. Indiretamen- te, através de observagdes esparsas, presentes na imprensa negra, nos eventos destinados a debater te- mas de interesse da populagao negra e mesmo nas reflexes a respeito, tanto por parte de intelectuais ne- gros quanto por parte de estudiosos brancos, pode-se Perceber que esta é uma questdo sobre a qual se estd longe de chegar a um consenso. O que valorizar @ até mesmo identificar como cultura negra ou cultura afro, como obter o reconhecimento por parte dos pré- prios negros © dos outros segmentos da sociedade, 880 questdes que permeiam o tempo todo essa pro- posta de recuperagao das raizes africanas. Os muitos caminhos visiumbrados apresentam inconvenientes. Valorizar os elementos culturais que, historicamente, 880 associados ao negro, isto €, as “sobrevivencias culturais’, seria inadequado, porque essa tradigao cul- tural, comumento identificada ao lazer, a0 magico, a0 folciore, nao ¢ inovadora, além de ser estigmatizada como “coisas de negro", 0 que, portanto, poderia com- rometer a imagem do negro como um ser sério © construtivo, Ligar 0 negro as suas raizes africanas, ao mesmo tempo que Ihe traria respeitabilidade cultural, gragas 20 respaldo das nagdes africanas, poderia re- forgar o cardter exético que esta no fulero do proces- Cad, Pesq. n.86, ago. 1993 0 de folclorizagao do segmento negro (Pereira, 1982; 1983; 1984), Isso, sem falar na possibilidade de se usar como bandeira de luta, como estratégia para marcar uma diferenga, uma cultura j4 apropriada por uma populagao que no é exclusivamente negra. Essa questo parece muito presente no movimento negro atual, que, até agora, tem visto os seus esfor- {905 frustrados, pois, ao tentar reconstruir uma diferen- ‘Ga negra, para ser vivida como diferenca total, sempre esbarra no problema de saber se o negro, objeto de discriminagao e de racismo, é realmente um “outro” cultural (Agier, 1991; Munanga, 1990a).. Tais ambigdidades e perplexidades, muitas vezes expressas de modo inequivoco nos jomais @ nos en- contros destinados a discutir questdes relativas ao né gr, apresentam-se, na realidade, de modo muito tan- gencial ¢ praticamente néo sao cogitadas quando se trata de incorporar ao contexto educacional formal as reivindicagées que, no entender do movimento, ajuda- riam sendo a superar, pelo menos a minorar, 05 pro- blomas de identidade’ que a crianca enfrenta. (Os grupos negros preocupados com essa questo tam discutido a situago do negro e a discriminagao que 0 atinge inclusive através da produeao de mate- fiais paradidaticos, os quais procuram enfatizar a par- ticipagao do negro na vida politica, econdmica e social do pais, além de estimular atividades culturais de ori- gem africana. Em geral levada a efeito informalmente Por esses grupos e quase sempre restrita ao segmen- to negro, algumas vezes essa agao conseguiu inte- grar-se ao sistema formal de ensino, configurando, se- gundo Oliveira (1992), um novo momento de expe- riéncias educacionais, o momento em que o negro tra de si a responsabilidade por sua educagao e a trans- fere criticamente ao Estado. VITORIAS E PERSPECTIVAS DO MOVIMENTO: Em 1986, no estado da Bahia, introduziu-se a disci- plina Introdugdo aos Estudos Africanos, nos cursos de 1 6 2 Graus de algumas escolas da rede estadual, atendendo a uma antiga reivindicagao do movimento negro. Dentre os argumentos apresentados pelas en- tidades negras baianas justificando a introdugdo da disciplina, destaco: a sua necessidade, num estado cuja populagao 6 majoritariamente descendente de africanos; a necessidade de se conhecer a histéria das trés ragas que formam a sociedade brasileira, 2, finalmente, @ sua importancia para a identidade da crianga negra. Segundo os miltantes, a auséncia do estudo da histéria @ da cultura negras nos curriculos escolares concorre para a falta de identidade cultural @, conseqilentemente, para a inferiorizacao do povo negro e dos seus descendentes no Brasil? 8 Nao tonho informagses sobre como esta se desenvalvendo ‘essa inciativa atualmente, mas avaliagSes efetuadas algum ‘tempo apés a sua implementacdo apontam para uma série de difcudades que estaria encontrando. Ver @ respeito Al meida (1988). Em Sao Paulo, a Comissdo de Educagao do Con- selho de Participagao e Desenvolvimento da Comuni- dade Negra, criada em 1984, ¢ 0 Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros — GTAAB, origindrio da Comissao e criado em 1986 para atuar na propria Secretaria de Educagao — conseguiram desencadear uma sétie de agdes que, de um certo modo, contem- plavam ‘reivindicagoes do movimento. A Comissao promoveu discusses com professores da rede esta- dual e com especialistas de historia, iteratura, cién- cias, sobre a necessidade de se reverem os curriculos € introduzirem contetidos nao discriminatérios nessas. disciplinas; partcipou de Congressos de Educagao; vi- sitou 6rgaios da Secretaria de Educagéo, procurando sensibilizar educadores @ autoridades educacionais, para as suas reivindicagdes; colaborou com a Secre- taria Municipal de Educagao na reformulagao do cur- riculo das oito séries do 1? Grau efetivada entre 1984 @ 1985" e com a Equipe Técnica da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagégicas, encarregada de Proceder a reforma curricular no ambito estadual ini- ciada em 1984. Uma outra iniciativa da Comissao, que de certo modo frutifcou, foi a de dar um novo enfoque &s comemoragies do 13 de Maio. Esse pro- cesso teve inicio em 1985, quando, por ocasiéo da data, a Comissao enviou cartazes as escolas ques- tionando 0 sentido da comemorago. Foram, antes, enviadas apostilas a professores © a alunos de algu- mas escolas, contendo informagdes sobre o dia 20 de Novernbro, além de um questionario que procurava avaliar 0 grau de conhecimento sobre a historia do negro no Brasil. Em 1986, 0 trabalho se ampliou com © apoio recebido da Secretaria de Educagao através dda Resolucdo 96/86, determinando as escolas da rede ue utiizassem a data de 13 de maio" para discutir a questo racial. Os relatérios elaborados pelas es- colas sobre as discussdes e as atividades que tiveram lugar na ocasiao © ao longo de 1987, segundo ano fem que 0 projeto foi desenvolvido, revelam como os alunos (brancos @ negtos), os professores e os fun- Cionérios posicionam-se perante 0 negro e a discrimi- ago em geral't Mais recentemente, algo semelhante ocorreu no Rio de Janeiro. Na verdade, uma série de iniciativas, tais como a promogao de cursos de extensao univer sitéria pelo IPEAFRO (Instituto de Pesquisas Estu- dos Afro-Brasileiros) e pela antiga Secretaria de Edu- cago e Cultura, através do projeto Zumbi dos Pal- mares, bem como a criagdo da Secretaria Estadual de Defesa das Populacées Negras, possibilitaram que essas discussies se estendessem ao ambito da pré- tica pedagégica e da politica educacional. Como con- seqiéncia, promoveu-se um forum, reunindo profissio- nais de ensino e representantes das Secretarias Es- taduais e Municipais de Educagdo e de Cultura, para discutir formas de corrigit as distorgdes existentes no ensino a respeito do tema e tracar perspectivas e es- tratégias de trabalho. As atividades e reflexes leva- das a cabo durante 0 evento constam de uma publi cago, A AFRICA (1991), que os participantes consi- deram capaz de deflagrar medidas de aio coneretas. 34 As reivindicagSes apresentadas na publicagao pratica- mente reiteram 0 que 0 movimento negro vem plei teando: necessidade de se integrarem os “assuntos africanos e afro-brasileiros ao curriculo escolar” (p.11). No entender dos autores, essa omissdo é extrema- mente danosa para a crianga negra, contribuindo para tomé-la complexada, para minar a sua criatividade, a ‘sua capacidade de refiexdo ©, conseqdentemente, 0 seu desempenho escolar, marcado por altas taxas de evasao e repeténcia. A publicagao também alerta para ‘as conseqiéncias negativas que essa omissao pode trazer para as criangas brancas, ao privé-las de co- nhecer um dos alicerces da civilizagao brasileira © a0 incutir-thes o sentimento de superioridade. Segundo seus autores, ha um contexto favordvel para a incorporagao desses contetides ao curriculo, tendo em vista o avango da visao pluralista da reali- dade brasileira, consignado tanto no Estatuto da Crianga, que garante ao menor o direito de desfrutar de sua heranga cultural especifica, como na Consti- tuigéo, que estabelece que os contetidos do ensino fundamental devem assegurar 0 respeito aos valores culturais. Essa visdo pluralista, inclusive, esta sendo encampada pelo préprio sistema educacional, pelo menos a nivel municipal, no Rio de Janeiro. Nos Fun- damentos para a Elaboragdo do Curriculo Basico das Unidades Escolares da Rede Publica (apud A AFRI- CA, 1991), onde estéo expressas a filosofia @ a po- litica de ensino do municipio do Rio de Janeiro, rei- tera-se a necessidade de se respeitarem as diferen- {gas culturals, sociais e individuais de todos os que in- togram a escola e de se transformar 0 espago escolar ‘num espetho da riqueza humana. Um aspecto extremamente positive da iniciativa e que, sem divida, representa um avango, ¢ a tentativa de se fundamentar teoricamente as propostas, além de trazer sugestdes concretas para a agao pedagosi- cca. As propostas sdo norteadas por uma perspectiva “afrocentrada", considerada a unica capaz de resga- tar, reconstruir © valorizar uma identidade coletiva “re- cusada” pela sociedade eurocentrista. A recomenda- 10 0 relat dessa experiéncia, reaizada na gosto da Secretaria Guiomar Namo de Molo, consta do artigo de Bergamin, Man suti (1987), Embora a propostainicial da Comissdo fosse introduzir 0 20 {de Novembro no calendario escolar para homenagoar Zumbi f@ discutr a questo racial, delberou-se que seria ua es- tratégia intoressante utiizar-se a data de 13 de maio para dallagrar o dabate sobre as relacées racials, uma vez que festa data jd estd Incorporada ao calendario escolar © quo oucos ainda conheciam signileado do 20 de Novembro, ‘Ao mosmo tempo, abria-se uma oportunidado para questio- rar 0 enfoque qué vinha sendo dado até entéo 8s comemo- rages do 13 de Maio 42 Ver a esta respeito a tese de Oliveira (1992), ctada ante- riormente, e que analsa as varias atividades ocorrdas nas fescolas em consequéncia desta Resolugao. Em 1988, utimo lano em que 0 projalo sa desenvolveu, o material qué seniu de subsidio as escolas foi a publcagao “Salve 13 de Malo”, Ccontendo artigos de historadores, miltantes do movimento, profeseores, Nesse ano nao foram fetas sugestbos para que ‘a6 escolas realizascom atividades, 1 Movimento negro... 40 entdo ¢ de que se proceda a um intenso combate aos esterestipos antiafricanos, através: da revisao do coneeito eurocéntrico de civilizagao @ do reconheci- mento das civiizagées africanas, alicerces da civiliza- 40 ocidental; da substituicao do vocdbulo “escravo" — que traz implicita uma conotagao de imutabilidade @ de auséncia de identidade de origem — pela ex- pressdo “africano escravizado", que remete a alguém que também 6 sujeito da histéria; da reformulagaio da visdo que considera as linguas africanas como diale- tos, incluindo-as na categoria de linguas; do desven- damento do proceso histérico de esvaziamento da identidade dos africanos @ o seu nivelamento pela cor, subjacente & expressao “negro”, da valorizagao dos fundamentos filos6ficos das religiSes africanas. A AFRICA A publicago ainda apresenta para cada nivel de en- sino, da pré-escola a universidade, uma série de su- gestoes calcadas nessa perspectiva “afrocentrada’ Em nivel de pré sugere-se a decorago do espago da sala de aula com fotos que refliam uma imagem po- sitiva da crianga negra e de sua familia nos mais di- ferentes contextos, que retratem personalidades ne- gras expressivas, utilizando a figura do africano @ do afro-brasileiro em todos os recursos pedagégicos. Para 0 1® Grau, recomenda-se a execugao de exer- cicios que integrem a experiéncia africana ao contexto escolar, como a pesquisa de palavras de origem afti- cana, @ reflexao sobre as implicagdes da carga ne- gativa atribuida ao vocabulo "negro". De resto, a in- tegragaio da experiéncia africana deve ser observada em todas as disciplinas. Propde-se a criacao, em nivel de 2° Grau, das matérias Historia Geral das Civiliza- ges Africanas e Fundamentos Filoséficos da Cultura Atro-Brasileira. A publicagéo também faz uma série de sugestées destinadas a criar condigées para a implan- tagao e implementacao das propostas, como a elabo- ragéo de material didatico e bibliogratico para servir de apoio a professores, alunos e unidades escolares; a retirada de material de conteido racista do acervo das escolas; 0 estabelecimento de convénios com edi- toras, centros culturais, bibliotecas, destinados a faci- litar © acesso das unidades escolares ao material di- ditico indicado como aceitavel. Além disso, prevé me- didas visando a formagéo do professor sob a pers- Pectiva “afrocentrada’. Neste sentido propée a integra- (40 de matérias interdisciplinares relativas & experién- cia africana e afro-brasileira nos cursos de formagao, reciclagem e especializacao e a reformulagao de dis: ciplinas que ja fazem parte do curriculo desses cur- 0s, com vistas a corrigit distorgdes; sugere ainda a realizagdo permanente de cursos de extensao, semi- Nérios, elaboracao de material audiovisual que trans- mitam as informagSes necessérias para aprimoramen- to do professor no tema. E Obvio que sem uma estrutura de apoio, inclu- sive oficial, dificiimente tais medidas frutificardo. As- sim, a publicagdo traz sugestdes para que se crie uma rede de profissionais especializados, capacitados ‘ fornecer apoio técnico a alunos, professores uni- Cad. Pesq. n.86, ago. 1993 dades escolares, e também que se criem setores es- pecfficos dentro’ das Secretarias de Educagao Esta- duais @ Municipais, que se encarregariam de estabo- lecer uma politica oficial de ensino dos assuntos afi anos @ afro-brasileiros. Portanto, nao apenas em ni vel de assessoria © consultoria. Essa politica ndo deve se restringir as atividades de um setor ou pro- jeto, mas integrar-se a todos os aspectos, iniciativas @ setores do sistema de ensino e da sociedade civil que atendam criangas e que desenvolvam programas educacionais — Secretarias da Cultura, Satide, Just- ¢@, Policia Militar e Civil, profissionais dedicados & Confeceao de material didético e paradidatico, como editores, escrtores, ilustradores. A propria publicagao ja contém uma série de materiais de apoio: relatos de Pesquisas sobre racismo e suas conseqdéncias na escola e nos materiais didéticos; relatos de experién- cias que vém se desenvolvendo com o objetivo de resgatar a cultura atro-brasiloira 0 a auto-estima da crianga negra; reproduggo e comentérios criticos de textos @ ilustragdes de cartihas, livros de comunica- ‘go € expressio, histéria e estudos sociais que vel- culam contetidos discriminatérios, bem como suges- Ges para eliminé-os; relagao de livros intanto-juvenis no discriminatérios ¢ de livros que abordam questoes @ episédios relatives ao negro de forma néo estereo- tipada, Certamente essas experiéncias constituem um avango do movimento negro num duplo sentido. Pri- meiro, porque 0 movimento vé muitas das suas rei vindicagdes sendo incorporadas, pelo menos reconhe- Cidas pelo sistema. Segundo, porque essas propostas Parecem mais consistentes em relago & manelra ‘vaga como vinha sendo pleiteada a introdugao de tais, reivindicagdes no contexto escolar, constituindo, por ‘sua vez, um rico material de consulta para os profis- sionais do ensino e estudiosos do tema. Dentre 0 muito que ainda ha para ser feito, um ponto importante 6 conseguir que essas conquistas se incorporem definivamente ao sistema de ensino, pois a experiéncia tem mostrado que, passada a conjun- tura politica favordvel & sua concretizacdo, isto é, di luido 0 respaldo politico necessario ao seu reconhe cimento, essas agdes acabam esvaziando-se, como ‘ocorteu em Sao Paulo'’, embora néo se possa dizer que no tenham deixado algum saldo positive. Segun- do Oliveira (1988), apés o trabalho realizado pela Co- misséo de Educacao, algumas escolas mudaram a manejra de comemorar 0 13 de Maio. “Uma outra questéo ¢ que, a despeito do grau de sistematizago que essas propostas jé alcangaram, certamente elas nao sao propostas acabadas, 0 que, 18 A incorporago das propostas ao sistema formal de ensino foi factada pela conjuntura politica. Na época, ganharam as leigdes 0 PMDB, em Séo Paulo e na Bahia, ¢, mais tarde, © POT, no Rio de Janeiro, entéo partidos de oposigéo com (0 quais os movimentes socials estavam articulados. O pro- e280 de esvaziamento da Comissdo ¢ do GTAAB, na Se- cretaria de Educarao do Estado de Sao Paulo, é abordado or Olveira (1982). Sobre as dif\cudades que vém ocorrendo fo estado da Bahia para a efetivago da introdugao dos Es- tudos Atticanos, ver Almeida (1986), 35 alias, as préprias liderangas reconhecem. Demandam um esforgo permanente de reflexdo, de pesquisa, de localizagao de material bibliogratico de apoio a fim de se aperfeigoarem. Nesse contexto, a experiéncia de Paises que jé estéo implementando a chamada edu- ‘cacao multicultural, ou de paises que se defrontam ‘com problemas de incorporar uma populac&o escolar de origem imigrante, em geral de outra tradigaio cul tural, poderia trazer subsidios importantes, Todas essas tarefas, obviamente, sé podem se efetivar se houver pessoas aptas para desempenhé- las. Oliveira (1992), no seu relato sobre a experiéncia, de Sao Paulo, mostra como a falta de pessoal com um conhecimento maior de teorias sobre educacdo e sobre relagées raciais de certo modo impediu que 0 movimento tivesse uma atuagdo mais consistente Proveitosa no process. No momento em que os mi- litantes comegaram a participar do govemo, foi neces- sério passar rapidamente do nivel das deniincias para © nivel da ago, a qual, para se tornar efetiva, de- manda conhecimento tanto teérico quanto metodolé- gico. Também no estado da Bahia, a operacionaliza- 40 da proposta de introdugao dos estudos afticanos ho curriculo, ressentiu-se da falta de pessoal qualifi- ‘cado (Almeida, 1988). Investir, portanto, na formagao de quadros é um outro desafio com que se depara (© movimento. Essa reflexio se faz tanto mais necesséria tendo em vista a ambigdidade que, como vimos, muitas l- derangas atuantes expressam a respeito da cultura negra, isto é, do que privilegiar como cultura negra. Por mais dificil que seja, essa questo precisa ser en- frentada, principalmente no momento em que o negro ‘consegue, de um certo modo, penetrar no sistema e expressar as suas reivindicagées. E necessario, en- to, que alguns pontos estejam minimamente estabe- lecides para que as reivindicagdes possam se tornar mais efetivas © consistentes. Iniciativas como as que ocorreram na Bahia, em ‘Sao Paulo e no Rio de Janeiro so promissoras, na medida em que possibilitam esse debate, nica ma- neira de equacionar as questées. © conhecimento dos anseios, do cotidiano, das atividades culturais da po- ulagdo negra, da maneira como se processa a so- cializagao da crianga no contexto da sua familia, cer- tamente enriqueceria 0 processo. Tarefa tanto mais necesséria se lembrarmos que 0 movimento parece 1ndo ter encontrado ainda uma linguagem que sensi bilize © negro comum. Comentarios presentes nos jor- ais negros e alguns poucos estudos sugerem que a Penetragéo do movimento junto A populago negra ainda é muito restrita (Martins, 1984; Motta, 1986; Pin- to, 1993), Nesse contexto, um dos obstaculos mais sérios 6 justamente a fragmentagao da identidade étnica do negro, cujas raizes podem ser remetidas ao modo ‘como se deu a colonizacao no Brasil. A escassez de brancos @ © desequilibrio dos sexos entre eles con- correram para que aqui houvesse uma extensa mis- 36 cigenagao, estabelecendo-se, entdo, um continuum de cor que, por sua vez, esté na base das oportunidades diferenciais de mobilidade social. Os membros mais Claros tiveram maiores oportunidades de serem absor- vidos nas posig6es intermediérias do sistema, sem se constituirem, entretanto, em ameaca a classe domi- ante branca, situagéo que foi preservada no Brasil Pés-abolicionista. A conseqiiéncia mais grave disso tudo 6 que os que conseguem uma posigao melhor acabam identiti- cando-se com os valores do estrato branco, na me- dida em que transformam as aspiragées politicas econémicas de base racial em projetos individuais de ascensao social, que consomem suas energias, tor- nando dificil, ou quase impossivel, o engajamento em atividades de base racial, ou mesmo a solidariedade para com elas. Por outro lado, © mito da democracia racial — que apregoa a auséncia do preconceito ¢ da discri- minagao e oportunidades econémicas @ sociais iguais para todos, deixando fora da arena politica, como con- flito apenas latente, as diferencas inter-raciais —, em- bora tenha raizes na estrutura paternalista que vigo- rava na sociedade brasileira, continua mais vivo do que nunca. Numa estrutura que sancionava a hierar- quia e as obrigagdes mutuas ao invés da liberdade Pessoal e dos direitos individuais, e garantia 0 poder 0 controle a elite branca dominante, néo havia lugar para o racismo e a discriminagao legal (Viotti da Cos- ta, apud Hasenbalg, 1979. p.245), Como agravante, néo se pode deixar de conside- rar a extrema pobreza em que se encontra a popu ago negra, cuja preocupacdo primordial é a luta pela sobrevivéncia. Provavelmente por isso seja pouco re- ceptiva as palavras de ordem do movimento: combate ao racismo, fortalecimento de uma identidade através do resgate de uma cultura afro, Como se v6, essas propostas do movimento no campo da educagao tém ritidamente a intengéo de reforcar a identidade da crianca negra. Nesse proces- 0, 0 reconhecimento das suas raizes e da influéncia africana no Brasil, "mais evidente em algumas re- ides, quase inexistente em outras, mas tendo exer- ido em todas uma influéncia que foi fator decisivo em nossa diferenciacao" (Candido, 1988), 6 essencial. Mas, sem divida, ¢ também necessério equacionar até que ponto deve-se estimular cultivo da diferen- ¢a. Este é um aspecto que merece uma profunda re- flexo por parte das liderancas negras ¢ dos estudio- 0s @ simpatizantes da causa. O incentivo a diferenga, como as vezes expresso no discurso mais radical do movimento, pode ter conseqiéncias que vo em direcdo contréria a filosofia que o subsidia. Essas con- seqléncias nao podem ser desconsideradas, haja vis- ta a capacidade do racismo atualmente, apoiado jus- tamente nessa hipervalorizagéo das diferencas ou das identidades culturais, para se reestruturar © mostrar a sua virulincia (Munanga, 1990b), Movimento negro... Finalmente, é importante que as reivindicagdes nao se restrinjam a reforgar a identidade do negro, pois ndo se pode perder de vista que 6 também ne- cessario e urgente proporcionar & crianca negra uma educagéo de qualidade, que the d8 oportunidade de dominar 0 conhecimento predominante na nossa so- ciedade, seja no campo da ciéncia, das tecnologias, da arte, Unica maneira do negro participar efetivamen- te da nossa sociedade como cidadéo pleno. Esta questo, embora de maneira timida e intermitente, 4 vern sendo levantada pelas liderangas negras mais conseqlentes, que alertam para a faldcia de se acre- ditar que a introdugao da cultura negra no curriculo ‘escolar, por si $6, resolva os problemas educacionais do aluno negro. Como se observa, ndo so poucos os problemas ‘com que se depara 0 movimento negro. Problemas que exigem, além de habilidade politica, um esforgo de reflexdo muito grande para equacioné-los e encon- trar safdas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ‘A AFRICA na escola brasiira. In: FORUM ESTADUAL SOBRE (© ENSINO DA HISTORIA DAS CIVILIZAGOES AFRICANAS NA ESCOLA PUBLICA, 1. Rio de Janeiro, 1991. Relatvo 4o... Pio 60 Janei: SEDEPRON; IPEAFRO, 1001 [AGIER, Michel. Inrodugdo. Gaderno CRM, Salvador: Far, Su- Plemento, 1994 ALMEIDA, Cristna Maria Sena. implantagdo da dscpina "ho: go aos Estudos Alricanos no Estado da Bahia In: MELO, Regine Licia Couto de, COELHO, Rita de. Céssia Freitas (019s). Eaucardo 0 ciscrminagso de negres. Blo Horizonte: MECIFAEIRHIP, 1088. 73-69. ‘AZEVEDO, Célia Marinno de. Onda negra, medo branco. 0 ne- gro no imaginério das eltes no século XIX. Ro de Jana Paz'e Tora, 1987. BARCELOS, Luiz Ciduxio. Raga e realzapo oducacional no Brasil Rio de vancio, 1982. Diese. (mest) Inttuto Unive sitaio de Pesquisa BARTH, Fredrik Intoduction. In: GARTH, Fredik (ed) Ethnic ‘groups and Goundares: the socal orgaization of culture

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