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Bornheim, Gerd. Metafisica e finitude. Sao Paulo: Perspectiva, 2001. 7. SOBRE A LINGUAGEM MUSICAL * De todas as artes, a musica € talvez a mais dificil de ser interpretada. A riqueza e a qualidade da bibliografia sobre estética da pintura contrasta com as poucas pAginas que real- mente conseguiram pensar o fendmeno musical — fato esse que nao deixa de constituir um paradoxo. As artes plAsticas parecem ser as mais alheias ao mundo da palavra; entre miisica_. e literatura se verifica, pelo contrario, um comércio bastante assiduo. Realmente, hé todo um tipo 10 de poesia que busca cons: cientemente aproximar-se da misicaie 0.verso, 0 ritmo poéti- co, nao passa no fundo de um fe musica programatica, f por exemplo, avizin 1a-se do literério, tendendo ao narrativo; e quando a miisica se serve da palavra, seja individual ou coral, sente-se muitas vezes quea a palavra como que brota, com uma espécie a de necessidade i interna, de dentro da prépria miisica. é fe Assim, a musica de certo modo persegue a palavra,ea poesia tende a ser canto. O paradoxo esté em que, se porum | lado se constata essa familiaridade entre mtisica e palavra, . 135 por outro, a musica se impGe como a mais refratdria das artes aA explicagio, a que maior re ¢ A clucidac lo. conceito. De fato, como dizer a musica? Ou como dizer aqui- lo que a mfisica diz?: Porque, sem diivida, a musica € uma n Nao no sentido, porém, | de que o ) compositor a e@screve numa partitura, com o auxilio de certos sinais. Ob- viamente, esses sinais nada tém a ver com a linguagem musi- cal, a musica nao esta na partitura; musica sempre houve, ea partitura surgiu bem mais tarde. A linguagem musical reside no som, ou melhor, no som enquanto vafstormage sia? isto 6, no som inserido numa escalasitt Sas jum sistema oe = ytrto linguagem. ositor a sonoro. Eessa organizagao sonora expr: jagem nao redutfvel a linguage No entanto, essa irredutibili 0 COnsegue obliterar aquele parentesco entre a palavra e o som. Convém insistir no tema. Quando lemos um ensaio, uma pdgina filosdfica, apre- endemos a idéia que o autor expressa na frase; nesse caso, 0 critério espontaneamente exigido pelo leitor se restringe es- sencialmente 4 clareza da expressio. J4 que a linguagem é abstrata, a clareza nao depende do elemento sonoro ¢, em prin- cipio ao menos, nem melhora com ele; um texto filos6fico que soa bem nio se torna por isso mais verdadeiro do que outro que nao soe tao bem. O mesmo nao se verifica, contu- do, na poesia; aqui a sonoridade da palavra se revela até mes- mo essencial. Toda poesia deveria ser lida em voz alta, para que melhor se manifeste a plenitude do ritmo do verso; ela € canto, Vive para ser dita e, mesmo no siléncio, nasce em voz alta. Essa conotagao sonora mostra toda sua relevancia quan- do se atenta para a forga instauradora que caracteriza a pala- vra poética. Na poesia encontramos a propria génese da pala- yra, de tudo aquilo que a palavra originariamente é, ou seja, da palavra nao simplesmente enquanto signo artificial, mas enquanto traz consigo todo um mundo. E essa palavra origi- ndria permancce ligada ao som; digamos que, nela, ressoa a realidade. Ja nesse sentido a linguagem poética se revela oposta a linguagem abstrata, que dispensa o som. Parece pois que, quanto mais penetramos na origem da palavra mais poderosa se faz sua vinculagdo ac fen6meno sonoro: o som diz origina- a algo, forma uma Jin- 136 riamente as coisas. Alids, o carater onomatopaico das Iinguas primitivas nao se deve ao acaso — embora no seja suficiente para explicar a origem da linguagem. A lingua inglesa, singu- larmente poética e tao préxima de suas rafzes primitivas, apresenta freqiientemente esse cardter onomatopaico. Na arte do ator encontramos outro exemplo que permite > entender o quanto a palavra persiste tributaria do som. Evi- dentemente, seria um exagero comparar um texto dramaticoa uma partitura musical, mas justamente esse exagero deve ser perpetrado pelo ator, sobretudo quando se trata de poesia dra- miatica. Nesse particular, o cozinheiro que interpreta um texto exerce um papel essencial, diria Valéry. O ator trabalha amit- de a partir da sonoridade do verso para adentrar-se grada- tivamente na densidade e no sentido da frase. Claro que isso nada tem a ver com a deficiéncia de dicgio que se costuma chamar de falar cantado; trabalhando a musicalidade do tex- to, 0 ator assenhoreia-se aos poucos do ritmo da frase e con- segue evitar a queda d do ritmo & mecanica da da rima, Precisa- ‘mente 0 fato de que a diccio se liga de modo essencial a uma Ifngua determinada empresta ao tratamento sonoro das sila- bas —os breves e longos, os altos e baixos — 0 poder de expli- car o sentido do texto. A interpreta fo do ai aS de mais nada ao fendmeno sonoro, | ———— I O recurso & ‘2 palavra n nas observagdes mais ou menos ba- nais feitas até aqui pretende tao-s6 sublinhar o papel da sono- \ ridade na linguagem — um papel que, como vimos, chegaa ser essenciaf/Essa musicalidade se manifesta tanto mais forte- mente quanto mais nos aproximamos de uma linguagem poé- tica ou origindria. Inversamente, a linguagem deixa esvair sua musicalidade quanto mais abstrata se tornar na medida em que se detiver na pura significagado. Ora, essa _gradagio légi- | } ca, que vai do som em estado puro € destituido de significa- | gio até a significagio em estado puro € despida de musi- calidade, pode levar a consagrar aquele ponto de vista que prende a mtisica A impossibilid Je de interpreta do-a_a.um gozo puramente subjetivo. A\ apressada porque atribui um privilégio excessivo 4 lingua- gem abstrata, ao pensamento analitico — 0 que de resto estd de acordo com a melhor tradi¢g&o metaffsica ocidental: a supe- 137 rioridade da ratio, do logos; e a conseqiiente inferioridade de tudo o que se prende A@Stésia) ao sensivel. Obviamente, nao se trata de asseverar que a musica possa ser explicitada em conceitos; isso seria um absurdo, embora a ainterpretagao pos- sa ir.bem mais longe do que autoriza a inferir a grande maio- riadas obras de musicologia/1 fais ja a linguagem musical e ede mostrar] a falsidade do cego sentimentalismo subjetivista a que fi fica) }freqitentemente ¢ entregue a compreensao da miisica, tee Estabelecida a hegemonia da ratio, io, compreende- Se queo fendmeno estético resulte minimizado ao longo da tradigao metafisica: a primei grande Esté 2a do Ocidente, ade Hegel, surge no momento em que a Metafisica entra em cris com: préende-se também que a atividade sensivel do homem seja considerada pela tradi¢ao tio-somente como forma de conhe- cimento, ¢ forma inferior, julgada desde cima, desde os pa- drdes do conhecimento intelectual; compreende-se ; ainda que tren cea o Humanismo eae ae reduzindo o sensivel aum fendmeno ivo, subordir Vai calar ar profundamente n na educagio estética do homem/A aprecia¢ao musical fica abandonada a subjetividade humana, compondo apenas um comportamento intra-subjetivo, como se a Gnica missio da obra musical consistisse em desencadear, no ouvinte uma determinada vibragao de dnimo./Nesse esta- do de coisas, sempre que a andlise de uma pega musical trans- cende os dados técnicos € vai além da partitura e do que € por ela permitido, a interpretagdo se acerca perigosamente da fan- | tasia. O O que quer dizer que a anélise objetiva se limita aos elementos pré-musicais. ne A misica propriamente dita é 0 que deve ser sentido, e esse sentir obedece as coordenadas estabelecidas por aquele Humanismo intelectualista e subjetivista. Quero dizer que 0 intelectualismo subjetivista formou 0 homem de nossos dias. Realmente, a aptiddo para escutar musica nao deriva simples- mente do fato de que sou homem, de que tenho uma natureza humana dotada de tais e tais propriedades; mais do que isso, o ouvir musica pressupde um comportamento cultural. Nao ape- nas porque escuto uma obra que integra objetivamente o mun- 138 do da cultura, mas também e sobretudo no sentido de que minha passio diante da misica, meu modo de escutar, perma- nece culturalmente determinado. Deve-se mesmo afirmar que, num sentido lato, o homem € consubstancialmente culto por- que € necessariamente mundano, ou seja, formado pelo mun- do no qual vive; mesmo sem ter recebido uma iniciagio espe- cificamente musical, todo homem tem “educacao” musical jé que recebe a miisica dentro de certos padrées culturalmente estabelecidos no evolver da Histéria ¢ aos quais nao se pode- ria furtar, Afirmar que a miisica nao tenha um sentido redutivel a andlise racional nao implica relegar o mundo da miisica ao sem-sentido, nem que deva ficar confinado no sentir subjeti- vo: a alternativa nio procede, Para que a a muisica possa t real- mente ser pensada, para que se consiga perceber o quanto ela significa €0 o papel que desempenha, faz-se indispensavel ar an- tes de tudo. ° abandono daquele subjetivismo i intelectualista que ¢ define 0 homem | contemporaneo e € ‘inferioriza toda z a aesfe- ra da sensibilidade. .;Dessa forma, a indigéncia. da estética musical desemboea num problema muito mais grave e vasto; qual ‘seja o de reabilitar e to do sensivel eda sensibilidade. Observe-se que tal questao nao se limita a mero capricho intelectual ou simples problema filoséfico; nem se trata de pretender que eventuais andlises estéticas do tema possam por si s6s modificar a situago. Muito mais, deve-se reconhecer que, com a crise da cultura tsica, a prépria Humanidade ocidental, através de set evo- luir, £st4 como que empenhada na reabilitagio do sendtvel; justamente essa profunda inser¢ao ‘do problema na his- toricidade empresta validez e mesmo necessidade ao labor filoséfico. Vale dizer que a musica nao constitui apenas um problema de mtisica, como se fora questo a parte. Como em tudo, se se pensa a miisica, pensa-se o préprio destino huma- pensar em novas bases toda a ques- no € sua condicdo mundana, e uma condicao mundana que j4 , nao pode ignorar sua dimensao histérica. O problema € complexo, € cabe fazer aqui somente algu- mas considerages de ordem geral. Ocampo do sensfvel deve ser questionado, ¢ isso através * de uma faceta especifica: 0 som musical. Tentei chamar a aten- 139 “a gao para a importincia da presenga do som na linguagem; mas a questao se revelou amb{gua. De um lado, o som adere 4 palavra poética a ponto de constituir nela uma dimensio es- sencial; e de outro, a significagdo da palavra parece tornar-se tanto mais puro e transparente quanto mais desprender-se da sonoridade. Desse modo, a palavra poética se instala num interregno entre a clareza significativa da ‘Tinguagem e sua ral raliPerguntemos pela relacao que existe en- undo das significagdes de um modo geral, e devemos fazé-lo de tal maneira que se elucide a densidade especificamente sonora do som, e que possamos entio aceder ao fendmeno musical. Porque € s6 pensando o som que logra- remos atingir.o ’clemento HrOprlamente Tusical aa pasion da miisica.e Sabe-se que, numa perspectiva platénica, a significagaio encontra seu fundamento tltimo num mundo transcendente, de Idéias supra-sensiveis. Em tal perspectiva, contudo, jamais se esclarecerd a realidade do som, sua tessitura ontolégica; ) ele fica relegado a ser 0 elemento impuro, que perturba a trans- paréncia daquilo que a significagao deveria ser em sua pleni- . tude. O som é confinado na opacidade dc do mundo — -¢ instancia ininteligivel Vfeita seria a matemitica, pois que totalmente desencarnada. Ent&o jd nao se explica 0 elemento especificamente musical, “como também a prépria palavra poética resulta ensombrecida. Voltemos, portanto, ao fendmeno som ¢ tentemos alcan- ¢ar.algumas de suas implicagdes. Acedemos a realidade do som pela percep¢io; ouvimos este ou aquele som assim como vemos esta ou aquela cor. O movimento perceptivo no pode ser entendido, porém, como se buscasse algo de estranho a si, algo que devesse penetrar de algum modo em nés e habitar / nossa subjetividade. E fundamentalmente insuficiente com- preender o processo perceptivo pelo esquema sujeito-objeto, limitando-o ao impasse de uma problematica precipuamente \ gnosiolégica. Costuma-se sublinhar o caréter intencional da percep¢ao: ela é pe -cepgio disto ou daquilo, tende a um con- tetido e dele vive. Mas o cardter necessariamente intencional da percepgio nao pode ser explicado se partirmos de duas realidades contrapostas, 0 sujeito — que seria intencional — diante de um objeto — que seria outro que nao o sujeito: ja- 140 mais se alcangard justificar como possa 0 sujeito incidir no objeto ou ser atingido por ele. Em verdade, a consideragao gnosioldgica do problema deve ser postergada a favor de uma andlise ontoldgica, ou seja, deve-se buscar um fundamento ido estabeleca ‘a uma identidade, un uma liga- gdo, uma conaturalidade entre o som € 0 ato perceptivo., — Esse elemento ‘iltimo que instaura_a c ee 6 pode ser 0 C€Orpo> A “espessura do corpo”, para falar com Merleau-Ponty, nao se institui como barreira que me isola do mundo e me obrigasse a uma auto-alheagio. Muito pelo con- trario, 0 corpo se impde como o tinico meio que legitima o fato de que podemos atingir os fendmenos sens{veis; pelo corpo eu me fago mundo ¢ transformo o percebido em carne. O corpo.é essa “volupté suivie”, para usar, a expressio de. Paul Nae, em cas: tL no ‘mundo. Seo oO homem fosse espirito puro nao faria sentido falar em percepese 20 som do som; e se o homem per be a0 ““fisico”. Muito mais, o ‘corpo ) manifesta cardter mun- dano,¢ 0 mundo como que sé intromete no elemento corpéreo. Por af jé se percebe que o corpo humano apresenta uma con- sisténcia profundamente distinta da do corpo simplesmente animal. O importante aqui est4 em que o corpo estabelece uma con-fus&o do ouvir e do que € ouvido, uma sintonia ver- tical dos dois elementos. Evidentemente, a propria Rercepgio nao conseguiria explicar tal fusio, essa cOnaturalidade, mas justamente nessa aparente insuficiéncia reside a sua impor- tancia: trata-se de uma vivéncia, de uma experiéncia de ser (e em liltima andlise do Ser), e nao de conhecer, Assim, a sono- ridade do corpo nio chega a ser a inteligibilidade. A experién- cia de ser no vai a ponto, obviamente, de incorrer numa co- incidéncia absoluta; trata-se muito mais de superficies que se tocam, como que imersas num elemento comum, “superficies de uma profundeza inesgotavel”, para repetirmos mais uma vez Merleau-Ponty!. 1. Le Visible et l’Invisible, Paris, ed. Gallimard, 1964, p. 188. 14] Portanto, para elucidar a realidade do som, 0 ponto de partida se encontra na constitui¢gdo de uma ontologia do cor- Po; mas nao do corpo enquanto organismo isolado, bloquea- do em si mesmo — esse corpo é abstrato -, e sim do corpo enquanto mundano, enquanto implica abertura e transcen- déncia. O mundo & a vocagiio do corpo. O UN como avi- so, manifesta um apelo do c corpo se faz mundo. gla por esse motivo, térna-se-peris} {| mente compreensivel que sobretudo’a miisica pe pe manega invariavelmente ligada Hg a danga. D. | ritmo, antes de ser um fendmeno sonoro, caracteriza um com- portamento fisico, algo como uma pulsagao vital a perseguir uma expansiio césmica. Homens como Adolphe Appia ou Jaques-Decrouze tém plenamente razdo quando preconizam a educagio fisica do ator e explicam 0 ritmo cénico do corpo a partir de uma esséncia musical; tém razio porque a esséncia da mtisica mostra um teor que, em seu nticleo tiltimo, revela naturezafisica, corp6rea ‘Costuma=se dizer que a mu: a musica isica €a mais espiritual, a mais etérea e imaterial de todas as artes; mas antes disso, trata-se da mais voluptuosa e sensual das artes. Ela realiza uma cari- cia que se faz mundo, e transmuta a carne em espirito, espirito s6 é espfrito - em sua densidade humana — porque encontra na carne 0 seu processo de ontogénese; isso sim- plesmente porque se ouve musica, e seria inécuo pretender considerar o ato de ouvir como secund4rio ou inessencial, ou mero veiculo que pudesse ser abandonado.)Dai 0 acerto de Boris de Schloezer ao afirmar que a obra Musical nao ésigno de qualquer coisa que a transcenda € se esforga por esposar, porque se assim fosse ficaria eternamente aquém de um ideal inexeqiifvel; ao contrério disso, ela “se significa”, como diz Schloezer’, e esse auto-si ignificar-se permanece fisico, embe- bido no carnal, oy aes aT € as Observagées anteriores sao corretas, podemos pros- seguir na andlise e dar algumas indicacées sobre a relagaio do som com a obra musical. Ao criar, 0 compositor usa sons; w 7 2. Introduction 4 J. S. Bach, Paris, ed. Gallimard, 1947, p. 27. 142 digamos quese serve de uma massa sonora que ele organiza e a qual emprestajforma) Entretanto, essa maneira de falar ten- de, mais uma vez, a desprestigiar a realidade do som; dé a entender que 0 som nao passa de qualquer coisa como um pré-requisito, uma matéria docilmente informe que se pres- fasse, num segundo momento, ao trabalho de composi¢ao: 0 compor derivaria integralmente de uma atividade que seria, compor nao constitui mero produto do artista, que fabricaria uma pega musical assim como se produz um objeto artesanal. Pode-se mesmo dizer que, de certo modo, nao €.0 compositor que faz a misica; muito mais, a misica se faz através do com- estar Nao basta explicar a composi oa > a partir de uma idéia que “o “ocorre” ao compositor. Em verdade, o compor vem de mais longe, de uma distancia mais abrangente, é um ato que assume, através da atividade criadora, a terra, 0 elemento teldrico, € o mundo, a historicidade, segundo a dicotomia de Heidegger. E se podemos todos escutar tal pagina de um Bartok, isso se verifica na medida em que residimos numa mesma terra € somos uma mesma historicidade; no ouvinte a miisica se reproduz e, em certo sentido, se recompée{ Porque a composi¢do € um p6r-junto terra ¢ mundo, uma ferra e um mundo aos quais nds todos pertencemos. Perguntemos entao: qual o lugar que cabe ao som den- tro desse complexo que envolve terra ¢ mundo, ato criador e obra, intérprete e ouvinte? O som 6, , antes de tudo, o ele- mento unificador do.complexo, que recolhe em siuma den- sidade que. o transcen. pela corporeidade do som, 0 intéF: prete €.o.ouvinte entram em unissono com a terra ¢ o mundo, estabelecendo-se uma Stinunung, uma COncordincia, cor respondéncia, através da qual somos a mtisica. Mas como pode o som instaurar essa sintese? Trata-se_aqui de com- preender a a mtisica desde 0 sam, ja que ele determina a mu- Sicalidade « da musica. . Normalmente se entende o som como ° 0 aspecto material da miisica, ao qual se acrescentaria a sip 9 . . . . forma. O som seria assim um meio totalmente passivo ¢ inerte, que deveria ser arrancado de sua particularidade para ser transposto a uma forma. Tal modo de considerar 0 som, porém, nao satisfaz. 143 'Na obra de arte o som, na sua condigio de som, jé é mun- do; nunca é apenas som, no sentido de que nao se reduz a su prépria particularidade. /Caberia aplicar aqui o que diz erleau-Ponty sobre a cor’, Nao hé contradigio entre tal som particular e o som como “titulo de um mundo”: desde dentro da particularidade do som e devido justamente 4 sua particu- laridade, ele se torna um universo; precisamente por ser parti- | cular, 0 som se faz apto a erguer-se 4 condigado de horizonte trazendo em seu bojo uma dimensio de transcendéncia que empresta & réalidade sonora algada ontolégica. No momento em que 0 som surge como particular, deixa de ser audivel em _ Sua particularidade e inaugura um mundo: ele é “parte total”. uando ouvimos tal mdsica, nZo ouvimos simplesmente sons, escutamos 0 mundo que o som é, e um mundo que pode ser todas as odas as coisas) Desse 16d, 0 Som, Belt Composioao, nao busca cingir um universal platonicamente sobreposto & sua propria realidade. O préprio som manifesta esse universal surdamente presente nele, vindo a ser expresso pelo artista desta ou daquela maneira, neste ou naquele estilo; porque o som é abertura, pode tornar-se mundo e, dessa maneira, des- velar, como que rasgando a sua superficie, uma profundidade que permanece inexaurivel: 0 universal encontra seu movi- mento genérico no préprio sensfvel./O Mar de Ravel nos d: mais que o mar-objeto ¢ ainda mais que o mar- conceito; ele nos dé o mar-esséncia em sua exuberincia teluri rid na historicidade do mundo./Dentro dessas coordenadas se _ deveria pensar o conceito de estilo (que nao é necessariamen- ‘te individual), 0 conceito de forma’e mesmo o problema da “interpretacao musical (geralmente reservada de um modo ex- \cessivo ao talento individual do intérprete) e do que Roman Ingarden chama de “‘identidade da obra musical”. Assim, 0 prdprio som canta, através do compositor, assu- mindo t terra € é mundo. . O artista n&o faz simplesmente o “que la cab mntrapor a obra artfstica The passa pela cabega. Co co. entanto, quanto maior Tigor € a exatidao da lei cientifica uma obra de arte, mais revela idade do aqui e agora, 3. Op. cit., p. 271. 144 mais condensa o sentido do Tempo, alcangando um rigor ¢ uma necessidade mais profunda do qu do que as tas da Natu- Teza. recisamente por ser diferente do mundo, ha fe seu ere ifn Qsom € mundo, um claro que colore todas} Se sentido, a composi¢do deixa de ser arbitraria ou mera cons- trugdo légica para tornar-se realmente obra de arte, isto é, expresso do Tempo, de uma conaturalidade que une os ho- mens de uma mesma historicidade. Compreende-se, por isso, que © artista possa ser, digamos, inconsciente em relacio ao sentido da terra e do mundo, sem deixar por essa raziio de fazer auténtica arte. ensivel, da verddds do. sensivel, como mistério de uma encarna¢ao que se processa desde um siléncio primevo, at fundante desde a auséncia de fundamento/Paul Klee expres- saestas 1déiasa sé (040 asseverar que na obra “a realida- de das coisas visiveis € revelada. E isso confere expressio & crenga segundo a qual as coisas vis{veis so apenas um exém- plo isolado na totalidade do universo, Outras verdades exis- tem, latentes, em néimero bem maior™ Ees essa laténcia do sensi- vel, a transcendéncia que habita a imagem: ouo som particular, que o artista busca exprimir numa linguagem que se faz es- sencialmente irredutfvel 4 linguagem conceitual. O artista nZio chega jamais a dominar a verdade latente. Klee procurava educar sua mao deixando-a seguir 0 movi- mento do trago, como se seu gesto fosse levado por uma lei escondida a fim de surpreender a linha, desprevenidamente, naquilo que ela é. Freqitentemente ouve-se dizer que tal pes- soa domina a lingua portuguesa ou domina diversas linguas. Em verdade, contudo, sé se pode dominar lfnguas artificiais: © que se chama de dominio da lingua portuguesa, longe de ser dominio, advém de um respeito, de um caminhar-com, um saber escutar aquilo que a lingua é, um pGr-se em estado de afinidade com o portugués. Assim, também, 0 artista nao do- 4. Cit. por Will Grohmann, Paul Klee, Paris, ed. Finkler, 1954, p. 160. JAS mina o material sensfvel; ele 0 escuta, 0 deixa ser naquilo que o sensfvel é; antes de dominio, hé submiss&o, 0 aprendizado da espera, namoro paciente da Jaténcia Paul Klee afirma também, numa linguagem demasiada- mente comprometida com a terminologia metafisica, que “‘o artista busca dar esséncia ao acidental"’. Observe-se que esse ato de dar nio deve ser entendido desde cima, desde uma es- fera supra-sensivel. Ao contrério disso, 0 préprio acidente, no movimento do sensivel, se essencializa porque traz consi- go aesséncia. Realmente, a criagao artistica manifesta cardter profundamente antimetafisico. Entende-se, por essa razao, que as categorias metafisicas da estética tradicional se revelassem insuficientes e nao autorizassem o desdobramento de uma Estética em moldes mais amplos. A arte € concentragio no “ffsico”’, reconhecimento de uma densidade ontoldégica_que reside no préprio sens{vel sem ser imposta de fora ou de cima: “osensivel, em simesmo, vem provido de uma carga ontolégica peculiar. Es Se a arte n nao diz conceitualmente 0 ser do sensi- vel, ela o expressa &¢ e econyidao 0 pensamento fi finitoz ) a debrugar- se sobre sua propria, génese. . Miisica nao é ‘ontologia, mas 0 pensamento da realidade musical termina sendo necessaria- mente ontoldgico ¢ leva ao problema do fundamento. 1967 5. Idem, ibidem. 146

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