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[A THVENGO DO AMORM: anor, sexo ¢ fan{lia em camadas médias urbanas ‘Tania DAUSTERA® I= 0 objetivo deste trabalho & discutir, em uma linha explora~ eéria, representages sobre o amor, sexualidade e familia. 0 te ma do amor, como me disse uma das minhas entrevistadas, "3 dos mais cantados em prosa, verso, pintura, mas no entanto, parado, xalmente, @ diffeil de ser definido", Um dos homens que entre vistei perguntava-se, por outro lado, como e 0 que diria a pro pésito de um ascunto tio intangivel, pois, afinal, de acordo com suas palavras, "o amor nio tem ponta, ado tem por onde pegar, & escorregadio". EntGo, @ que venho quando pretendo escrever sobre a re Lage entre amor, sexualidade © fanflia? Propue-me, sem nenbuma pretensio de esgotar tematica to vaeta, apresentar a cinco mulheres ¢ quatro homens, entre trinta e quarenta anos, algunas questdes ompiricas. Propus~ne * Eote texto coresponde a uma das partes integrantes do traba iho "A Invengao do Amor" apresentado no curso ministrado pelo Prof. Peter Fry no P.P.G.A.S. do Museu Nacional, no segundo se nestre de 1984. Agradego ao Prof. Peter Fry as valiosas obser Vagoes e sugestées para sua reformulagao. £, mais una vez, pradego a Carnen Dora Guimaraes, Maria Andréa Loyola e Giiber fo Velho pela troca de idai. ‘A invengao do Amor foi apre~ sentado no III Encontro da Associacio Brasileira de Zetudos Po~ pulacionaie (ASEV), realizado em Aguas de Sao Pedro, Sao Paulo, em outubro de 1984. ** Doutorands do Programa de Pée-Graduagdo em Antropologia Social, Muse Nacional /UFEI. * ® 521 que fazen. Basicamente os significados, os valores, 0 universo simbdlico © a retSrica produzida em torno destas questées © nao as praticas que as envolvem. Vejo neste mapeamento prelininar algunas pistas para o entendinento dos comportamentos e dos fa tos sociais que, nestas Sreas,sio vivenciades na experiéncia co cidiana. Neste sentido, @ possivel compreender, por exemplo, a mor © sexualidade, como estas categorias séo socialmente cons eruida, | ou sejatde que conceitos e nogdes as pessoas entre~ vistadas compartilham ou divergem ao falaren de suas vivéncias Embora o niimero de casos com que lide no permita ne nhum tipo de generalitagio, procurarei epontar quais as légicas e regras que sustentam estas nogdes e as vivéncias de determi- nadas relages, conforme me foram narradas. Para capté-1as, pedi a cada um que me contasse a histd ria de seus relacionamentos afetives. Sugeri, como disse, que esta biografia fosse pensada a partir de determinadas relagdes sociais, tais como edo engendradas na fanilia, no nanoro, no ca samento. Na medida em que me falavam de anor, paixio, anizede ¢ (2) Admito com Peter Fry que "a ago social mesno defasada das prioridades estabelecidas pelas representasoes, sera sempre compreendida nos termos que elas estabelecen" (Fry, 1982). 522 sexo, busquei os contrastes, as diferengas e semelhangas que constituiam os relacionamentos expressos nestas emogies. IL - Na composigo do grupo de entrevistados, “transformei" al- gune amigos ou pessoas mais ou menos conhecidas em informante: Entre estes, alguns, por cua vez, mant@m estreitas relagdes de amizade. Deserevendo o grupo cabe apontar algunas caracteristi cas recorrentes. Todos pertencem is camadas médias e sao mora~ dores da zona sul do Rio de Janeiro, sendo que duas das mulheres sto, respectivanente, de Minas Gerais e do Parané. Ambas, coin cidentemente, assumiram a primeira gravidez fora dos lagos de casamento, mantendo relagdes afetivas com o pai da criang va tro das mulheres entrevietadas graduaram-se en sociologia (dui prosseguiram seus estudos de pés-graduagao nesta mesma area) 3, & pintora, com exposi a quinta, que nio fez ci@ncias soci Ses j% realizadas e professora de arte em escola particular de primeiro grau, conhecida pela viedo liberal que imprime ao seu projeto educative. Das que formarammse em sociologia, duas tra balham no Gmbito da universidade em pesquisa ou ensino. Das res tantes, uma trabalha em televisio e s outra em instituigio go- vernamental, Sio duas mulheres casadas, duas solteiras e una divoreiada. Todas eGo mies e mantém atividades profissionais. Tendem a preocupar-se com a chamada alimentagio natural, com o trabalho de corpo, uso da homeopatia e a psicanilise. A formacio acadnica dos quatro homens abrange as cién Dois dentre eles fi, cias sociais, a advocacia e 2 arquitetur, 523 seram pSs~graduagao em antropologia ¢ os outros tém interesses que abrangem 0 urbanieno, a ecologia e a biologia a nivel de es tudos pés-graduados. Dois sao professores universitarios ¢ pes, quisadores. Dos restantes um trabalha em instituigio de gover no e © outro em instituigdo ligada 3 Igreja. Dois entre os ho mens originam-se da Bahia ¢ de Minas Gerais. Dois sao casados © os outros solteiros. Un destes se apresenta como homossexual. com a excecdo deste, todos tém filhos. Assim como entre as my lheres, a visio e a vivéncie psicanalftica também impregna © discurse masculino. Vale mencionar, ainda, que uma das aulhe res e um entre os homens j@ viveu no exterior por tempo prolon- gado. Bm suma, diria ser um grupo de pessoas com significati vas caracteristicas artieticas ¢ intelectuais, partilhando apro ximadanente o mesmo ethos (2). Suponho, finalmente que tanto a peicandlise quanto a sociologia so constituintes da expe rigneia e das concepsées deste grupo (3). Mesmo assim, este @ um grupo heteroganeo por algumas das razbes que discutiremos (2) “Estilos de vida, aspectos afetivos, estéticos ..." (Ver ane, 1983) (3) Lembro af, perspective de Sahlins (1979) para quem @ cul tura ga "légica social da significagao", que encompassa a Felagdo humana com o mundo, e é condigao social de sua pos. eibiiidade" 524 IIT - Do discurso do grupo energiran algunas classificagdes que nostram diversas maneiras de conceber o amor nas relages que sio vivenciadas, Mais depreesa, portanto, amores sd0 vividos. Serf a partir de relagdes sociais concretas que os individuos 1: amor sexual, amor cristfo, amor amor sexual, amor eristdo, amor vio criar categorias tais com impossivel, amor platSnico, amor da familia, amor da mie, anor do filho, amor louco, amor romfntico, amor adolescente, amor dos animais para descrever suas experiéncias afetivas. E minha intengo aqui, entretanto, @ abordar primeiramen te, of pontos de vista feminino e masculino sobre 2 ligagao en ere amor ¢ sexualidade no interior de relagdes heterossexuais. A insergio de um dos homens entrevistados, que se apresenta como homo: exual, endossa neste aspecto a visio “tradicionalmente” des cerita como pertencente ao universo masculine. Acrescente-se, po rém que o anor & afirmado como valor por homens e mulheres, ex cetuando-se aquele que se coloca com identidade homosexual. Para ele, néo somente, a separagdo entre amor e sexualidade é pos tulada, A Gnfase recai numa sexualidade tio mais “explosiva" ¢ “maravilhosa" tie somente enquanto “nao envolve nenhum afeto, nenhum anor". Questiona, im, a significagde do afeto: o mor como valor @ negado. A discus entre amor e sexualidade passa por un sistema de valores diferenciais no que tange & conduta da mulher ou do homem. As! m, por exemplo, a honra, a monogamia , © adultério, a fidelidade conjugal, a promiscuidade podem sor percebidos a partir de um "duplo padrao de moralidade" sexual. 525 Padrao este ligado a uma concepgdo naturalizada, portanto niio social, do feminino e do masculino, A propésito, Pitt Rivers fa 1a também da "diviso moral do trabalho" cono a distribuigio de atributos morais entre os sexos, que serve de premissa para ava Liagde de comportamentos e, ac mesmo tempo, é estruturante do arcabougo social. Na medida que amor e sexualidade eGo percebidos como in terligados ou dissociados temos, alternativamente, operando duas 1Bgicas (feminina e masculina) e dois cddigos morais. Tradicionalmente, na construgdo dos géneros feminine (4) © masculino (1égica interna e "duplo padrio de moralidade") asso ciacse a mulher com 0 “sagrado ¢ os valores do coragdo", residin do somente ai a sua superioridade face ao homen. Trata-se de um mosaico conceitual (© “modelo nediterraneo") no qual os "valo res do coragio" estio aesociados A casa, familia e 3 mulher , sendo ela sua guardia privilegiada. Por sua vez, o homen @ repositério da autoridade moral, mas nao da afetividade, © a © le cabe o controle da sexualidade feminina para salvaguardar ag sim a sua prépri honra depositada na imagem feninina. Em ou tras palavras, neste jogo de complenentaridades, & na mulher que esta alocada a honra masculina e, até mesmo, a da propria fant, L Integrando este sistema de valores, acrescente-se, ainda, a viedo idealizada que o homem sustenta a respeito da figure ma (4) Para outras visdes ver: Abreu(1983), Aragio (1983), Dauster (1983), Gaspar (1984), Heilborn (1984), Salem (1984). 526 Examinemos 0 discurso do grupo: Trata~se de idéia corrente "a distingio que, geraluen te, se faz entre homem © mulher: 0 homem tem o sexo independen te do anor e a mulher nfo” (Renato), Esta nogdo & significati- vanente partilhada por tre das mulheres, entre as quais duas solteiras e uma divorciada. Segundo eles, a “sexualidade esta Ligada ao amor, porque & muito mais gostoea" (Mireia); ou ainda, "homem gosta muito & de meter, mulher precisa mais de romantis mo, ten que fazer um pouco a cabega, se nfo, tanbém ndo sente a sexual, eu (uiecia); ou entio: "para eu aceitar a relag! tenho que passd-1s, por esse canal de anox" (Marisa). Lembrando Marcel Mauss, as expressdes dos sentimentos ndo so fenduenos neranente psicolégicos ou fisiolégicos, nas sociais, Portanto, nem so espontaneos, nem tio pouco, exclusi vanente, individuais. Sio fates eociais, constituen-ae cono lin guagen e, enquanto manifestagses coletivas, tém a forga da obri gatoriedade" (Mauss, 1921). Dai pergunto: como viver o “tesio @ sexualidade sem chamd-los de amor? Marisa coloca esta questa como um "problema univer al", embora se contradiga quando admite que haja pessoas que "ily tBm seus retacionanentos sexuais sen a neceasidade de uma so amorosa", Para ela isto vem sendo um processo de “aprendi~ zado" a parcir de sua separagio. Pois, segundo o que diz, mes, mo que perceba posteriormente 0 "engano", en princfpio confere va “sentido amoroso" ao relacionamento sexual. Ou melhor, recu sando a iddia da “desilusio", sustenta, entretante, a necessi 527 dade do "sentido amoroso" como um "preiddio" para o ato sexual ou, algum "ritual de aproximagio", como mencionou Carlos. Em su na, a pratica sexual no se sustenta apenas como “prazer". Obri, se pela linguagem e pela me gatorianente manifest. Eeta @ a Logica que cabe “eradicionalmente” Z aulher , socialmeate Legitimada "guardii dos valores do coragéo": reves~ tir o exercfeio da sexualidade com 0 sentimento anoroso sob pe na de se projetar fora do universo relacional da famflia, que tem como uma de suas fronteiras a prostituigéo (5). Inversamente ao que se atribui Z mulher, 0 padréo 69 cial do comportamento masculine @ "tradicionalmente” representa do através da possibilidade do exercfcio do sexo sem amor. Di ria que esta visio compartilhada por seguentos fenininos ¢ masculinos, sem excluir a perspective homosexual, cono ficai explicitado no fragmento: “Hoje eu diria que as grandes trepa das eGo aquelas trepadas, assim, de alguém que passa pela rua e, entio, vamos para o hotel e fazemos coisas (5) Ver Abreu (op cit ), Dauster (1982), Gaspar (op cit ) Salem (op cit) 528 inacreditaveis No entanto, em todas eeeae minhas amigas eu nunca consegui perceber uma Stica seme ihante, Nunca nenhume delas sepa rou afeto, amor e sexo da maneira que eu transo ... fu imagino que a mulher viva a sexualidade — afeti: vidade muito costurada. Convivendo com lésbicas, eu me surpreendi como a soxvalidade para elas, tanbém, ra muito vinculads 3 afetividade. fu vejo o hones, nfo somente o honosse xual _trabalhando ise assim, porque eu no estou achando que cu seja di ferente dos outros homens, nfo (An ar). Configura-se, assim, = moral do trabalho" en tre os g@neros feminine e masculino, cuje légica, "tradicional— mente” concede, a mulher a junge entre sexo ¢ sentimento, en quanto para o homem atribui @ separaco entre sexo e amor. # interessante notar, apenas de passagem, que o ponto de vista homossexual referenda-se neste aspecto, em uma repre- sentagio do que seria o discurso congruente com o género mascy Lino. 529 No entanto, a constelagio de valores discutida no coincide totalmente com as representagdes do grupo. Ha indi clos de que mulheres © homens esto redefinindo estae nogdes, enguaato pensan, ou atuaa, segundo padrées que questionam e rein~ ventan a légica das atitudes sentinencais como "tradicionalmen te" sdo concebidas. Se néo, vejamo A “modernidade" (6) do grupo revela-se na crenga om valores individualizantes, na sua diferenciagio face 3 famili no significado atribufde experiéncia individual, e no valor concedido ao "sujeito moral” enquanto liberdade, projeto ¢ prazer. Valendo-me, mais uma vez, dos relatos biogrficos, per cebo que dentro da légica individualista emorgente neste grupo, “o medo do crescimento” mescla-se “ao medo de assumir a sexua- Lidade" © 0 "testo", conforme diese uma das duas mulheres casa das. (6) Ver Maria Luiza Heilbon (1984) para a discussio do "tradi clonal" e ‘imoderno". A autora sugere ainda que usamos o "st barbio" ¢ a "zona sui” como metaforas para 0 entendinento de atitudes e comportamentos tradicionais e modernos. Aua, a outra mulher casada assim expressou-se? " J.. Eu acho que uma das aberturas do tempo da,gente, & viver a sexuay Lidade socialmente de forma mais di fundida e menos culpada, de viver o barate do tesio £ uma forma de amor, de afeto, 8 que nao @ reconhe cida por aqueles c@nones —habity Indica-se af uma sociabilidade amorosa-sexual que transborda “a separagao estereotipada entre amor e sexo". Clara mente ancora-se na psicandlise com a sua @nfase no crescimento ¢ na individualizagio feminina. A modificagdo de visio implica em outros modos de comportamento feminino e masculino aio pautados, exclusivanente, na légica do “duplo padrao de morali- dade". Este movimento desvela-se na voz de um dos homens casa dos do grupo: “sexo para aim foi sempre uma coisa diretamente Ligada a sentimento e foi Stimo, foi legal” (Renato). Nesta transformagdo, a separago entre amor ¢ sexo pas sa a ser um esteredtipo, assim como a iddia invers: de uma cos tura necessiria entre amor e sexualidade, questionavel duplamen e como padrao social exclusivamente ligade ao comportamento se xual feminino, na medida em que o homem faz também esta conexio. 531 2 como padrao exclusive feminino, na medida en que 2 individua~ Lizagdo para a mulher coloca-se, também, através do exercicio do “ees: Em ouma, a mudanga contribui para dissolver as fronted ras rigidas do “duplo padrao de moralidade", tao exeaplarmente contido no modelo mediterraneo, Além disco coloca outra pers pectiva para se pensar a representagio da construgio do femini no e do masculino. Mais flexivel e jf ndo polarizada sobre os nesmos valores de outrora. 0 reconbecimento de semelhangas en tre os sexos marca as aspiragdes igualitarias em termes ¢e li berdade © identidade quanto acs memos direitos civis para am bos. Assim, também, opde-se & definigio bindria da divisio se xual de papéis. No se quer dizer com isto que diferengas sejan andladas. Pelo contrario, a postulacio de uma igueldade precede a nogio da diferenga entre os géneros, a ser reinterpre tada a partir de novos modos de relagio homen/mulher enraizados nas condigdes da atualidade. Pois, de fato, como as distingdes © contrastes se instauram,se no a partir das relagdes sociais concretas ¢ da maneira pela qual a coletividade se constitui organiza? Ent, se a linguagem do igualitarismo entre oe géne ros nZo anula as suas diferencas, questiona,porm, as suas hie~ rarquizegSes. £ dai as indagagdes: Cono ser diferente © igual? Quais ae hierarquizagdes que o igualitarismo enquanto mito esta ria reeditando? Como ter a-diferenga, vista como especificidade, sem hierarquizagio? 532 se Consideramos, ainda, algunas peculiaridades internas ao grupo de mulheres no que diz respeito % relagio entre famflia e sexualidade. Marcia € mineira, solteira e nie. Vé-se como alguém que faz uma rutura com um "medo" antigo instalado dentro de si pela famflia. Este “medo” convertido om "prisio" negava o zer" e "amor". Woje "vai 3 luta, atras do prazer" para no mais "sacanear-se", Tanto o "filho", quanto o "amor" ¢ “o pra, zer" comple seu movimento de assunir-se enquanto “eujeito mom ral" dona de sua "vontade", de sua "vida", Este "salto", cujo climax 0 filho vai representar, cono sign da sexualidade conere tizada e vivida fora dos Lagos familiares, vai sinalizar uma no va concepsio de sexualidade ¢ familia. Ao decidir-se pele gra videz, Mireia confronta-se com outro medo: a “perda do amor da familia", ao lado da percepgio do quanto £8ra “inculeado pe la familia". Sua reagio @ a seguinte: "o mais importante ago- ra sou cu". Na verdade, Marcia nfo perdeu o amor da familia, que a princEpio reagin contra s perda de controle sobre a sua reprodugdo. Sua familia a ajuda financeiramente, enquanto 0 pai da crianga presta-ihe, apenas, uma contribuigdo eimblica. Sua nie ¢ irmi fazem as mediagdes necessarias junto a0 pai para aceitagio da nova situagdo. Por outro lado, Mireia o pera uma transicio social na medida em que faz a passagem entre © modelo de familia composto por pai, mie e filhos e, um outro ainda nfo claramente aceito ou percebido por ela! 533 "Eu acho que ev e a nenen nfo for manos uma familia ... Eu acho que no vai ser uma familia em que pai e mie fazem tudo, para depois pren der, Vai ser mais uma coisa de companheirisno. Uma familia dife~ rente, nio estruturada como da so- eiedade ..." Vé-se que o modelo de familia elenontar @ visto por Mareia como legftimo socialmente. A idéie de mudanga reside na eriagdo de uma fanflia, sem a presenga do pai, ne qual o compa- nheirismo seja o valor dominante. Valoriza, ainda, relagdes mais igualitarias e que enfatisem @ liberdade individual de cada um. Liicia &, também, solteira e mae. Como Marcia nasceu em cidade pequena, no sul do pafs, e veio mais tarde para o Rio. Ambas decidiram-se por uma gravidez, fora dos legos do casamen- to. Queriam um filho e no, necessariamente, um c: mento. La cia também teve sua opsio aceita pela fanflia, fa principal responsivel pela crianga, embora tenha assist@ncia do pai de sua filha e de familiares. Meu propésito € levantar, a partir destes dois casos , alguns questionanentos que ae relacionam com o que foi anterior mente discutido. Na visio da relago significativa entre amor e sexvali, 53h dade, estas duas mulheres expressam um cddigo "tradicional" de moralidade. No entanto, ancoradas na “autonomia econdmica" © em valores ligados & percepgo de sua individualidade ,constrdem ao um outro modelo de reprodugie social,que exclui a instituic’ casal legitimo e procriador. ‘A questo em foco & a seguinte: até que ponto estas mu theres — mies solteiras das camadas médias — estio negando o modelo dominante de reprodusio social, reproduzindo-o com mai res Snus (7) ou produzindo noves modelos de maternidade a partir de representages diferentes da concepgio, da erianga e da fant Lia? Com 0 propdsito de ampliar © campo de discussio, exami no a seguir algunas hipSteses preliminares relativas is rela~ gBee entre of gineros, no que dizem respeito i situago social da nie solteirascom as peculiaridades aqui descritas. Comparando: e, sucintamente ,o modelo de familia elemen tar com a vivéncia da mie solteira e sua prole, divisa-se outra organizagéo social e econdmica, Se no primeiro modelo o homem aparece como provedor, ou mais "nodernamente" dividindo os encar gos com a parceira, no segundo, a sua auséncia acarreta uma sob: carga econdnica e simbSlica para a mulher, Aumentam os deveres (7) Interpretagio sugerida por Maria Andréa Loyola. 535 femininos em relagie ae Filho, enquanto dilvi-se o investimento paterso, A mulher procria, prov, educayenquante © pai, caso mn tenha 08 lagos com o filho, participa financeira e emocionalmen te de forma pouco significative. Por outro lado, neste sistema de reprodugio, 2 aulher simbolicamente consagra seus direitos sobre a posse do préprio corpo ¢ de crianga. Baseada na sua autonomia ¢ liberdade, gera independentenente de compromissos mais explfcites que o parcei~ ro possa vir a ter com o filho. Até meemo, em certos casos, ex cluindo da decisio, o desejo e conhecimento conseientes do futu ro pai, Nesta ine dixie que a concepgio expressaria 0 outro lade do direito ao aborto, No entanto, contraditoriamen te % liberdade manifesta, esta mulher sofre os enbaragos rela cionados & crise atual dae relagdes entre os sexos associados a outros constranginentos de ordem interna, verbalizados através do fator idade (etapa do ciclo de vide apés 30 anos), Indago, en 4, mesno sendo o filho £ruto de una decisio © nao do acaso, que Liberdade e autonomia sio estas que as mulheres se atribuen? outras tensdes dizen respeito & relagio com a sua fant Lia de origen ¢ @ sue cronga na autonomia individual. Com efei to, a vivneia da mie solteira expre 2 poderes © constrangimen tos quanto F fecundidade © seu fruto. Nota-se que uns ¢ outros se anpliarian no fosse a solidaridade financeira ¢ afetiva que a linhe materna, quase exclusiva ¢ constantemente oferece. Em que pesem as relagSes frequentemente restritas & — prépria 536 familia, configura-se a linha matrilinear como determinante na dinfmica deste sistema reprodutivo, mesmo quando a crianga = @ registrada pelo genitor. Secundariamente, esta mulher revive a velha estéria de ganhar um marido através de uma gravidez. No entanto, @ afirma do, repetidamente, que o filho @ mais importante que o casamen to. $8 0 cotidiano da criagdo do filho revelara, porém, difi- culdades nao entrevistas no momento da opgéo pela gravidex (fo- ra do casamento) e escolha do pa! Em sintese, estas reflexdes sumdrias indicam que ve lhos comportamentos e atitudes so reeditados ao lado de valo, res novos que surgem para orientar as relagdes entre os sexos ¢ os sentimentos definidores da nogio de crianga e familia. 537 BIBLLOGRAFIA - ABREU, 0, ~ Dona Beija: Andlise de um Mito, em Perspectives Antropolégicas da Mulher, n 3. Rio de Janeiro, Zahar Bd 1983. Mie - mimeo - 1983. ~ ARAGKO, Luiz Tarlei - Em Nome 4. 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