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Carlos Augusto da Silveira Lobo ADVOCACIA DE EMPRESAS Sociedades Anénimas Valores Mobilidrios Sociedades Limitadas Arbitragem Concessdo de Servico Piblico Recuperagao Judicial e Faléncia Nogées de Contabilidade RENOVAR Rilo S60 Paulo go12 Respite « Brats aston! O PATRIMONIO O patriménio é uma universalidade, ou seja, um conjunto con- siderado em seu todo, independentemente de seus elementos e que, mediante um processo mental de abstracio, se destaca para ser considerado unitariamente e em separado de outros conjuntos dos seus elementos considerados isoladamente. Sao exemplos tipicos de universalidades a biblioteca e o rebanho, que so tidos independentemente dos livros e das reses que os compdem, mas que também sao considerados como universos, separadamente das demais bibliotecas e livros e rebanhos e reses. O patriménio é uma universalidade composta de bens e débitos. O que nos leva a conceber uma universalidade é o liame intan- givel que liga todos os seus elementos. Os livros de uma biblioteca sfo concebidos como uma universalidade pelo fato de estarem depositados em um mesmo ambiente, com a finalidade de, com- pletando-se uns aos outros, propiciarem melhores condigées 8 lei- tura e a pesquisa. As reses de um rebanho sao concebidas como uma universalidade porque se destacam e separam das demais reses e rebanhos, por pertencerem ao mesmo dono, ou por pasta- rem em um mesmo campo. Interessante observar que, embora ligados uns aos outros por esse liame, os elementos podem ser exclufdos ou inclufdos na universalidade, sem que esta perca a sua identidade. O fato de uma nova colegio de livros integrar-se a uma biblioteca, nao lhe altera a identidade. O fato de algumas das reses serem vendidas, nao faz com que o rebanho deixe de ser aquele mesmo rebanho. O patriménio € uma universalidade; mas, diferentemente da biblioteca e do rebanho, que s6 compreendem elementos ativos, € uum conjunto de elementos ativos e passivos, isto é, de direitos 3 subjetivos e obrigagées juridicas. Ndo € por outra razio que o patriménio se avalia mediante uma soma algébrica dos valores ativos aos valores passivos. Por que relacionamos certos direitos subjetivos a certas obriga- des para conceber um patriménio? Porque todos os bens e direitos de um patriménio respondem indistintamente por todas as obriga- goes dele constantes. E 0 fato de os bens de um patriménio pode- rem ser executados (isto , expropriados e liquidados) para pagar as dividas dele constantes, que liga os bens e as obrigacées entre si € uns aos outros, conduzindo a conceber-se o conjunto assim for- mado como uma universalidade.! Patriménio, portanto, € um conjunto de direitos subjetivos e obrigacées aprecidveis em dinheiro, que séo considerados unitaria- mente pelo Direito, porque os direitos séo vinculados ao pagamen- to das obrigacées. Por causa dessa vinculacao, s6 integram o lado ativo do patriménio os direitos subjetivos avalidveis economica- mente, ou melhor, os direitos cujos objetos sejam coisas ou crédi- tos suscetiveis de serem convertidos em dinheiro; e, no lado passi- Vo, se incluem apenas as obrigagdes que tem por objeto, direta ou indiretamente, prestagdes pecuniérias. A personalidade aparece com maior nitidez e avassaladora fre- quéncia como causa do liame que forma o patriménio. “Nao haven- do titulo legal a preferéncia”, dispée o artigo 957 do Cédigo Civil, “terdo os credores igual direito sobre os bens do devedor comum”, traduzindo um princfpio encontrado no direito positivo de todos os paises. E esse preceito que conduz a concepgao do patriménio como uma universalidade ligada a um sujeito de direito. O fato de todos os bens de uma pessoa responderem indistintamente por 1 O estabelecimento comercial é uma universalidade, também composta de direitos e obrigagées, mas nao constitui um patriménio, porque o liame que liga os direitos e obrigacées dele constantes néo é a vinculagao daqueles ao Ppagamento destas. No estabelecimento, o liame é a vinculagéo a negécios praticados com base em uma mesma instalacdo comercial ou industrial. Pelas dividas contrafdas na exploragéo de um estabelecimento, respondem indistin- tamente todos os bens do patriménio da pessoa fisica ou juridica, de cujo patriménio faz parte o estabelecimento. 4 todas as suas dividas conduz a que cada um dos credores dessa pessoa tenha interesse em conhecer todos os bens e todas as obriga- Ses dessa mesma pessoa, para, fazendo entre eles um cotejo, verificar a possibilidade de seu crédito ser pago. Visto por um credor, o patriménio de uma pessoa é a soma dos bens e direitos apreci4veis em dinheiro dessa pessoa, comparado 4 soma das obrigagdes assumidas por essa mesma pessoa. Dessa forma o cre- dor avalia os bens que esto vinculados ao pagamento de seu crédi- to e os outros créditos que com o dele concorreréo sobre esses bens. A evidéncia da personalidade como elemento aglutinador do patriménio, levou a doutrina classica a ver o patriménio como uma espécie de emanacio da pessoa, como se fosse uma érbita, insepard- vel da personalidade, na qual gravitariam seus direitos e obrigacses. A doutrina moderna, todavia, mostra que os cldssicos, quando conceberam o patriménio como uma emanagio da personalidade, estavam confundindo patriménio com capacidade juridica. A capa- cidade juridica das pessoas, sim, € emanagio da personalidade. A capacidade juridica é a base sobre a qual assenta o patriménio pessoal, mas com ele nao se confunde. E certo que a cada pessoa fisica ou juridica corresponde um patriménio. Trata-se do que denominaremos “patriménio geral”, que se qualifica como universalidade de direito consoante 0 artigo 91 do Cédigo Civil’. Mas também é certo que nao hé impedimento conceitual a que a lei crie patriménios especiais, a par de patrimé- nios gerais. O préprio Cédigo Civil, no artigo 988, tratando da sociedade em comum, dispée que “os bens e dividas sociais consti- tuem patriménio especial, do qual os sécios sao titulares em co- mum”, Séo exemplos de patriménios especiais previstos na legis- 2 Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relagées juri- dicas, de uma pessoa, dotadas de valor econémico. 3 Observe-se todavia que o artigo 90 do Cédigo Civil, ao definir a univer- salidade de fato, ndo se refere a patriménio especial, pois apenas inclui bens € nao dividas. “Art. 90. Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes 4 mesma pessoa, tenham destinacao unitéria.” lagio extravagante, o patriménio de afetacéo de incorporagdes imobiliérias (Lei n. 10.931, de 02 de agosto de 2004) e 0 relativo aos fundos de investimento imobilifrio (Lei n. 8668, de 25 de junho de 1993). Sendo uma universalidade, o patriménio se distingue dos bens, direitos e obrigagdes que o compéem. Na vida normal, a todo momento, bens e direitos esto entrando e saindo de patriménios, assim como obrigagées estdo sendo extintas enquanto outras sio assumidas. Portanto, os elementos de um patriménio estdo cons- tantemente em movimentagao para dentro e para fora dele. A composicao do patriménio, em vista de seus elementos, esté fre- quentemente mudando, mas, ainda que mudem todos ou quase todos os elementos componentes, a identidade do patriménio con- tinua a mesma, posto que se altere seu valor. De ha muito que a vida real vem mais e mais exigindo a segre- gacao de conjuntos de direitos e obrigagées em patriménios espe- ciais. Essa segregacao foi e ainda é dificultada pela ideia, profunda- mente arraigada na doutrina e na pritica juridicas, de que a cada pessoa deve corresponder um tnico patriménio, como emanacio e consequéncia de sua personalidade. E interessante notar que, para 0 Direito, foi mais facil admitir amplissima liberdade para as pes- soas criarem outros sujeitos de direito mediante a constituicao de sociedades dotadas de personalidade juridica, do que reconhecer a independéncia e a incomunicabilidade de patriménios especiais segregados do patriménio geral da pessoa que os criou. Conquista- da a liberdade para segregar patriménios mediante a criacio de pessoas juridicas, os empresérios desencadearam uma evolugdo que veio resultar ndo somente na segregacio do patriménio, mas na total incomunicabilidade, no que se refere a responsabilidade, do patriménio segregado na sociedade com o patriménio dos sécios. O apice dessa evolugao é a sociedade anénima, na qual, em verdade, nao se limita a responsabilidade do sécio, mas se estabelece a total e absoluta incomunicabilidade entre o patriménio da sociedade e de seus acionistas. A sociedade tornou-se assim, no apenas uma instituicao juridi- fim comum, mas também um instrumento de segregacdo de patri- ‘Mménios e de limitacdo de responsabilidades. Com efeito, a observacao do cendrio econémico apresenta um ‘Sem-ntimero de sociedades cujo capital pertence quase totalmente uma pessoa, que atribui pouquissimas agdes ou quotas a outra essoa de sua confianga, apenas para completar o nimero minimo le dois sécios. H4 também sociedades que so meras personifica- Ges de departamentos de uma empresa que, dessa forma, circuns- eve a responsabilidade pelos negécios do departamento ao patri- sse dado de fato, regulando a constituicéo de subsidiérias inte- ais. A recente Lei n° 11.441, de 11 de julho de 2011 criou a émpresa individual de responsabilidade limitada. Sao frequentes as “SPE” (sociedades de propésitos especificos), que sao sociedades ‘tiadas como objetivo de especializar um patriménio ao ambito de projeto, sem contaminar o patriménio da sociedade ou das Sociedades que o promovem. NOGAO DE CAPITAL SOCIAL‘ O termo capital tem muitas significagdes e derivagées na lin- guagem corrente. Aqui nos interessa apenas o sentido juridico do termo. Examinaremos também, embora ligeiramente, o sentido patrimonial, para, ao distingui-lo do sentido jurfdico, melhor en- tendermos esta tiltima significacao. No sentido patrimonial, o termo capital designa um objeto concreto, ou melhor, o conjunto dos bens tangiveis e intangiveis de um patriménio, que sdo destinados 4 produgdo de renda. Nao integram o capital os bens que tém como destino o consumo pelo préprio titular do patriménio. Em se tratando de uma sociedade empreséria, todos os seus bens, inclusive o dinheiro disponivel na caixa ou em contas bancérias, as aplicagdes financeiras, as contas a receber, os estoques de matérias primas e de produtos, as marcas e patentes, os investimentos em outras empresas, as instalagdes, méquinas e equipamentos, enfim, todos os ativos vinculados 4 empresa se destinam, direta ou indiretamente, a produzir renda. Por isso, o capital — no sentido patrimonial — de uma sociedade empreséria é constitufdo de todos os bens de seu ativo. Nao é assim, como veremos, ainda tratando de uma sociedade empreséria, quando consideramos 0 termo capital no sentido juri- dico. No sentido juridico, o capital (também designado capital so- cial) corresponde a uma ideia abstrata, um mero ntimero ou cifra, 4 Publicado na obra coletiva “Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito”, coordendores Anténio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello, Ed. Renovar, Rio, 2003, p. 177. sem relagéo com o conjunto de bens integrantes do patriménio, ou com este ou aquele determinado bem. Diz-se que o capital 6 uma “cifra de retengéo”. Com efeito: trata-se meramente de uma cifra fixada no ato de constituicgéo da companhia (e nas modificacgées subsequentes, se houver), que se publica para ciéncia dos credores. Nos balangos patrimoniais da companhia, essa cifra aparece imuté- vel, para servir de gabarito, de ponto de referéncia fixo, a ser comparada com o patriménio liquido, este ultimo variével por natureza, em fungao das vicissitudes e fortunas do negécio. Como veremos adiante, na constituicdo da companhia e nos seus aumentos de capital, a soma dos bens entio contribuidos pelos sécios deve ser, no minimo, igual a cifra do capital. Nem por isso 0 capital deixa de ser uma abstracgio, porquanto ndo designa esses bens, mas sim o valor minimo dos recursos que os subscritores se obrigaram a fazer ingressar no patriménio social. Alids, no direito moderno, nao cabe mais a afirmagao, que encontramos nos melho- res autores antigos, de que o patriménio social é igual ao capital social no ato da constituigéo da sociedade. Havendo subscrigao com prémio de emissdo, no caso de agdes com valor nominal, a parcela referente ao prémio compée o patriménio Ifquido como reserva de capital (art. 13, § 2° da Lei de S/A); no caso de emissao de agdes sem valor nominal, uma parcela do preco de emissio poderé ser atribufda a reserva de capital, registrando-se apenas o saldo na conta capital social. Em suma, na formagio do capital, a lei confere ampla liberdade para a fixacao da respectiva cifra, exigindo apenas que essa cifra seja publicada e corresponda a um valor efetivamente ingressado no patriménio da sociedade, por forca da integralizacao do capital subscrito*. Adotamos, portanto, o regime do capital declarado (“stated capital”), que resulta de uma declara- ¢40 dos acionistas, devidamente publicada para orientagio dos 5 A Exposigdo de Motivos do Projeto de que resultou a Lei n° 6.404/76 diz: “O projeto reserva a expressio capital social ou simplesmente capital para significar 0 montante do capital financeiro de propriedade da companhia, que 9s acionistas vinculam ao seu patriménio, como recursos préprios destinados, de modo permanente, a realizacao do objeto social”. 10 credores, sem coincidir necessariamente com o montante da subs- crigdo®. Essa cifra, 0 capital social, esté sempre a indicar a parcela do patriménio que nao pode ser distribuida pela companhia aos acio- nistas, exceto quando da dissolucao da sociedade, depois de pagos os credores, ou em caso de reducio do capital’. Por ser abstrato, o capital nio indica os bens componentes do patriménio que devem ser retidos, mas apenas um valor. O capital, diz Brunetti, nao é constituido de um nticleo especial de bens, mas apenas expressa uma partida contdbil®. Como o balango patrimonial é uma conta equilibrada de ativos e passivos, o lancamento da cifra invaridvel do capital social na coluna dos passivos impede que seja distribuida como dividendo toda a parte do ativo excedente do valor dos débitos: ao menos a contrapartida do capital social ficaré retida no ativo. Esta cifra invariével serve também de parametro para medir os lucros e as perdas pois, se o patriménio excede o valor do capital, o excesso se reflete na constituicao de reservas; se diminui em consequéncia de perdas a ponto de esgotar as reservas e atingir o capital, configura- se um prejuizo. O capital é, portanto, aquela parte do patriménio social cuja integridade é condigao essencial para a distribuigio dos lucros’. Sempre que ocorrem transferéncias de recursos do patriménio social para os patriménios dos acionistas, configura-se um potencial conflito de interesses entre os credores e os acionistas da companhia. O capital social tem por objetivo acomodar esse conflito. 6 Carvalhosa, Modesto - Comentérios a Lei de S.A., Sao Paulo, 1997, vol. I, p. 49. 7 A redugio do capital com restituicdo de recursos financeiros aos acionistas € condicionada a nao oposigao dos credores, como dispée 0 artigo 174 da Lei n° 6.404/76. Por que? Porque o capital se destina a proteger os credores. 8 Brunetti, Antonio - Tratado del Derecho de las Sociedades, trad. De Sola Canizares, Buenos Ayres, 1960, vol. II, p.81. 9 De Gregério - II Bilanci delle Societa Anonima, citado por Brunetti, op.cit, p.81 11 Costuma-se dizer que o credor tem um direito sobre os bens do devedor hierarquicamente superior ao direito de propriedade que © préprio devedor tem sobre seus bens. Com efeito, quando um crédito se vence, o devedor tem a obrigacio de transferir recursos do seu patriménio para o patriménio do credor, a fim de pagar a divida. Se essa obrigacdo nao é cumprida voluntariamente, o credor tem o direito de, mediante procedimento judicial, provocar a ex- propriagao e venda de bens do devedor, a fim de que seu crédito seja pago. Nao é por outro motivo que os artigos 1556 do Cédigo Civil de 1916 e 957 do Cédigo Civil de 2002 afirmam que os credores terdo direito sobre os bens do devedor. Acontece, entretanto, que esse direito do credor — tao bem colocado hierarquicamente — somente se torna efetivo na data do vencimento do crédito. Assim ao devedor é lfcito, em princfpio, desfazer-se de qualquer de seus bens antes daquela data. E mais ainda: de regra, esse direito do credor nao vai além do patriménio do devedor e se exerce em concurso com os demais credores do mesmo devedor. Assim, se os bens do devedor nao forem suficien- tes para satisfazer todos os débitos, os credores sofrerio, no rateio, uma perda, salvo aqueles cujos créditos forem privilegiados ou garantidos. Dai porque, salvo os casos de credores privilegiados ou garanti- dos, o interesse bdsico de cada credor é no sentido de que, na ocasiao do vencimento de seu crédito, o patriménio do devedor seja suficiente para pagar-lhe e a todos os demais credores. Quando o devedor é uma sociedade, esse interesse bésico do credor pode conflitar-se com um interesse, também bisico, dos s6cios: o de receber periodicamente uma remuneracio pelo capital de risco investido na sociedade. Evidentemente os credores prefeririam que nenhum recurso fosse transferido do patriménio da sociedade para os patriménios dos sécios, enquanto n4o pagos os seus créditos. Entretanto é justo e necessério permitir que a sociedade, periodicamente, distribua aos s6cios a remuneragao do capital de risco que estes nela investi- ram. Por isso, nado h4 como impedir que, de tempos em tempos, 12 nao obstante haver dividas pendentes de vencimento, a sociedade transfira recursos de seu patriménio para o patriménio dos sécios. Mas que quantidade de recursos poderé ser assim transferida? Salvo restrigdes contratualmente estabelecidas, cabe 4 prépria so- ciedade decidir a esse respeito. De regra, essa deciséo € tomada pela maioria dos sécios; ora, os sécios sio justamente aqueles que estarao naturalmente interessados em retirar, em beneficio de seus patriménios individuais, a maior quantidade de recursos possivel. Essa tendéncia se acentuaré perigosamente na medida em que a sociedade se aproxima da insolvéncia, quando certamente os sécios ficaréo interessados em receber de volta, antes que se consume a ruina financeira, o capital de risco investido na sociedade. Como se disse, o principal mecanismo utilizado pelo Direito para acomodar esse conflito de interesses é 0 capital social. Note-se que o capital social ndo pretende resolver todos os problemas que podem surgir dessa situacao conflitante. Em muitos casos, a autonomia das vontades do credor e do devedor dever4 acrescentar-se ao mecanismo do capital social, para reforgar a pro- tecio do crédito. Surgem entao cléusulas contratuais, instituindo garantias reais ou fideijussérias, proibindo o devedor de vender bens relevantes de seu ativo sem o consentimento do credor, res- tringindo a distribuigo de lucros, impedindo a realizagao de certos negécios, etc. Note-se que muitas dessas cléusulas visam a assegu- rar a permanéncia no patriménio da sociedade da soma de recursos que o credor teve em vista quando resolveu conceder seu crédito. Com 0 conceito de capital social, a lei nao visa a assegurar a cada credor tudo aquilo que ele precisa para garantir seu crédito. Isso ele obteré mediante as condigées contratuais que quiser ou puder estabelecer no respectivo contrato. Com o conceito do capi- tal social, a lei visa a assegurar o minimo necessério para que sejam vidveis 0 crédito e as sociedades de responsabilidade limitada (por cotas e anénima); trata-se de um padrao geral minimo de conduta indispens4vel para que fluam os negécios. Esse minimo indispensével fixado na lei tem o mesmo objetivo das cl4usulas contratuais acima aludidas, pois o capital social tam- 13 bém visa a assegurar que permanega no patriménio social um certo montante de recursos. Evidentemente, o capital ndo constitui uma garantia, em senti- do estrito. Ao capital nao correspondem, no ativo, determinados bens que fiquem vinculados ao pagamento dos débitos da socieda- de. O capital em nada afeta a faculdade que a companhia tem de, em princfpio, dispor de todos e quaisquer bens de seu patriménio. Assim, somente em sentido amplissimo e sem preocupagées técni- cas, se diz que o capital é garantia dos credores. De se notar, também, que o conceito juridico de capital prote- ge os credores, mas ndo para livra-los dos riscos inerentes posicao de credor. Em outras palavras: se, por forca da mf fortuna ou mesmo de péssima gestao, o patriménio da companhia exaurir-se a ponto de nao bastar para pagar seus débitos, perdem os credores e de nada valeré o mecanismo do capital para minorar-lhes as perdas. A missio do capital (conceito juridico) nao é proteger os credores contra a insolvéncia dos devedores; é proteger os credores contra o indevido esvaziamento do patriménio social pela transferéncia de recursos para os patriménios dos sécios além do limite previamen- te fixado e publicado. O capital social protege o credor, mas no interesse da comunidade, tendo em vista estabelecer uma base indispensavel para que possa fluir a vida econémica!®, A nogio de capital social deriva do fato de a empresa moderna ser concebida para durar. Tomemos o exemplo das parcerias mari- timas primitivas que, geralmente, duravam apenas por uma viagem redonda. Os parceiros investiam seus recursos proprios e obtinham créditos de terceiros para afretar e armar um navio. O navio safa, vendendo e comprando mercadorias em cada porto do Mediterra- 10 Muitas das criticas ao conceito de capital social resultam, a nosso ver, de uma exagerada expectativa em relacdo 4 sua fungdo de garantia de credores, que, aliés, lhe € impropriamente atribufda. Veja-se a propésito as criticas do Prof. Bayless Maning, reproduzidas e rebatidas pelo Prof. Alfredo Lamy Filho, no histérico estudo sobre a Reforma da Lei de S.A., que elaborou a pedido do IPEA, em 1971, assentando os fundamentos do que viria a ser a Lei n° 6.404/76. (cf. Revista de Direito Mercantil Ano XI n° 7, 1972, pag. 152/3). 14 “neore voltava finalmente ao porto de destino, trazendo o resultado ‘de seu comércio. Encerrava-se entao a parceria, arrecadando-se o idinheiro e os efeitos, liquidando-se os bens remanescentes. Os credores eram pagos e os recursos que sobravam eram partilhados entre os parceiros. Nesse caso, nao havia necessidade de desenvol- ver a nogo de capital pois os credores recebiam antes dos sécios, -© coma dissolugao e liquidacao da sociedade. Medir o lucro, também flo apresentava dificuldade, pois bastava que cada parceiro com- parasse 0 valor que investira com o que recebera na partilha. . O embriso do que entendemos hoje por capital social aparece quando os parceiros decidem armar o navio para varias sucessivas viagens, e contratar créditos venciveis apés a primeira viagem. Surge, entdo, o razoavel desejo dos parceiros de retirar, j4 ao fim da primeira viagem, uma parte dos valores existentes na parceria. Por outro lado, o legitimo interesse dos credores, exige que se mante- nham na parceria os recursos financeiros necessérios ao custeio das viagens futuras e ao pagamento dos seus créditos no vencimento. O mesmo problema apresentava-se nas sociedades comerciais, que entaéo comegaram a vicejar no comércio terrestre, e se tornou mais evidente quando se estabeleceu a nogio de pessoa juridica, sepa- rando nitidamente o patriménio da sociedade do patriménio dos s6cios. Nessa fase, todavia, predominavam as sociedades pessoais, em que os sécios respondiam subsidiariamente pelas dividas da socie- dade. Entdo os credores confiavam na idoneidade financeira dos s6cios. O sécio idéneo, em primeiro lugar, nao abusaria do direito de retirar recursos financeiros da sociedade e, se a sociedade se tornasse insolvente, pagaria o crédito com seus recursos pessoais. Por isso, a nogao de capital social nao era tao importante como a de firma, que identificava 0 sécio ou os sécios, que respondiam pelas dividas da sociedade. A nogio de capital social s6 veio a revestir-se de fundamental importancia com o desenvolvimento das sociedades anénimas e as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, em que, na verdade, os sécios nao tém qualquer responsabilidade pelos débi- 15 tos da sociedade, sendo apenas obrigados a integralizar as contribuigdes que prometeram fazer para o patriménio social. Entdo, 0 pagamento dos débitos da sociedade passou a ser garantido tao somente pelo patriménio social, do que resultou ser de fundamental importancia assegurar aos credores que: (a) os sécios efetivamente transfeririam para o patriménio da sociedade recursos financeiros de valor pelo menos igual a cifra que anuncia- ram como capital social; e que: (b) os sécios nao poderiam, durante a vida da sociedade, transferir recursos do patriménio social para seus patrimGnios pessoais a ponto de baixar o patriménio da socie- dade a um nivel inferior aquele que anunciaram como capital social. Os dois requisitos acima referidos sao identificados pela dou- trina jurfdica como atributos basicos do capital social (realidade e intangibilidade). Tais atributos foram consagrados em diversas disposigées de lei, pois, como vimos, o capital social é elemento indispensével para viabilizar o crédito e as sociedades de responsa- bilidade limitada (anénimas e por quotas). O primeiro atributo, a realidade do capital social, reflete-se em diversas disposigdes da Lei de S.A., como a que exige prévia avalia- ao para incorporagao de bens ao capital (art. 86, I c.c. 89); a que estabelece a responsabilidade do subscritor na hipétese de incor- poragao de créditos (art. 10, § tinico); a que exige subscricio integral do capital social para a constituigdo da sociedade (art. 80, 1); a que estipula um minimo de realizagao do capital (art. 80, II); a que proibe a emissio de aces abaixo do valor nominal (art. 13); a que confere a sociedade meios efetivos para forcar a integraliza- 40 do capital quando o subscritor incide em mora (art. 107). A intangibilidade do capital social se desdobra em diversos outros dispositivos legais, como a proibigio de distribuir dividen- dos com prejufzo do capital social (art. 201); cuja inobservancia, alias, é definida como crime; a obrigatoriedade da constituigao da reserva legal para defesa do capital social (art. 193); a proibicdo de a sociedade negociar com as préprias aces (art. 30); a subordina- g40 da redugao do capital 4 oposicdo dos credores (art. 174); a vedagao 4 aquisicao reciproca de acées (art. 244). Cabe por fim 16 observar que, em tltima anélise, toda a disciplina legal das demonstragées financeiras (art. 176 a 188) tem por objetivo asse- gurar a intangibilidade do capital social. Destaque-se, por fim, a importancia do capital social como ntcleo definidor do poder na sociedade anénima. A preponderan- cia nas deliberagdes da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores, que caracterizam 0 controle, se ob- tém geralmente mediante uma participagao majoritéria no capital social. Igualmente, através da posse de acgées, os minoritdrios se asseguram de seus direitos de acionistas. Tudo na proporgao da participagao no capital social que, por isso mesmo, é fracionado em partes aliquotas — as ag6es —as quais se dividem em classes, cada uma com seus direitos, vantagens e restrices polfticas. E assim que, no 4mbito do capital social, se desenha a estrutura do poder na sociedade anénima. Nao foi portanto sem motivo que Garrigues afirmou: “La s.a. es, puede decirse, um capital com categoria de persona juridica. El concepto de capital ilumina la essencia de las.a..""' 11 Garrigues, op.cit., pag. 438. 7

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