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You can search through the full text of this book on the web at ittp//books.google.com4 RELAGOES INTERNACIONAIS E TEMAS SOCIAIS A DECADA DAS CONFERENCIAS José Aucusto LINDGREN ALVES se (moa, Google RELACOES INTERNACIONAIS E TEMAS SOCIAIS A DECADA DAS CONFERENCIAS (Panna ‘RELAGORSINTERNACIONAS| Dinsoria José Fivio Sombra Saraiva (dretor-geal) ‘Ant6nio Carlos Lessa ‘AntOaio Jorge Ramalho da Rocha Luiz Fernand Ligéro ‘COLBCAO RELACOES INTERNACIONAIS Constho Editorial [Exterdo Chaves de Revende Martins (presidente) ‘Amado Luiz Cervo ‘Andrew Hurrl ‘AntGaio Augusto Cangado Trindade ‘Anténio Catlos Lessa Denis Rolland Gladys Lechini lio Jaguaribe José Flivo Sombra Saraiva Paulo Fagundes Vizentii “Thomas Skidmore Colecdo Relacées Internacionais RELACOES INTERNACIONAIS E TEMAS SOCIAIS A DECADA DAS CONFERENCIAS José AUGUSTO LINDGREN ALVES a PETROBRAS R382 Relagbes internacionis © temas soins: a década as conferéncas / J. A. Lind Alves. Brasilia: IBRI, 2001 452 p. : — (Relages imteracionais : 3) 1. Relagbesintemacionas. Alves, J. A. Lindgren, , Institute Brasileiro de Relagdes internacionais, Ul, Taal, epp-327. 11 Dineitos dasa eligi reservados 20 Instituto Beasleo de Relages Intrnacionals (BRI) Universidade de Brain Cais posal 4400, 0919-970 ~ Brastia, DF Telefax (61) 307 1685 ibsi@unb.be Impreso no Beast © 2001 retado o Depssito Legal na Fonda Biblioteca Nasional conform Deaeto a? 1.825, de 20-12.1907 Para André Mattoso Maia Amado, meu amigo. von Google Sumario Apresentacio .. Preficio Notaexplicativa ... 1. 2, Introdugio ger... Os“Novos Temas” ea cdpula precursora sobre a crianga 2.1. Os ‘novos temas” internacionaisea “ingeréncia hhumanitéia” 2.2. ACdpula Mundial sobre a Crianga 2.2.1. O momento eo formato sui generis da cipula.. 2.2.2. A Canvengiode 1989 sobre s Direitasca Crianga . 48 2.2.3. Osdoaumentose o carder precursor da cipula ARio-92 como conferéncia social 3.1. O climadaconferéncia 3.2. Antecedentese divergéncias.. 3.3. AUnced ou Rio-92 .. AConferéncia de Viena de 1993 sobre Direitos H umano: 4.1. ARio-92e Viena-93, paralelismo e diferenga 4.2. O precedente esquecido 4.3. O contexto internacional da Conferéncia de Viena 4.4. processo preparatéri 4.5. O papel das organizagdesnao-governamentais 4.6. Aconferéncia oficial e seuscomités 4.7. A Declaragao e Programa de Agio de Viena 47.1. Auniversilidade dos direitos humanas 4.7.2. A legitimidade da protegio intemacional aos direitos humanos.. Jost Avousto LiNDoREN Aves 4.7.3. 0 recohecimento consensual do direito ao desenvolvimento. 4.7.4. O direito & autodeterminagio 4.7.5. A trtade democracia, deenvolvimento e direitos humanes. 4.7.6. Qutrosavangos de Viewa a) Aindivisbilidade dosdireitos. 7 b) Osdireitas humanosem situagiesde aoflito armado. ) Osdireitos humanos da mulher. d) Grupose categoriasvulnertveis racisnoe xenofobia ©) A atuagiio dasorganizagiesndio- governamentai f) 0 Alto Comiseariado das N agées Unidas ara os Direitos Humanoseo Tribunal Penal Internacional 8) Racionalizagiiodo sistema. 4.8. Vienaeo Brasil. 4.9. Conclusio retrospectiva 5. AConferéncia do Cairo sobre Populagio e Desenvolvimento eo paradigma de Huntington 5.1. Introdugio 5.2. Antecedentes teMmatio08 .ncnmnrnnnnnnnnnnnne 2) A Conferéncia de Bucarese . b) A Conferéncia do Méic 5.3. Ascircunstinciasda Conferéncia do Cairo 5.4. O Programa de Agio do Cair 5.4.1. Osavangosdo Cairo 5.5. O “espitito do Cairo”. 5.6. Aparticipagio do Brasil 5.7. Conclusio . [RELADES INTERNACIONAI F TEMAS SOCIAIS: A DECADA DAS CONFERENCHAS 6. ACtpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social eos paradoxos de Copenhagu: 181 6.1. Introduggo... 181 6.2. O formato e os documentos da Ctipula de Copenhague 186 190 195 199 205 206 207 6.3. Oscompromissos de Copenhague .. 6.4, Asfrustragdesde Copenhague.. 6.5. Os paradoxos do Grupo dos 77. 6.6. Conseqilénciasda CiipuladeCopenhague.. 6.7. Aparticipagio do Brasil 68. Conclusé.... 2u1 2u1 214 218 220 220 232 236 7. AConferéncia de Beijing eos fundamentalismos. 7.1. O contexto da Conferéncia de Beijing. 7.2. Aconferéncia intergovemamental de Beijing. 7.3. Osdocumentos de Beijing... 73.1. A Plataforma de Agio de Bejing 73.2. A Dedaragio de Beijing . 7.4. A preparacio ea participagio do Brasil. 75. Conclus.... 8. AHabitat-II easencruzithadasde Istambul ... 8.1. Introdugio 8.2. Acidade como tema global. 8.3. O precedente eas decepgdes de Vancouver 8.4. Anatureza multifacetada eas inovagdes da ‘Conferéncia de Istambul .. 8.5. Asdificuldadese os documentos da Habitat-1 245 245 246 248 253 257 257 259 259 b)_ Implementagio e acompanhamento das decistes 9) Odireito a moradia d) Universalisno eparticularisno. 262 263 Jost Avousto LiNDOREN Aves 8.5.3. Osdocumentas 8.5.3.1. A Agnda Habitat 8.5.3.2. A amenga final 8.5.3.3. A Dedlaragiio de Itambul 8.6. Apreparagio ea participagio do Brasil. 8.7. Conclusio. 8.8. Atitulo de arremat 9. Conclusto geral.. 9.1. Tendénciase paradigmas 9.2. Ingeréncia, humanitarismo e seletividade . 9.3. Oscaminhosda Justia. 9.4. Esperancasdeerescentes.. 9.5. Novsitinersios. 9.6. Uma novacultur Siglas Bibliografia . ANEXOS ‘TextosdasDeclaragées a) Declarago Mundial sobre a Sobrevivencia, a Protego eo Desenvolvimento da Crianga b) Declaragdo do Rio sobre Meio Ambiente e Desevolvimento ©) Declarago de Viena sobre Direitos H umanos .. 4) Principios do Cairo sobre Populagio e Desenvolvimento ©) Declarago de Copenhague sobre Desenvolvimento Social. £) Declarago de Beijing. 8) Declaragao de Istambul sobre os Assentamentos Humanos.. 10 Apresentacio Ese livo faz partea colegio Relagies Internacionais, organizada academicamente pelo Instituto Brasileiro de Relagdes Intercionais (IBR1), com o apoio da Fundagao Alexandre de Gusmao (Funag), sob alto patrocinio da Petrobras. A colegio, constituida de dez titulosa serem gradualmente langaclos ao longo dos préximosdoisanos,objetiva a formagzio das novas geragGes brasileirasna drea, mas também atende ademanda cresente da opinido piiblica nacional interessada nasnovas conformagiesintemacionaise vida por conhecer, deforma sistemtica ce organizada, os grandes temas que envolvem a construgio de um novo ordenamento internacional na passigem parao novo milénio, Os estudos acerca das relagdes intemacionais tém merecido tengo especial por parte dos grandes editores, nZo apenasnoscentros culturais de tradigdo na rea, como Paris, Londres ou Nova lorque. Lancamentosde novos titulose reedigdes de obras lassicas animam a vida intelectual e politica das universidadese editorasem muitas partes, do mundo, Livreiros de paises latino-americanos, europeuse asisticos exibem ao piiblico leitor ampla escolha de novos titulos dedicados aos desdobramentos mais reventes da vida internacional. Etudosde caso, investigagdes tebricas e extensas sinteses histéricas sio cada vez mais, consumidos por numerosas pessoas, dvidas pela compreensio do mundo. Ainternacionalizago das sociedades, a ampliagio dosmercados, ‘impacto dos processos de integragao regional ea economia politica da globalizagio sio alguns dos fendmenos que despertam atengio crescente. Mas ha razes adicionais, como a crise de identidade das nagSes acentuada pela realidade pés-bipolar e a fragmentacio teérica da ciéncia politica ligada aos estudos dos fenémenos internacionais, para explicar a animagao editorial que se observa em tomo do estudo dasrelagGesintemacionais. O interesse dos leitores brasileiros tem esbarrado, no entanto, ‘em uma limitada reflexio propria acerca das relagdes internacionais. Jost Avousto LiNDOREN Aves Preferiu-se traduzir novosmanuaise adotar teoriasda moda aenfrentar © desafio da compreensio e da explicagao a partir de circunstancias vividas, Foi-se buscar nos outros, equivocadamente, as razbes das proprias vicissitudes. Confundiu-se, algumas vezes, teoria com ideologia, Absorveu-see divulgou-se nas slasde aula grande quantidade de textosde qualidade discutivel. Produzidos.com o objetivo preespuo dedoutrinar os desavisados, levando-osa crer que as relagdes entre os povos, Estados e culturas chegou a seu dipice com a liberalizagio dos ‘mercados e com a economia politica da globalizagio, esses textos no realizam o desafio intelectual de desvendar as entranhas das relagdes intemacionaiscontemporiineas. As contingéncias do Brasil exigiam, assim, uma colegio concebida por estudiosos comprometidos com a renovagio do conhecimento a partir de uma perspectiva propria acerca dasrelagdes internacionais, como aliés se procede em toda parte. No entanto, por mais objetiva que se pretenda que ela ja, todo esforgo nessa rea de reflexdo esté condicionado por motivagdes, informagio, formagio e legado cultural. Por conseguinte, a colegio Relagies Intemacionais vem suprit ‘uma grande lacuna. Preocupado com a percepcio inédita, por parte da sociedade brasileira, dos constrangimentosintemacionais que impoem ajustes de ordens diversas’ formulagao e implementacio das politicas piiblicas, do ponto de vista econ6mico, social ede seguranca,o Instituto Brasileiro de Relagdes Internacionais (IBRI) resolveu utilizar sua condigo de instituigo decana nos estudos intemnacionalistas no Brasil para, com seus parceiros, abrir a avenida da reflexdo comprometida com um olhar nacional sobre os grandes fendmenos da vida internacional que envolvem a sociedade brasileira. Estratégia comum alinha autorese livros. Em primeiro lugar, eles pretendem contribuir para a formacio da crescente méio-de-obra brasileira interesada em compreender osdesafiosintemacionaise traduzi- Josadequadamente para os atores sociais com interesses cuja realizagao sofrem impactos diretos ou indiretos do meio internacional. Em segundo lugar, 0s autores observam, com apreensio, o crescimento exponenecial da comunidade brasileira de estudantes dos cursos de 12 [RELADES INTERNACIONAI F TEMAS SOCIAIS: A DECADA DAS CONFERENCHAS sgraduagio em Relagdes Intemadionais a partir da década de 1990 e, como conseqiiéncia, da necessidade de prover base s6lida para o desenvolvimento dessasnovas formagoes. Em tereeiro lugar, preocupa cada um dosautores da colegao o plano secundirio a quea tarefa de produgio de livros paradidétioos foi relegada, no Brasil, diantedo répido surgimento de um piblico consumidor, avido por boa bibliografia que cumpraosrequisitos formaisde apresentagao do contetido minimo preconizado pela Comissio de Especialistas de Ensino de Relagies Internacionaisdo Ministério da Educagio. José Flavio Sombra Saraiva Organizador da Colegio RelagSes Internacionais Brasflia, outubro de 2001 von Google Prefacio A tensto dindmica entre a pessoa e a sociedade provoca um movimento horizontal, um movimento de progresso da prOpria sociedade evoluindo no tempo: “Enquanto a patina do tempo ea passividade da matéria dissipam e degradam naturalmente as coisas, deste mundo ea energia da hist6ria, asforgas peculiaresao espirito ea liberdade, e seu testemunho, as quaisnormalmente tém seu ponto de aplicagao no esforgo de alguns — votados por isto ao sacrificio —fazem clevar-se de maisa maisa qualidade desta energia. A vida dassociedades humanasavanga e progride assim ao prego de muitas perdas, avanga e progride gragas a essa elevago da energia da hist6ria devida ao espitito 2 liberdade”, lembrava o fil6sofo Jacques Maritain faz meio sSculo. Lembrei-me dessa reflexio ao comegar a ler Relagdes InternacionaiseTemas Sociais: a década dascanferéncias de José Augusto Lindgren Alves. Justamente ahist6ria dos direitos humanosé ahist6ria das lutas humanas. As pessoas nascem com direitos bésicos, mas sua realizagio nao é automiética. A hist6ria de que fala Maritain, conta como as pessoasem todo o mundo tiveram de lutar por seus direitos, com imensos sacrficios. Aslutas pelasliberdades humanas transformaram a paisagem da Terra. No inicio do século XX apenas 10% dos paises eram independentes No final do sSculo amaioria viviaem liberdade, fazendo suas prépriasescolhas. A Declaragio Universal dos Direitos Humanos, de 1948, constituiu uma ruptura, prentincio deumanova.era—com a comunidade intemacional assuindo a realizago dos direitoshumanos como uma causa de interesse comum e do interesse de toda a humanidade, Gragas a uma visionéria pragmética, Eleanor Roosevelt, que, presidindo a comissio de redacio da Declaragio, criou um dos maiores documentosdo século. A integrago mundial dos paises e pessoas foi uma segunda ruptura—namedidaem que um movimento global integrou os padres, universtis de direitos humanos nas normas de todos os paises. Um 15 Jost Avousto LiNDoREN Aves sistema intemacional de direitos humanosemergiu a partir da tiltima ‘metade do século (em termos de monitoramento, mais precisamente nos ttimos trinta anos, sendo tudo muito recente). Na Comissio de Direitos Humanos e na Subcomissio de Promogao e Protegdo de DireitosHumanosda ONU, em Genebra, eou naTereeira Comisst0 da Assembléia Geral da ONU, os Estados, leviatis modernos, sto obrigadosa justficar-e perante outrosEtadosou dosrelatoresespeciais (cujo tinico poder é relatar) edas organizagies da sociedade civil. Noano de 1990, se mencionarmosapenas duasconvengdes, a Convengio Intemacional para a Eliminagio de Todas as Formas de Discriminagdo Racial e a Convengio para a Eliminagio de Todas as Formasde Diseriminagdo contra a Mulher, foram ratificadas por mais de 100 paises. Hoje cinco dos sis principais pactose convengies sobre direitoshumanos foram ratificados por maisde 140 paises. Aexcega0 6aConvengao contra a Tortura, Sete das principais convengSes sobre direitos do trabalho foram ratificadas por 62 paises. Algm desse extraordinério avanco na definigdo de garantias, especificas de direitos humanos, a década de 1990 sera marcada pelo Ciclo de conferéncias mundiaiscon vocadas pelas Nagdes Unidas crianca, 1990; meio ambiente, 1992; direitos humanos, 1993; populagio, 1994; desenvolvimento social, 1995; mulher, 1995; habitat, 1996; alimentagio, 1996. Essasconferéncias, como lembrou Kofi Annan, secretério-geral da ONU, formam um continuum, uma sétie coerente de eventos dedicados ao exame de temas inter-relacionados, como o bem-estar dascriangas, osdireitos humanose os direitosdasmutheres, populagio, emprego, crime, comércio, seguranca alimentar, habitagSes humanas, enfrentamento de desastres naturais e coesio social. As conferéncias contribuiram igualmente para estabelecer articulagdes entre diferentes setores desemprego e crime, pressio demogrifica e degradagio do meio ambiente. E, evidentemente, a pobreza entremeava todasessas questoes. Asdeclaragbes e programas de aco que emergiram de cada uma dessas conferéncias constituem hoje referencial complementar & Declaragao Universal de Direitos Humanos e a todos 0s tratados do direito internacional dosdireitos humanos. 16 [RELAGDES INTERNACIONAI F TEMAS SOCIAIS: A DECADA DAS CONFERENCHAS Ninguém melhor do que José Augusto Lindgren Alves para cexaminar em profundidade esse ciclo de conferéncias intemacionais. José Augusto alia nas suas intervengdes, como intelectual, duas qualidades. A condigao de estudioso erudito e fino analista da teoria dos direitos humanos, provada num largo ntimero de artigos, conferéncias, ensaiose livros— entre os quaiscito apenaso seminal Os Direitos Humanos como Tema Global (1994). E outra, como diplomata, ex-delegado as reunides da ONU, primeiro chefe do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais no Itamaraty (1995-1999), hoje embaixador, operador da politica de Estado de direitos humanos, sem recusarassumir riscos. Como representante do Ministério das RelagGes Exterioresno Conselho de Defesa dos ireitos da Pessoa Humana, CDDPH, do Ministério da lustiga (1990-1996), José Augusto aliou diplomacia a engajamento em defesa da accountability das autoridades estaduais no Brasil. José Augusto assumiu essa postura de compromisso com a promogio dos direitoshumanos desde os tempos em que se dedicar a sce tema, no Estado brasileiro, implicava optar em ser confrontado com linhas de resisténcia e de discriminago funcional. Quando se fizerahist6ria da passagem de uma atitude defensiva e negacionistada responsibilidade do Estado brasileiro por graves violagdes de direitos humanos para aquela da transparéncia e aceitagdo do monitoramento pelos 6rgios multilaterais internacionais e organizagbes da sociedade civilnaesfera mundial enacional, José Augusto tem seu lugar aswegurado ‘como um dos agentes fundamentaiscom papel chave paraesscustosa transformagao. José Augusto tem desempenhado com enorme simplicidade, sensibilidade ¢ naturalidade, o importante papel de delegado do Brasil em diversas conferéncias das Nagdes Unidas. Se quiséssemos apontar a contribuigo maior da década das, conferéncias destacaria a centralidade dosdireitos humanosna politica internacional das sociedades e dos Estados. A do Rio, sobre meio ambiente, em 1992, proclamou que“ ser humano €0 elemento central do desenvolvimento sustentavel. Tem direito a uma vida saudavel e produtivaem harmonia com a natureza’. A conferéncia de Viena, em 1993, dotou o movimento dos direitos humanos de uma agenda 7 Jost Avousto LiNDOREN Aves internacional abrangente eum programadeagao. Adeclaragao de Viena afirmou alto eem bom som que “bs direitos humanos sto patriménio inato de todos os seres humanos e slo conceitos que se reforgam ‘mutuamente”, consagrando sua universilidade, indivisibilidade e a democracia como requisito essencial para sua realizagio. AA protegio dos direitos humanos, a construgdo da paz apés conflitosarmadosou transigBes politicas o fim da violencia endémica, aresolugdo dessas tensdescontinuam, no comego do século XI, a ser alguns dos principais desafios para a sociedade civil, Mas Estados e sociedadesesto melhor aparelhados paraenfrent4-losgragasd dindmica estabelecida pelo ciclo das conferéncias. A indivisibilidade dos direitos humanos foi aceita como um principio, subvertendo a divisio dos direitos em dois conjuntos, um civil e politico e outro econdmico, social ecultural. A interconexao, osnexosde causalidade mesmo entre osdoisconjuntosde direitos, foi claramente apontada, assim como a democracia reconhecida como o regime politico ideal para arealizago das iberdades fundamentais, Contudo, apesar das grandes realizagSesdo ciclo de conferéncias, permanece um descompasso patente entre as garantias dos doiselencos dedireitos. E muitas outras tensGes subsistem, como indica o Relatério de Desenvolvimento Humano 2000, do Pnud: entre universalidade dos direitos especificidade cultural; entre soberania nacional econtrole € monitoramento internacional dos direitos humanos no interior de cada pais entre supremacia das kis internacionaise das leisnacionais, entre ratificagio das leis internacionais e sua implementagio. Eno campo de forgas dessas tensSes que atuam as organizagdes dda sociedade civil cujo papel foi progressivamente consagrado em cada ‘uma das conferéncias intemnacionais, alargando sua legitimidade de atuagSo em todas as sociedades. Certamente sem esse envolvimento progressivo das organizagdes da sociedade civil (OSCs), nasconferéncias no se teria chegado & resolugdo sobre os direitos dos defensores de direitoshumanosem 1999. Celso Lafer¢Gelson Fonseca unio, “Questes paraadiplomaciano context internacional das polaridades indefinidas (notas anaitiea e algumas sigestes), in Gelson Fonseca Junior Sergio Henrique Nabuco de Casro, org, Tamas de Pati Extema - Il, wl. |, Brass, FUNAG, ¢ So Paulo, Ed, Paze Tecra, 1994, p. 49-77, * Samuel Huntington, "The clash of ivilizations?", Forsigr Afar veo de 1993, p. 22-4. BB. bras Palin Extra, wl. 2, 0° 4, Pxze Terr, mar-abr-maio 1994 33 Jost Avousto LiNDoREN Aves aceleragio vertiginosa da tecnologia e da globalizagao econdmica com seusefeitos colaterais positivos e negativos. ‘Tendo em conta que a propria Carta das Nagdes Unidas nao desvincula a paz.do contexto sScioecondmico e que a situagio social de todas as populagdes extravasainiciativas voltadas exclusivamente para aspectos politico-culturais, as grandes conferénciasda décadade 1990 procuraram abordar os miiltiplos fatores dos respectivos temas em suas interconexdes, inserindo o local no nacional e este no internacional, com atengo para as condigdes fisicas e humanas do espago em que se coneretizam. Corroboraram, dessa forma, a percepo de que certos assuntos vitais so, agora mais do que nunca, inquestionavelmente globais, exigindo tratamento coletivo e colaboragdo universal Para tanto recorreram nai somente aos governos, mas a agentes sociais diversificados, na formulagio de propostas. Abordaram a economia, sem desconsiderar a antropologia; 0 planejamento estratégico, sem descurar dos direitos; a igualdade, sem descartar a liberdade (¢ vice-versa). Fizeram-no ainda, pela primeira ver, de maneira sistémica, nlo-compartimentada, de forma tal que as deliberagdes de uma conferéncia fossem influenciar as das demais e no apenasas da subseqiiente. Quando se fala das conferéncias da década de 1990, pensa-se naturalmente, ecom razio, na sériede grandes encontrosinternacionais inaugurada pela Conferéncia das Nag6es Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento a Rio-92. Nao obstante, o encontro do Rio de Janeiro, dedicado essencialmente & questo ambiental, ndo teria sido ‘uma conferéncia sxial seni tivesse seguido 0 enfoque que adotou. O ‘mesmo se aplicaria, por sinal, is reunides mundiais sobre populacio e sobre assentamentos humanos, assuntos com fortesimplicagbes sociais, ‘masregularmente tratados na Il Comissio (Econémica) da Asembléia Geral da ONU. Os direitos humanos, por sua vez, assim como a situagao e os direitos especificos da mulher, embora sempre atribufdos como temasa II] Comissio (Social, Cultural e Humanitéria) damesma Assembléia Geral, eram encarados na prética apenas como matéria politica, no sentido estrito do termo, concemente asformasde exercicio do poder estatal, sem claras implicagdes sociais. J4 0 tema do 34 [RELAGDES INTERNACIONAI F TEMAS SOCIAIS: A DECADA DAS CONFERENCHAS desenvolvimento social, atinente por definigao 3s condigoes de vida das sociedades, ficava relegado a um plano inferior nas deliberagdesda III Comissio, desconectado das negociagdes politico-econémicas de outros foros multilaterais eaté mesmo da vizinha II Comissto, dentro dostrabalhosda ONU, como se economiae sociedade fossem materiais isoléveis. Virios ingredientes uniram todas as conferéncias da década num processo continuo de alimentao e retroalimentagdo sistémicas, Um deles, muito importante, foi, sem diivida, 0 conceito do desenvolvimento sustentavel, definido e consagrado na Rio-92. Maso elemento que lhes forneceu carter eminentemente antropocéntrico e orientago social foi, sobretudo, a preocupago com os direitos humanos, com as caracteristicas que a legitimaram em Viena. Reconhecidos pela primeira vez por consenso como indubitavelmente universais no artigo 1° da Declaragdo adotada pela Conferéncia Mundial de Viena de 1993, os direitos humanos, como conjunto inextricdvel de atributos fundamentais de que sfo titulares todasas pessoas pelo simples fato de serem humana, foram apropriados pelas conferéncias seguintes ~ sobre a questo populacional, o desenvolvimento social, a situagio da mulher e os assentamentos humanos — nZo como fins em si mesmos, mas como instrumentos para a consecugdo de todos os objetivos propostos. Essa apropriagao negociada, sem imposigdes imperialistas, ornou-se possfvel porqueos direitos humanos, j4 ndo tendo embasamento abstrato desde a Declaragio Universal de 1948, com aafirmao dosdireitos econémicos, sociaise culturaisno mesmo nivel dosdireitoscivise politicos, deixaram igualmente de ter, com o consenso de Viena, conotagdesetnocéntricas, exclusivas do Ocidente. Mais claramente ainda, na formulagao de seu artigo 5°, a Declaragao de Viena reafirmou a aplicabilidade multicultural de tais direitos ao ser humano conereto e dispar, nas situagdes mais diversas, a0 dizer: ‘A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos slobalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma énfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideragio, assim como os diversos 35

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