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CASAMENTO E PAPEIS FAM ILIARES EM SAO PAULO NO SEC. XIX Eni de Mesquita Samara Do Departamento de Historia do FFLCH da USP. RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar © papel do ‘casamento na sociedade paulista durante o século XIX. Com base ‘nos dados contidos nos recenseamentos de populdo,testamen tos e divertos documentos manuscritos referentes ao perfodo, rocuramos fazer uma andlise dos arranjos matrimonials © res Pectivos critéros de selego de cBnjuges buscando uma explica ‘80 para 0 baixo indice de nupcialidade encontrado entre ele mmentos provenientes dos diferentes grupos soci. tengo expe ‘ial foi dediceda no final da exposicdo ao procesto de socialize: ‘fo, agente regulador do principio de autoridade eda divisso de Incurbéncias no casamento, SUMMARY This article attempts to analyse the role ofthe marriage in the paulista society during the nineteenth contury. Based on data collected on maniscript census, wills and series of documents ‘related to the period, we intend to discuss the wedding rrange- ments and its respectives criteria of selection in order to find ‘asons to the low rate os nupcalty found among the different tocial groups in this society. Special attention was dedicated in the end of this paper to the socialization process regulator apent ‘f principle authority and diferent obligations between husband and wife in the marriage. 1—INTRODUGAO © presente artigo tem a intengo de apresenter no vvas imagens da familia e do matriménio para a sociedade Paulista durante o século XIX. A concepgao de que as familias brasileiras, desde 0 Periodo colonial, estariam urganizadas em fungo de um unico modelo, revelou-se insuficiente sugerindo novas investigages a respeito do problema. (© modelo genérico de familia patriarcal?, explora- do por estudiosos como Gilberto Freyre (1977) e Olivet ra Vianna (1920, 1923 e 1974) permaneceu tradi ‘mente aceito pela historiografia como um exemplo vali- do e estitico para toda a sociedade brasileira, esq 2 variages que ocorrem na estrutura das familias em fungo do tempo, do espaco e dos grupos sociais, A familia patriarcal, entretanto, assumiu caracte- risticas regionalmente diferentes e mudou com 0 tempo? Cad. Pesq., Séo Paulo, (37): 17-25, Mai, 1981 Quando e como foi substituida por outros tipos de fam lia? Que outros modelos coexistiram com o patriarcal na sua forma tradicional? Que parcela da populacéo real mente optava pelo casamento, constituindo familias le- sitimas? Que variagSes ocorreram nos papéis masculine feminino, alterando 0 esquema tradicional concebido para ambos os sexos? Esse _ndcleo de questées constituiu as hipéteses centrais de um trabalho mais amplo (Samara, 1980), das. ‘quais selecioneremos aquelas relativas a0 casamento e ‘apis familiares para analisar no presente estudo. Reconhecendo também a necessidade de estabele- ‘cer novos pardmetros para a organizagio da famitia bras leira em funcio do tempo e do espaco, optamos por es- tudar a cidade de Séo Paulo no século XIX e para tanto recorremos aos documentos manuscritos existentes nos arquivos paulistas. 7 Basicamente foram utilizados dois nécleos centrais de documentos manuscritos: os Magos de Populagio da Capital (1836) ¢ os Testamentos do 39 Oficio da Fami- lia (1800-1860). Face 4 quantidade de dados contidos nos alista- mentos da populacio referentes & capital e ao estado pre- cério de conservagio dos mesmos, escolhemos o que diz respeito ao ano de 1836 que, embora incompleto e mui- tas vezes ilegIvel, apresentava um nlimero maior de infor- mages, permitindo uma anélise mais segura do indice de rnupcialidade @ da composi¢go dos domictlios. Neste cen- ‘50, 05 dados foram coletados a partir de cada fogo arrola- do? nos diversos bairros e ruas da Capital nessa data. Uti lizamos também comparativamente outros dados conti- dos nos Mapas finais de recenseamentos de 1827 e 1857 (Divisso, 1822-1861). Podemos dizer que os Testamentos do 3? Oficio da Fam/lia, quardados no Arquivo do Tribunal de Justica do Estado de Séo Paulo, completam e enriquecem os da- dos contides nos Magos de Populacio, constituindo um material precioso de pesquisa, com informagées valio- sas sobre a familia, o casamento, a divisdo do patrimonio @ @ questo da ilegitimidade. Desse corpo documental, 337 testamentos representando a totelidade daqueles ‘compreendidos entre 1800 e 1860, foram utilizados nes- te trabalho (Arquivo, 1800-1870). Outros documentos manuscritos também foram in corporados a0 texto, no sentido de testar, comparar completar informages contidas na documentagio prin: cipal’. ‘Além disso, pesquisamos em fonte impressas (Do cumentos Interessantes para a Historia e Costumes de ‘So Paulo e Tomos Especiais da Revista do Instituto His- t6rico e Geogréfico Brasileiro) e na legislagio candnica e civil (Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia, Ordenagies Filipinas e Colegdo de Leis do Império do Brasil). Obras de juristas, referentes a0 século passado e Manuais de Direito Civil também foram de grande v lia ajudando na interpretagdo das informagées contidas 1hos testamentos. Ngo foram esquecidos os relatos de viz antes © os depoimentos contemporaneos que serviram para comparar 0 quadro tragado a partir dos originais ‘manuscritos que apresentam imagens mais reais da fami- lia e do casamento para a sociedade paulista do século passado. 2— A sociedade paulista e o casamento Em Sio Paulo, na época que estamos analisando, podemos estabelecer uma intima relacdo entre casamien- to, cor @ grupo social. Além disso, detectamos na docu- mentagéo uma alta freqléncia de celibatérios dentre os quais havia uma porcentagem significativa que apareci ‘com filhos ilegitimos nascidos de unides no legalizadas. 'A partir dessas constatagbes, concluimos que os matri ménios se realizavam num circulo limitado e estavam su: Jeitos a certos padres © normas que agrupavam os ind viduos socialmente, em fungo da origem e da posicao sécio-econdmica ocupada, fato que nfo eliminou a fusso 18 dos grupos sociais ¢ raciais que ocorreu paralelamente através das unides esporddicas e da concubinagem. Isso significa que os casamentos celebrados duran- te 0 perfodo pram uma opeo apenas para uma carta par- ‘cela da populaglo e estiveram preferencialmente circuns- ‘ites aos grupos de origem, representando a unifio de in- ‘teresses especialmente entre a elite branca. Esta, interes: sada na manutengio do prestigio e da estabilidade social procurava limitar os casamentos mistos quanto a cor, as- sim como em desigualdade de nascimento, honra e rique- CObviamente, aconteciam os consércios que integra vam, através das aliancas, 0s individuos pertencentes @ ‘outras camadas socials e também os estrangeiros que bus- ccavam a ascencdo 50 ‘Sabemos que os comerciantes portugueses tinham ‘acesso as familias tradicionais paulistas através dos caso. mentos, 0 que propiciava a sua répida integracdo na fa- milia da noiva e também na esfera de influéncia politica ‘@ econdmica do sogro (Kusnesof, 1974, p.8). Em arranjos desse tipo, quando se tratava de no- mes importantes, os critérios de selecdo levavam em con- ‘ta um quadro de valores onde raca, riqueza, ocupado, ‘origem @ religido eram fatores altamente significativos. Polo menos para certos estratos da populagio, © casamento, visto sob essa perspectiva era um ato social de grande importéncia, polarizando vérios interesses faziase por isso num circulo muito limitado, sendo co- ‘muns as uni6es de parentes afins, que tinham como fina- lidade preservar a fortuna mantendo a linhagem e a pure- za de sangue. Por outro lado, uma parcela significativa da popu: 1 celibato ou sim- ‘certa resisténcia aos apolos da Igreja em sacramentar es- sas relagGes, embora entre as camadas mais pobres a esco- tha do cbnjuge obedecesse a critérios bem menos selet vos @ preconceituosos. No entanto, ainda nesses casos, os, ‘matriménios eram sempre mais comuns entre componen- tes de um mesmo estrato social Conclui-se, portanto, que interferiam nos arranjos matrimoniais critérios e valores morais, implicitos a cada grupo social, Verificamos também que origem, pureza de sangue, raga e riqueza eram fatores relevantes em deter- minados circulos sociais, ocasionando até a auséncia de casamentos, por falta de cénjuges elegiveis. O quadro ‘go era to rigoroso em se tratando de pessoas humildes ‘ou provenientes de farm 1s. Do mesmo modo Estruturslmente era uma vasta parentela que se expandi, ver- tiealmente, através da miscigenalo , horizontalmente, pelos ccramentos entre a elite branca Nos racenseamentos as informarSes aparecem coletades 8 ‘ir de cade "Fogo" ou domo, Foram eles: carta, depoimentos, pets, oficios, ete. Cad. Pesq., Séo Paulo, (37): Mai, 1981 que as elites se reservavam o direito de optar por um bom casamento para seus descondentes, numa outra par- cela da populaedo aconteciam os matriménios com ele- ‘mentos de origem obscura e com prole ilegitima. ‘A legalizago das unides por sua vez dependia do ‘consentimento paterno, cuja autoridade era legitima incontestével, sendo de sua competéncia decidir e até determinar © futuro dos filhos “sem thes consultar as inclinagdes e preferéncias, de sorte que casamentos se fazem, &s vezes sem que os nubentes se tenham jamais se comunicado ou visto” (Machado, 1930, p.146). Aqueles realizados & revelia dos pais, em geral, resultavam em punigSes de diversos tipos e significa. vam, em muitos casos, a exclusdo dos filhos na participa- 0 do patriménio da familia. As Ordenagées Filipinas, ‘apontando as justas causas pelas quais os pais podiam de- serdar os seus filhos, assim se pronunciavam: ‘se alguma filha, antes de ter vinte e cinco anos, dormir com algum homem, ou se casar sem mandado de seu pai, ou de sua ‘mBe, no tendo pai por esse mesmo feito serd deserdada exclufda de todos os bens ou fazenda do pai, ou mae, posto que néo seja por ele deserdada expressamente”” (Ordenagdes, 1850). Os vardes ndo aparecem especifica: ‘mente incluidos nessa cléusula, mas podiam ser deserda- dos por negligéncia dos deveres filias, injurias e acusa ‘es, também considerados como motivas legitimos. Um requerimento do Coronel de Milicias, Jerdni- ‘mo Martins Fernandes no ano de 1802, apresenta indi- cios para se entender a extensio da autoridade paternal em assuntos referentes a0 casamento. Diz o requerente que “destruir a autoridade paternal ¢ atentar contra a ‘moral e auxiliar a dissolucdo dos bons costumes" (Revis- ‘ta, 17:31) alertando para a seguinte situagdo de fato: ‘Tendo impedido o casamento de sua filha com um criado do governador, ocultando-a longe de sua casa para evitar que a levassem violentamente, 0 mesmo governador dispos-se casé-la contra a sua prépria von- tade © a de seu pai, contando com a cumplicidade de um sacerdote (Revista, 17: 31) No século XIX, as disposigdes testamentérias reve- lam que, quando havia desgosto com 0 casamento dos fi- los, 08 genros e as noras ndo recebiam beneficios dos 0970s, 0 que no ocorria quando eram bem quistos. Da, as freqiientes alusSes a empréstimos cobrados por oca- sido do testament e as restricSes que eram impostas, nas partilhas, compreensiveis 8 luz de desavengas pessoais en- ‘tre os membros da familia, ages de conflito naturalmente se agravavam ‘quando 0s interesses econdmicos estavam em jogo, oca sionando um reorudescimento das acusagdes, mesmo se tratando de parentes. Por outro lado, fica também evidente que os gen- +08, desde que parentes, podiam receber um tratamento Preferencial, com incumbéncias de maior peso em rela: ‘980 a0s demais integrantes da familia e na geréncia do patriménio, © Sargento-Mor Francisco Igndcio de Souza Quel: oz, sobrinho ¢ genro do Brigadeiro Luiz Antonio de Souza, a despeito de outros parentes, foi nomeado tutor dos filhos ainda menores do Brigadeiro, além dos encar- {90s de primeiro testamenteiro, procurador e administr dor da fazenda e testamentaria (Arquivo, 1800-1870, n9-671). Tais relagdes de parentesco eram comuns nos ar- injos matrimoniais, pois na sociedade paulista, tradi- cionalmente, desde 0 periodo colonial eram frequentes as uniées de primos entre si e de tios e sobrinhas. Alfre- do Ellis Junior aponta para a populacSo paulista, no seiscentismo, um indice de consangiiinidade de 23,3% que chega, no setecentismo, a 42,8% (Ellis Jr. apud. Vianna, 1974, p.228). Essas unides por lagos de sangue ou de afinidade* estenderam-se, por geragdes, até o século XIX, sendo inameros os exemplos encontrados nos testamentos. Em 1800, Ana Vieéncia Rodrigues de Almeida ca- sava-se com seu cunhado Eleutério, sendo uma solugdo encontrada para evitar a reparticéo do patriménio dos Prado, em um momento decisivo na acumulacdo de bens na familia. Do mesmo modo, Martinho (1811-1891) ‘contraiu népcias com sua sobrinha Veridiana (1825- 1910), numa sucesso de aliancas, tal como comprova a genealogia da familia, mostrando que essas uniSes ainda feram comuns no século XIX. (Levi, 197, p.68-69 321). A abundéncia de casamentos consangiiineos entre parentes até quarto grau, nas éreas rurais e urbanas, obje- ‘to de preocupacéo de clérigos e governantes, fez com que o Papa Pio VI, em bula expedida em Roma, a 26 de janeiro de 1790, desse poder aos Bispos do Brasil para dispensarem de Graga “em todos os graus de parentesco (a exceco do primeiro de consangiiinidade assim em li- ‘nha reta, como em linha transversal, e do primeiro de afinidade em linha reta somente) . . ." (Mendonca, 1961, p.68). Dessa forma, facilitavam-se os matriménios ‘que seriam irrealizéveis enquanto se precisasse da dispen- 9 de Roma. O intuito dessa dispensa era, obviamente, 0 {de abreviar os processos, evitando as demoras ¢ diminuin- do 0 gastos. Existiam, nas normas da Igreja, varios tipos de im- pedimento & realizacZo dos matriménios, embora fossem ‘mais freqientes, nos documentos clericais, os pedidos de dispensa por afinidade e consangiinidade. Os contraentes de origem mais humilde em geral, requisitavam a dispensa por afinidade, o que pressupu: nha a existéncla de cépula ilfcita com parente do futuro Cénjuge. Entre as pessoas ““nobres”” ou de maior posse, a cconsanguinidade era 0 motivo mais constante (Silva). ‘Nas familias paulistas de modo geral, as nupcias entre parentes prximos, primos e meio-iméos, parecem ter sido uma ocorréncia natural, nas dreas urbanas e arre- dores rura Isso significa que as sociedades de parentes cont ‘nuaram a atuar no meio urbano, @ despeito das modi cacées apresentadas na estrutura das familias no decor- rer dese perfodo. 4g relagdes por afinidade cobrem 0 parentesco indireto, ou Seja, por casamento, diferente do parentesco consangiineo. Casamento e papéis familiares em Sao Paulo no séc. XIX 19 ‘A vida urbana, durante o século XIX, possibilitou Provavelmente a reunigo mais freqdente dos membros de uma mesma far fem decorréncia, ao invés de produ: Zir_ um enfraquecimento das relagdes familiares refor- 0u-se pela maior assiduidade de visitas ¢ proximidade (Queiroz, 1975, p.68). Tomando como exemplo 0 recenseamento de 1836, verificamos que a prépria formagio dos bairros, na Cidade de So Paulo, mostra nitidamente, em alguns lo- cas, @ concentracio de i portanto, as possibilidades de contato entre os parentes. 'Na forma de ocupacéo do espaco se insere também a re- lagdo entre os moradores ¢ a predominancia de um certo tipo de atividade, 0 que provavelmente favorecia um maior entrosamento entre os elementos provenientes do mesmo estrato econdmico, facilitando as unides entre os casais (Divisio, 1827-1836, lata 37-A). Tal constatagdo reforea 0 quadro de que os casamentos se realizavam pre: ferencialmente entre integrantes do mesmo grupo social. 3— Condigées de realizagao dos casamentos Publicado em Lisboa, em 1747, com o intuito de aconselhar um amigo prestes a tomar o estado de casa- do, 0 discurso de D. Francisco Manoel de Melo alertava para 0 fato de que “uma das coisas que mais podem asse- gurar a future felicidade dos casados, & a proporcio do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na far zenda causa contradigéo, discérdia. E els os trabathos por donde vem. Perde-se a paz, e a vida ¢ inferno. Para a satisfacdo dos pais convém muito @ proporeéo do san- gue; para 0 proveito dos filhos a da fazenda; para o gosto dos casados as das idades” (Melo, 1747, p.8). Uma for- ma de garantir a harmonia conjugal estava, segundo 0 au tor, na observéncia desses preceitos que contestavam, sem divida, a validez dos casamentos desiguais ou mis: tos. No Brasil, apés a independéncia, ndo existiam er traves legais & realizagdo de casamentos entre “pessoas desiguais”, desde que houvesse o consentimento paterno (Trigo, 1857, p.46). Na prética porém, as unides dessa nnatureza eram desaconselhadas e criticadas, enfatizando ‘a distingBes de raga e de grupos sociais, existentes equi ‘como anteriormente em Portugal Em Sao Paulo, as alusGes e criticas severas encon- tradas em documentos dos fins dos séculos XVIII e do visio, 1822-1861), relativas a falta de pureza de sangue e a matriménios com mulheres de baixa cont ‘0, nos levaram a admitir a existéncia de pressGes par evitar a realizagdo de matriménios desse tipo, o que no significa que deixassem de ocorrer. Entretanto 6 importante lembrar que essa maior austeridade de costumes sem diivida estd relacionada 20 aumento do namero de mulheres brancas, que ocorre a partir de 1765. Tal fato se ope aos perfodos de caré cia de noivas brancas, aceitéveis para casamentos, assun- to que era objeto de preocupagdo em Sio Paulo, a0 qual 20 se refere um trecho famoso da carta de Manoel da N- brega 20 Mestre Simao: “"Parece-me coisa mui conveniente mander Sua Alteza algumas mulheres que Id tem pouco remédio de casa- mento a estas partes, ainda que fossem erradas, pois casardo todas mui bem” (Machado, 1930, p.11). Durante o século XIX, assim como ocorrera nos anteriores, 0s pré-requisitos matrimoniais eram mais fle- xiveis para certas camadas da populagéo, especialmente ‘quando existia dificuldade em se encontrar mulheres di Poniveis. Tais ocorréncias, no entanto, eram menos per- ‘ceptiveis entre a elite branca, onde a condiclo sécio-eco- némica e a pureza de sangue eram elementos importan- tes para a realizagio dos casamentos. Para isso, até man- davam-se vir mogas e rapazes de Portugal, jé com 0 casa- mento tratado. Na falta de pretendentes & altura, ao que parece preferiam o celibato. Em So Paulo, a freqiéncia do celibato © das u- nies ilegitimas, justificava a preocupacdo dos pais com © futuro das filhas. Devido as poucas opgbes que resta- vam & mulher, o casamento tinha uma fungio especifica, especialmente numa sociedade onde sua imagem estava associada as de esposa e mie, Representava também pro- tegdo e a decente sobrevivéncia pois era da competéncia do marido zelar pela seguranca da mulher e da prole. Em decorréncia das alternativas que se apresentavam para homens e mulheres, 0 casamento dos filhos vardes no rmereceu preocupacio em semelhante gra Sabe-se que entre os pedidos e mesmo obrigagSes, impostas a tutores, parentes, amigos ou curadores, esta- va aquela de arranjar marido. “Se o curador, por ser mu: to velho e decrépito, néo trata de arranjar noivo a cura tela, um irmio aparece em ju‘zo, declarando-se pronto a faze-lo se the derem curadoria. Outros se comprometem ‘ousadamente a descobrir marido em prazo certo’ (Ma- chedo, 1930, .150-161), como explica Alcantara Machado. ‘As dificuldades em se arranjar casamentos parece ‘nfo ter ficado apenas entre os individuos com melhor fortuna pois os mais pobres queixavam-se do mesmo ‘mal. Geralmente, 0 problema vinha associado @ falta de recursos, 0 que reforca a idéia de que o matriménio, em muitos aspectos, dependia da condigo financeira dos noivos. Da parte da mulher, desde que houvesse condi ‘9Bes econmicas, existia o dote e o pretendente deveria apresentar provas de que uma sobrevivéncia, ao menos descente, seria assegurada 8 mulher, durante a vida con- jugal e também na viuvez. © alto custo das despesas matrimoniais era outro entrave a legitimagio das familias, o que favorecia a con- ‘cubinagem entre as camadas mais baixas da populacSo. A ccelebracdo legal implicava em despesas, direitos e obriga- ‘Bes reciprocas de homens pobres relutavam em formar lagos legitimos & “resultavam concubinados, teidos e mantetidos, com ge- ral e piblico escéndalo, e como tais compreendidos em Devassas, recolhidos as cadeias, e sentenciados pela Jun- ta da Justica’* (Documentos, 1961). Cad. Pesq., So Paulo, (37): Mai. 1981 Numa sociedade onde a maior parte dos seus inte- grantes professava a fé catélica, a religio foi outro sério ‘obstéculo a realizagdo de casamentos mistos. A interfe- réncia da lgreja 6 pertinente se considerarmos que o ma- triménio nfo era apenas um contrato, mas também um. sacramento, conforme as condicées disciplinares impos- tas pelo Concilio de Trento, que invalidavam, nos seus efeitos, os casamentos no celebrados pela Igreja (Consti- tuigdes, 1853). A populagéo sofria, portanto, uma série de pres: 860s para celebrar unides em func30 das normas aceitas Pela religio, sendo que ao clero competia atuar nesse sentido. Isso significa que os estrangeiros, no Brasil, desde ‘que catélicos, tinham facilidade de acesso as familias lo- cais, através de casamentos. No entanto, uniam-se mais freqiientemente com membros de sua prépria cultura Os no catélicos, em geral imigrantes, adotavam lum comportamento idéntico. Quando ngo vinham casa dos da Europa, escolhiam aqui elementos dentro da mes- ‘ma religifo ou Comunidade de origem. Por outro lado, provavelmente, com o passar do tempo as dificuldades de encontrar cBnjuges elegiveis de- ve ter estimulado a fusio de grupos, provocando alter 96es no quadro social. Para os estudiosos da familia, 0 problema deve ser sempre analisado em relagio ao nime- ro de membros componentes de um determinado grupo (ui estrato social. Isto significa que, se 0 total de compo: rnentes 6 pequeno, torna-se mais dificil manter as barre as que impedem os matrimdnios fora dos cfrculos. O ‘mesmo fato néo se repete quando 0 grupo ¢ maior e se torna, portanto, mais fécil escother um cdnjuge do mes ‘mo quadro de valores (Goode, 1964, p.35). Diante da complexidade de fatores envolvidos, aparentemente, 0 amor como estimulo para o casamento parece ter ocupado lugar de menor importancia, apare- endo como uma consoqiiéncia da vida em comum, Nos testamentos, so mais comuns as referéncias, 8 estima, dedicagSo e gratido do que realmente ao amor do casal. Carinho e amor so aspectos relevantes nos ca: samentos dos mais pobres. Talvez, por isso, se desfizes- sem, com facilidade, as uniGes entre individuos das ca- madas baixas da populagdo. Os padrées de moralidade eram mais flextveis @ havia pouco a se dividir ou a ofere- cer numa vida simples. Enquanto prevalecesse o estimulo inicial, existiam razSes para preservar a unio, jé que, no plano social, @ separacdo ou um novo concubinato ndo teriam graves repercussées. A condigdo a que estava sujeita a mulher, com o- ortunidades restritas de vida social, impossibilitava tam- ‘bém uma participagio ativa na escolha do noivo e 0s ra- +08 contatos que precediam a ceriménia, no permitiam tum methor entrosamento do casal Sindnimo de encontros furtivos e sinais telegrti ‘60s ajudados pelos leques, lengas e chapéus, 0 namoro parece ter evoluido muito pouco at§ o século XIX embo- ra considerado avancado pelos contempordneos que clas- sificavam de ingénuo aquele da fase anterior. Os breves noivados que nem sempre sucediam 20 namoro também leram acompanhados de raras entrovistas. Curioso, entretanto, foi observar, jé nessa época, que embora 0s arranjos matrimoniais fossem feitos por interferéncia das families, evidéncias encontradas apon- tam que a no aquiescéncia das partes envolvidas podi significar um rompimento de compromisso, o que indi- ca uma natural evolugo dos costumes (Oliveira, 1943). 4— Indices de nupcialidade ce de nupciatidade, que apresentou baixas porcentagens para o século XIX. Procurando dados precisos que indicassem falta de catamentos entre homens e mulheres pertencentes aos diversos grupos socials, verificamos 0 estado civil de 1516 chefes de domictlios, em So Paulo, no recensee- mento de 1836. Desses, 503 eram solteiros, 662 casados, 282 vitvos e 3 divorciados. Dos 662 casados, apenas 589 viviam com os respectivos cBnjuges e o restante estava separado por motivos no mencionados aparecendo, em muitos desses casos, a mulher assumindo 0 papel de ca- beca de casal, por auséncia de marido. ‘Tomando como base um perfodo mais amplo, de 1800 a 1860, verificamos o estado civil de 337 pessoas que deixaram testamento, das quais 138 eram solteiras, 99 casadas, 85 vidvas, 1 divorciada, 9 amigadas e 5 sepa- radas. Do total apareceram apenas 28 casos de segundas nupeias (Arquivo, 1800-1860). ‘A amostra ¢ altamente significativa, principalmen- te se considerarmos que os dados manipulados inclu am apenas as pessoas aptas, em idade de casamento. Tal cconstatagdo comprova também a hipétese levantada an- teriormente de que 0 casamento era uma opeao apenas para uma parcela da populagio, preferindo os demais permanecer no celibato, aderindo &s unies ilegitimas. ‘As informages sobre os habitantes casados, conti ddas no mesmo recenseamento de 1836, permitiram con- cluir também que as unides legitimas comumente acon- teciam entre componentes da mesma rara, apesar da xist@ncia de presses no ambito juridico. Para 0s 575 domictlios que apresentaram informa: ‘¢8es quanto & cor do chefe e de sua esposa, ndo apareceu enhuma indicagdo de matriménios entre branoos @ ne- gros, 17 de brancos e mulatos e apenas uma de branco com elemento indigena. ‘Mesmo as unides entre pretos e mulatos, aparece- ram em nmero reduzido: somente 7 (24,1%) para um total de 29 matriménios. Isto significa que brancos, par- dos e negros casavam mais dentro do seu proprio grupo de origem ¢, do mesmo mado, livres, escravos elibertos. No cdmputo geral, 96,3% dos brancos casaram com indi- viduos da mesma raga e igualmente 75,9% dos negros, 88,9% dos mulatos @ 33,3% dos indios (Divisio, 1827- 1836, lata 37-A). (Os dados referentes ao ano de 1836, revelaram também uma pequena incidéncia de casamentos entre os cchefes de domicilio negros e mulatos. Ao que parece, os Individuos pertencentes a esses grupos viviam mais em concubinato, a semelhanca dos brancos pobres, por ra- 2282s de ordem econdmica e social Casamento e papéis familiares em Sao Paulo no séc. XIX 2 Entre os escravos, predominavam naturalmente os solteiros. 0 Mapa Geral dos Habitantes do Destrito do Bairro de Santana, Paréquia de Santa Efigénia e de Nossa Senhora do 0, no ano de 1827, apontava a predominin- cia de escravos, negros e mulatos solteiros sobre os casa- dos vidvos. Para um total de 237 pretos, 177 eram cati vos (152 solteiros, 21 casados e 4 vidvos) e 60 libertos (27 solteiros, 25 casados e 8 vitwos). Os 381 mulatos, em ‘sua_maioria eram livres (334, para 47 cativos) e geral- mente solteiros, Dos 334 mulatos livres: 244 eram soltel- ros, 77 casados e 13 vidos. Dos cativos: 39 eram soltei +05, 6 casados @ 2 vitivos. Com excessio dos pretos cati vos, onde o nlimero de mulheres era bem inferior, a ‘twagdo era semelhante para ambos os sexos, com indices ‘mais altos de individuos solteiros. No mesmo ano, aconteceram 224 casamentos para as 13 paréquias da cidade, sendo 181 de brancos e liber: tos e 43 de escravos (Divisio, 1827-1836, lata 36). ‘Trinta anos mais tarde, outros mapas referentes 20 movimento da populacdo paulista (Divisio, 1822-1861, ver 1857) ainda indicavam ur percentual pequeno de ca: samentos de escravos. Em 1857, 0 quadro de casamen- 105, de acordo com esses dados, era 0 seguinte: na Fre- ‘quesia de Nossa Senhora do © (nenhum), na de Santa Efigénia (dois), na S& (nenhum) € no Brés (nenhum). Pelo que pudemos perceber, a auséncia de casa ‘mentos foi uma constante em So Paulo durante o sécu- lo XIX, atingindo individuos de ambos os sexos e de qualquer condigo social. Ficou claro também que o quadro de valores anteriormente mencionado interferiu na dindmica do processo, servindo para explicar a alta incidéncia do celibato, principalmente entre as pessoas provenientes de boas familias e de posses. Seré que néo fencontraram um pretendente a altura? Ha que lembrar também que apesar das presses da Igreja em sacramentar as unides, uma parcela significati- va da populacdo permanecia vivendo em concubinato e procriando filhos ilegitimos. 5 — O principio de autoridade e a Poderes no casamento ivisio de Provavelmente houve certo exagero dos estudiosos © romancistas ao estabelecerem o estereétipo do marido dominador e da mulher submissa. As variages nos pa drdes de comportamento de mulheres provenientes dos diferentes niveis sociais indicam que muitas delas trouxe ram situagdes de conflito para 0 casamento, provocedas por rebeldia e mesmo insatistagio. No século XIX, entre ‘outras razGes, casais se separaram porque os génios ndo combinavam. A par das poucas opgdes que restavam as mulheres ra sociedade brasileira, desde 0 perfodo colonial, ppria natureza do sistema patriarcal e a divisic bbéncias no casamento criaram condigées para a afirma- ‘0 de personalidade femi ‘eta junto a familia. Antonio Candido sugere que a orga niizagdo do sistema colonial desenvolveu aspectos viris na personalidade da mulher que favoreceram 0 aparect ‘mento de caracteristicas acentuadas de comando e inicia 22 tiva (Candido, 1951). Nao sio raros os exemplos de mu- Ineres que, por auséncia do marido ou viuvez, zelaram elo patriménio da familia, gerindo propriedades e neg6- ios. Outras trabalharam na agricultura e nas pequenas manufaturas domésticas, contribuindo para o sustento da casa, Sabe-se também que, durante o bandeiranti ‘as matronas cuidavam da casa e também dos negécios da lavoura nascente. Essas colocagées sugerem novas imagens da mulher na familia e na sociedade, com uma participags ativa, embora 0 seu papel ainda fosse i ‘manutengao dos p ‘A anélise dos documentos juridicos e religiosos, referentes a0 Brasil ¢ Portugal, que trataram de regulari- Zar as questdes pertencentes a familia, nos remetem a lum ponto fundamental, ou seja, 0 das atribuicdes e obri gages reciprocas que cabiam aos cdnjuges no casamen- to. Nas unies legitimas, a divisio de incumbéncias on- tre os sexos, pelo menos na aparéncia, colocava 0 poder de deciséo formal nas mos do homem como provedor da mulher e dos filhos, por costumes e tradigées apoia- ddas nas leis. Historicamente, ¢ mesmo biologicamente, essa situagdo seria justificdvel pela propria natureza fisi- ca do homem, criado para proteger a mulher, de nature- za mais delicada, nos perfodos em que houvesse perigos ou dificuldades (Andelin, 1963). Perfazendo adequada- mente seus respectivos papéis, os cénjuges deveriam se completar nos matriménios tradicionais. A incumbéncia bisica da muther residia no bom desempenho do gover- ‘no doméstico e na assisténcia moral & familia, fortale- endo seus lagos. Percabe'se que ambos preenchiam pa- tis de igual importéncia, mas desiguais no teor da res- ponsabilidade. © pétrio-poder, entre nés como entre os romanos, era a pedra angular da familia © emanava do matriménio, €@ aqui, assim como na sociedade portuguesa, 0 sexo tam- bém exercia influéncia nas relagdes juridicas. A autori- dade do chefe de familia sobre a mulher, os filhos e de- mais dependentes aparece como leg{tima na literatura e ‘nos documentos, desde 0 perfodo colonial, o que ndo significa que necessariamente essas relagdes devessem aparecer dentro da rigidez com que estavam estabeleci- das. As fungées de provedor e protetor garantiam a do- ‘minago masculina em um tipo de sociedade onde o po- der de decisfo estava nas mios dos homens. Ao filho ‘que estivesse sob a tutela do pai dizia-se “filho aparenta- do” ou “sob 0 pétrio-poder”, expressio que aparece, com freqiéncia, nos censos de populacdo da capital. Dessa forma, a divisdo de poderes no casamento conce- ‘20 pai a autoridade legitima que era também exten: siva 4 mie, na falta do mesmo, ou a outras pessoas espe- ialmente designadas para preencher o seu lugar e conse- quentemente detentoras do pétrio-poder nessas situa es. A esposa transformada em “cabeca de casal”” por morte do marido deveria, no entanto, justificar jurid- ccamente esse encargo. ‘A tutela dos filhos e a administrago dos bens, em- bora considerada legal e praticamente automética na nha de sucessfo, colocava a mulher viva em uma posi ‘G0 bastante delicada perante a legislago. Nos autos de Cad. Pesq., Sé0 Paulo, (37): Mai. 1981 justificagdo de tutela de D. Josefa Leonarda de Jesus Pe- Teira, em 1802, verificamos que, para manter a guarde dos filhos, necessitava comprovar “que era casada cristé- mente, com 0 Capitéo Antonio Lopes de Siqueira, que deste casamento houve seis filhos, vivendo todos na sua ‘companhia; que ainda se encontrava vidve, honrando @ meméria de sou marido” (Revista, 11:11). No transcorrer da vida conjugal, © marido, como “cabega de casal”, administrava os seus bens @ 0 da es- Posa, 0s que esta tivesse ou viesse a ter. Na prética, de ‘certos atos legais, como a venda de iméveis, este caracia da outorga da mulher e esta do consentimento do mari- do. Os encargos do matriménio, na parte referente & ma- nutengo do casal e proterdo dos. bens, cabiam, portan: to, 20 homem. A essa protecdo deveria a esposa respon- der com obediéncia. O regime da igualdade dos eénjuges no casamento, no uso-fruto dos bens e na partitha, $6 apareceu mais tarde, a partir de 1892, mas a0 marido ainda competia defender a mulher e os filhos. Os relatos dos viajantes que percorreram vérias par- tes do Brasil souberam enfatizar a opressfo da mulher e © recato das familias, trazendo a tona, excepcionalmen- te, as excossBes a esse modelo. Em “Mulheres e Costumes do Brasil", Charles Ex- pilly (1935) conclui que “a desconfianga, a inveja e @ COpressio resultantes. prejudicavam todos o$ direitos @ to- dda a graga da mulher, que néo era, para dizer a verdade, senfo a maior escrava do sou lar. Os bordados, os doces, a Conversa com as negras, 0 cafuné, o manejo do chicote, © aos domingos uma visita a Igroj ‘98es que 0 despotismo paternal e a politica conjugal per- mmitiam 8s mogas e as inquietas esposas” (1972). Saint Hilaire também observou que, em Séo Paulo, ‘no comego do século XIX (entre 1815 e 1820), as rela ‘980s sociais assim como a vida familiar, eram ainda essen- cialmente patriarcais. As mulheres ricas se ocupavam de bordados, arranjos de flores e tocavam misica, enquanto ‘as mais pobres, pela propria condicdo de vida, eram leva das a prostituicéo. ‘sténcia de evidéncias de que uma parcela re cde mulheres das camadas mais abastadas vi Viam reclusas ou entregando-se a indoléncia, contrapde- se, entretanto, a um outro quadro onde, comprovada- mente, 0 sexo feminino tinha uma participago mais ati- va, a testa da familia e dos negécios, contribuindo com recursos para a manutencdo da casa. Em So Paulo, além das atividades avulsas (docei ras, engomadeiras, cozinheiras e costureiras) apareciam 05 teares domésticos (rendeiras e tecelfs) @ as pequenas industrias, estas jé em meados do século pastado’, ‘Ao que parece, essas duas alternativas coexistiram, submetidas ao padro duplo de moralidade e ao processo de socializago que preparava a menina para o desempe- ‘nho das fungdes domésticas. De tudo isso, percebe-se porém, na segunda meta- de do século XIX, uma dinamizagio a0 nivel das relagdes, familiares entre os sexos que, em So Paulo, poderia es- tar vinculada & alta porcentagem de mulheres como che- {es de domictlio, desde o final do século anterior (a par- tir de 1780) (Kuznesof, mimeo.), o que aumentava a érea de influéncia feminine. Casamento e papéis familiares em Si0 Paulo no séc. XIX Percebem-se, portanto, arcal de docilidade e submisséo da mulher. Provavelmen- te, essas situagdes comecaram a afetar 0s valores tradicio- rais, embora a autoridade, de modo geral, tivesse perma: rnecido com 0 marido. 0 fato de encontrarmos nos testamentos da 6poca, ccasadas as mulheres que tiveram filhos enquanto soltel- ras, contrapte-se a idéia de pureza e castidade. Nesses .ca805, 0 leno conhecimento do marido era necessério pois caso contrério poderia resultar em anulago do ma- ‘triménio. Outras, em situago idéntica, mesmo depois de vidvas, contraiam segundas nipcias, o que prova que he via uma colocago social para a mulher com filhos natu: rais. Embora exemplos deste tipo fossem usualmente en- contrados entre as camadas menos favorecidas, os nomes importantes néo foram totalmente excluidos. Uma certa ética com relago a uma conduta virtuo- sa parecia, entretanto, preservar nos anos de vida em co- mum do casal pois o adultério era considerado falta gra- vee sujeito a varias punigées. Nas Ordenagées Filipinas® 2 esposa. Concedido 0 perdio, havia a relevacdo da pen: E interessante observar que, assim como em outros itens, as disposigées inclusas nas Ordenagles F vam, em prinefpio, a hierarquia social vigente, ou seja, “porém se 0 addltero for de maior condigo, que o max rido dela, assim como se o tal adiiltero fosse Fidalgo, e (© marido Cavaleiro, ou Escudeiro, e 0 marido pedo, nfo {fardo as justicas nele execuglo, até no-lo fazerem saber, € verem sobre isso, nosso mandado” (Ordenagbes, 1850) Diante dessa situacdo 0 inclusive sob pena de per- der os bens, 05 fithos ilegitimos, quando declarados e re- conhecidos, apareciam sempre nos casos de separacdo, celibato e viuvez, embora fosse esperado das vitvas um ‘comportamento exemplar, pois caso contrério correriam © risco de perder a tutela dos filhos e a administrago do atriménio. Note-se que honradez e “probidade com- provada’ eram atributos essenciais as mulheres paulistas, ‘no século passado, e principalmente as vitwas deveriam zelar por esses valores morais. ‘Algumas mais corajosas declar to, que por “fragilidade humana’ durante a duracio do matriménio, Assim, em 1858, uma mulher casada declarava que tinha trés filhos legitimos © sete ilegitimos, dois desses nascidos durante o casamento € cinco jé na viuvez, conforme depoimento de seu pr- prio punho (Arquivo, 1800-1870, n? 15285) Alguns autores identifica o fenémeno como par- te do quadro da prépria opressio ferinina que contri- 1m, em testamen- 5 Come mostra os censos da Populaeso da Capital de outras Jocalidades paulistas para o final do sfeulo XVIII e a primeir rmatade do XIX. © As Ordenacées Filipinas ainda vigoravam no século XIX ape- ‘ar do legilegso vigente no perfodo independente 23 bbuia para a formaggo de uma contra corrente de irregu- laridades sexuais, através da qual buscavam uma com- Pensacdo para os desejos e sentimentos no possiveis de manifestago dentro dos limites da familia patriarcal (Saffioti, 1976), fato que nfo alterava a mentalidade gente e a posigdo vantajosa ocupada pelo homem. 6 —CONCLUSAO ‘A nosso ver, as imagens so contraditérias € os es- Estes ltimos seriam apenas mitos? Existiu realmente o ideal da passividade feminina? ‘Alguns trechos da obra cléssica de Gilberto Freyre, ‘acentuam ainda mais 0 paradoxo. O autor sugere tam- bém que a preferéncia pela mulher submissa foi ditada ppelo desejo do homem de eliminar a sua concorréncia no jogo econémico € politico, o que insere o problema num sistema mais amplo de dominago (Freyre, 1977). Segundo a literatura, o panorama é contraditério ‘mas certamente explicdvel em fungio do padréo duplo de moralidade que regulava as relagdes dos sexos e dos ‘grupos sociais. As mulheres de posses, em sua maioria, ficavam circunscritas 8 vida familiar, que fomentava as suas aspiragGes de casamento e filhos. Passavam, dessa forma, da tutela do pai para a do marido e estavam me- ‘nos expostas as relagdes ilicitas e, naturalmente, mais aptas para desempenhar um papel tradicional e restrito. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDELIN, Helen B. Fascinating womanhood. New York, Bautam, Book, 1963. 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Suas relagdes se desenvolviam, por- tanto, dentro de um outro padrio de moralidade que, relacionado principalmente 3s dificuldades econbmicas de raca se contrapunha ao ideal de castidade, mas no cchegava a transformar a maneira pela qual a cultura do- minante encarava a questo da virgindade e nem a posi- ‘cdo privilegiada do sexo oposto. Por tudo isso concluimos pela necessidade de pre- cisar qual seria © quadro predominante e pela necessid de se estabelecer novos pardmetros para definir a familia a situago da mulher na sociedade paulista do passado, assim como em outros locais e periodos da nossa Histé- ria, A freqiiéincia do celibato, das unises ilegitimas ¢ a ferferéncia do sexo feminino em assuntos aparente- ‘mente relegados 20 sexo oposto revelaram uma nova di- mensio para o problema, especialmente nos aspectos relacionados 30 mito da castidade e a submisséo da mulher & autoridade do marido. O fato de eneontrarmos 10s testamentos, testemunhos de que eram aceitas para © casamento, mulheres com filhos naturais, altera, tam- bém 0 quadro tracado pela historiografia. Do mesmo modo, as queixas das esposas, levantadas a partir dos processos de Divércio (ACMSP, 1800-1890), revolaram as reais aspiragBes do sexo fer quanto ao casamen- to e 8 vida conjugal, apontando que, nem sempre o com- portamento das esposas se amoldava aos padres tradi- cionalmente aceitos. FREYRE, Gilberto, Casa grande e senzala Rio de Janeiro, José Olympio, 1977. 2v. ‘Sobrados e mucambos. 5.ed. Rio de Ja- neiro, José Olympio, 1977. GOODE, Willian J. The family. New Jersey, Prentice: Hall, 1964. GORNICK, Vivian ed. Woman in sexist society, studies jn power and powerlessness. New York, The New ‘American Library, 1971. HERCULANO, Alexandre. Casamento civil, 4.0d. Rio de Janeiro, Francisco Alves, s.d. KUSNESOF, Elizabeth Anne. 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