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ENTRE HOMENS, MULHERES E DEUSES: IDENTIDADE, GENERO E (HOMO)SEXUALIDADE NO CONTEXTO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO Ralph Ribeiro Mesquita Resumo: Fste artigo focaliza algumas poss eis rolagaes entre identidade, género e ho ‘mossenualidade no contexto religiaso dos can- domblés. Entrevstas e observacées de cam- 1p0 possiblitam perceber como os sujeitossig- hificam experiéncias relatvas & sexualidade & como estas podem ser compreendidas na di nnamica dos grupos religiosos. Algumas trans- formasées $40 apantadas nas significacéi 20 longo do tempo e, principalmente, ae firmacao da desigualdade entre serualidades de mulheres e homens. Palavras-chave: homossexualidade e candom bie: género; Ao iniciar 0 projeto de minha tese de doutoramento em antropologia (MES- QUITA, 2002), tinha em mente discutir longamente aspectos do campo representacional da sexualidade no uni- verso afro- brasileiro revsitando, para tan- to, autores e teorias. Entretanto, a dind- mica da pesquisa me obrigou, de certa forma, a tomar outra direcao. Salvo al- guns poucos depoimentos recolhidos no campo através de entrevistas, que pare- ‘cer querer funcionar como uma espécie de “hiperconsciéncia moral” da socieda- de, 20 estabelecer um julgamento e con- denacio de atores e praticas, os demais exibem coloragéo reticente com relagio as expressées da sexualidade, em geral, € da homossexualidade, em particular. De comum, todos apontarn o comportamen- lontidade, to sexual considerado promiscuo como principal responsavel por infecc6es, adoecimentos e mortes por AIDS ~ um dos aspectos do meu objeto de estudos =, mas no ultrapassam o limite desta suposta evidéncia, fartamente reafirma- de pela maioria das agéncias sociais {G6IS, 2001). De certa maneira, parece que a idéia de promiscuidade se cristal- za nos discursos das pessoas, funcionan- do como uma espécie de elemento totalzador do sujeito, permitindo redu- zirseu comporlamento a0 niimero supos- to de contatos sexuais Nao muito mais do que essas evi- déncias puderam ser verificadas no cam- po, com relacio & sexualidade © 0s gru- pos de candomblé. Entretanto, uma Niter6i, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 95 tensdo constante parece ndo querer desvincular sexualidade e religiosidade afro-brasileira. Quer em uma versio que supe maior possiblidade de liberdade e autonomia com relacdo 3s movimenta- bes eescolhas no mundo secular, quan- do comparada a outras formas religiosas, quer em uma leitura que toma liberdade @ autonomia como sinonimia de lbert- nagem e promiscuidade, a temdtica da sexualidade ¢ os grupos de candomblé continuam alimentando teorias e imagi- ratios. O objetivo deste texto ¢ apresentar algumas discussdes que relacionam aspectos do Universo religioso dos can- domblés ¢ perspectivas de género, identidade e expressdes de sexualidade, particularmente em sua verso homoerd- tica, Para tanto, uma primeira abordagem permitirsituar certa trajetéria tebrica de cunho antropolégico que toma como elemento central sujeitos, préticas e significagées de natureza sexual em Circulago no mundo de homens mulheres que compartilham a crenca em orixds, inquices e voduns." ‘As consideragées sobre © campo teérico produzido pela antropologia, no que tange aos aspectos religiosos afro- brasileiros sua vinculagao com as temdticas de género, identidade e sexua- lidade, fornecem as bases para discusses posteriores, redefinidoras ou no destas mesmes consideracées. Assim, realiza-se uma breve andlise de aspectos discursivos de sujeitos religiosos que significam idéias ¢ comportamentos relativos a0 campo de estudos em questo, tendo como ponte de partida o advento da epi- demia de HIVAIDS que se torna relevan- te também para 0 chamado povo-de-san- 0, Ao que parece, o impacto da epidemia de HIV/AIDS sobre os grupos de candom- bIé provoca uma certa desestabilizagao das representacdes aparentemente con- solidadas até o aparecimento da doenca. © quadro que parece se desenhar como surgimento do HIV/AIDS, relativa- mente as expressées de sexualidade © gé- nero, estimula a rever 0 estatuto que al- gumas categorias gozam no universo de significacoes dos grupos de candomblé ‘Assim, ainda que de forma preliminar, al gumas questdes sao levantadas e hipéte- ses sugeridas com vistas a ampliar as dis- cuss6es sobre 0 campo ¢ a tematica propos De homossexual a adé ou criando teorias e géneros Deixando de lado alguns dos pri- meiros autores que, de uma forma ou de utra, se ocuparam de aspectos da se- xualidade em grupos religiosos afro-bra- sileiros como, por exemplo, Joao do Rio (RIO, 1976), tomo como marco signifi- cativo para minha analise os trabalhos da antropéloga americana Ruth Landes. Ten- do vivido na cidade de Salvador, Bahia, entre 1938 e 1939, escreve, em 1947, 0 bastante conhecido The City of Women (LANDES, 1967). A cidade das mulheresé, sem duvi- da, texto de capital importincia para 0 entendimento, sendo dos cultos afro-bra- sileiros enquanto tal - ndo se trata de um texto com pretensées litdrgicas ~ pelo menos de alguns aspectos de sua estru- tura e, o que me parece mais relevante, de aspectos centrais de uma certa leitura sobre os grupos religiosos de candom- bie. Landes parece acreditar ter encon- trado na cidade de Salvador, Bahia, de 96 Niteréi, v4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 1938/1939, grupos de religiosos que, subvertendo a hegemonia da sociedade abrangente, organizam, com base em uma estrutura que chama de matriarcal um modo de vida em que a mulher é 0 centro, de onde tudo emana e para onde tudo se dirige ‘As conseqiiéncias do pensamento de Landes que, em uma primeira impres- S80, reafirma a ideologia de certo seg- mento da “inteligéncia baiana” de sua poca ou, para utilizar uma expressdo de Artur Ramos, da “escola Nina Rodrigues" (RAMOS, 1937 apud CORREA, 1999, ». 4), exempliticado nas figuras de Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Artur Ramos, Martiniano Eliscu do Bonfim, dentre ou- ‘ros, podem ser sentidas ainda hoje. Na verdade, a preocupacao de Landes com a sexualidade, ou melhor, com a homossexualidade — e preferen- cialmente a masculina - sé se dé tangen- cialmente, j8 que ela faz derivar, da estrutura social e dindmica dos candom- blés “tradicionais” baianos, um modelo especifico de sociedade. © tema da homossexualidade surge como uma espécie de residuo légico, uma vez que se tem por finalidade a andlise dos luga- res de mulheres e homens na estrutura dos grupos religiosos. Entretanto, nesse texto, e especialmente em um outro publicado em 1940 (LANDES, 1967, p. 283-296), Landes discute o sentido e © lugar possivel da homossexualidade masculina nos chamados candomblés Edison Carneiro, seu principal “iniciador” no mundo dos cultos afro-brasileros, néo cansa de lembré-la do papel secundario dos homens e do sentido de usurpacao a que estéo submetidas as tentativas des- tes em igualarem-se as “grandes macs” Diz ele a Landes: ‘Alguns homens se deb cavalgar etor- rnam-se sacerdotes ao lado das mulheres mas sabe-se que so homossexuais. Nos temples, vestem saias e copiam os me- dos das mulheres e dangam como as mur Ineres, As vezestém melhor aparéncia do que elas (LANDES, 1967, p. 44), Como oficio eminentement mulher (CARNEIRO, 1978, p. 116-117), © candomblé aparece, na leitura de Landes, como sendo constantemente Violado, em sua suposta esséncia, por “homens anormais", que desejam ser como as sacerdotisas negras das casas nnagés. Este desejo se expressa, principal- mente, através da experiéncia do transe, entendido nesse momento como interdi- tado aos "homens normais". Assim, nsiste Carneiro com relago ao transe, F pena que os homens no seiam habil- ‘ads a essa experiéncia, exceto quando normals; imagina-se que seam de ma- ‘éria tera © 0 mais que podem fazer & ddancar nas uas (LANDES, 1967, p. 225) A anormalidade de que fala Car- neiro & a homossexualidade que perverte © “espirito natural” do homem: Diz-se que oespirito do homem esté nas ras, endo voltado para dentro, sabre si mesmo, onde pode ser um instrument os deuses. & sempre “quente”, excitar 0, mundano (LANDES, 1967, 9. 225), Vale ressaltar que, menos que uma nterpretagao isolada e preconceituosa, 0 pensamento de Landes e seus pares sobre a homossexualidade reflete o esta- do das pesquisas ¢ entendimentos sobre © comportamento sexual dos homens em sociedade, em sua época. Assim, 2 homossexualidade ¢ abordada como um Niteréi, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 97 problema em si mesmo, ainda que se aceite a evidéncia de poder (dever) rece- ber tratamentos diferenciados, de acor- do com a cultura & qual estiver submet da, ou por ela produzida: Mas, se a despeito do que pensam Carneiro, Landes e seus pares, a expe- riéncia do transe, bem como o exercicio sacerdotal mostram fortes indicios de crescimento na Bahia de 1939, como pro- teger a “verdadeira relgiao atricana’, js ameacada pelas transformacdes e perdas de grandes lideres, como Mae Aninha, antiga dirigente de um importante ter reito de Salvador? “Matriarcado cultural © homos- sexualidade masculina”,’ é publicado em 1940, em forma de artigo, portanto, an- tes de The City of Women, que éde 1947, suas conclusdes baseiam-senas pesqui- sas realizadas na Bahia. Entretanto, nes- se enos dois outros artigos que o seguem na versdo em portugués de 1967, Landes estabelece uma teorizagao mais clara, in- clusive apontando para elementos de or dem histérica, aspecto menos explorado no texto principal Na Bahia de 1938-1939, a homos- sexualidade masculina, especialmente a homossexualidade dita passiva, transfor- ma-se em elemento importante para analise dos cultos afro-brasileiros. Enten- de Landes que os homossexuais passivos, sujeitos especialmente proscritos da so- ciedade, tém nos candomblés um espa- 0 para reinventar seu status. Na comunidade negra da Bahia, no Br sil setentional, circunstancias incomuns encorajam certos homossexuais passives a forjarum novo e espellads status pare si mesmos, Disso resularam mudangas indWviduais¢ socais importantes e ficeis de obsewar; mas 0 seu especial interesse para a psicologia reside na demonstrar o modo pelo qual um grupo prescrite fez nova adaptacéo, tiando vantagem das roves circunstincas (LANDES, 1967, p. 224) Sexo, transe e desvio aliam-se para configurar outras formas de prética reli- giosa que, opondo-se a verdade nagé, afastam-se dos verdadeiros deuses. Os cultos caboclos sao 0 paradigma desta transformacao, posto que “relaxaram grandemente as restricdes que cercam as maes" (LANDES, 1967, p. 290). Relaxan- do 0s pressupostos fundamentais que organizam o culto nagé, possibilitaram a introdugdo de elementos novos, represen- tados principalmente pela admissio de homens ao posto sacerdotal. De um lado, 0s candomblés nag6s, tinicos elegitimos centrosiradiadores da verdadeirareligido africana; de outro, os candomblés cabo- clos e bantus, l6cus privilegiado de pros- citos e representante da religido detur- pada € da feiticaria A distingao trazida por Landes, en- tre homossexualidade passiva e ativa, serd tratada por outros autores como Peter Fry (1982) ¢ Patricia Birman (1995), ainda que de maneira diferenciada, O que parece fundamental nese momento é menos uma pertinente distingao taxonémica, do que afirmaao de uma especificidade do grupo sacerdotal masculino. De fato, pouco importa se o sujeito é ativo ou passivo em termos de comportamento sexual, jd que é a homossexualidade em si, ou 6 papel sociorreligioso dos homens nos candomblés, o que caracteriza 0 alvo das andlises e criticas de Landes. Se a questéo da representacéo do papel sexual tem alguma importancia, esta pa- DB Niteréi, v4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 rece mais reservada ao interior do grupo do que propriamente ao exterior, mesmo que, na maioria das vezes, seja 0 sujeito caracterizado como passivo tornado mais visivel para a sociedade e elemento cen- tral das anélises. Entretanto, lembre-se que varios pais-de-santo, embora discre- 10s, sérios etc., ndo deixaram de ser no- tados e criticados por Landes, Em Homossexualidade masculina e cultos afto-brasieiros, Peter Fry (1982, 1. 54-86),° apoiado em autores como Ruth Landes, René Ribeiro, Seth e Ruth Leacock, Anaiza Vergolino, Roger Bastide, Artur Ramos, entre outros, e em sua pré- pria pesquisa realizada na cidade de Bolém, Pard, reve a literatura sobre ho- ‘mossexualidade masculina nos chamados cultos de possesséo afro-brasileiros. Su- blinha varios momentos do trabalho de Landes, especialmente aqueles em que ela afirma a proposicao de lideranca “tradi- cional” da mulher nos candomblés baianos, e 0 desejo de ocupacio deste lugar por homens homossexuais (FRY, 1982, p. 60-61). No que tange a homossexualidade masculina nos candomblés para Landes, Fry argumenta que duas principais inter- protagbes sao sugeridas: Primeiro, os hemossexuals passvos ade- rem 0s cutos a fim de desempenhar pads femininos. Segundo, 20 agirdes- sa mane'a, eles podem adquirr presti- gio como lideres rel'giosos, cormpensan- do seu statusde homossexual (FRY, 1982, p. 60). Nao vou me deter aqui nas muitas, querelas em que as idéias de Landes esti- veram envolvidas. Para o que objetivo tra- tar, basta dizer que ela identifica, princi- palmente, homens homossexuais nos candomblés e que os classifica em “ho- ‘mossexuais passivos” e “homossexuais ati vos”. € precisamente sobre esta distinggo que Fry desenvolve sua argumentacao Aproximando os conceitos previamente formulados, do campo de representacoes dos religiosos ~ 0 que decisivo nesta construgao -, propdem um outro olhar sobre a matéria, Assim, diz ele, com rela- {00 tratamento dispensado por Landes 2 evidéncia da homossexualidade nos can- domblés baianos: Baste outro problema relative caracte- rizacao de Landes do papel sacerdotal no candomblé aiano come sendo tradicio- nalmente feminine. Podemos tomar 2 afirmagio de Herskovis de que tradicio- nalmente isso ndo acontece nem mesmo na Attica ocidental. Entretanto, 0 fato é que a maioria dos membros do cult so mulheres, ¢ mesmo se Landes est era- da em insistr que © papel sacerdotal 6 cexclusivamente ferinina, as mulheres certamente dominar os cutos,€ afi aceitar © argumento de Landes porque dla trata o assim chamado homossoxual passivo como se fosse “pior” ainda do que uma “mulher de segunda categoria". No- vvamente, seu argumento paderia ser res- gatado se ela tivesse sido capa de citar as opinioes das pessoas envolvidas (FRY, 1982, p. 64-65). ‘Aabsoluta valorizagao do campo de significacées construido a partir dos dis- cursos dos atores socias faz toda a dife- renga na perspectiva proposta por Fry, se comparada a utilizada por Landes. Espe- rondo ser demasiadamente simplificador a0 tentar decidir por algumas poucas pro- posigdes tedricas contidas neste trabalho de Peter Fry. Para mim, uma de suas con- tribuigdes mais significativas & possibil- Niteréi, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 99 tar 0 exercicio de “desnaturalizagéo’ de idéias geralmente aceitas como tendo um sentido universal. Talvez hoje o valor pedagégico mais relevante de seus ensinamentos ja tena sido incorporado pelas geracoes de antropdlogos e cien- tistas sociais que o seguiram ~ se bem que, nao raro, somos tentados a cair nas armadilhas do etnocentrismo e da natu- ralizacéo Tendo como objeto de andlise 2 ho- mossexualidade masculina e os cultos fro-brasileirs, Fry nos leva a perceber como outros conceitos sao forjados no campo, pelos atores sociais em suas ex- petiéncias cotidianas, e como esses “no- vos" conceitos se aproximam ou se afas- tam de concepgées mais generalizantes Ele discute, baseado principalmente no casal Leacock," a percepsao da homosse- ualidade masculina nos cultos de Belém, e conclu: (0 terme homossexual em portugués, en- teetanto, éraramente usado no contexto dos cults, Sia muita mais comuns os termos “bicha’ fresco" © "vada, Desses termos, 0 mais usado € icha" (FRY, 1982, p. 67) pederasta A partir dat, Fry empreende uma andlise do termo “bicha” no contexto dos terreiros. Uma divisio interna que utiliza ‘a mesma terminologia relacionada ao ato heterosexual é percebida no mundo mas- culino, entre agueles que “dao” e aque- les que “comem”. De um lado, 05 “ho- mens", os "machos", 05 “garanhées” ou “Tanchées"; de outro, as “bichas” (FRY, 1982, p. 68). Ressalta Fry que “a palavra homossexual’ é uma tradugao inadequa- da para qualquer dos termos usados” (FRY, 1982, p. 68). Considerando as vcis- situdes da idéia de “bicha” no cenério dos terreiros, isola categorias como *ho- mem”, “homem verdadeiro”, “bicha ver- dadeira” e “bicha incubada’. Nao parece necessario aqui nos determos nas signifi- cages que cada uma destas categorias encerra, Na realidade, o queimporta, por que recorrente em termos de representa- 0 coletiva, & a expressiva relagio entre candomblé e homossexualidade mascu- lina ou “bichice” ‘A discussao de Fry sobre a homos- sexualidade e os cultos afro-brasileiros permite acompanhara transformacao de ‘uma categoria francamente marginal - a homossexualidade masculina ~ em algo com alguma carga simbélica positiva ~ ou contribuindo sobremaneira para esta conformagio -, exoressada, em ultima analise, no exercicio sacerdotal dos co- nnhecidos pais-de-santo (FRY, 1982, p. 76- 77). Taluez possamos dizer que 0 traba- tho empreendido por Fry coloca a questo da homossexualidade masculina no Universo religioso afro-brasileiro en ou- tro patamar. Ele desloca 0 foco do emi- nentemente negativo, marginal ou excludente, tipico da leitura de Landes, para um viés mais positivo e, o mais im- portante, entendido como relevante para a formacao de um campo legitimo de representaco do universo religioso afro- brasileiro. Ainda que admitindo boa par- te das caracteristicastipicas das margens como tendo positividade (DOUGLAS, 1976), a homossexualidade masculina agora referida 8 “bicha”, incorporada teoticamente ao universo afro-brasileiro como algo que, em vez de ser banido do campo que constitui a verdadeira regio, deve ser levado em conta como constitutive deste campo ¢ compreendi- do seu significado e extensao, TOO Niterbi v4, 2, p. 95-117, 1. sem, 2004 A continuidade da discussie do tema da homossexualidade e os cultos afro-brasileiros leva Patricia Birman a re- tomar algumas questdes consideradas por Landes, Fry e outros. Em identidade social e homossexualismo no Candomble, Birman (1985) aprofunda a idéia inaugu- rada por Fry (1982), segundo a qual “ho- mossexual’ e “bicha” nao sdo sinonimias necessérias. Trabalhando com referén- cias rituais— como filiagdo mistica—e pes- soais - como representacao da definicao sexual do sujeito -, dispostas em um con- junto diversificado de configuragdes pos- siveis, Birman propée um entendimento da problematica da homossexualidade nos terreiros, tomando como elemento- chave a categoria nativa adé. Diz cla Um homem “lho” de um ord Femini= ro, na medida em que incorpora esse ord "exbe” jetose trejetosfemininos, asso, pols, 2 ser considerad "bicha".(.) Neste caso estaremas diante de categoria ‘adé" que € 0 nome através do qual se designa o homem visto come a "bicha” que pertence ao candomblé (BIRMAN, 1985, 9). Birman conclui que, "se ha ‘bichas’ hd as ‘bichas do candomble’, os ‘ade’, cujas ‘frescuras’, objeto de olhares ec «as rancorosas, se realizam com a prote- Bo dos orixés" (BIRMAN, 1985, p. 9) Com efeito, a categoria adé nao pa- rece coincidirinteiramente com o concei- to de homossexual, concebido de forma “universal”, Hd uma especificidade nesta representacéo, que & prépria do grupo onde o conceito se origina. A meu ver, a palavra adé deve ser vista mais como uma Giria cu um neologismo, do que propria- mente um vocébulo que traduz um sentido original preciso. Cacciatore (1977) sugere, como conceitos nativos (iorubas) para homossexual, “adefanté” (CACCIATORE, 1977, p. 36) ¢ “adofiré” ou “ad6" (CACCIATORE, 1977, p. 37) Ela faz derivar as palavras, como € comum em seu trabalho, de um amélgama, por vezes incompreensivel, de outros termos, ‘que torna pouce confivela etimologia por ela sugerida. Outros dicionérios, como o de Fonseca Jinior (1983), por exemplo, nao trazem nenhum dos ver- betes encontrados em Cacciatore para designar homossexual. De qualquer ma- neira ~e € isto que, de fato, interessa -, o termo adé é de uso frequente nos can- domblés para significar sujeitos com uma suposta orientagao sexual homocrética, ‘ou que exibem algumas formas estereo- tipadas de comportamento. Em Fazer estilo criando géneros (BIRMAN, 1995), fruto de sua tese de douramento em antropologia, em 1988, Patricia Birman aprofunda a discussio ini- ciada em 1985 e propée algumas “solu- es" para a questéo da homossexuali- dade masculina nos terreros de umbanda ecandomblé Considerando alguns aspectos le- vantados por Landes, Birman revé 0 lu- gar de mulheres e homens nos cultos afro-brasieios. Diferentemente da antro- péloga americana, que via no transe dos homens a expresso de desvios socias, sexuais € psicolégicos, Birman (1995, p. 113) sugere quea possessio é um im- portante elemento na operagao da dis- lingdo entre os géneros. Ela (possesséo) forja, na experiéncia religiosa, novos es- tilos e categorias que nao sao idénticos a conceitos aparentemente equivalentes. Assim, a pergunta que ird responder & Niteréi, v. 4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 101 0 terms “adé", que é uma categoria de agénero produzida pelo sistema religioso, € recoberto pela idéia de "bicha", tal como socialmente amplamente se usa? (EIRMAN, 1995, p. 60) 0 vigs etnocéntrico, que admite a homossexualidade como um problema universal, € substituido por uma leitura particularizada do campo onde ela se pro- duz, ou se re-produz. Assim, diz Birman: © que quero propor aqui nao ¢, evidentemente, que o candomblé tenha inventado” o desejo homossexual, mas que, como qualauer instityigao, cria modos e possiilidades de esse e outros desejos existrem, com a caractersicas que apresentam em tal ou qual sociedade (GIRMAN, 1995, p. 73) ‘A fungao masculina, praticamente desconsiderada por Landes, é revista por Birman, que percebe um estatuto de positividade de sujeitos antes “proibidos" de se expressar. A possessao, no mundo dos homens, opera uma distincao e pos- sibilta a ctiagdo de um outro género, 0 adé. & sobre esta nova categoria de gé- nefo e suas conseqiéncias que Birman concentra a maior parle das elaboracées teéricas. Homens © adés ganham, nesta petspectiva, um valor muito mais signifi- cativo do que tinham na Bahia de Landes e Cameiro. Eles, agora, so parte neces- séria ou estruturante do campo de repre- sentacdes do universo religioso afro-bra- sileiro, concorrendo para sua afirmacao, com 0 ja bastante sedimentado mundo das mulheres. Se em Landes 0 sujeito homos- sexual & varias vezes marginal, em Fry e fem Birman ele goza de um novo e posit- vo status, Sua condicio sexual no somen- te € reconhecida como possivel, como ajuda a formar 0 proprio campo religio- so afro-brasilero, sendo percebido como elemento indissociado e indissociével dos demais componentes do sistema sociorreligioso, portanto, com funcdo estruturante. Penso que a principal “solusao” te6rica pata a questo da homossexuali- dade masculina e 0s grupos religiosos de matriz africana no Brasil, e que pode ser solada a partir das discussoes de Frye Birman, é a admisséo desta como parte constitutiva e imprescindivel do capital simbélico dos tereios. Representantes de um género distinto, os adés s4o vistos como integrados e necessarios a dindmi- ca dos grupos, pelo menos quando se tem por certo que, qualquer que seja a pro- posigao teérica, ndo se pode abarcar, se- nao, uma parcela do “todo”. Seguramen- te outras configuragées poderso ser encontradas em grupos estruturados de maneira diferente, especialmente naque- les considerados “tradicionais”, a exem- plo dos principais tereiros abordados por Landes. Nesse momento, a figura do adé pode gozar de um lugar distinto na con- figuragio do campo, em termos de re- Por outro lado, néo posso ignorar © fato de que, no que tange as represen- ta6es sobre as expressoes possivels de sexualidade presentes na sociedade, existe uma estreita relacdo entre homossexual- dade e religiées afro-brasileiras. Soma-se a isso a representacao do candomblé como um espaco de aceitagio de todas as diferengas e de acolhimento dos mar- ginalizados e excluldos. Assim, no can- domblé, a homossexualidade parece en- contrar um lugar onde pode mesmo se expressar criativamente, seja através dos FOZ Niterbi v4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem, 2004 atributos magicos dos pais-de-santo, seja através das incontaveis habilidades artis- ticas, culindrias e estéticas, além da dis ponibilidade afetiva, constitutivas do ima- ginario sobre os filhos-de-santo. Homossexualidades em tempos de AIDS Com as discussées, principalmente de Fry e Birman, a problemstica da ho- mossexualidade nos grupos religiosos de candomblé ganha configuracéo mais par- ticularizada, uma vez que atualiza, a par- tir do campo, categorias pensadas em termos universais. Outros autores conti- nuam e ampliam esta discusséo. ‘A pesquisa para 0 doutorado per- mitiu retomar alguns aspectos das discus- ses sobre homossexualidade e grupos religiosos afro-brasileiros. Mas foi apenas transversalmente que pude, em um pri- meiro momento, me ocupar da questo da homossexualidade nos grupos religio- sos de candomblé. Trabalhando com a temitica da epidemia de HIV/AIDS e os candomblés, fui levado a desconfiar de que a evidéncia da infeccao pelo HIV de sujeitos avaliados como homossexuais, bichas, gays ou adés, aliada 8 inseparavel idéia de promiscuidade de que esto revestidas as significagées, alterava o status que esta "categoria de género” havia conquistade em algumas produ- es. Suspeite! que, com o aparecimento da AIDS, houveum certo “descolamento” da representagio que se faz da homos- sexualidade masculina —ou do que se tem por adé, para utilizar uma categorizagao nativa — de uma conformagao estrutural aparentemente segura, pelo menos para uma determinada versio do candomblé {ede outras manifestagies eligiosas afro- brasileras) Ainda que entenda, e concorde, coma nao coincidéncia necesséria entre 08 conceitos de homossexualidade rmas- culina, de um lado, “bicha" e “adé" de outro, admito que eles nao se limitam a uum tinico espago de representacao eque, no raro, permutam-se nos discursos par- ticulares, de acordo com o que se quer fazer representar. £ assim que Tereza © ‘Ana duas mulheres entrevistadas quan- do da pesquisa de campo - puderam evo- caras categorias "homossexual” e"gay’, respectivamente, para falar de “homos- sexuais ativos”, “homossexuais passivos”, “bichas’, “adés’, “veados", e quanto mais houvesse para fazer entender um tipo de orientagdo sexual presente no universo dos candomblés. Por outro lado, é operande com uma distinggo interna que Augusto, ou- tro entrevistado, diferencia (e se diferen- Cia) sujeitos religiosos com orientacso sexual homoerdtica. Assim diz ele sobre as “bichas' (ritual do candombia} om si festa poe biica, € um grande encontra. As pessoas se paqueram multe; todos os tipos de descjo sto expitados, Eas pessoas gos- tam disso. Eas bichas em particular, os homossexuais mais afetados, adoram dar pinta, gostam de chamar a atencSo do ‘outta, Isso me incomoda Relegando a AIDS ao universo dos “ads” ou das “bichas pintosas”, ele del- mita fronteiras, a0 mesmo tempo em que evidencia um lugar nao domesticado — mas domesticével - para uma sexualida~ de admitida como possivel Niteréi, v. 4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 103 Se, relativamente & homossexuali- dade masculina e grupos religiosos afro- brasileitos, ha bons materiais de pesqui- sa e andlise, com relacdo & sexualidade feminina nos terreiros, nada ou quase nada parece existir, no que tange a pro- duces académicas. Vale lemibrar que Ruth Landes, por exemplo, se limita a re- gistrar rapidamente um incidente de cu- iho sexual ocorrido entre duas sacerdo- tisas do candomblé do Engenho Velho, uma delas, Totinia, candidata ao posto de lider daquele terreiro (LANDES, 1967) Nenhuma consideraco mais apurada, exemplo do que se vé sobre os casos de homossexualidade masculina tratados pela autora de A cidade das mulheres, é dispensada a este episodio vale lembrar algo fartamente apontado na literatura sobre identidade, género e sexualidade no tocante as expressdes afetivo-sexuais das mulheres? e que, de certa maneira, parece organizar © pensamento de Landes ¢ alimentar idéias ¢ comportamentos contempo- rdneos. Dessexualiza-se a mulher e exclu a sexualidade feminina (com sua variante Iésbica) dos agenciamentos afetivo- sexuais possiveis. A invisiblidade destas expresses € uma consequéncia do processo de dessexualizacao/exclusao do desejo feminino e parece resistir mesmo fem grupos organizados de maneira peculiar, onde as sexualidades poderiam ser expressadas de maneira mais livre como, supostamente, nos grupos de candomblé Assim, a invisibilidade das exores- s6es sexuais das mulheres, que cansti- tuem parte expressiva do contingente do povo-de-santo, pode ainda ser sentida, e 06, indiretamente, principalmente, quan- do nenhuma representante deste grupo € apontada como portadora do HIV, doente de AIDS, ou tendo morrido em consequiéncia dela, como pude consta- tar em minha pesquisa. A despeito da configuracao atual, segundo critérios estatisticos e anzlise dos indicadores so- ciais por érgéos oficiais e organizacbes no-governamentais, a epidemia de HIV/ AIDS continua circunscrita, imaginaria- mente, ¢ para um detetminado segmen- to social, ao mesmo universo de repre- sentagdo de vinte anos atris. Por outro lado, em espacos distin- tos, reivindica-se © reconhecimento de uma identidade plena e solidamente constituida, na base de categorias Universalist. Assim 6 que em um encon- tro promovido pelo Centro de Cultura Negra do Maranhéo, em 2002,* um jovem pai-de-santo, ao ser induzido © ver como sinénimo "veado” e "homosse- xual”, mostrou-se profundamente irita- do, e prontamente rejeita a hipotese de ser classificado pelo primeiro termo. Fle quer ser identiticado e respeitado como homossexual, ndo como “veado”, “bicha” ou “ade”. No que acrescenta, jocosamen- te, outto participante do evento: "Veado 8 no mato, bicha d4 na barriga de crianca; homosexual dé em qualquer lugar”. Nao quero dizer com isto que a categoria homosexual, reivindicada pelo pai-de-santo para fazer entender sus ori- entacao sexual, sirva, interna e exter- namente, sempre, para significar todas as situacées vividas por ele, inclusive as experincias rellgiosas. E posstvel que, em alguns momentos, categorias como adé, especialmente da maneira como construida por Birman (1985; 1995), se- jam mais adequadas para significar os eventos. Entretanto, €por outio signo que © pai-de-santo quer fazer compreender sujeitos esituages, 104 ‘iter, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 Da mesma forma que o pai-de-san- to “exige” ser chamado de homossexual, endo de “veado”, “bicha” ou “adé”, uma fitha-de-santo quer ser chamada de lés- bica, e nao de “rocona” ou “sapatao" Presente também a0 mesmo evento, & aproveitando a fala do pai-de-santo, uma militante do Movimento de Lésbicas (sic) @ adepta do candomblé reivindica vsibi- lidade e respeito, também, nas comuni- dades religiosas (sid). Comparando a tra- jet6ria da homossexualidade masculina e feminina na sociedade brasileira como um todo, €em varios grupos sociais, ela pede aos sacerdotes presentes © demais "ir mos” uma reflexdo sobre o preconceito com relacdo as lésbicas e mais espaco para discussao c visibilidade nos terrci- ros, © que é recebido com calorosos aplausos pela platéia. Entretanto, ainda que varias sacerdotisas e mulheres de di- versos niveishierdrquicos do candomblé, com prética homossewval, “sabidamente” ou “por ouvir dizer”, estivessem presen- tes, nenhuma delas se manifestou em explicito apoio & reivindicacao, ou se iden- tificou publicamente com a categoria sugerida Mas, se € verdade que @ homos- sexualidade masculina conquistou, se comparada a sua verso feminina, alguns espagos na sociedade, pelo menos em ter mos de maior tolerdncia quanto a sua ex- pressio, ao mesmo tempo, se colocou mais a descoberto para situagoes crticas que envolvem avaliacao ¢ julgamento Nos grupos de candomblé, relativamen- ted epidemia de HIV/AIDS, a expressiva e mesmo desejada visibiidade das orienta- es homoeréticas parece ter reacendido algumas suspeitas que recaiam “primiti- vamente” sobre o cardter dos sujeitos, algo aparentemente jé bastante confor mado ou absorvido pelo sistema, Neste momento, aspectos imaginérios de con- formacao da homossexualidade, percebi- dos como fonte de poder e prestigio, como bem mostraram Fry (1982) ¢ Birman (1985, 1995), sao identificados como fonte de perigo e destruigéo. Ain- da que no menos poderoso, o sujeito a0 qual a representacio se liga no pare- ce mais gozar do status que gozava an- teriormente. A principal fonte de perigo = prestigio e poder em outro momento @ “coincidentemento uma das mais re- levantes representagbes externas da AIDS €a promiscuidade a que, supostamente, se entregam as pessoas atingidas pela doenga. A partir daf, procede-se a um julgamento e avaliacéo do sujeito como um todo, ¢ isto sendo vaiido tanto para dentro, quanto para fora do candomble. As répidas transformacées pelas uais o mundo tem passado nos iltimos tempos, principalmente marcadas pelo processo de globalizacéo, estimulam fever o lugar dos sexos e dos géneros no universo religioso afto-brasilero, a exem- plo do que fez Peter Fry com a homosse- xualidade masculina, em 1974, em um primeiro esboco do que vria a ser o art- go "Da hierarquia & igualdade: a cons- trugao histérica da homossexualidade no Brasil” (FRY, 1982). Homens e mulheres revisitados Um desdobramento possivel de al- ‘gumas discuss6es propostas no trabalho de tese deu origem a outa investigacéo, desta ver tendo como preocupacao cen- tral aspectos de identidade, sexualidade e género de homens e mulheres vincula- dosa grupos religiosos de candomblé na cidade do Rio de Janeiro, Desenvolvido Niteréi, v. 4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 105 no Programa de Pés-Graduagio da Esco- la de Servico Social da Universidade Fe- deral Fluminense, efinanciado pela Fun- dago de Amparo & Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro — FAPER) ~ através do programa de Fixagao de Pesquisador, estudo encontra-se em fase preliminar de andlise e complementacio de dados. Tem por finalidade explorar, principalmente, as representagées sobre a homossexuali- dade (masculina e feminina) entre o cha- mado povo-de-santo, através de pesqui- sa bibliografica sobre a tematica religiosa afro-brasileira no que concerne sexuali- dade e género e pesquisa de campo com enfoque sobre questdes ligadas & homos- sexualidade, buscando apreender como se constituem ¢ de que forma se apre- sentam no cotidiano dos grupos religio- sos de candomblé 05 primeiros resultados permitem apontar algumas tendéncias que, pos- sivelmente, se revelardo mais consisten- tes em um futuro préximo. Proposicées teéricas que permitem habilitar sexuali- dades tidas por “desviantes", ainda que sustentem, ou a elas agreguem, uma sé- rie de principios certamente hoje aceité- vels para a maioria dos cientistas sociais, principios que apontam para perspecti- vas relatvistas, de valorizacao das singu- laridades culturais e das “categorias nati vas", ndo se mostram, sempre, adequadas para dar conta de um ntimero expressive de significacoes Aanilise da construcéo dos princi- pais discursos sobre sewualidade e gru- 0s religiosos de candomblé permite con- luir por um pressuposto de visibilidade © positividade relativa 8 sexualidade de homens, contrastando com uma certa manutengio da invisbilidade das expres- ses da sexualidade das mulheres, Entre- tanto, em muitos momentos, 0 campo sinaliza para algo distinto, e mesmo con- trario a0 que se tem por evidente. Toda a discussdo que atravessa o discurso de Landes, Fry, Birman e outros permite es- tabelecer um lugar relativamente seguro para a sexualidade, especialmente em se tratando da homossexualidade masculi- na nos grupos de candomblé, Mesmo em Landes, hé algo de positividade na esco- tha sexual dos “invertidos”, principalmen- tecaso se considere a perspectiva da cons- trugdo de “novas” categorias de sujeitos que forjam na estrutura social lugares € producées que, aos poucos, se consoli- dam como formagées sociais possiveis 0 exercicio pretendido de revisitar homens e mulheres religiosos recoloca em cena homens ¢ mulheres sexuados, com- portando-se e significando suas préprias priticas e pensamentos, assim como as de seus pares. Ao que parece, &a expres- so da sexualidade dos homens que (ain- da) continua a dominar o discurso de ho- mens @ mulheres religiosos, Melhor dizendo, éa homossexualidade masculi- na que assume posicao de destaque quando se pensa em homens, mulheres, sexuelidades e universo religioso; ela & constitutiva da estrutura religiosa, como bem perceberam Frye Birman, masa én- fase em um ou outro aspecto do que compée 0 continuo seré determinada pela forma peculiar como ela se apresen- tana realidade, tendo em conta as par cularidades dos momentos e das produ- Bes sécio-histéricas No didlogo com Ruth Landes, Pa- tricia Birman traz para o jogo de nego- ciagbes, que articulam perspectivas de gé- nefo, homens que haviam sido excluidos (ogicamente) do processo de construcéo do campo religioso afto-brasilero, Birman 106 ‘iter, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 executa uma manobra, em certo senti- do, oposta a de Landes, a medida que reincorpora, porque atribui estatuto de positividade estrutural, sujeitos homos- sexuais banidos do esquema légico da an- tropéloga americana, que imagina um continuo que comeca ¢ (quase) termina apenas na mulher. Relegado ao papel de coadjuvante, de estrangeiro ou de mero espectador, 0 homem € pensado por Landes como o elemento que possibilita evidenciar a diferenca entre os sexos, pela obviedade da descontinuidade entre cor 0s, ea supremacia da mulher, expressa~ da, em iltima analise, na particularidade da formagéo social de alguns grupos de candomblé na Bahia dos anos de 1930, e que cla entende ser expressio de um matriarcado cultural. Assim, em um dos extremos esta colocada mulher; no ou- tro, muito distante, um homem. Em Landes, 0 que realmente tem valor & a mulher e suas producées. Matriarcado, homens sem importancia, mulheres po- derosas; as “bichas” sao expresso de sujeitos doentes e esto fora do mundo de deuses (e mulheres) verdadeiros Com Birman, hé uma importante mudanga na concepgéo do campo pos- sivel de significacao do universo masculi- no. Ela traz de volta os homens; traz os "homens mesmo”, porque advoga a necessidade bingria (estruturalista) que nao pode prescindir de um dos termos, reabilitando (ou habilitando) também a bicha (ou 0 homossexual), através da categoria adé. Diferentemente de Landes, seu esquema teérico pressupde mulheres @ homens (de verdade, nenhum coadjuvante), bem como categorias intermedisrias, como os adés, Mas parece que temos uma outra configuracao em andamento, Acvidéncia da homossexualidade masculina, admitida como estrutural e estruturante do campo religioso afro-brasileiro, ou pensada por um viés teérico menos determinista, possibilita tomé- categoria analitica central e fazer dai derivar todo o sentido expressado pelo campo quer confirmando seu status, quer negando, Entretanto, a andlise do material parece apontar para uma interro- gacdo eterna sobre todas as expressoes 'vo-sexuais de homens religiosos (de candomblé); nesse sentido, o que estd em jogo é a visibilidade ou nao da expresso homossexual tomada como elemento central de referéncia do préprio campo. Diferentemente do que se poderia pensar, caso se tome um continuo construido em uma oposigéo bindria do tipo homem-mulher, aqui o que se colo- a 6 uma continuidade de outra nature- 2a, na qual 0 operador de distingao re- duz-se 2 um dos pélos. Neste momento, pensa-se em um continuo formado pe- los extremos adé-ogam, sendo o segun- do termo apenas aproximadamente equi- valente 8 categoria hamem. Ogaméuma categoria de iniciados masculinos nao passiveis de transe que, em geral, se ocu- pam dos sacrificios animais, da orques- fra ritual e de outras fungées de cunho religioso ou civil Se, em Landes e em Birman, o ope- rador légico de distingdo entre os sexos & a possibilidade ou no da experiéncie do transe de possessio, temos agora uma interrogacao sobre a possibllidade ou no de expressdo de comportamentos homoerdticos para toda a sorte de ho- mens, A distingao cléssica entre rodantes (sujeitos passiveis de transe de possesséo) € néo rodantes (genericamente ogam, para os homens, e equede, para as mu- Niteréi, v. 4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 107 theres) precipita, no caso dos homens, possibilidade de explictacao de tendén- cias homeréticas. Se, coro diz um dos entrevistados, dos rodantes nao se tém diividas sobre as inclinacdes sexuais (homoeréticas), “s50 todos mais ou me- nos veados, mais ou menos adés”, para 05 no rodantes, uma aura de descon- fianga se estabelece, porque les so mais frutos da suspeita poraue no terri 0 interessante € a choch: [comentirios maldosos, maliciosos, cit cas],0 faze rit, provocar o que é Aitério, © incoerente (.) Pra mim a his- ‘tora € 05 que sio assumidos e os que ro so; sejam eles ogans ou iaés, ou rodantes nt Invertendo Landes, nao se pergun- ta aqui pela mulher (ainda que se possa pensar em feminino). De certa maneira, parece que a homossexualidade goza de certa autonomia, uma vez incorporados aspectos de ambos os extremos da linha (mulher-homem), Assim, 0 operador de distingao é a prépria expresso homoeré- tica, no que diz respeito as formas como ela se apresenta. Assim, 0 campo parece apontar para uma formagdo em trés gran- des categorias: adé, “gay” ou homosse- xual e ogam. Note-se, entretanto, que ‘ogam nao tem uma equivaléncia neces- séria com homem (que forma, em um outro modelo, par necessério com a ca- tegoria oposta mulher). Lembre que, se- gundo o entrevistado, o homem-ogam também € motivo de interrogacao. Por outro lado, a categoria adé, como bem demonstrou Birman, é algo que se dife- rencia das categorias feminino e mulher, embora guarde alguma relagao com elas, COutra questo importante, e que es- tabelece um didlogo com a teoriajé pos- ta, 6a que relatviza a positividade do adé Olhando para a trajetéria sobre o lugar possivel das expressbes afetivo-sexuais de homens e mulheres no mundo dos can- domblés e, em especial, para o que hoje se entende por expressbes ou orientacoes homoerdticas, vemos uma espécie de ha- bilitacao (ou reabilitacdo) de categorias de sujeitos tomados inicialmente como “ desviantes”. Este primeiro momento pa- rece coincidir com as formas avaliativo- morais a que foram submetidos idéias comportamentos, e que vincularam su- jeitos religiosos (e nao religiosos) a classi- ficacées negativas e patolégicas © desenvolvimento subsequente do entendimento do campo religioso afrobrasileiro leva a uma espécie de relativizacao de conceitos e & revisdo de proposicées, superando dificuldades te6rico-metodolégicas caracteristicas de momentos sécio-histéricos particulares, através da construgdo de novos modelos explicativos. Articulando uma série de posigGes teéricas, rman (1995) redefine conceitos e estabelece, para os “inverti- dos” da primeira metade do século XX, uma nova posiglo de género, expressa- da pela categoria adé. Ainda que admi- lindo boa parte da caracterizacao de andes, para os homossexuais passivos da Bahia dos anos de 1930, para fazer entender os adés dos candomblés cario- «as, cinguienta (ou sessenta) anos depois, Patricia Birman encontra um lugar "se- guro” para eles na estrutura légica da organizagao dos terreiros. Seja por tomar como ponto central para suas construcées teéricas o transe de possessao, seja por pensar o lugar de homens e mulheres no contexto religio- so dos candomblés, Landes © Birman tormam visivel (e discutivel) a evidéncia FOB Niterbi v4, 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 da homossexualidade entre 0 povo-de- santo. Mas, se para a primeira, a ho- mossexualidade masculina & estranha a verdadeira expresséo religiosa de inspira- ao africana no Brasil, os candomblés nagés, para a segunda, ela constitu e é parte indissocidvel do préprio campo religioso afro-brasileiro, qualquer que seja oestatuto de verdade que se tome como parmetro de anélise. © campo atual sugere que adé esti colocado no extremo de um possivel con- tinuo, incluido no todo, mas quase sem- pre apontando para o outro, o de fora, © estrangeiro, 0 que mente, o “equa” Como informa um entrevistado, “[no seu terrciro] Adé ninguém usa. £ uma cate- goria para classificar 0 outro. Se chega alguém de fora, ai vai dizer: ‘aquele é adé, aquele nao é adé’. Mas para se autoclas- sificar praticamente nao". Em parte se assemelhando as leituras de Landes Birman, o adéé concebido por um entre- vistado “como homossexual, geralmente aferninado, mas no necessariamente, Se vocé tem suspeita de que alguém, mes- mo nao sendo efeminado, mas que seja homossexuall, voc8 vai usar adé também, e muitas vezes pra ogam: ‘aquele ogam 6 adé’, pode também acontecer”. Mas, ‘em parte, as evidéncias parece contra- riat 0 estatuto de positividade derivado da elevacdo de adé a uma categoria de género. Na verdade, as significagoes do campo parecem oscilar entre perspecti- vas ora mais positivas, ora mais negati- vas, no que tange & tematica da homos- sexualidade nos terreiras, Tais oscilacbes desenham um quadro de aparente con- tradigdo, 0 que, de certa maneira, pode ser inferido das produces teéricas sobre a matéria, Entretanto, ndo se pode es- quecer que 0 que est no centro da categorizagio proposta por Birman é, em Ultima andlise, o transe de possesséo, como possibilidade de operar distincdo entre os sexos. Talvez se possa afirmar que, na légica de que se vale Bitman (e Landes), 0 feminino (e por extensao o adé) caractetiza o candomblé, j que este apre- senta como principal diaeritico, relativa- mente a outras expressées religiosas, © transe de possessio. Ao que parece, as proposicées teé- ricas de Birman nao eliminam os princi- pais tracos negativos associados 8 expe- riéncia do transe, por homens, na Bahia dos tempos de Landes. Mais do que isso, ‘opréprio campo parece se nutrir das con- seqéncias da aplicacio da “légica do transe" para se reorganizar e se dinami- zar. Uma breve anélise de aspectos pre- sentes no &mbito desta pesquisa permiti- 180 levantamento de algumas hipéteses ¢ interrogag6es sobre novos arranjos pos- siveis sobre o universo afro-brasileiro, no que tange aos aspectos de sexualidade, identidade e género. ‘A anélise mais cuidadosa de algu- mas formacées discursivas de um dos entrevistados talver nos permita especu- lar sobre algumas formas de organi- zacio do campo de representacdes da thomo)sexualidade nos terreiros. Discor rendo sobre as peculiaridades do terreiro de candomblé do qual participa, no que concerne as possibilidades de iniciagao"* de homens e 8 exibicao publica do tran- se, 0 entrevistado, que passarei a deno- minar Jorge,"' explica que em sua casa (terreiro) seu pai-de-santo, isto é, 0 sa- cerdote do templo, nao inicia um homem que tenha como orixé principal uma di- Vindade ferinina, O entendimento que Jorge tem para 0 comportamento do pai-de-santo baseia-se, segundo afirma, na prépria argumentacao fornecida pelo Niteréi, v. 4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 109 sacerdote. Em primeiro lugar, néo se tra- ta de por em andamento algo da ordem cde um impediment estruturante do cam- 0 religioso em geral, que excluiria do processo inicstico homens flhos de orixas femininos, A questo que se coloca pare- ce ser de ordem mais pessoal, mas, nem porisso, menos fundamental, erepresen- tante de um campo possivel de significa- Goes. Para o pai-de-santo de Jorge, a opcao por iniciar orixas femininos na cabega"* de homens repousa em uma espécie de tentativa de controle de situa- Bes indesejadas que este tipo de inicia- 0 poderia provocar. Para o sacerdote, no ha, para ho- mens e mulheres em geral, qualquer im- pedimento de ordem magica que justifique a ndo iniciagao de uma pessoa ue tenha como divindade principal um orixé de sexo oposto ao seu sexo biolégi- 9, isto é, nada impede que um homem seja iniciado para um orixd mulher, ou vice-versa. Nao raro, encontramos esta no coincidéncia entre “sexo mitico” sexo bioldgico."? Assim, Maria ¢ filha (iniciada para) de Ogum (deus do ferro e da guerra), Ana é filha de Xangé (deus dos trovées), Cristina é filha de Oxoss (deus da caca e das florestas) etc; da mesma forma, Luiz ¢ filho de lemanjé (deusa das Sguas salgadas, do mar), Augusto éfilho de lansa (deusa dos raios e das tempestades), Nilton é filho de Onur (deusa dos rios e das Sguas doces) etc, Nada de excepcional nestas vincula- bes entre as divindades e seus filhos. ntretanto, assim como ocorre com 0 sexo biolégico, alguns elementos exter nos caracterizam os sexos miticos, pelo menos em suas aceps6es mais tipicas ou estereotipadas. Assim, aos deuses masculinos sao atribuidos caracteresviris, pesados”, violentos etc.; as divindades femininas, a suavidade, a “leveza", a docilidade, a sensualidade etc. A possibilidade de leitura do fend- meno do transe no candomble leva em consideragéo, principalmente, suas qua- lidades externas, como a performance exi- bida pelo iniciado no momento da pos- sessdo pela divindade. Uma série de elementos se alia na configuragéo e na transmutagio do ser humano na divin- dade - na transmutacao de Maria em Oxum, Francisco em Xangé ou de Joana fem Obaluaié ¢ Cristiano em lemanja. To- mam parle neste conjunto de dispositi- vos capazes de fazer entender ¢ avaliar 0 transe vérios elementos, ao mesmo tem- po centrais e perféricos: postura corpo- ral, gestos, sons, movimentac3o no es- aco, indumentéria. Tudo isto participa da exibigdo de uma performance na qual ciindividuo deve ceder lugar & divindade Esta (divindade), uma vez “encarmada” no corpo do iniciado, deve poder ser distinguida deste, agir por sua propria vontade, exibir suas peculiaridades, sob pena de comprometer a certeza da vera~ cidade de sua manifestagéo. Curiosamente, & a essa dindmi- ca que © pai-de-santo se reporta para negar-se a iniciar homens para orixss ferininos. 0 transe, como possibilidade de transmutagéo, deve suprimir elemen- tos caractersticos daguele que Ihe serve de veiculo e inaugurar novas formas de exibigdo de comportamentos préprios da condigdo sexual e de género da divinda- de encarmada. Mas por que somente os homens sao impedidos de se iniciarem para divindades femininas? Por que o 110 ‘iter, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 ‘mesmo nao ocorre com as mulheres que podem, sem qualquer objecao, ser ini- ciadas para divindades femininas ou mas- culinas? Ea possibilidade de exibicéo publi- ca de caracteristicas sexuais e de género tipicas das divindades femininas, através do transe de possessio, que impede aini- ciagéo, pelo pai-de-santo de Jorge, de homens filhosde “santo mulher”. Porque se vocé dehxa o santo fazer tudo que ele ‘quer fazer, as pessoas comecam a falar mal. Se voc ndo dei... Flea semare umn conflto (..) Quando uma pessaa tem um santo mulher ele encaminha para outro terteto, Ele ndo desconsidera que isto exist, mas diz Jorge. © que est em jogo aqui no & a negacéo da real filiacdo de um homem a. uma divindade feminina, mas 0 terior de que, uma vez tornado puiblico 0 tran- se, dads as peculiaridades que o envol- vern, algo seja avaliado, externamente, 0s olhos do outro, como excedendo as préprias possibilidades do momento, po- dendo, portanto, ser classificado como falso, como mentira, como "equi Nao € que ele vai té dando eque [i.e fin- gindo estar em transel, mas éessa hsté fia, seele dear o santo fazer suas aces, tle pode entrar em suspeita; se ele nlc debear, diz: “que santo éess6? Que santo mucho.” Ertéo elevaiestar sempre nes- ta contradigio (orge). ‘Ao mesmo tempo, ao identificar a possibilidade de vinculagao do transe ao equé, estabelece-se uma outta equacso que relaciona transe e mentira ao “can- domblé de veadeiro”, lécus privlegiado dos adés. 0 elemento “equ”, a mentira, subsiste na representacao, ainda que em forma de temor, e 20s olhos do outro Vale lembrar que, no terreiro do entre- vistado, homens em transe nao usam saias.* Quando incorporados, em roupas especiais, os homens sempre usam uma espécie de calca bastante larga, chama- da bombacha, nunca sala, como pode ser visto em muitos outros terreiros. Diz Jorge: ‘A gente nunca vai vest [saas), sempre bombachas. Mesmo se for santo mulher, ‘ai vestirbombacha, Por exemplo, se tem essa histéria de que 2 gente nio val ras- par santo mulher, mas © segundo santo [um orixé secundériol ele pode vrar fin- corporat, mas no ar (ritual interno, se tle quiser também. Na obrigacao de trés anos [ritual relative 8 contagem de tem- po deinicacSo] ele pode war com aiabs lorie feminino}, ou festa deiabs, no interno ela pode ve Ela s6 néo vai poder vir em pablico. Jorge parece querer relativizar 0 comportamento do pai-de-santo. Quan- do evoca a possibilidade de transe por divindades secundérias, no caso 0 “segun- do santo”, ele reafirma uma dissociagdo essencial presente no candomblé entre sexo @ género. Ritualisticamente, isto pode ser expressado na evidéncia de fillagdo mitica no absolutamente coin- cidente, como vimos, entre 0 sexo/géne- 0 do sujeito religioso eo sexo/género da divindade, Estes elementos sdo permuti- veis ¢ admitem diversas configuracoes. Os desdobramentos destas ques- tes parecem extremamente significat- vos para fazer compreender alguns as- pectos das possiveisrepresentacoes que Niter6i, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 191 vinculam homossexualidade e grupos re- ligiosos de candomblé. Neste momento quero indicar que a resposta formulada pelo pai-de-santo de Jorge nos faz repen- sar 0 lugar de homens e mulheres e, mais particularmente, de homens homosse- xuais nos grupos religiosos de candom- ble, 8 medida que ela aproxima-se ou distancia-se de organizaces teéricas ji postas. ‘No seu terreiro, homens nao podem ser iniciados para santo (orixd) mulher porque isto poderia implicar exibicao pliblica de algo que taluez nao fosse prudente exibir. Por outro lado, ao levan- tar 2 possibilidade do equé, do transe falso, da farsa, aproxima-se muito de uma categoria que, até entdo, entendiamos ter sido elevada a um grau de positividade antes nao experimentado. O adé, espécie de atualizago conceitual do homossexval passivo (universal) para os grupos de candomblé, havia perdido muito de sua carga pejorativa com Birman. Mesmo com 0 transe funcionando como um operador de distincdo entre os sexos, hd espaco para uma leitura mais positiva do adé, ainda que, de sua construcao, participem esterestipos igados & mulher 20 feminino. A expresso de aspectos de feminilidade através do transe de ho- mens por divindades mulheres parece pdr a descoberto dois problemas prin- cipais: a evidéncia da homossexualidade € a possibilidade do engodo. Nesse sentido, em muito se aproxima da perspectiva de Birman. Por outro lado, & para evitar uma possivel identificagao de seu terreiro a0 “candomblé de veadeiro’ que o pai-de-santo no permite o transe publico de homens por divindades femininas, Ao que parece, a possibilidade da homossexualidade néo coincide, aqui, coma expressio da possessao ritual. Ao contratio, constitui aspecto importante e legitimo, mas, de certa maneira, descola- do de certos momentos rituais, ou remeti- dos a movimentagoes mais privadas do que piblicas. Se um impasse inicial & criado, e um impedimento ritual posto em ago, quando a identificagao ritual primétia revela ser um homem pertencen- te (filho) a um orixd feminino, as expressées de homossexualidade dos atores sociais, com algum nivel de controle, parecem ter acolhimento no grupo religioso: Do orixs hs impedimento do transe pi- blico do orixd mulher], mas de ser bicha 10, n3o tem problema nenhum. De dar pinta, de... $6 ro vai poder dar na hora fem que as visitas esto er no caso do candomblé do vesdeiro, que voce pode chegar e desmunhecar, dar pinta ceceber.. LS ndo vai poder Uorge) No campo que observo, os discur- s0s privlegiam categorias de conforma- (0 universal para designar sujeitos com orientagao homoerética nos terreios privlégio para homosexual e gay. Adé € 0 outro, o que mente, 0 equé, o que transborda de suas préprias margens pie em risco a estrutura religiosa. Adé também & aquele que ndo assume sua homossexualidade latente, homossexua~ lidade suspeitada, Em uma perspectiva talvez globalizada, talvez “higiénica” “limpa", “cientifica", “ndo ambigua", constréi-se um outro continuo onde os extremos exibem, de um lado, os adés, do outro os ogans, homens suspeitos, motivos de “chochagdes”, de risos, de eternas interrogacoes. Transitando nesta linha, sujeitos homoeroticamente inclina~ dos chamados gays ou homossexuais. T42_ Niterbi, v4, 0. 2, p. 95-117, 1. sem, 2004

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