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A politica E preciso pensar na politica: se nto pensarmos 0 Dastante, seremas cruelmeate punidos, Ohomem € um animal sociavel: s6 pode viver e se de~ senvolver entre seus semelhantes. ‘Mas também é um animal egoista. Sua “insociivel socia- bilidade”, como diz Kant, faz que ele no possa prescindir dos outros nem renunciar, por eles, a satistagdo dos seus préprios desejos. E por isso que necessitamos da politica. Para que os conflitos de interesses se resolvam sem recurso a violéncia. Para que nossas forgas se somem em ver de se oporem, Para escapar da guerra, do medo, da barbarie. E por isso que precisamos de um Estado. Nao porque os homens so bons ou justos, mas porque nao sdo. Nao por- que so solidirios, mas para que tenham uma oportunidade de, talvez, vir a sé-lo. Nao "por natureza”, nilo obstante o que diz Arist6teles, mas por cultura, por histéria, ¢ € isso a prdp politica: a historia em via de se fazer, de se desfazer, de se re~ fazer, de continuar, a histéria no presente, e & nossa histéria, €€ a tinica histéria, Como nao se interessar pela politica? Se- ria nao sc interessar por nada, pois que tudo depende dela. ‘O que ¢ a politica? E a gestio nao guerreira dos conflitos, das aliangas ¢ das relagdes de forga - nao entre individuos APRESENTAGAO DA FILOSOFIA apenas (como podemos ver na familia ou num grupo qual- quer) mas na escala de toda uma sociedade. E portanto a arte de viver juntos, num mesmo Estado ou numa mesma Cidade (pélis,em grego), com pessoas que N40 escolhemos, pelas quais nio temos nenhum sentimento particular € que sto, sob muitos aspectos, nossas rivais, tanto quanto ou mais até que aliadas. Isso supde um poder comum e uma luta pelo poder. Isso supde um governo, e mudangas de gover~ no. [sso supde choques, mas sujeitos a tegras, compromis- sos, mas provisérios, um acordo enfim sobre a maneira de solucionar os desacordos. Fora disso, s6 haveria a violéncia, € € isso que a politica, para existir, deve impedir antes de mais nada, Ela comeca onde a guetta acaba, Trata-se de saber quem manda e quem obedece, quem faz a lei, como se diz, @ é isso que se chama de soberano. Pode ser um tei ou um déspota (numa mor pode ser 0 povo (numa democracia), pode ser um grupo de individuos (uma classe social, um partido, uma elite de ver- dade ou que assim se pretende: uma aristocracia)... Pode set, € € 0 que acontece com freqUéncia, uma mistura singu- lar desses és tipos de regime ou de governo. O caso é que no haveria politica sem esse poder, que ¢ © maior de to- dos, pelo menos nesta terra, ¢ a garantia de todos os outros. Porque "o poder est em toda parte", como diz Foucault, ou antes, 0s poderes so incontiveis; mas s6 podem coexistir sob a autoridade reconhecida ou imposta do mais poderoso dentre eles. Multiplicidade de poderes, unicidade do sobe- rano ou do Estado: toda a politica se joga ai, e é por isso que ela é necessiria. Vamos nos submeter ao primeiro brux to que aparecer? Ao primeito liderzinho que se apresentar? Claro que nio! Sabemos perfeitamente que ¢ ne wquia absoluta), poder, ou varios, sabemos que € preciso obedecer. Mas n3o a qualquer um, mas ndo a qualquer preco. Queremos obe- decer livremente: queremos que o poder a que nos subme- temos, em vez de abolir 0 nosso, © fortalega ou o garanta Nunca conseguimos isso plenamente. Nunca renunciamos intciramente a isso. E é por isso que fazemos politica. E por isso que continuaremos a fazer. Para sermos mais livres. Para sermos mais felizes. Para sermos mais fortes. Nao separa- damente ou uns contra os outros, mas "todos juntos", como diziam os manifestantes do outono de 1995, ou antes, a0 mesmo tempo juntos € opostos, ja que € preciso, jé que, no fosse assim, nao precisariamos de politica. A politica supde a discordancia, 0 conflito, a contradi- so. Quando todo © mundo esté de acordo (por exemplo, para dizer que é melhor a satide que a doenca, ou que a felicidade & preferivel a infelicidade...), nao € politica. E quando cada um fica no seu canto ou s6 trata dos seu suntos pessoais, também ndo ¢ politica. A politica nos retine nos opondo: ela nos opde sobre a melhor maneira de nos reunir! Isso nao tem fim. Engana-se quem anuncia o fim da politica: seria o fim da humanidade, o fim da liberdade, o fim da histéria, que, ao contrario, sé podem - ¢ devem - conti- znuar no conflito aceito € superado. A politica, como o mat, nao para de recomecar. Porque ela é um combate, ¢ a tinic paz possivel. E 0 contrério da guerra, repitamos, 0 que © bastante da sua grandeza. E contritio do estado natural, € isso fala o bastante da sua necessidade. Quem gostaria de viver inteiramente s6? Quem gostaria de viver contra todos 6s outros? O estado natural, mostta Hobbes, "a guerra de todos contra todos": a vida dos homens é, entdo, "solitéria, necessitosa, penosa, quase animal, e breve". Melhor um po- der comum, melhor uma lei comum, melhor um Estado co- mum - melhor a politica! APRESENTAGAO Da Fitosoria Como viver juntos e para qué? Sido esses os dois pro- blemas que ¢ preciso resolver, ¢ logo depois tornar a levan- tar (pois temos o direito de mudar de opiniao, de lado, de maioria...). Cabe a cada um refletir sabre eles; cabe a todos debaté-los. O que € politica? B a vida comum ¢ conffituosa, sob © dominio do Estado e por seu controle; é a arte de tomar, de conservar ¢ de utilizar © poder. E também a arte de com- partilhd-lo, mas porque, na verdade, ndo hé outra maneira de tomé-lo. Seria um erro considerar a politica uma atividade uni- camente subalterna ou desprezivel. O contrario é que é v dade, claro: ocupar-se da vida comum, do destino comum, dos confrontos comuns € uma tarefa essencial, para todo ser humano, ¢ ninguém poderia esquivar-se dela. Vocé vai dei xar o caminho livre para os racistas, os fascistas, os demago- 1208? Vai deixar uns burocratas decidirem por vocé? Vai dei- xar uns teenocratas ou uns carreiristas imporem a vocé uma sociedade que scja a cara dcles? Com que dircito, entio, vooé poderia se queixar de que as coisas vio mal? Como nao ser ctimplice do mediocre ou do pior, se vo: pedi-los? A inagao nao € uma deseulpa, A € uma desculpa, Nao fazer politica ¢ renunciar a uma parte do seu poder, 0 que € sempre perigoso, mas também a uma parte das suas responsabilidades, o que ¢ sempre conde- navel. O apoliticismo € ao mesmo tempo um erro € uma cul- pa: ¢ ir contra seus i nada faz para im- \competéncia NAO eresses e seus deveres, Mas também seria um equivoco querer reduzir a politi- ca a moral, como se cla sé se ocupasse do bem, da virtude, do desinteresse. Mais uma vez, contr jo € que é verdade. Se a moral reinasse, mo precisariamos de policia, de leis, de 30 tribunais, de forgas armadas: nao precisarfamos de Estado, nem portanto de politica! Contar com a moral para vencer ‘a miséria ou a exclusio é, evidentemente, conversa fiada, Contar com © humanitarismo para fazer as vezes de politica externa, com a caridade para fazer as vezes de politica social fe até mesmo com o anti-racismo para fazer as vezes de poli fica de imigragio, é evidentemente conversa fiada, Nao, claro, que 0 humanitarismo, a caridade ou o anti-racismo nao se- jam moralmente necessarios; mas porque nao poderiam bas- tar politicamente (se bastassem, nao precisariamos mais de politica) nem resolver sozinhos um problema social qualquer. A moral no tem fronteiras; a politica tem. A moral nao tem pitria; a politica tem. Nem uma nem outra, é claro, po- deriam dar & nogio de raga qualquer pertinéncia: a cor da pele no faz nem a humanidade nem a cidadania, Mas a moral nao tem nada a ver tampouco com os interesses da Franga ou dos franceses, da Europa ou dos curopeus... Para a moral s6 existem individuos: para a moral s6 existe a hu- manidade. Ao passo que qualquer politica francesa ou euro- péia, de direita ou de esquerda, s6 existe, a0 contrario, para defender um povo, ou povos, em particular - nao, é claro, contra a humanidade, o que seria imoral ¢ suicida, mas prio- ritariamente, © que a moral nao poderia nem impor nem proibir cm absolute Vocé poderia preferir que a moral bastasse, que a hu- manidade bastasse: vocé poderia preferir que a politica nao fosse necessiria, Mas estaria se enganando sobre a histéria ¢ se mentindo sobre nés mesmos. A politica nao € 0 contrério do egoismo (o que a mo- ral €), mas sua expressio coletiva e conflituosa: trata-se de sermos cgoistas juntos, jf que essa é a nossa sina, ¢ da ma- neira mais eficaz possivel. Como? Organizando convergén- 31 APRESENTAGAO 4 FILOSOFIA cias de interesses, ¢ é isso que se chama solidariedade (di: ferenciando-se da generosidade, que supde, ao contririo, 0 desinteresse). ‘omum desconhecer essa diferenga, razio a mais para sistirmos nela. Ser solidério é defender os interesses do outro, sem diivida, mas porque eles também so - direta ou indiretamente - 0s meus. Agindo por ele, também ajo por mim: porque temos os mesmos inimigos ou os mesmos in- teresses, porque estamos expostos aos mesmos perigos 0 ‘a0s mesmos ataques. E 0 caso do sindicalismo, da Segurida de Social ou dos impostos. Quem se consideraria generoso por contribuir para a Seguridade Social, sindicalizar-se ou pa- gar seus impostos? A generosidade ¢ outra coisa: é defender 6s imteresses do outro, mas no por também serem os meus; € defendé-los mesmo que nao compartilhe deles - nao por- que eu ganhe alguma coisa com isso, mas porg w ganha. Agindo por ele, ndo ajo por mim - pode ser que eu até perca alguma coisa, aliés é 0 que costuma acontecer. Como conservar 0 que se di? Como dar o que se conserva? Nao seria mais doagao, e sim troca; nao seria mais generosi- dade, ¢ sim solidariedade. A solidariedade ¢ uma maneira de se defender coleti mente; a generosidade, no limite, € uma maneira de se sa crificar pelos outros. E por isso que a generosidade, moral- mente falando, é superior: ¢ & por isso que a solidariedade, social e politicamente, é mais urgente, mais tealista, mais efi- caz. Ninguém paga a Seguridade Social por gencrosidade ‘Ninguém paga seus impostos por generosidade. E que estra- nho sindicalista 0 que se associaria a um sindicato unica- mente por generosidade! No entanto a Seguridade Social, © sistema tributério € os sindicatos fizeram mais pela justi = muito mais! - do que © pouco de generosidade de que este ou aquele soube, vez ou outra, dar prova. A mesma coisa vale para a politica. Ninguém respeita a lei por generosida- de, Ninguém é cidadio por generosidade. Mas o dircito © 0 Estado fizeram muito mais, para a justiga ou para a liberda- de, do que os bons sentimentos. Solidariedade e generosidade nem por isso so incom- pativeis: ser generoso ndo impede de ser soliditio; ser sol dirio no impede de ser generoso. Mas tampouco si0 equi- valentes, € & por isso que nenhuma das duas poderia bastar ou fazet as vezes da outra. Ou melhor, a generosidade tal- vez bastasse, se fOssemos suficientemente generosos. Mas © somos to pouco, to raramente, to pequenamente... S6 precisamos de solidariedade porque carecemos de gencro- sidade, © & por isso que precisamos tanto de solidariedade! Generosidade: virtude moral. Solidariedade: virtude poli- tica, O grande problema do Estado ¢ a regulagio © a sociali- zagao dos egoismos. E por isso que cle é necessario. E por isso que é insubstituivel. A politica ndo é o reino da moral, do dever, do amor... E 0 reino das relagdes de forgas e de opinides, dos interesses e dos conflitos de interesses. Vejam Maquiavel ou Marx. Vejam Hobbes ou Spinoza. A politica no é uma forma do altruismo: € um egoismo inteligente © socializado. Isso no apenas nio a condena mas a justfica: jé que todos nds somos uns egoistas, vamos sé-los juntos e in teligentemente! Quem ndo percebe que a busca paciente e or ganizada do interesse comum, ou do que se imagina ser tal. € melhor, para quase todos, do que © confronto ou a desor- dem generalizados? Quem nio percebe que a justiga € me- Thor, para quase todos, que @ injustica? Que isso também €moralmente justificado, é mais que evidente, 0 que mos- tra que moral e politica, em seu objetivo, niio se opdem. Mas que a moral N40 basta para aleangé-lo, é igualmente eviden- te, € mostra que moral e politica também no poderiam se confundir 33 APRESENTACAO Da FiLosorta ‘A moral, em seu principio, & desinteressada; nenhuma politica 0 € A moral é universal, ou assim se pretende; toda politica € particular. A moral é solitiria (ela 6 vale na primeira pessoa): toda politica é coletiva. E por isso que a moral no poderia fazer as vezes de politica, do mesmo modo que a politica nao poderia fazer as veres de moral: precisamos das duas, e da diferenga en- tue as duas! Uma eleigio, salvo excepcionalmente, 30 opée bons € ‘mau, mas opie campos, grupos sociais ou ideoldgicos, Par tidos, aliancas, interesses, opinides, prioridades, opcdes, pro- gramas... Que a moral também tenha uma palavra a dizer, é bom lembrar (hd votos moralmente condenaveis). Mas isso no nos poderia fazer esquecer que ela no faz as vezes nem de projeto nem de estratégia. O que a moral propée con- tra o desemprego, contia a guetta, contra a batb: ie? Ela nos diz que € preciso combaté-los, claro, mas no como temos maiores oportunidades de derrota-los. Ora, politicamente, é © como que importa. Voce é a favor da justica e da liberdade? ‘Moralmente falando, é © minimo que se espera de vocé. Mas, politicamente, isso ndo the diz nem como defendé-las nem como concilid-las. Vocé deseja que israclenses ¢ palestinos tenham uma patria segura e reconhecida, fe todos os ha- bitantes de Kosovo possam viver em paz, que a globalizagio econdmica nao se produza em detrimento dos povos ¢ dos individuos, que todos os idosos possam ter uma aposenta- doria decente, todos os jovens uma educagao digna desse nome? A moral aplaude, mas nao the diz como aumentar nos- sas possibilidades de, juntos, aleancar esses objetivos. E quem pode acreditar que a economia ¢ o livre jogo do mercado bastam para tanto? O mercado s6 vale para as mercadorias. M Ora, 0 mundo nio é uma, Ora, a justiga ndo € uma. Oy berdade nao € UMA. Que loucura seria confiar a0 mer que N&O € para se comercializar! Quanto as empresa tendem antes de mais nada ao lucro. Nao as critico pe €a fungao delas, e desse lucro todos nés necessitamo quem pode acreditar que 0 lucro baste para fazer qu sociedade seja humana? A economia produz riqueza rias, € nunca serio demais. Mas ta quezas so neces precisamos de justiga, de liberdade, de seguranga, de p fraternidade, de projetos, de ideais.,. Ndo ha mercado ¢ fornesa. por iss0 que preciso fazer politica: por moral no basta, porque a economia nao basta e, poy porque seria moralmente condenavel e economicamer sastroso pretender contentar-se com uma € oulra, Por que a politica? Porque nao somos nem santo apenas consumidores, porque somos cidadios, porque mos ser cidadios ¢ para que possamos permanecer cid Quanto aos que fazem da politica sua profissio, de Ihes ser gratos pelos eslorcos que consagram ao be ‘mum, sem no entanto nos iludirmos muito sobre a sua peténcia nem sobre a sua virtude: a vigilancia faz par direitos humanos e dos deveres do cidadio. Nao se deve confundir essa vigiléncia republicana ridicularizagio, que torna tudo ridieulo, nem com 0 d< zo, que torna tudo desprezivel. Ser vigilante é nao erer mente nas palavras dos politicos, mas nao é condené- denegri-los por principio. Nao conseguiremos reabilitai litica, como é urgente hoje em dia, cuspindo perpetua em quem fxz politica. No Estado democritico, temos« ‘Mens politicos que merecemos. Razio a mais para p ‘esse regime a todos 0s outros: s6 tem moralmente ¢ 35 de se queixar dele - ¢, & claro, motivos € que nao faltam! - quem age, com outros, para transformé-lo. Nao basta esperar a justiga, a paz, a liberdade, a prospe~ dade... E preciso agir para defendé-las, para aprimoci-las, ‘© que sé se pode fazer eficazmente de forma coletiva e que, por isso, passa necessariamente pela politica. Que esta mao se reduza nem a moral nem a economia, ja insisti o bastan- te. O que no significa, lembremos para terminar, que cla seja moralmente indiferente ou economicamente sem alean- ce. Para todo individu apegado aos direitos humanos ¢ a0 seu proprio bem-estar, interessar-se pela politica ndo € ape- nas seu direito, é também seu dever e seu interesse - € a tini- ca mancira, sem divida, de concilié-los mais ou menos. Entre a lei da selva e a lei do amor, hi a lei pura e simples. Entre 0 angelismo ea barba ie, ha a politica. Anjos poderiam pres- cindir dela. Animais poderiam prescindir dela. Homens, nao. E por isso que Aristételes tinha 14740, pelo menos nesse sentido, quando escrevia que “o homem € um animal pol rico": porque, sem a politica, ele ndo poderia assumir inteira- mente sua humanidade. “Fazer bem o homem" (a moral) no basta. E necessirio também fazer uma sociedade que seja humana (ji que é a so- ciedade, sob muitos aspectos, que fiz 0 homem), e por isso é necessario refazé-la sempre, pelo menos em parte. O mun do nao para de mudar; uma Sociedade que nao mudasse es- taria fadada & ruina, Portanto € preciso agir, lutar, resistir, in- ventar, salvaguardar, transforma... E para isso que serve a politica. Ha tarefas mais interessantes? Pode ser. Mas nao ha, na escala da sociedade, tarefas mais urgentes. A historia nao espera; mio fique bobamente esperando-a! ‘A historia nao é um destino, nem somente 0 que nos faz: ela é 0 que fazemos, juntos, do que nos faz, ¢ isso é a propria politica, 36

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