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Rev. de Musen de Arqueotogia # Emologis, $40 Paulo, Suplenmenta 3: 251 61, 1999. AS CATEGORIAS ESTILISTICAS NOS ESTUDOS DA ARTE PRE-HISTORICA: ARQUEOFATOS OU REALIDADES?* i: préprie do senso comum ler de se organi: André Prows** sobre esquemas classificatérios que se apresentam ao senso critica como empobrecedores ¢ reificantes. De um certo modo, toda empresa intelectual —tal como se concebe em nossa Cultura —extrai o seu sentido e prazer da dentincia e dissecagdo desses esquemas, de cujos escombros es- quadrinhados parece emergir a loz sempre ansiada” (L. F, Duarte, “A volta da identi- dade” Anucirio Antropoldgice 85), Introducio Com a separagiio das dreas de conhecimento — caracterfstica do pensamento acidental moder- no, criou-se a nogdo de arte como categoria esppe- cffica do conhecimento, caracterizada por I. Kant como uma “finalidade sem fim”. Isto abriu ocam- pO para uma reflexiio estética que a maioria das culturas de mundo nio possui e que nao existia na tradigao mediterranea: lembremos que, em latin, ars ~ artis significa tanto a habilidade prética do ar- tesdo quanto a.capacidade de criar coisas belas (es+ pevialidade do artista, em nossa cultura atual), A reflexdo de Plato sobre o Bele nao o levou a ela- borar uma estética. Desta forma, a prépria palavra ‘arte”, aplicada a manifestagdes de outras épocas ou segides — quanto mais a grafismos pré-histéri- cos (“arte rupestre”, por exemplo} ~ aparece como profundamente determinada por nossos coneeitos Etnicos. Seri, portanto, possfvel estudar estas ma- nifestagdes culturais produzidas por populagées nao ocidentais a partir das nossas categorias sem ficar preso a um discurso sobre nds mesmos? (*) Uma comunicagio com o titule “Rock Art Traditions: Aschaeofacts or realities” foi apresentada no Congresa In temacional de Arte Rupestre de Cochabamba (Prous 1997) e deve ser publicads em portugnés no préiximo ntimero da revista Clio, O presente texto apresenta-se como ura conti- a da reflexdo sobre © mestio tema (*) Setor de Anqueologia, MHN/FAFICH-UFM sion Archéolagique de Minas Gersis), Mis- Entre os estudiosos ovidentais do fendmeno artistico que se multiplicaram no inicio do século XX, verifica-se uma nilida opasicdo entre os ar- tistas e tedricos da estética de um lado, ¢ os eind- logos © arquedlogos do outro. Os primeiros ana- lisam geralmente os objetos ndo ocidentais de um ponte de vista apenas estésico, aplicando catego- Flas supostamente unfversais, enquanto quase to- dos os antropslogos procuram, através das “obras de arte”, atingir as realidades éinicas ~ outra cate- goria desenvolvida pelo Ocidente no século XIX, De um modo geral, os arquedlogos trabalham. ein quatro diregéses principais: ~ arqueometria (disciplina cientifica, que- procura datar os grafismos, identificar as técnicas de elaborago pela andlise dos pigmentos etc.) ~aclassificagio, que permite comparar os conjuntos grificos (cronoligicos ou espacial- mente distribuides) entre si. ~Atentativa de deseobrir o significado ex- plicito que as obras tinham para seus autores: mensagens, suporte para agées —a busca de infarmacées implicitas que as obras proporcignam sobre a sociedade, a economia, a percepgao do real... das quais os autores no eram conscientes Dentre essas pesquisas destacam-se as que Jevam a definir unidades descritivas (tradigdes, estilos, facies ou variedades...) que permitam dis. tinguir entre si grupos étmicos ou sociais. 251 PROUS, A. As cateporias estilisticas aos estados da arte pré-hisiérica: arqueofetes ou realidades? Rev. do Musear de Arqucologia ¢ Etnologia, Six Paulo, Seplemenio 3: 251-261, 1999. Umma questo. fundamental ¢ ainda pauco de- batida quando se trata de arte rupesire, & a de sae ber se taiscategorias, definidas pelos arquedlogos, correspondem a unta realidade objetiva ou se so apenas 0 resultado da escalha de critérios deter- minados por nossa visio etnecéntica do mundo. Serio as tradiges “arqucofatos” ou realidades? Para estudar este ponto, ¢ preciso definir en gue contexto e para que as tradigées ete. foram estabelocidas, tentando ver, a partir de exemplos concretos, até que ponto a Hist6ria da Arte oci- dental pode validar a utilizag3o deste conceito. ‘Veremos também dentro de quais limites os exem- plos etnogrificos podem enriquecer as andlises dos arquedlogos As abordagens da arte rupestre no mundo: uma breve reflexde histériea Os primérdios Desde © sculo XVI, livros que prefiguram os atuais guias turisticos mencionavam as pin- turas de Niaux. Obviamente, estas n3o eram atri- bufdas a homens pré-histéricos, mas a pastores “incultos”, j4 que nao obedeciam aos cnones da Antigiidade revalorizados pelo Renascimen- to, Eram apresentadas, pois, como simples curio- sidades, no havendo necessidade de estudi- las ou explicd-las. Os primeiros estudos académicos de arte pré- histérica foram realizados na Europa no final do século XIX, Ox pequenos objetos decorados (“ar- te mobiliar”) encontrados nas camadas arqueldgi- cas pleistocénicas foram entio considerados como simples expressio de atividades estéticas, confor me as idéias vigentesda “arte pela arte”, da estéticn como campo de atividade isolado, Sua existéncia foi, no entanto, um choque para os fepresentantes das elites européias que tiveram dificuldade para admitir que selvagens primitivos tivessem condi+ ‘ges intelectuais ¢ tempo livre suficientes para ela- ‘borar to requintadas gravuras em vez de se dedi- ‘car exclusivamente as penosas atividades de caga num ambiente desfavorivel. Oauge do periodo comparativissafevolucionistaem Arqueologia ¢ a magia da caga No inicio do século XX, com o desenvolvi mento das pesquisas einologicase ainda sob a in- 252 fludncia ca Gptica evolucionistaunilinear, a recém- descoberta arte rupestre pleistocénica européia SOU ser Vista como expressio de préticus ma gicas, visando principalmente a favorecer a caga (sendo H. Breuil o maior expoente desta visio, du- rante mais de meio século). Tratava-se, tores, da expressio de um estigio “inici comprovada pela observagao ctnografica de po- pulagdes “primitivas” e cuja funeao parecia Sb- As diferengas notadas entre as obras pré-his- t6ricas eram principalmenic relacionadas & progres va descoberta de como expressar a perspectiva. Assim scndo, era possivel sugerir uma mudanga progressiva na forma das representagics desde a arte “aurignacense” até a do periodo magdalenicn- se”, sem que houvesse modificagdes no sentide ¢ na fungiio, Nao houve, por parte dos arquedlogos, criagdo de categorius distintas das que existiam para designar os vestigios enterrados (falow-se em ete aurtignacense, solutrense ou magdalenense, em fungi da contemporaneidade postulada cn- tre as representagdes figuradas e os outros tipos de vestigios). H. Breuil (op. cit. 1952) tinha tam- bém notado a existéncia de especificidades em determinadas regides (sobretudo relativas & for- ma das figuras gcométricas), mas sem valorizé- Jas em suas anilises. A arte rupestre de outras latitudes (Austrdlia, Africa do Sul) era interpreta- da da mesma maneira; valorizavam-se essencial- mente as representagdes de animais, pois enqua- dravam+se na idéia de uma arte da caga e de que deveria haver uma certa similitude entre todas as manifestagdes “artisticas” oriundas de culturas de cacadores, A descoberta da rica € vari saariana do Tassili evidenciou a necessidade de estabelecer recortes eronolégicos nesta regido, H, Lhote reconheceu a existéncia de varios “pe- riados"s © primeito (période Bubaline) repre~ sentava animais selvagens, sendo supostamen- fe caracteristico dos cagadores; 0 segundo (pé- riode Bovidienne), era obviamente atribuldo aos Primciros pastores¢ um terceire (période des chars), correspondendo a populagdes da idade do Bronze ¢tc. Além desta observagao, valida no plano local, estabeleecu-se, na mesma perspectiva evolucio- implicita de Breuil, a idéia de que no mundo inieiro, cada populagso, em fungo do seu “pata- mar evolutivo” representaria um determinado tipo de tema: cagadores representariam suas presas; pastores, seus rebanhos, etc. Analisando os temas, arte rupestre PROUS, A. As categerias esti cas nos estudos da arte pré-histérica: arqueofatas Ou redlidades? Rev. do Musen de Arquealagia e Etologia, Sto Paulo, Suplemento 3: 251-261, 1999, seria possivel idemtificar 0 estigio de desenvolvi- mento de qualquer grupo. Esta idéia permanece ainda bem nitida em autores como Anati (1995). A recusa do comparativisma etmogréfico @-a busca das estrusuras escondidas A mudanga de paradigma do anos 60se deve aos trabalhos paralelos e independentes de A. Laming-Emperaire (1962) e A. Leroi-Gourhan (1965), ambos influenciadas pelo estruturalismo, Recusaram © comparativismo etnogrifice ingé- nuo do inicio do século, que considerava as po- pulagées nao ocidentais como “primitivas” ¢ fos- silizadas num “estigio de selvageria” paleolitica € capazes, portanto, de fornecer uma chave para interpretar obras distantes milénios no tempo ¢ milhares de quildmetros no espago. Criticaram a utilizagio, por parte dos arguediogos, de figuras isoluddas, escolhidas a dedo para “compro: interpretagdes, desprezande o resto das represen+ tagdes pré-historicas. Por exemplo, mostraram que as cenas de caga eram excepcionais no Paleolitico europeu. Nao podendo mais contar com o discurso de populagdes ainda existentes, os pesquisado- res precisavam extrair do proprio corpus rupestre: um discurso desvinculado de todo preconceito de origem éinica - fosse esta a einia do pesqui- sador ou a de qualquer populagio de Além-Mat, ‘Anova meta do arqueslogo passou a ser a evidenciagio de uma sele¢io dos temas (cada cultura escalhe os temas a serem representados, enquanto outros nie aparecem ou nio siio valori- zados) e de uma possivel organizagiio dos grafise mos. Reconheceu-se, entdo, a existéncia de as- sociagées privilegiadas entre grafismos na ane paleolitica; por exemplo, a recorréncia de uma dupla “cavalofbovideo" qual Leroi-Gourhan as- soeiaria mais tarde os cervidens) e de outra, que combina os “sinais” lincares e “fechados” entre si, Notou-se uma possivel articulagdo entre certos animais e determinados “sinais”; entre certos gra- fismos e setores topograficos (animais “perigosos” hos becos sem satda; figuras pontilhacdas em pas- sagens; conjunto cavale/bavideo nos saldes,..). Estas associagées, quase sempre binérias, foram geralmente interpretadas como oposigdes, seguin- doa maneira de pensar estruturalista, influenciada pelo desenvolvimento da linguagem computacio- nal ca algebrade Boole, Embora A, Leroi-Gourhan —comeo H. Breuil antes dele — no deixasse de re- conhecer modificagées na forma das representagies 20 longo do tempo (identifica quatro “estilos” com valor cronolégico), sua abordagem — que implicava tratar estatisticamente 0 Conjunto do registro grifica paleolitico curopeu — 0 levou a subestimar as va- riagGes desta arte paleolitica no tempo e ne espaco. ‘Outrossim, os dois principais pesquisadores tentaram ir além da deseoberta de regularidades para tentar penetrar o significado dos grafismos (interpretando, por exemplo, a associagao cavalo! bovideo como a expressiode uma oposigao de tipo macho/fémea), passando do campo da “descrigo objetiva” para interpretagdes dé cunho subjetivo, rapidamente criticadas pelos céticos. De qualquer forma, as abordagens de cariler semistico (por ex Sauvet e Wlodenczyek 1977) tiveram sua inspiragaio na obra de Lerai-Gourhan e Laming-Lmperaire. A diversificagao das abordagens no perfado contempordineo Os anos 70 e 80 correspendem a uma amplifi- cagio dos conhecimentos sobre a ane mupestre miundial, levando a uma multiplicagao das aborda- gens, Uma delas corresponde a tentativa de recu- perar as tradigdes indigenas, nas regides emi que aarte mupestre ainda era praticada hd pouco tempo, como Canada, Austrélia ¢ Africa do Sul, De uma mae neira geral, ¢ sob a influéneia de J, Lewis William eT. Dowson, pussou-se a ver as figuras pré-hists- Ficas como representagdes de fendmenos épticos provocados por alteragdes de conscigneia, Por exemplo, uma india Salish explica as vis6es © os sonhos acorrides apés longos jejuns que acompa- nham os rituais inicidticos (York, Daly & Amett 1993). Na Africa do Sul, Lewis-William focalizou © suposto papel das drogas, as quais teriam sido utilizadas pelos xamas durante ceriménias prepa- ratérias & caga. As figuras geomeétricas, em princi- pio dificeis de serem explicadas num contexto-de magia da caga, seriam, assim, representagdes de fostenos, resultantes da ingesttio de alucindgenos. Desta maneira, a ubiqitidade das formas geométei- cas simples na arte rupestre seria explicada pelo fato de a arte rupesire ser, antes de tudo, xamanis- tica ¢ ligada a estados de transe. De fato, estava-se voltando as ai idéias de H. Breuil, apenas enriquecidas pela mediaco dos agentes psicotré. picos, um dos temas obssessives dos ocidentais 253 PROUS, A. As categorias estilisticas nos estudos da arte pré-histérica: arqueofatas on realidudes” Rev. do Muses de Argucologia & neste fim de século. Esta posigo, de novo baseada ‘a suposta wniversalidade de comportamentos “primitives” — a palavra xamanismo recobre, de falo, realidades etnogeéficas bem diversas = no chegou, no entante, a ser aceita pela maioria dos pesquisadores, Mesmo na Africa do Sul, heuve questionamento sobre a credibilidade dos infor- mantes em cujo depoimente Lewis-William base ava suas afirmagdes, Finalmente, nao houve volta A comparagio etnogeéfiea descabida do infcio do século ¢, numa publicagdo recente feita em parc ria com J, Clottes (Clottes & Lewis-William 1996), © préprio Lewis-William reconhece que nio s¢ pode explicar toda a arte pré-histérica a partir de uma tiniea chave. AS outras orientagdes nfo tiveram mais ne- nhuma pretensiio de fomecer uma chave para 08 estudos de arte pré-histérica em geral, mas focali- xaram pontos especificos a cada regitio estudada Onde havia claras evidéncias de que grupos va- tiados tinham decorado sucessivamente os pare- dies, deixando registros com temiitica e técnicas contrastantes, a prioridade foi dada ao estabele- cimento de seqiiéncias estilisticas; cada “esti Jo” (no Kakadu australiano ou no Sara africano) ou “tradigao” (no Peruagu brasileiro) reconhecides tendem a ser atribuidos a uma etnia diferente. Na Auustrélia, a identificagao dos antigos territérios iribais © das mitologias passou a ser outra priori- dade, num momento em que os remanescentes aborigenes recobram a posse dos sitios ao redor dos quais estrutura-se sua identidade tribal, Na Europa, procura-se caracterizar as “esco- Jas” regionais ¢ locais de arte paleolitica, assim co- mo se aproveitam as novas possibilidades de da- tago dos grafismos para analisar as transforma- ges temiticas ocorridas em cada regido durante-o Paleolitico, duas perspectivas pouco valorizadas até entio. Falou-se em “era pés-estilistiea" (Lor- blanchet) para designar o abandono da visio uni linear da sucesso dos estilos no paleolitico curopeu que linha caracterizado os trabalhos de H. Breuil e ‘A, Lewoi-Gourhan — 0 que nde significa que os atuais pesquisadores renunciem a utilizar a nogdo de es- tile. Podemos mencionar também as pesquisa re~ centes que evidenciam fendmenos registrados pe- los “artistas” pré-histéricos, como as mudangas sa- zonais de pélo ou chifres ou as posturas dos gran- des herb(voros na Europa (Bouvier & Dubourg 1997). Médicos procuram também evidenciar a 254 Eniologi«, Sao Paulo, Suplemenio 3: 251-261, 1999, ropresentagao de posturas ou patologias especificas cm representagdes antropomorfis (Duhard 1993), As experiéneias para reproduzir e as andlises sistemiticas das “reeeitus” pré-historicas de fa- bricagio de timta — iniciadas com Couraud (Cou- raud ¢ Laming-Emperaire 1979) = tiveram.um gran- de desenvolvimento (Menu, Clottes 1990) mere’ dos progressos da aplicagio dos estudos quimicos avs materiais arqueoldgicos. Estas téenicas permi- tiram também, nos anos 90, a extragiio de quanti- dades diminutas de matérias orginicas para reali- zagio de datagio por AMS (Russ, Hyman, Shaffer & Rowe 1990). Paralelamente, a aplicagsio das ée- nicas de traceologia ao estudo dos gestos de fabri- cago de gravuras e dos gumes dos instrumentos utilizados para este fim desenvolve-se com as pes- quisas de d’Errico (1989). J4 no inicio dos anos 70, as pesquisas de A. Marshack (1972), de Guy & Ouy Parcszewska (1972) sobre a arte paleolitica e de A, Prous (1977) sobre a arte dos sambaguis, procuravam eviden- ciar registros matematicos ou, pelo menes, ritmi cos (contagens de elementos ¢ construgio de formas geométricas) em ossos gravados, pintu- ras paleoliticas, ou esculturas mesoliticas. Nos anos 70 e 80 a “arqueo-astronomia” se desenvol- ve, tentando identificar registros de fendmenos celestes (cometas, explosia de supemova etc). Mais recememente aparecem as observacbes sobre as propriedades actisticas de sitios de arte rupestre (Dauvois 1992), sendo que hé evidéncia ‘etnogrifica de que certas tribos da Califérnia es-

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