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A mente filmica JoBo Miguel Cunha 2015 jogommeunha@email.com hitp/ioaommeunh: Nota introdutéri © objectivo deste texto é analitico, Nao de julgamento sobre valores artisticos ou de sobrevalorizagao do cinema relativamente a outras expressdes artisticas. Apesar de poder parecer um elogio ao cinema, nada me separaria de elogiar qualquer outra forma de expressdo artistica ou cultural, se 0 foco desta andlise fosse outro. LA narrativa rupestre Todas as actividades humanas de produgdo intelectual, sejam elas culturais, cientificas ou outras, tm uma histéria que pode ser entendida de duas diferentes perspectivas: a da origem da sua produgdo técnica e a da origem da sua produgdo mental. Todas elas, surgem por vias de produto mental, muito antes de existirem através da sua produgdo técnica, Por vezes a distineia que separa estas duas origens pode ser de milénios. Podemos, por exemplo, tratar histéria da psicologia do ponto de vista técnico, que neste caso nos localizaré algures no fim do século XIX, sendo até possivel especificar a data de 1879, 0 local Alemanha, ¢ 0 fundador Wundt. Foi ele, que nesta data publica 0 primeiro livro onde a psicologia se assume como ciéncia técnica € no mesmo ano funda o primeiro laboratério de psicologia. Nao querendo desenvolver muito este assunto, temos entio a segunda perspectiva. Nesta, a psicologia pode recuar até Aristételes. Tanto ele como outros (concretos ou abstractos) antes dele, evidenciavam uma preocupagao com o estudo € pensamento relativos a fenémenos que claramente, passaram a ser posteriormente do Ambito dessa invengdo téenico-cientifica: a psicologia ‘No cittema, a mesma questo se pde quanto & sua origem. Indiscutivelmente que o cinema reconhecido social e culturalmente enquanto tal, se inicia com a técnica. A 28 de Dezembro de 1895, em Paris, 0 cinema é inaugurado e a sua histéria comega, com a primeira apresentago do cinematdgrafo dos irmiios Lumiére. Pela primeira vez na histéria da fhumanidade, sto projectadas imagens em movimento vendo-se, nio s6 os primeiros filmes como esses eram os primeiros documentirias: a sada dos opersrios da fabtica, foi o primeito, A invengdo técnica ¢ a forma de transformar e traduzir num novo objecto concreto, algo que jé existia enquanto produgdo mental. Tal como na psicologia, ou na astronomia, ou na literatura (pré e pés invengo do papel), ou em todas as actividades existentes por via da t&enica, No cinema, a sua “pré-histéria”, & to antiga como a historia da humanidade, & mais remota do que a Jinguagem oral ¢ inaugura-se com as primeiras pinturas rupestres. Tal como 0 cinema, estas eram narrativas pela imagem. Verdade que no tinham movimento (caracteristica essencial do cinema), mas tinham narrativa, que por sua vez & movimento, no no espago como as imagens que se mexem, mas no tempo. Toda a narrativa € um movimento no tempo, Dai que eu entenda as pinturas rupestres, que retratavam uma cena de caga, como mais préximas de um filme documentério (como a saida dos operarios da fabrica Lumiére), do que das artes plasticas nas quais a narrativa no é elemento sem qual possam existir. No entanto, esta parte da discussdo seria mais alargada e menos consensual ¢ no © foco deste texto. Desta forma, a origem de produgio mental do cinema pode ser entendida como das mais antigas, traduzindo-se na capacidade de construir narrativas através da imagem, podendo ser mais simplificado pela capacidade, vontade e necessidade de contar historias, mesmo antes da capacidade da linguagem falada. Com a capacidade mental de contar uma histéria, surge o recurso téenico que toma isso possivel, recorrendo A relago da representagio da imagem com o tempo, 0 espago, a acco e a personagem, Se a estes quatro elementos (tempo, espago, acgo © personagem) adicionarmos o artista/pintor como narrador, temos os cinco elementos da narrativa que sdo a estrutura de qualquer objecto literdrio e/ou filmico, embora, 0 elemento do espago sé tetiha sido devidamente explorado mais tarde, No entanto, a relagdo tempo-espago, como a fisica tedrica nos mostra (com as limitagdes da minha compreensio sobre esse tema) & intrinseca a cada um desses conceitos, cuja existéneia & entrelagada. Tal como 0 espago, 0 tempo é uma dimensio de movimento, Reduzindo esta questo a simplicidade, parado no mesmo local, o movimento do meu envelhecimento acontece © cinema ¢ isto mesmo, é a relagio espago/tempo traduzida em imagens. O movimento é essa traduyao. ‘A nossa mente & a sua origem. Aliés, todos os nossos processos mentais de pensamento se baseiam na relagdo espago-tempo, mas, na nossa mente pensante essa relagdo traduz-se sobretudo em linguagem. Contudo, antes da linguagem, jé havia a imagem, Pinté-las numa gruta ou projecté-las numa tela, & representar esse processo mental de construcio de uma narrativa pensante, No mundo exterior, as narrativas acontecem (0 ledo persegue a zebra), no mundo interior as narrativas so representadas. tamt esta a diferenga entre cinema ¢ teatro, ou entre tela © palco (ideia a explorar mais tarde). Portanto, assumo qualquer narrativa como um processo mental de representar estruturadamente a realidade ou ideias sobre a mesma. Sem essa representagdo mental, aquilo a que chamamos narrativa € exclusivamente um acontecimento limitado pelo espago e tempo da sua ocorréncia, Explorando um pouco mais essa relagdo espago-tempo na narrativa (portanto na mente) pela imagem, pode-se, a bem da clara compreensdo, simplificar através de exemplo. Serve de exemplo qualquer filme, seja ficgo ou documentério, Numa sala de cinema, sentamos-nos no mesmo sitio durante duas horas. Durante esse tempo real, © aci ‘sso a narrativa que esté a ser projectada em imagens em movimento, pode-nos deslocar por qualquer local (até imaginério), acompanhando uma acgo que pode acontecer ‘num tempo narrative (mental) de décadas atrés, com duragdo de anos ¢ ordenado por qualquer logica cronoligica, Se 0 nosso corpo esta de facto fixo no espago (no tempo nao & possivel), a nossa mente esti em viagem, encontrando no cinema uma representagio do seu proprio fimcionamento, porque & assim, como 0 filme, que a mente se relaciona com o espaso ¢ com o tempo. Outro exemplo. Poucas pessoas saberdo repentinamente quem so Charles Lutwidge ¢ Alice Liddell Lutwidge era professor de matemitica, em 1862, fazendo um passeio de barco acompanhado pela famflia Liddell, foi desafiado a contar uma histéria as criangas. Inspirando-se na mais pequena, Alice Liddell, inventou naquele momento a base da acgao e personagens do que mais tarde iria publicar em livro sob 0 pseudénimo Lewis Carroll, com o titulo “Alice no Pais das Maravilhas”. A histéria mundialmente famosa, & a representago narrativa de uma imagem mental que Charles Lutwidge tinha de Alice Liddell, conjugada com as suas préprias revolucionérias ideias enquanto professor sobre os paradigmas da infincia e da educago vigentes naquela altura, Enquanto que a viagem de barco que faziam, é um acontecimento de vida, a histéria de Alice é uma tradugdo de uma operagdo mental muito complexa ¢ inerente & condigdo de serse Humano. A Alice da histéria que persegue 0 coelhinho branco, ndo é a Alice que ouve a histéria no barco, e, ao mesmo tempo, é Aqui, ndo falamos de cinema, ou seja imagens em movimento, mas de palavras orais € posteriormente escritas, ou seja imagina¢Zo em movimento. Contudo & na conjugagio da palavra com a imagem, ambos enquanto instrumentos narratives, que juntamente com a evolugio tecnolégica, permitem a passagem da pré-histéria do cinema (a pintura do homem a cagar um veado), para a histéria do ‘inema como o conhecemos (a saida dos operarios dos irmios Lumiere). A tecnologia permitiu transformar a narrativa das palavras numa narrativa visual. Juntando todos os elementos descritos, constrdi-se a importincia que dou 2o cinema enquanto fenémeno mental na dupla vertente de traduzir a mente e de “atingit” a mente, As suas bases, enquanto actividade humana so anteriores ao uso da palavra, sio reflexo de uma produgo mental e de uma necessidade de representagdo do mundo. Por isso, 0 considerar com tanto valor no trabalho em torno da mente. Tanto do ponto de vista do trabalho relative & mente que através do nema pode s xr feito, como do trabalho relative ao proprio cinema que atrav da mente pode ser feito. O cinema, & a possibilidade de transformar os percursos mentais na rela¢io espaco/tempo/pensamento, em narrativas visuais cuja capacidade de reflexo no espectador é imenso, Sendo verdade que a literatura faz 0 mesmo, a diferenga esta para mim na origem primitiva do cinema como descrita anteriormente. Apesar de qualquer narrativa actual ser indissocia | da palavra (por exemplo, qualquer filme é escrito antes de ser feito), também o nosso pensamento o é. A partir do momento em que a linguagem se tornou caracteristica humana, serviu de suporte para todas as formas mais complexas de pensamento que possuimos. A aparente valotizagdo aqui dada ao cinema em detrimento de outras representagdes narrativas, deve-se apenas a essa origem primitiva, Da mesma forma que antes da linguagem, o ser Humano usou a narrativa da imagem para representar © mundo e a si mesmo, também, milénios depois da linguagem, a narrativa da imagem em movimento (imagem na dimensio espago/tempo) nos atinge primitivamente. ‘Nao ignorando a complexidade técnica e tecnolégica do cinema, nfo deixa de ser uma forma de representar pensamentos e acces com uma potenciatidade gigante de, pelo autor, ser produzida a partir de conteidos primitivamente inconscientes. Pelos testemunhos de muitos cineastas, percebemos que apesar de escritos, muitos filmes surgiram inicialmente como sequéncias de imagens na cabega do criador. Esctevé-las, tomnou-se um requisito técnico, Também a potencialidade, pelo espectador, de ser uma via para atingir esse lugar primitive da mente. A passividade (palavra sem juizo de valor) de acgiio do espectador perante a visualizagio pode-se assemelhar & passividade do mesmo perante um sonho enquanto dorme. IL Li Assumindo a redundaneia do cinema como uma representagio da representago mental do mundo, verificamos que os filmes nio sio reflexos da realidade mas sim reflexos do processamento mental da realidade. E aqui que se distancia também de outras formas de representago narrativa como so aquelas que acontecem em palco ¢ ndo em tela. O teatro ou a danga, por exemplo so também. representagdes simbélicas do mundo © de nés préprios, contudo a sua natureza de exibigdo faz toda a diferenga quanto & forma como reflectem e sdo reflectidas nas pessoas e no mundo. Uma representagao em paleo, tal como um acontecimento de vida, & efémero, ou seja, dura apenas o momento em que acontece. O cinema vive num suporte, num registo, Usando essas caracteristicas fazendo uma analogia com a mente, poder- -ia dizer que o cinema representa um exerci cio de meméria enquanto que ‘uma apresentagio em paleo representa um exercicio de vivenciagio. Quando contamos uma histéria sobre um episédio da nossa propria vida, o nosso recurso & a meméria ¢ 0 nosso instrument & a capacidade narrativa através da linguagem. Quando vivemos um epis6dio da nossa vida, 0 nosso recurso é o acontecimento em si ¢ o nosso instrumento é a capacidade do corpo interpretar sentir o momento do acontecimento, Enquanto que a tela 6 metaforicamente o lugar das representagdes rmentais e da meméria, 0 paleo & o lugar das representagdes do vivido. Nada do que esta sendo dito, adiciona ou retira valor artistico, cultural ou nenhum outro a nenhuma das formas artisticas de representagdo narrativa, O teor desta anilise é estritamente analitico do ponto de vista mental, Neste sentido existe a distingio entre experiéneia e meméria. A imagem em movimento na tela, comparando com os corpos em movimento no paleo, ao invés de traduzir a experiéncia do vivido, traduz a experiéncia do capturado e recordado pela meméria (neste aspecto fazendo mais paralelo com a literatura do que com 0 teatto). Da mesma forma que anteriormente disse que a pintura rupestre se liga mais ao cinema do que as artes plasticas, o teatro liga-se mais as artes plisticas do que ao cinema, Isto exclusivamente do ponto de vista dos processos mentais. © que sustenta esta posi¢ao é 0 facto de no teatro ¢ nas artes plisticas a vivéneia do momento do acto de criago ser central, enquanto que nas pinturas rupestres e no cinema 0 centro ¢ 0 processamento mental transformado em objecto. Enquanto que um filme & um objecto de transfiguragdo e representagdo da dimensdo espagotempo, existindo fora dela, uma pega de palco é um objecto existente apenas através dessa dimensdo, ou seja, a dimensio espagoitempo 0 proprio acontecimento da pega, Se fizermos um esforso para nos recordarmos de um episédio da nossa vida, a nossa meméria funcionaré com planos gerais, grandes planos, planos de sequéneia, violasdes das regras cronolégicas, edigio e cortes, tratamento de luz, até perspectivas em que nos vemos a nés préprios, tal como um filme 0 permite fazer. Ao vivermos um episédio, nesse momento, temos um plano tinico ¢ temos as sensagdes directas do corpo, tal como 0 enquadramento que um paleo e a presenga de corpos em cima do mesmo oferecem. E por isso que ir ao teatro e ir ao cinema sio experiéncias tio diferentes, e enriquecedoras de forma nao comparivel. Como disse, nenhum ponto em anilise coloca ou retira algum tipo de valor artistico ou cultural a estas representagdes. Esse valor, como em tudo, depende do objecto em si mesmo (do filme, da pega, etc.) ¢ sobretudo da permeabilidade do espectador no momento em que o esta a ser. Ha momentos em que temos sede © momentos em que temos fome. O valor da Agua ou do pio, dependem se, enquanto espectadores, estamos com sede ou estamos com fore. Se 0 valor do palco esté na representacao do vivido, 0 valor da tela est na representagao da meméria Aquilo que digo & que 0 cinema tem uma origem ancestral por reflectir uma necessidade ancestral: representar por imagens o processamento mental dos mundos interno ¢ externo. Essa origem Primitiva, di-lhe uma potencialidade de comunicar com o primitivo em cada um de nds. E uma forma de expresso e representagdo mais antiga do que nés préprios e do que ela propria. Nao foi acidental, ter-se tomado, desde a invengdo do cinematégrafo, a arte mais prospera, mais democritica (na perspectiva de ter chegado © conseguido comunicar com todos os estratos da populagdo) e mais consensual na massificagdo e variedade de tendéncias artisticas dos seus seguidores. © argumento desse “sucesso” se dever a0 facilitismo com que o cinema caiu no entretenimento de pouco conteddo, esbate-se se nos lembrarmos, por um lado, que todas a formas artisticas cairam nesse facilitismo sem nunca atingirem a massificagdo de adeptos do cinema, ¢ por outro, verificando como obras cinematogrificas de reconhecido valor artistico, tém reconhecimento também de forma massificada. Associar 0 cinema a um fenémeno de massas, néo é um elogio nem ao cinema nem as massas, & apenas uma constatagao de, enquanto forma de representagao simbélica, encontrou uma via privilegiada de acesso ao mundo interno das pessoas. Inaugurada essa via, com a primeira pintura rupestre,

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