Você está na página 1de 2
Hermenéutica tragica: uma apresentagao breve * imagens de Allison Diaz ilustram 0 post. © que distingue a filosofia tragica das demais inclinagées filoséficas nao se resume a constatagao de que 0 mundo é privado de sentido, mas abrange 0 decorrente reconhecimento de que a intensidade dos sentidos imaginérios engendra nossa maneira de viver no mundo. Foi tal aspecto que me levou, em minha tese de doutorado, a recorrer ao registro hermenéutico: embora as interpretagdes possiveis sobre o mundo ndo alterem o mundo interpretado — eis o dado trgico (casual, indiferente, sem sentido) da existéncia —, 0 mundo sé pode ser compreendido por intermédio dos sentidos. Trata-se de, uma vez constatado o permanente esforgo humano de atribuir sentido a uma existéncia que prescinde de qualquer sentido, tornar visivel 0 exercicio criativo da interpretagdo, da expressao, dos gostos e desgostos por meio dos quais nos inserimos no mundo. Enquanto teoria da interpretagéo, a hermenéutica Pressupée nao somente a nog de texto e a nogéo de apropriagdo efetuada pelo leitor, mas especialmente certo fluxo que vai de um para outro: “compreender & compreender-se diante do texto”, nos termos de Paul Ricoeur (Hermenéutica e ideologias. Vozes, 2008, p. 23) Por sua vez, a ideia de uma “hermenéutica tragica” (desenvolvida em minha tese) comega por reconhecer que 0 mundo é insignificante, isto 6, ndo possui sentido inerente, Se ndo possui sentido, ndo é interpretavel, © que nao o impede de ser pensado e, portanto, interpretado: nao cessamos de atribuir sentido a um mundo que & sem sentido - dai que as interpretagdes possiveis nao interferem na coisa interpretada, Ao mesmo tempo, [.-] toda interpretagao revela o préprio processo de interpretar, instaura uma rede de sentidos que, sem deixar de se relacionar com o real, inapta a reté-lo ou circunscrevé-lo, ou seja, nao pode jamais definir © seu sentido, mas apenas o préprio sentido da interpretagao, — Rogério de Almeida, 0 imaginério tragico de Machado de Assis: elementos para uma pedagogia da escolha. Sao Paulo: Képos, 2015, p. 88. Pa Segue que o mundo, sob o viés de uma hermenéutica tragica, pode ser entendido como um tipo de “texto” que, embora nao possua nenhum sentido a ser extraido, serve como palco para uma rede complexa de sentidos a serem rearranjados pelos “leitores". O que se interpreta, portanto, nunca é o mundo mesmo, e sim uma proposigao de mundo que, nos termos de Ricoeur (op. cit., p. 57-58), “nao se encontra atras do texto, como uma espécie de intengdo oculta, mas diante dele”, isto 6, a partir do modo como seu leitor 0 interpreta, locaizando-se na letura que o mundo-texto possibifta Noutros termos, se tudo pode ser interpretado é precisamente porque nao ha o que ser interpretado, Nada ha, além de interpretagoes, para ser compreendido. Isso nao implica, contudo, que se recuse a interpretar , portanto, que se invalide a hermenéuti a. Arecusa do pensamento tragico nao concerne ao ato de interpretar ou as interpretagées produzidas, mas téo somente que haja algo a ser interpretado, isto é significado, uma ordem, um contetida inerente ao real. Ahermenéutica tragica opde-se, nao obstante, a concepcao pseudo-tragica segundo a qual o aspecto tragico da existéncia somente se “revela” quando nao ha mais nada a se dizer nem a se pensar. Essa nogao de tragico como absurdo, como um discurso detido, como pensamento imobilizado, procede de uma aceitagao parcial do tragico: ele é admitido apenas como excegao de uma ordem racional, normal, harmoniosa, como se houvesse uma esfera dos sentidos e, exteriormente, uma esfera do tragico. Nao hd duas esferas da realidade, tragica e ndo-tragica; o que pode haver sao dois modos de olhar, tragico @ nao+tragico, para uma mesma realidade ~ a diferenga deixa de ser metafisica e passa a ser interpretativa, Significa que 0 mundo que interpretamos & sempre o mesmo, mas o que é interpretado nunca é um mesmo mundo. E num mundo traduzido por sentidos que o expressam pluralmente e por meio dos quais nos inserimos nele, nao hd o que se ver reinterpretar 0 que vemos @ 0 que somos. or trds” das coisas vistas. Resta-nos a escolha entre reproduzir ou Minha tese de doutorado foi publicada pela editora 2ab e se encontra 4 venda neste LINK. Confira 0 BookTrailer:

Você também pode gostar