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UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA 32 Edigao — i fl aE INTRODUGAO Viviamos os idos de 1965, o Brasil recém-ingresso no auto- ritarismo do regime militar, e eu me preparava para entrar na faculdade. Embora ainda nos orgulhasse o prestfgio internacional que Nossa arquitetura havia conseguido com a Exposigiio Internacio- nal de Nova York, com a Pampulha e, sobretudo, com Brasilia, nao me lembro de que estes fatos tenham tido qualquer influéncia na minha escolha: faltava-me informagao para tal. Creio mais em dois fatores: o fascinio do desenho (uma carreira em que eu pu- _ desse ganhar dinheiro fazendo o que me divertia) e a natureza da profissaéo, que me daria prestigio semelhante ao da engenharia, mas com a vantagem de ser ligeiramente... contracultura. Era uma decisao pouco refletida e emocional, como costumam ser as grandes decisées de nossa vida. Nao sabia nada sobre arquitetura. O arquiteto “fazia plantas de casas”... “desenhava fachadas”... Isto de forma alguma me satisfazia. Eu precisava saber mais sobre a profissdo que eu havia escolhido, embora nao tivesse nenhuma dtvida quanto a escolha. io conhecia nenhum arquiteto, mas perguntava a todos aqueles i que eu imaginava com alguma condigao de me adiantar os conhe- cimentos: “Serd somente isso? Desenhar plantas e fachadas?” Pouco consegui como resposta. Apesar disso, entrei para a facul- dade, e aos poucos a idéia da arquitetura foi-se formando na mi- nha cabega. O texto que se segue consiste nas primeiras palavras que devem ser ditas a alguém que deseje as informagoes basicas so- bre arquitetura. O que se deve saber antes de tudo. Partimos do pressuposto de que o leitor no é pessoa familiarizada com 0 texto especializado, por isso evitamos a forma académica, fazendo cita- gdes e assinalando os créditos das idéias expostas. Preferimos a forma coloquial. Abrimos mao também da linguagem técnica, evi- tando mencionar conceitos que 0 leitor supostamente no possui. Estas duas opgées trazem consigo o beneficio da facil comu- nicabilidade, mas tém um inconveniente: diminuem um pouco a precisao daquilo que estamos dizendo. Todavia, parte das idéias expostas poderd ser encontrada nas referéncias bibliograficas men- cionadas ao final dos capitulos ou na bibliografia basica, fornecida no final do livro. Passemos entao ao nosso tema, que pretende ser aquela con- versa que eu desejava e procurava nos jé distantes anos 60, ¢ que me traz A memoria aquele jovem que fui, preocupado com 0 meu destino e do meu pais. Fagamos uma primeira e definitiva pergunta: “O que é arqui- tetura?” Parte I O QUE E ARQUITETURA Capitulo I CONCEITUACAO DE ARQUITETURA Comecemos pela palavra arquiteto: tecton, em grego, desig- naya um artifice ligado & construgao de objetos por jungio de pegas, como um carpinteiro, ¢ ndo por modelagem ou entalhe; o prefixo arqui indica superioridade. Assim, arquiteto, etimologi- camente, quer dizer “grande carpinteiro”. Desconsiderando as _ variagGes que a palayra pode ter assumido através dos séculos de cultura ocidental, hoje a empregamos com diversas acepgdes, dentre as quais destacamos as trés mais importantes. UMA PROFISSAO Arquitetura €, em primeiro lugar, uma profissao de nivel su- perior. O seu currfculo de graduagfio compoe-se de matérias re- ferentes a trés distintas reas do conhecimento: a drea técnica _ inclui disciplinas como Mecanica Racional, Resisténcia de Mate- riais, Calculo Estrutural e Instalagdes Domiciliares; na drea cha- mada “humanidades” temos as matérias concernentes 4 Historia 21 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA, e Teoria da Arte e da Arquitetura, Psicologia e Sociologia aplica- das a arquitetura e ao urbanismo; a terceira area destina-se ao treinamento e inclui disciplinas relacionadas com a representacao e composi¢ao de projetos: Geometria Descritiva, Representagao da Forma, Desenho de Observacdo, Desenho Arquitet6nico Composicao de Projetos de Arquitetura. Arquitetura como um curso ou uma profissao € 0 sentido mais pratico que pode adotar a palavra. « UM PRODUTO CULTURAL Imaginemos um estudioso do futuro, um antropdlogo ou um ar- queélogo, que deseje saber como viviam seus antepassados do sé- culo XX d.C. O quanto nao lhe poder informar a observagdo e o estudo de nossas cidades? Saber este estudioso como comiamos, como trabalhdvamos, como nos divertfamos; como utilizavamos nossas disponibilidades técnicas e como nos apropridvamos de nos- sos espagos domésticos e urbanos; como nos agrupdvamos ¢ como nos segreg4vamos. Da mesma forma, muito do que sabemos sobre as sociedades e civilizagées anteriores as nossas, 0 aprendemos pela observacio e anélise da arquitetura desses povos; sabemos sobre habitos, grau de conhecimento técnico, grau de sensibilidade e ideologia através do estudo dos seus edificios e rufnas. Estamos agora falando de arquitetura de uma maneira dife- rente, naio mais como uma atividade, mas como um produto cul- tural. No primeiro caso, faldvamos sob 0 ponto de vista do de- sempenho; agora falamos sob o ponto de vista antropoldgico. ze & EXCELENCIA ESTETICA OU — UMA ARTE Sob 0 critério estético, apenas uma parte do conjunto de edi- ficios serd considerada arquitetura: somente aqueles que, para sua 22 BBY Parte | - O QUE E ARQUITETURA concep¢ao e construgio, puderam contar com um arquiteto de conhecimento, sensibilidade e talento, com 0 local certo, 0 mo- mento certo, as condigdes materiais necessdrias, 0 tempo e 0 di- nheiro suficientes. Em todo o processo de produgao, os valores estéticos sobrepujaram os valores utilitérios ou comerciais. Sob este terceiro ponto de vista, que chamamos crifério de excelén- cia estética, predomina a arquitetura como uma arte. Em nosso trabalho, consideramos sempre a arquitetura como uma arte, porque assim estaremos incluindo os outros critérios os ultrapassando. Critérios estes que deveremos sempre ter pre- sentes, pois sao, de certa maneira, insepardveis: a arte deve ser uma meta; 0 produto cultural, um fato compulsério; a profissdo, a formagio académica, um meio. o = AS OBRAS-PRIMAS Cabe porém uma adverténcia. Encarar a arquitetura como arte nao significa considerar apenas as obras-primas. Esta ob- servacao é importante, pois, ao folhearmos os livros de Historia e Teoria da Arquitetura, encontramos um rol de edificios emble- miaticos do periodo em que se inserem, que sao as obras-primas da arquitetura. Sao templos gregos; termas,* bastlicas e anfi- teatros* romanos; catedrais romanicas e géticas; palazzos* e villas* renascentistas; igrejas e palacios barrocos. No perfodo moderno, despontam alguns nomes de arquitetos: Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Walter Gropius, Mies van de Rohe, 0 nosso Oscar Niemeyer e outros. Os edificios histéricos, as obras destes arquitetos, vao além do critério de exceléncia estética: so obras primas. io o que de melhor a humanidade ja produziu em termos de arquitetura. Nao é necessdrio ao edificio ser uma obra-prima para caber dentro do conceito de obra de arte. Assim como temos grandes obras literérias que nao foram escritas por Goethe ou 23 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA Dante Alighieri, também podemos ter grandes obras de arquitetu- ra fora deste rol de obras-primas. Se estudamos através delas é por motivo didatico. Nelas as a linguagem poética é mais forte e pura, facilitando pois a apreensao e andlise. 24 Capitulo TT ARQUITETURA COMO ARTE O EDIFICIO COMO OBRA DE ARTE Considera-se tradicionalmente a arquitetura como uma das belas-artes, juntamente com a escultura, a pintura, a mtisica e o teatro. Este critério exclui grande ntimero de ediffcios ao nosso redor. Para ser considerado arte, além do atendimento aos requi- sitos técnicos, como a solidez estrutural e a qualidade dos mate- riais, e das demandas utilitarias, como a adequacaio dos espagos aos usos, deve o edificio tocar a nossa sensibilidade, nos incitar contemplacgao, nos convidar 4 observacgao de suas formas, a tex- tura das paredes, ao arranjo das janelas, ao jogo de luz e sombras, as cores, 4 sua leveza ou solidez. E preciso que todos estes ele- mentos estejam submetidos a um princfpio que hes dé unidade, e este principio seja claramente perceptivel. Assim, pela observa- ¢ao, podemos descobrir uma intengao de fazer algo destinado a nos emocionar, como uma bela melodia nos emociona, ou uma bela pintura. Somente assim poderemos considerar um edificio uma obra de arte. 25 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA Fazendo parte da familia das artes visuais, como a pinturae a escultura, tem a arquitetura suas semelhangas com estas: traba- Tha com matéria semelhante — luz, sombra, cores, figuras. Com as outras artes — musica, literatura, danga — possui também pontos comuns, de natureza mais abstrata. Porém, existem condi- gGes que fazem a arquitetura tinica, mantendo-a, de certa manei- ra, tao ligada a um mundo diverso daquele das percepgées sensi- veis, que muitos chegam a se perguntar se é 14, no mundo da mitisica, da pintura e da éscultura que deve estar. LIMITAGOES TECNICAS Uma curiosidade, constantemente citada nos cursos de Esté- tica, envolve as palavras arte e técnica: a palavra arte nos vem do latim ars-artis, cujo equivalente em grego é justamente a pala- vra techne. Este fato nos mostra que, para nossos ancestrais, nao havia diferenca entre fazer algo belo e algo correto tecnicamen- te. Desde a Antiguidade até a Idade Média, a arte era definida como “a maneira correta de se fazer uma coisa”. A diferenciagio entre 0 objeto artistico e aquele apenas utilitério ou eficiente tecni- camente € recente, e nos chega junto com a modernidade e a Revolugdo Industrial.* Pois é justamente esse aspecto técnico o primeiro fator de diferenciagao entre a arquitetura e as outras artes. Toda arte tem sua técnica: nao se pode conceber um pintor que nao saiba prepa- rar convenientemente suas tintas, sua paleta de cores ou 0 substrato da tela — faz parte de sua técnica. O mesmo acontece com 0 miisico, com o escultor. Porém, nestas artes, a técnica desempe- nha papel secundario, dependente. Na arquitetura aconteceré de maneira diversa: a técnica antecede a preocupago estética. Pen- sa-se antes na solidez estrutural, na estanqueidade das paredes para, depois, pensar-se na expressao. Além disso, a técnica, na 26 Parre | -O QUE E ARQUITETURA arquitctura, tem desenvolvimento independente, podendo influirna concepcao dos edificios de modo positivo, oferecendo facilidades para a criacdo, ou de modo negativo, impondo limitacées insupe- raveis. O PRETEXTO FUNCIONAL A qualquer arte pode-se atribuir uma funcao além daquela de propiciar uma experiéncia estética. Os mosaicos bizantinos, os vitrais géticos, os afrescos renascenti: ao representarem te- mas biblicos, milagres, martirios e atos-de-fé, serviam para divul- gar e fortalecer 0 catolicismo; as pinturas retratando grandes per- sonalidades ¢ eventos histéricos eram o tinico registro iconografico destas personagens e fatos anteriormente ao aparecimento da fo- tografia; sabemos ainda como as obras de arte tém servido para a divulgagiio ou protesto a respeito de ideologias diversas. Os exem- plos mostram fungées da arte diferentes de sua fungao estética. Com a arquitetura acontece que a func&o antecede qualquer ou- tro dado, nao a fungao estética, mas a fungao pratica. Antes de se pensar em um edificio, é necessario que a sociedade precise dele, que haja uma fungdao para ele cumprir; além disso, 0 uso terd papel importante na definigao de sua forma. Em nenhuma outra arte a fungao desempenha papel t&o importante, tao definitivo. O CONTATO OBRIGATORIO Qualquer pessoa pode deixar de ler um livro quando este nao The esté agradando; pode ir ou nao ao cinema conforme sua von- tade; pode visitar ou nao a exposig&o de um pintor ou escultor famoso. Toda arte tem seu ptiblico especifico e limitado ¢ a empatia entre 0 artista e seus admiradores governa esta relagao. Ninguém, entretanto, pode evitar um edificio que nao lhe agrade, se esta no 27 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA seu caminho. O edificio constréi a paisagem da cidade, o cendrio de nossa vida cotidiana. A arte da arquitetura nado se expde nas galerias ou nas salas de concerto, mas nas ruas por onde passa- mos, por onde se desenvolve a nossa vida. Esta é a terceira caracterfstica a diferenciar a arquitetura das outras artes: a presenga localizada e obrigatéria. Por fazer parte do nosso cotidiano, de maneira tao freqiiente ¢ impositiva (e também por possuir outras fungoes fora da estéti- ca), faz-se necessdrio um esforgo de distanciamento para que seja observada como arte: a arquitetura nao se apresenta como tal; é preciso que nés a descubramos. Por outro lado, o fato de ser ptiblica Ihe confere caracteris- ticas de um meio de comunicagio de massas, chamado pelos especialistas de mass-media, Ora, uma arte que impGe sua pre- senca tem limitagées e responsabilidades quanto a forma e con- tetido. O arquiteto nao pode se colocar diante de sua prancheta com a mesma liberdade que o pintor diante de sua tela; a pintu- ra, a escultura, a mUsica tém, se comparadas & arquitetura, uma gama ilimitada de possibilidades de expressdo. O arquiteto so- frera restriges nao somente quanto as disponibilidades técni- cas ou quanto ao pretexto funcional, mas também vera seu tema limitado ao que convém a uma exibigao publica e permanente. Parte II OS SISTEMAS DA ARQUITETURA Capitulo I AS DIVISOES DA ARQUITETURA SEGUNDO VITRUVIO OS DEZ LIVROS Vitrivio € um nome de conhecimento obrigatério para os es- _ tudiosos de arquitetura, autor do primeiro tratado sobre 0 assunto, intitulado Os dez livros de arquitetura, escrito no inicio do Impé- rio Romano, na época de Augusto. Nao se conhece nenhum tra- balho anterior cuja matéria seja especificamente a arquitetura ou mesmo as artes plasticas em geral. Porém, a importancia de Os dez livros... nao € apenas hist6rica e documental. Sua forma ins- pirou diversos tratados a partir do Renascimento até 0 século XIX, além de ainda hoje observarmos grande atualidade em algumas de suas postulagGes teGricas. Vitriivio ndo deixou de ser o primeiro a perceber que, sobre arquitetura, nfo se pode predicar apenas uma coisa; nao se pode simplesmente dizer “arquitetura é isto”, mas “arquitetura é isto, mais isso, mais aquilo”. Sao famosas e sdbias as suas divisdes e classificagdes, das quais destacamos as duas de maior atualidade. 31 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE, Primeiramente percebeu Vitrtivio a vocagao das formas arqui- teténicas para representar coisas diferentes delas mesmas. Em outras palavras: as formas arquitet6nicas tém uma vocagado sim- bé6lica. Dizia: “Em arquitetura devem ser considerados dois pon- tos: aquilo que é significado e aquilo que significa.” Este pensa- mento antecipa 0 que viria a ser um dos maiores métodos de cri- tica de arte do século XX: a lingiiistica estrutural. SOLIDEZ, UTILIDADE, BELEZA A outra divisio a que nos referimos interessa neste momento, quando vamos falar dos sistemas da arquitetura. “Tudo 0 que se constr6i deve ter solidez, utilidade e beleza’ (em latim, lingua do texto original, firmitas, udilitas, venustas). Em linguagem atual podemos dizer que a arquitetura se divide em trés grandes siste- mas, ou que deve atender simultaneamente a estes trés grandes objetivos. A solidez se refere aos sistemas estruturais, ao envoltorio fisico, ds tecnologias, a qualidade dos materiais utilizados. Vitrivio nos diz: “A solidez pode ser conseguida quando as fundagGes sao plantadas em solo firme e os materiais sao sabidamente escolhi- dos.” A utilidade vai tratar da condigéo dos espagos criados, seu correto dimensionamento para atender aos requisitos fisicos e psi- coldgicos dos usuarios, e da maneira como estes espagos se rela- cionam. Para Vitrtivio, a condigio é atendida “quando o arranjo dos ambientes é correto e nao apresenta obstdculos ao uso, e a cada categoria de edificio é assegurada sua adequacio e proprie- dade”. A beleza, palavra que hoje hesitamos em usar, refere-se as preocupagoes estéticas que devemos ter ao projetar e cons- truir: em arquifetura, nao se trata apenas de edificar algo sdlido, de boa técnica e com materiais de qualidade, e que abrigue corre- 32 Panve Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA tamente os usos a que se destina; é preciso nos incitar 4 contem- plagiio e a fruigao. Nas palavras do mestre ¢ arquiteto romano, a beleza esta presente “quando a aparéncia da obra € agradavel ¢ de bom gosto, e seus elementos sao proporcionados de acordo com os principios da simetria”. NOTAS 1 “In architectura haec duo insunt: quo significatur et quod significat.” BIBLIOGRAFIA DE REFERENCIA. VITRUVIO, Marco - Pollio. MORGAN, Morris Hecky. “The ten books of Architecture”, New York. Dover, 1960. BORISSAVLIEVTCH, Miloutine - Las teorias de La Arquitectura. Cordoba, El Ateneo, 1949, 33 Capitulo TV OSISTEMA DA ESTRUTURA EDOENVOLTORIO DO EDIFICIO: FIRMITAS MATERIAIS NATURAIS A arquitetura deve ter solidez, resistir ds intempéries, perma- necer. Para atender a estes requisitos, duas ordens de fatores precisam ser consideradas: a durabilidade dos materiais ea exce- léncia técnica. A natureza propicia ao homem trés materiais de construgao utilizveis sem nenhum processo mais sofisticado de benefi- ciamento: a madeira, a argila ea pedra. Com estes materiais foi feita a quase totalidade das construcdes que conhecemos até o século XIX. A MADEIRA A madeira € utilizada in natura. E cortada das arvores e simplesmente afeigoada, para receber a forma de pilares, vigas ou tébuas. Muito pouco mudou da maneira que os antigos a utili- 34 zavam para os dias de hoje, salvo pelo uso de ferramentaria elétri- ca em lugar dos antigos machados, scrras manuais e enxds. _ AARGILA { A argila pode ser usada em estado natural, na forma de adobe - (tijolo cozido ao sol), de taipa de pilfio (também chamada argila ) apiloada), técnica presente nas nossas construg6es urbanas até fins do século passado, e de pau-a-pique (parede com entramado de madeira preenchido com argila), muito freqiiente nas constru- _ gGes rurais e proletarias. A argila cozida a altas temperaturas nos dé a ceramica, na forma de tijolos e telhas, com caracterfsticas de perenidade bem maior do que em seu estado natural. A PEDRA Dos materiais naturais, 0 que possui maiores qualidades é, sem dtivida, a pedra; é também o mais dificil de trabalhar. Sua dureza, resisténcia e, claro, sua beleza a fizeram o material nobre, o material dos templos e palacios. A POZOLANA Para completar o quadro dos materiais naturais, teremos que citar a pozolana, cimento natural de lavas vulcdnicas com que os romanos faziam o seu concreto. As fermas,* anfiteatros* e tem- plos, a arquitetura monumental romana, eram edificados com uma técnica mista, na qual conviviam a ceramica, 0 concreto de pozolana e a pedra. O ENGENHO HUMANO De posse desses materiais, com os quais p6de contar até pas- sado recente, 0 engenho humano sempre se fez presente para aplicar-lhes a melhor técnica, para descobrir a melhor mescla das : 35 Fic.1 Fic. 2 Fic. 3 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA Parte Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA argilas, a melhor ferramenta para o afeigoamento, a melhor ma- neira de conjugar os materiais, conseguindo assim um desempe- ho cada vez melhor. FORMAS ESTRUTURAIS Com a pedra, dizfamos, foram construidos os grandes monu- mentos da arquitetura do passado. Para tal, dispunham os arquite- tos de duas formas estruturais: a estrutura trilitica e 0 arco. A estrutura trilitica (a palavra trilitica quer dizer feita com trés pe- dras) consiste em dois apoios e uma viga sobre eles, formando um quadro. O arco, mais engenhoso, permite a abertura de maiores vaos e seu desenvolvimento em abdbodas e ctipulas, presentes nos melhores exemplares de nossa arquitetura, Assim como acon- tece com os materiais, também com relagao as formas estruturais pouco vai mudar até o século XVIII, exceto o apuro na concep- cao e utilizagao. MATERIAIS MODERNOS O século XVIII vai registrar 0 aparecimento de dois novos materiais, alterando profundamente o quadro relativamente sim- ples que acabamos de pint: ferro e o cimento portland. Ambos devem seu uso na construgao ao trabalho pioneiro de Abraham Darby (1711-1768), a quem se credita a substituigao do carvao vegetal pelo coque (carvao mineral), mais barato e de melhor de- sempenho, nos alto-fornos. O FERRO Com o barateamento da produgio, o ferro, antes utilizado somente na indiistria bélica, comega a servir a construgao civil e industrial: ferrovias, pontes, locomotivas, navios passam a se 36 beneficiar do novo material. O uso de perfis de ferro nos edifi- cios possibilitou nado s6 a execugdo de vaos muito maiores e mais baratos como ainda sua completa industrializagao, isto é, a construc4o poderia ser inteiramente fabricada em um lugar e montada em outro. Sob este aspecto, o primeiro exemplo da velocidade ¢ eficiéncia da construgao pré-fabricada foi o Pala- cio de Cristal, um pavilhado de 74.000 m’, projetado em nove dias e construfdo e montado em cinco meses para a Exposigao Universal de Londres, em 1851. O CONCRETO ARMADO O cimento portland (cimento artificial cinzento para constru- Gao) apareceré no final do século XVIII; 0 concreto armado (mes- cla de cimento, areia e pedra britada, contendo barras de ferro como armagao) sera pela primeira vez utilizado em meados do século XIX. Estes dois materiais, a partir de entaéo, mudarao a face do mundo. A INDEPENDENCIA DAS PAREDES Temos como uma das primeiras conseqiiéncias do uso das estruturas de ferro e de concreto a liberagao das paredes de sua fungao estrutural; anteriormente, sobre estas recafa o duplo papel de suportar as cargas dos pavimentos e coberturas e vedar 0 edi- ficio, isto é, separar o interior do exterior. Tinham, pois, a fungao portante e a funcao vedante e diviséria; com as estruturas inde- pendentes de ferro e conereto, as paredes ganham maior liberda- de, dispensando-se da fungao portante. ONovVOs SISTEMAS O engenho humano, que com os antigos materiais havia sido tao fértil na exploragdo das estruturas triliticas e arcos, com os novos materiais viu descortinar-se a sua frente um horizonte ilimi- aie Fic. 4 Fic. 5 Fic. 6 Fic. 7 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA tado de formas. Com 0 ferro surgem as treligas planas e espa- ciais, as estruturas de cabo, as estruturas verticais; com 0 concre- to, material plastico que pode assumir qualquer forma desejada, a arquitetura ganha nova liberdade: surgem as cascas, os grandes balancos (formas que se projetam sem apoio para fora da cons- truco). O VIDRO E 0S PLASTICOS Nao apenas materiais estruturais sio agora oferecidos. No- vas técnicas de producio de vidro e o desenvolvimento da indtis- tria petroquimica vao contribuir para a mudanga da aparéncia das nossas cidades. O vidro vai servir para expressar a leveza e trans- paréncia desejadas pelos tempos modernos, nas grandes cortinas que envolvem os edificios atuais. A indiistria téxtil e a petroquimica, com a produgao de plasticos, vao trazer para a arquitetura acadé- mica um dos principios mais primitivos de construgao: a tenda. ESTRUTURA E FORMA O sistema estrutural nao é, entretanto, isolado dos outros sis- temas, da forma e da fungao. E desejével — os arquitetos 0 pro- curam sem cessar — haver uma integracio tio grande entre os sistemas que n&o se perceba onde comega um e finda 0 outro. Assim, muitas vezes a concepgao estrutural toma a frente na de- finigdo formal do edificio. Como exemplo, poderfamos citar os grandes feitos da arquitetura gética, quando se elevou A maxima expressdo a estrutura em arco, As abébadas goticas so ao mes- mo tempo elementos estruturais e elementos formais. 38 Panre Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA, BIBLIOGRAFIA DE REFERENCIA FOSTER, Michel (Editor) The Principles of Architecture. New York, Millard Press. 1982. FRAMPTON, Kenneth. Histdéria Critica da Arquitetura Moderna. Sao Paulo, Martins Fontes. 1997. JORDAN, R. Furneaux. Histdria da Arquitetura no Ocidente. Lisboa. Verbo, 1985. 39 Capitulo V AS FUNCOES DA ARQUITETURA: UTILITAS A UTILIZAGAO DO EDIFICIO A maior parte das atividades humanas necessita de um edi- ficio que tenha sido projetado para elas; assim, além de resistir as intempéries, deve o edificio abrigar uma atividade. A nossa moradia, por simples que seja, ter4 dreas de convivio e de reco- lhimento, areas serventes, areas servidas e Areas de ligagao; em uma escola, é necessdrio que as salas de aula oferegam o devido conforto aos alunos ¢ ao professor, que a iluminagao e a ventilagao sejam adequadas, que as areas de recreio e adminis- trativas tenham implantagao e dimensionamento convenientes. Assim como as moradias e escolas, também os hospitais, os teatros, os edificios de escritérios exigem espagos cada vez mais especializados e flexfveis, capazes de assimilar as constantes mutag6es no nosso modo de vida. Todas estas consideragdes pertencem ao dominio do segundo sistema: a fungao ou utiliza- ¢ao do edificio. 40 Paate Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA A FUNGAO SINTATICA O edificio possui trés categorias de fungoes. A primeira delas refere-se 4 sua relagdo com a cidade, com 0 terreno ou sitio onde est4 implantado. Todo edificio representa um papel na paisagem, seja esta artificial, construida, culturalmente carregada, seja uma paisagem natural, agreste. Este papel nao é definido pela ativida- de que abriga, mas por sua simples existéncia, pelo simples estar naquele local. Chamamos esta fungao desempenhada pelo edifi- cio junto ao seu contexto imediato de fungao sintatica (a sintaxe é o estudo das relagdes dos objetos entre si). A FUNGAO SEMANTICA Por outro lado, 0 edificio sempre significa alguma coisa para a sociedade: uma igreja simboliza a religiosidade, um tribunal sim- boliza a ordem juridica, uma habitagao, sua privacidade e prote- cao; enfim, o edificio, além de abrigar uma atividade, também a representa para a sociedade. Esta outra fungéo chama-se fungao semantica (a semantica estuda a relagao entre os objetos e seus significados). A FUNCAO PRAGMATICA Finalmente, 0 edificio abriga uma atividade; deve ser dimensionado para tal, situar-se em local adequado, atender as exigéncias da fungao; um posto de satide é diferente de uma dele- gacia, de um teatro, uma vez que suas atividades sao diversas. Esta fungao de abrigar uma atividade chama-se fung&o pragmd- tica (a pragmatica estuda as relagdes dos objetos com seus usos). Al Fic. 23 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA FUNCIONALISMO Embora a preocupacao com a funcado sempre tenha sido parte da arquitetura, nos tempos modernos ela adquire importancia bem maior. Isto porque nos tornamos essencialmente funcionalistas. Quando nos defrontamos com um objeto desconhecido, a primeira pergunta que nos vem é: “Para que serve?” Desde que a socieda- de é assim, a arquitetura no poderia ser diferente. Daf decorre que uma das caracterfsticas da arquitetura moderna é seu funcionalis- mo,* além de atender as demandas de uso, que sempre lhe foram pertinentes, agora o edificio sera julgado bom ou mau na propor- ¢&o em que atende mais ou menos 4 fungao a que se destina. A FORMA E A FUNGAO O funcionalismo passou a ser, desde as primeiras décadas deste século, palavra de ordem dos arquitetos. Tratava-se de uma reagao ao academismo, que utilizava nos edificios uma forma ja consagrada, porém anacr6nica, uma vez que as exigéncias ja nado eram as mesmas; era a muito custo que uma fabrica ou estagéo ferrovidria adaptava-se a forma de um palazzo* renascentista. Dai surgiu 0 epiteto “a forma segue a fungiio”, que direcionava os arquitetos a buscarem formas inovadoras para 08 novos progra- mas. A frase foi trazida das ciéncias biolégicas, onde procura ex- plicar a forma dos diversos 6rgaos, células e organismos como conseqiiéncia da fungao que lhes é destinada. A TIRANIA DO FUNCIONALISMO Retirada do universo pleno de cientificidade da biologia, onde reina absoluto, e trazido para 0 universo movedigo da arquitetura, o lema gerou muitas controvérsias, primeiramente porque muitos 42 Panre Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA problemas de projeto ndo encontram suporte no simples atendi- mento & funcionalidade, depois porque a frase refere-se apenas & fun¢ao pragmatica do edificio, esquecendo-se das fungdes sintati- ca e semantica. A tendéncia atual é procurar um equilibrio entre os sistemas, abandonando a tirania do funcionalismo. 43 Capitulo VI A PREOCUPACAO COM A FORMA: VENUSTAS Oterceiro predicado vitruviano da arquitetura é a beleza (em latim, venustas), palavra que os filésofos e tedricos antigos usa- vam com maior liberdade do que hoje fazemos. Para nés, 0 con- ceito de beleza esta vincado pela relatividade das determinagdes do gosto pessoal e das tradigdes culturais, uma situag&o certa- mente desconhecida no inicio da era crista. A BELEZA CLASSICA Para a Antiguidade classica, a beleza possuia 0 valor de uma verdade preexistente e a atividade artistica era vista como uma aproximacao destes modelos ideais. O artista classico valorizava a imitaco e buscava através dela o aperfeigoamento de determi- nada forma. Assim, as artes imitativas (pintura e escultura, por exemplo) procuravam, pela reproducio, alcangar a forma ideal 44 Pane Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA de um objeto. As artes nfo-imitativas, como a arquitetura, nao escapavam deste objetivo, embora o perseguissem de maneira mais abstrata e indireta; a coluna do templo grego procurava imi- tar a proporgiio do corpo humano: a relagdo entre base e altura deveria reproduzir a relagao entre o comprimento do pé e a altura total do individuo considerado de formas ideais. Conseqiientemente, a arte classica buscava estabelecer normas, regras, cdnones que deveriam ser seguidos. A IDADE MEDIA A arte medieval ocidental iré afastar-se dos antigos ideais classicos; os temas serao quase exclusivamente religiosos ¢ os _ valores morais irao sobrepor-se aos estéticos. As figuras serio expressionisticamente distorcidas: a cabeca (o intelecto, o discer- nimento moral) deverd ser maior que o corpo (a natureza animal, 0 pecado); Jesus Cristo, Maria e os apdstolos serao maiores que as pessoas comuns; 0 céu (0 paraiso cristéo) sera dourado. Na arquitetura, a espacialidade interior sera mais relevante que a apa- réncia exterior e 0 jogo dramatico entre luzes e sombras tentar4 representar a iluminagdo da fé sobre o mundo de trevas. O pensamento classico, entretanto, serd preservado e rein- terpretado sob a ldgica crist& pelos seus principais fildsofos, entre eles Santo Agostinho e Sdo Tomas de Aquino. O MITO DA ORIGINALIDADE ROMANTICA No Renascimento, época de retomada da cultura classica — e, mais ainda, em seus desdobramentos posteriores, 0 maneirismo eo barroco —, 0 quadro da atividade artistica vai mudar. Toma corpo 0 culto a individualidade do artista, que chegaré a um ponto 45 @ UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA maximo no perfodo romAntico (século XVIII). O “belo” deixa de ser um ideal externo ao homem, procurado na imitagao da nature- za, passando a ser, ao contrario, um atributo interior de alguns seres especiais, os artistas, génios de subjetividade privilegiada e grande imaginacao criadora. A imitagao deixou de ser aceita como pratica necessaria 4 busca da beleza ideal; a questo de ordem agora seria a expressao interior, diferenciada, que recebeu 0 nome de originalidade. Com esta situagdo, a “beleza’” perdeu seu cu- nho de “verdade absoluta”, atomizando-se em manifestagOes in- dividuais, cuja validade passou a depender do prest{gio que o artis- ta dispusesse em seu meio. Configura-se entdo 0 conceito de be- leza que, de certa maneira, hoje seguimos: algo relativo, depen- dente do contexto cultural, do gosto pessoal e da autoridade do artista. A ESTETICA Paralelamente a proliferagao de modelos de atitude em rela- cdo a arte e a valorizagao da originalidade, comega com Alexander Baumgarten (1714-1762) um trabalho sistematico de especulagao em torno da produgao e fruigao da obra de arte — a estética, que, a partir de entéo, passard a contar com a contribuigéo dos mais notdveis pensadores: Kant, Schiller, Schopenhauer, Hegel, Nietzsche, Marx, Freud. OBJETIVISMO E SUBJETIVISMO As diversas teorias formuladas a partir dai, e que vao interes- sar diretamente & arquitetura, podem ser alinhadas em dois gru- pos: as poéticas subjetivistas e as poéticas objetivistas. As primei- ras sustentam que o fendmeno artfstico tem sua origem na proje- cio de nossas emogées no objeto estético; desta maneira, 0 artis- 46 Panve Il - OS SISTEMAS DA ARQUITETURA ta, ao produzir a sua obra, a “contaminaria”, a “envolveria” com Suas emogoes profundas, que seriam recuperadas pelo trabalho de recriagao do espectador. A teoria de filiagio subjetivista mais conhecida no dominio da arquitetura € a “teoria do einfiuhlung”,* de Theodor Lipps (1851-1914). As teorias objetivistas concentram sua atenciio nos fendme- nos mais evidentes da obra — figuras, cores, linhas, massas — e em sua reciproca relagdo de proporgao, ritmo, simetria; o prazer estético viria do entendimento da exceléncia com que o artista dispés estes elementos em sua obra. O CLASSICO EB O ROMANTICO NA ARQUITETURA MODERNA Tendo por base a visao histérica exposta anteriormente, en- contraremos na arquitetura moderna sinais da tradigao classica _ (candnica, normativa) niio somente na obra de seus grandes pre- cursores (na primeira fase de Le Corbusier ou na fase americana de Mies van der Rohe) como também, e sobretudo, na aplicaggio de modelos conhecidos e aprovados da produg’o que chamamos “es- tilo internacional”, correspondente aos anos 30, 40 e parte dos anos 50 na Europa e nos Estados Unidos. A tradigao romantica da origi- nalidade, imaginagao criadora e subjetividade aparecerd nos traba- Ihos finais de Le Corbusier, na obra de Oscar Niemeyer, em gran- des momentos de Frank Lloyd Wright, entre tantos outros. O SUBJETIVISMO E O OBJETIVISMO NA ARQUITETURA MODERNA No que se refere ao outro corte que fizemos do pensamento Atual, caracterizado pela oposic¢ao obj etivismo-subjetivismo, o qua- 47 Fic. 9 Fic. 10 Fic. 11 Fic. 13 Fic. 33 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA dro da arquitetura do século XX mostra clara preferéncia pelo primeiro. As poéticas objetivistas (purismo,* neoplasticismo,* construtivismo,* elementarismo*) predominam sobre 0 pensa- mento subjetivista, que fica limitado apenas ao expresstonismo,* embora possamos encontrar em muitos arquitetos de relevante produgao alguns momentos de inspiragaio subjetivista. Voltaremos ao assunto quando falarmos do contetido psicolégico na arquitetu- ra, na Parte IV. A PREOCUPACAO COM A FORMA Voltando A classificagio vitruviana, embora a discussao so- bre beleza nos leve a um terreno em que sobram quest6es € min- guam respostas, podemos recolocar 0 problema de maneira que nos faga caminhar mais seguramente em direg&o ao maior conhe- cimento do nosso objeto. Qualquer que seja sua relagio com 0 conceito de beleza, é certo que a preocupagdo com a forma constitui-se no mais importante clo da trfade vitruviana; € aquilo que distingue a arquitetura de construcdo ou edilicia. BIBLIOGRAFIA DE REFERENCIA BAZIN, Germain. Historia da Histéria da Arte, Sio Paulo, Martins Fontes. 1989. FUSCO, Renato de. A Jdéia de Arquitetra. Lisboa. Edigdes 70. 1984. PANOFSKY, Erwin. Idéia. A Evolucdo do Conceito de Belo, Sio Paulo. Martins Fontes, 1986. SCRUTON, Roger. Esiética da Arquitetura. S20 Paulo, Martins Fontes, 1983. ZEVI, Bruno. Arquitetura in Nuce. Sao Paulo. Martins fontes. 1986. Parte TIT A FORMA NA ARQUITETURA Capitulo VI O ESTUDO DA FORMA ARQUITETONICA MATERIA, FORMA, CONTEUDO A palayra forma tem significados diferentes, quer se fale de filosofia, matematica ou artes. Utilizamos aqui sua acepgdo nas artes plisticas em geral, em nada diferente de sua acep¢ado em arquitetura. O conceito de forma esta ligado a dois outros que lhe sdo contiguos: um que lhe € anterior, a matéria: outro que Ihe é posterior, 0 contetido. Com relagio A primeira, forma é a confi- -guragiio dada A matéria com a finalidade de obter um objeto indi- vidualizado. Em oposi¢ao ao segundo, 0 contetido, a forma de um objeto € aquilo que se apresenta aos nossos sentidos imediata- mente, antes de qualquer reflexdo que possamos ter sobre este objeto; aquilo que podemos ver, tocar, ouvir. A forma de um edifi- cio , pois, sua silhueta, sua massa, sua cor e textura, seu jogo de luzes e sombras, a relacdo e disposigao de seus cheios e vazios. Como primeiros passos no vasto terreno do estudo da forma arquitet6nica, impdem-se duas importantes abordagens: a primei- ta, discernindo e analisando seus principais elementos constituin- 51 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA tes, 0 volume, 0 espaco © a superficie; a segunda, sistematizan- do as diversas categorias da forma arquitet6nica. VOLUME, ESPACO, SUPERFICIE Podemos ver o objeto arquitetnico sob Angulos diferentes. Podemos vé-lo de fora, observando as relagGes que estabelece com o meio ambiente, observando sua silhueta, sua composicao de massa; quando o fazemos, consideramos a forma volumétrica do edificio. Em seguida, estando em seu interior, desaparecem as relagdes exteriores e somente poderemos considerar © edificio e seus elementos entre si, e relacionados com a nossa propria pes- soa; neste momento estaremos voltados para a forma espacial. Finalmente, poderemos dirigir nossa atengao para aquilo que se- para 0 interior do exterior e que organiza e divide os ambientes interiores, o muro divisério; estamos neste caso considerando for- ma mural ou superficial. Em uma mesma obra, raramente estes trés elementos tém igual peso; 0 mais comum é dar-se relevo a um deles em detri- mento dos outros. CATEGORIAS FORMAIS A forma arquiteténica nasce de um conjunto de idéias que o arquiteto possui a respeito da arquitetura em si, de sua relacao com o meio, da importancia de sua historia, de sua técnica, do programa que vai abordar etc. Este conjunto de idéias, varidvel de acordo com a época, local e outras condigées, alinha-se em deter- minadas categorias, que cumpre sejam conhecidas para um me- Jhor entendimento do objeto arquiteténico. 52 Capitulo VIII FORMA VOLUMETRICA VOLUME REAL OU VIRTUAL , A forma volumétrica considera a aparéncia externa do edifi- cio em seu conjunto, em sua totalidade. E 0 primeiro contato que pemos com 0 objeto arquiteténico. A consideracao inicial que se impéde € que o volume pode ser real ou virtual. O volume real define-se completamente pelo enyoltério de paredes do edificio; 0 volume virtual fica sugerido por alguns elementos. No primeiro caso temos um volume real, um sélido; no segundo, temos um volume virtual, isto é, apenas o percebemos como volume, visto que seu continente lateral, suas “paredes”, so imaginarias. VOLUME SIMPLES OU COMPOSTO A forma volumétrica pode consistir em volumes geométri- cos simples — um cubo, um paralelepipedo, um cilindro, uma iramide — ou ser composta pela associagao de diversos volu- 53 Fic. 15 Fic. 16. Fic. 17 Fic. 10 Fic. 18 Fis. 19a UMA INTRODUQAO A ARQUITETURA. mes simples. A composigao por justaposicdo € a forma mais comum de associagio volumétrica. Outras maneiras também freqiientes sio a composigao por articulagdo, quando um ele- mento intermedidrio faz a conjugagao de volumes simples, e a composigéo por intersegao. No caso de conjuntos arquitet6nicos, os volumes podem ser relacionados de maneira também virtual, sem a utilizagao de ele- mentos fisicos; formas semelhantes, utilizacdio do mesmo material. de revestimento ou mesmo tratamento mural, ou ainda a mesma. relagao entre elementos podem criar uma familiaridade entre dois ou mais volumes, de maneira a integré-los na mesma composi¢ao. PERCEPCAO DA FORMA VOLUMETRICA Qualquer que seja a configuragdo ou a situaciio de um edifi- cio, é certo que jamais teremos uma apreensao total imediata de- sua forma volumétrica; nossa percepgao sera sempre parcial e distorcida, devido a deformagées perspectivas; 0 que nos dé a. impressao de termos compreendido 0 volume real e totalmente é um dispositivo mental chamado pela psicologia de “constancia da. forma”. Por meio deste dispositivo sabemos, por exemplo, que uma mesa é redonda, apesar de sempre percebermos a forma de uma elipse, com a qual o circulo se projeta em nosso aparelho visual. Esta consideragao tem grande importancia, pois nos leva a constatagao de que a atividade projetual tem muito de abstrato: a exigéncia de que determinadas partes do edificio se conjuguem com outras de tal ou qual maneira jamais teré uma representacio na realidade. No exemplo da Fig. 18, a correspondéncia entre as partes do edificio, que gera um grau de fechamento absoluto em sua planta, é muito mais importante no desenho que na realidade, onde pequenas variagGes passariam desapercebidas. Pant ll - A FORMA NA ARQUITETURA. IMPORTANCIA DA FORMA VOLUMETRICA Em determinadas circunstancias, a forma volumétrica assu- me papel de maior relevancia em comparagaéo com outros siste- mas da arquitetura tomados em conta no projeto. E o mais impor- tante quando se trata de marcos arquitet6nicos, edificios de gran- de fungao representativa na sociedade, tais como edificios insti- tucionais (prefeituras, foros), marcos comemorativos (monumen- tos e memoriais) etc. Neste caso, a fung¢ao semantica (represen- tativa) do objeto arquitet6nico vai exigir uma forma volumétrica marcante, e condigdes serao dadas para que a mesma possa ser observada devidamente, como, por exemplo, um espago conveni- ente a sua volta e outras providéncias. Uma segunda circunstancia que realga a importancia da for- ma volumétrica acontece quando 0 edificio se situa em um con- texto fraco, isto é, pouco construfdo ou sem elementos naturais marcantes, caso em que sua presenga serd mais evidente. BIBLIOGRAFIA DEREFERENCIA NORBERG. tavo Gili. “SCHULZ, Christian. Intenciones en Arquitectura. Barcelona. Gus- 198. _ ARNHEIM, Rudolf. A Dindémica da Forma Arquitectdnica. Lisboa. Presenga. 1988. Capitulo 1X FORMA ESPACIAL O ESPAGO EXTENSO Ao mesmo tempo que 0 espago € o lugar-continente de todos os corpos, a extensio onde ocorrem todos os eventos, 0 meio vazio onde os seres se locomoyem e onde estao situados os obje- tos, para 0 arquiteto 0 espago é, também, uma coisa extensa, uma existéncia objetiva, uma “matéria” & qual ele tera de dar for- ma, utilizando-se, para isso, dos elementos materiais que com- podem 0 edificio: paredes, pisos, tetos. A capacidade de “ver 0 avesso”, de considerar s6lidas paredes como um simples contor- no, de transformar imaginariamente 0 vazio em um pleno espacial, a ponto de poder considerar, avaliar, intervir em suas caracteristi- cas, estd no 4mago da experiéncia da arquitetura, e constitui-se, talvez, no seu aspecto mais dificil. O ESPAGO ARQUITETONICO As paredes de um edificio criam uma nova escala para as Paate Ill - A FORMA NA ARQUITETURA, atividades humanas, definida pelo arquiteto, que tem grande influ- €ncia sobre o que acontece no interior do edificio; aos espagos sao dotadas caracteristicas visando adequd-los as necessidades fisicas e psicolégicas dos usuarios, ¢ também doté-lo de caracte- risticas poéticas.! Torna-se importante, entao, para o arquiteto a disponibilidade de um instrumental de andlise que lhe facilite 0 entendimento e a manipulagdo da forma espacial. Este instrumental implica 0 co- nhecimento das caracteristicas estaticas e dinamicas do espaco, bem como suas possibilidades sintaticas de composi¢do, isto 6, as diversas maneiras de conjugagao dos espagos entre si. CARACTERIZACAO DO ESPACO O primeiro passo para este conhecimento ser 0 estabeleci- mento de categorias que nos permitam uma primeira caracteriza- Gao. Estas categorias poderao ser expressas por polaridades, que nao somente ensejam uma descricaéo, mas também se abrem A possibilidade de uma intervengao poética. As principais polarida- des de que falamos referem-se as relag6es interior/exterior, publi- co/privado, coberto/descoberto, aberto/fechado, livre/restrito, am- plo/confinado. Para demonstrar as possibilidades descritivas e poéticas des- sas polaridades, tomemos alguns exemplos. Uma rua comum das nossas cidades é um espago exterior, piblico, aberto, descoberto © amplo; qualquer modificagdo em alguma destas caracteristicas a fara diferente das outras, conseqiientemente, mais expressiva: 40 dificultar ou impedir 0 acesso de carros, por exemplo, muda a feigdo espacial da rua e muda também a apreensio que 0 usudrio lhe tem. No extremo oposto, temos um dormitério tradicional da hossa cultura ocidental, um espago interior, privado, fechado, co- berto, restrito e confinado. Pois bem: inspirados na casa oriental, S7 Fic. 19¢ Fic. 20 Fic. 21 Fic. 22 Fic. 19 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA muitos arquitetos modernistas propuseram que os dormitérios nao fossem espagos cerrados, mas se integrassem espacialmente ao restante da casa, pelo menos em algumas horas do dia, o que implica uma mudanga de significado daquele espago com relagdo ao restante da habitagdo. AS TENSOES Os espacos nao sao elementos neutros, simples recepticulos destinados a abrigar objetos ¢ acontecimentos; podem ser dota- dos de uma forga dinamica que alimenta sua expressividade e se manifesta por tensdes que lhe podem ser comunicadas por sua forma e por seus elementos constituintes. O espago orientado, 0 espaco centrifugo & centripeto sao as principais formas espa- ciais tensionadas. No espaco orientado, um feixe de clementos ou linhas dominantes converge paralelamente para um ponto prin- cipal, foco da composigiio. O espago centripeto implica um am- biente de forma circular, semicircular ou assemelhada e 0 pdlo de atengdo esta no centro. Ao contrario, no espacgo centrifugo, a atengio parte do centro ¢ se dispersa em varias diregoes. No espaco isotrépico nao ha tensdes evidentes: é a forma eleita pela arquitetura moderna, na perseguicdo do objetivo de negar as praticas anteriores. SINTAXE ESPACIAL A maneira como os ambientes se conjugam entre si constitui- se também em ponto importante no estudo da forma espacial do edificio. Falaremos dos quatro principais sistemas de organiza- cdo. O primeiro, exemplificado pela Villa Capra de Palladio, é 0 sistema cldssico, também chamado sistema palladiano: um es- pago central de distribuigdo dando acesso aos ambientes implan- 58 Parte Il - A FORMA NA ARQUITETURA tados a sua volta; a mesma fungdo exercida pela sala circular na villa* de Palladio é freqiientemente atribufda a um outro elemen- to espacial dos mais recorrentes na arquitetura do passado: 0 pd- tio porticado.* O segundo sistema é aqui ilustrado por uma casa de Frank Lloyd Wright; trata-se do sistema orgdnico. Nele, os espagos sao justapostos engenhosamente segundo um critério de conveniéncia reciproca. No sistema aberto, preferido pelos ar- quitetos modernistas, os espagos nao sao rigidamente separados, mas intercomunicam-se numa sucessfo ininterrupta. A quarta ma- neira de conjugagao espacial, © sistema funcionalista, se carac- teriza pela presenga de um elemento de ligagao entre os ambien- tes, um corredor de circulagao, um hall de distribuigio ou uma galeria, Este tiltimo é 0 mais simples, de menores ambigdes poéti- cas e 0 mais freqiiente nos programas atuais. INTERIOR/EXTERIOR Os muros de um edificio separam um espaco exterior, ex- tenso e “ilimitado” de um espago construido a feigao de deter- minada utilizagao; estes muros criam um “pequeno mundo” di- ferente do exterior. A passagem de um para o outro € um dos grandes problemas da estética espacial da arquitetura. Este re- lacionamento pode acontecer por um processo gradativo, no qual jardins, pérticos e varandas marcam a passagem do publico/ aberto/descoberto para o privado/cerrado/coberto, como é 0 caso do palacete urbano. A passagem pode ser mais dramiatica, como no caso das igrejas goticas: de uma praca ampla e aberta para um espaco confinado e pouco iluminado, 0 ndrtex,* e logo a seguir a nave principal, ampla, monumental e plena de luz. Pode ainda ser ameno, 4 maneira moderna, em que a fluidez do espa- go © as grandes areas envidragadas mantém constante a rela- ¢ao interior/exterior. 59 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA Miiltiplas so as maneiras, dependentes das caracteristicas do contexto, do objeto arquiteténico e também de aspectos conceituais e ideolégicos; de qualquer forma, constitui-se em mo- mento dos mais relevantes do projeto arquitet6nico. ESPACO E LUZ Como tiltimo ponto’a assinalar sobre a forma espacial, testa mencionar os efeitos da iluminagao natural na apreensao do espa- 0, apenas em parte controlivel pelo arquiteto. Pode-se determi- nar a forma de uma sala, a posigiio dos elementos de iluminacao, janelas, clarabéias, aberturas, e providenciar para que estas sejam as mais adequadas ao efeito que se deseja, quer se trate de uma iluminacdo apenas funcional ou de atributos poéticos. Entretanto, existe uma parte incontrolavel neste processo. A luz diurna varia com a hora, com a estacao do ano e com as condigées climaticas, € 0 espago acusa estas variagdes, mudando suas caracteristicas; sabemos que um espago bem iluminado parece maior, que os “cli- mas ambientais” e as dimensGes aparentes variam com a quanti- dade de luz. Este gradiente de iluminamento é também considera- do como intrinsecamente ligado a forma espacial. NOTAS "A palavra podtica, tal como a utilizamos aqui ¢ em todos os outros momentos do texto, designa o conjunto de relagdes e/ou operacdes que tém por finalidade a fruigdo do objeto arquitetonico nao sua utilizagao pratica ou suas condigdes materiais de solidez, estanqueidade ou privacidade. Trata-se de uma extensdo, para a nossa matéria, de sua acepgio na linguagem escrita como apreocupagio com a forma da mensagem, € nio com seu contetido utilitério ou referencial, tomada da lingiifstica de Roman Jakobson. Em muito se aproxima, também, do uso que faz Gaston Bachelard desta palavra. Ponte Ill - A FORMA NA ARQUITETURA BIBLIOGRAFIA DE REFERENCIA care Rudolf. A Dinamica da Forma Arquitet6nica. Lisboa. Presenga. 988. COELHO NETTO, José Teixeira. A Construgdo do Sentido na Arquitetura, So Paulo. Perspectiva, 1979. FUSCO, Renato de. A Idéia de Arquitetura. Lisboa. Edigdes 70, 1984. LEFEBVRE, Henry. La Production de l’espace. Paris. Anthropos, 1974 NORBERG-SCHULZ, Christian. Intenciones en Arquitectura. Barcelona. Gus- tavo Gili.1973. ZEVI, Bruno, Saber ver a Arquitetura. S40 Paulo. Martins Fontes, 19 . Panre Ill - A FORMA NA ARQUITETURA _ REAL E VIRTUAL Em primeiro lugar, cabe a consideragao de que o muro pode ser real ou virtual, sendo o primeiro um elemento continuo que fic. 15 promove o cerramento de um espago, e o segundo composto de elementos descontinuos ou intermitentes, que separam dois espa- _ GOS mas nao o vedam totalmente. Tal é 0 caso das colunatas do. Fic. 20 templo peristilo e das naves das igrejas. Capitulo X DESEMPENHO ESTRUTURAL | FORMA MURAL Outra consideracdo importante diz respeito ao papel estrutu- ral que o muro desempenha na construgao. Sera portante quando “ recebe as cargas estruturais; caso contrario, serd simplesmente _ vedante. Nas arquiteturas mais primitivas ou de menores recur- NATUREZA DA FORMA MURAL Sos, nao se pode dispensar a colaboragao estrutural do muro, fato que tera influéncia direta nas suas caracteristicas e no espago que A separar 0 exterior do interior, e os espagos internos do edi- este encerra. Para melhor entendimento, comparemos a técnica ficio entre si, existe 0 muro, que juntamente com o espago © 0 construtiva romanica com a gotica: a primeira utilizava a funcaio volume compée o sistema da forma em arquitetura. Ao conjunto portante das paredes, 0 que impedia grandes aberturas; 0 sistema | de elementos que animam as superficies e os muros chamamos _estrutural gotico libera as paredes ao concentrar as cargas em | forma mural ou superficial. O significado do muro em relagio macigos estruturais, podendo o vao entre estes ser preenchido | aos sistemas que compdem a forma arquiteténica pode ser com- pelos vitrais, de fungdo apenas vedante e de iluminagao. Fic. 7 parado ao significado do nosso vestudrio. Sempre haverd uma Com 0 conceito modernista de estrutura independente, acon- profunda identidade entre a nossa maneira de ser e de vestir, em- “tece a separacio definitiva entre as fungdes vedante e portante. bora a segunda seja uma forma circunstancial ¢ contingente, en- Diferentemente do conceito gético, em que os macigos estrutu- quanto a primeira sera essencial e necessdria. Nao tendo as ca- rais acumulavam fung6es de separacio virtual dos espacos, os racteristicas de essencialidade da forma volumeétrica ou espacial, pilares modernos apenas suportarfo cargas, e as paredes apenas é, entretanto, de natureza mais evidente, de apreensao mais facil _ separarao os espacos. e imediata que as outras. q 62 63 Fic, 23 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA ELEMENTOS DA FORMA MURAL Para trabalho formal com 0 muro, 0 arquiteto dispde de trés categorias de elementos: as caracteristicas materiais, tais como a cor, textura e forma dos materiais utilizados na sua confecgao; os elementos de composicdo, tais como a simetria, 0 ritmo, a relagio de cheios e vazios, a fenestragiio; a decoracao aplica- da, na forma de modinaturas, relevos, aftescos e mosaicos. CARACTERISTICAS MATERIAIS O muro, como j4 vimos, poderd ser composto de pedra, de tijolos ceramicos, de madeira, de concreto... No trabalho de torna- Jo esteticamente mais expressivo, conta o arquiteto com um vasto repertério que inclui a cor, a textura ou mesmo a propria técnica de assentamento. Para exemplificar, observemos 0 tratamento mural utilizado no Palazzo Medici-Riccardi, um dos primeiros palazzos* florentinos do Renascimento. Vemos ai que os dife- rentes pavimentos sao marcados por diferentes tratamentos murais e coroados por uma pesada cornija;* no primeiro pavimento, a pedra € rusticada (tratamento para se conseguir a feigdo risti- ca); no segundo pavimento, as juntas sio bisotadas (mareadas com bisel); no terceiro pavimento, a superficie é lisa. O trata- mento rtistico diminui a cada pavimento, o que se tornou uma marca da arquitetura renascentista, repetida na arquitetura oci- dental até o inicio deste século. E 0 mais expressivo exemplo das possibilidades do tratamento mural. ELEMENTOS DE COMPOSICAO Os principais elementos de composigao utilizados no trabalho 64 Paste Ill - A FORMA NA ARQUITETURA com a forma mural sao a simetria, 0 ritmo, a relagdo de cheios e vazios € a fenestracdo. A simetria é um forte recurso para a consecugao de equili- brio na composigao, predicado geralmente exigido no trabalho com artes plasticas. Geometricamente falando, a simetria € 0 simples arranjo de figuras que se correspondem ponto a ponto em relagao aum eixo, ponto ou plano; transposto para a arquitetura, 0 concei- to sofre algumas modificagdes. O elemento de referéncia seré sempre um plano perpendicular ao plano considerado; falamos ainda de simetria estdtica, dindmica, ou falsa. Temos a simetria estética quando a fachada apresenta a mesma configuragio em ambos os lados do plano de referéncia. Na simetria dinamica, os elementos de fachada sao tensionados em diregao ao eixo; este recurso de composi¢ao foi muito utilizado a partir do Renascimento e sobretudo na arquitetura barroca. Podemos ainda falar de falsa simetria, quando os elementos nao sao exatamente iguais mas fun- cionam como tal na composigao. Ritmo & um conceito tomado emprestado da miisica, onde tempos fortes e fracos se alternam em uma seqiiéncia previsivel; em arquitetura, refere-se 4 repetigio de elementos (colunas, pilastras,* ediculas,* janelas) a espacos regulares. Sua fungaio no muro € a mesma que na pega musical: tornar previsivel a com- posicao e auxiliar no seu entendimento. O muro sera, no mais das vezes, perfurado pelos vaos de acesso, de ventilagao e iluminaga estes vao! . Esta composigao pela qual io dispostos é chamada fenestragdo. Além de sua finalidade pratica, serve também a forma mural. DECORACAO APLICADA A arquitetura atual tem dado preferéncia, como tratamento mural, apenas & composigao de cheios e vazios, 4 fenestracdo e 65 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA ao trabalho com as caracteristicas dos materiais. Poucas vezes tem-se utilizado da decoragao aplicada. Entretanto — e talvez por isso a dieta atual —, a arquitetura, através dos tempos, explorou a exaustao os diversos modos de decoracao aplicada as superficies, os quais relacionamos a seguir. As modinaturas* sio conjuntos de formas abstratas — fri- sos,* perfis, linhas escalonadas — geralmente esculpidas na pe- dra, mas também moldadas em estuque, dispondo sobre os ele- mentos arquiteténicos, arquitraves,* colunas,* capitéis, timpa- nos, um jogo controlado de luz e sombra. Os baixo-relevos sio motivos também esculpidos ou mode- lados, utilizados em pontos arquitetOnicos predeterminados, fron- 16es,* métopas, timpanos, ¢ cuja tematica e inspiracao — figura- tiva ou geométrica — variava com a época, 0 estilo e a ideologia. Os afrescos sio pinturas aplicadas as paredes com seu re- vestimento ainda nao curado (daf o nome “a fresco”), geralmente representando cenas mitolégicas, hist6ricas ou biblicas. Os mosaicos constituem uma técnica utilizada sobretudo pela arquitetura de influéncia muculmana, como a bizantina, que se assemelha em fungao poética e em tematica aos afrescos: consis- te na aplicacao de pequenas pegas vitreas, coloridas, diretamente sobre os revestimentos, principalmente em paredes internas dos edificios. OS AZULEJOS Os painéis de azulejo sao uma modalidade de decoragao mural muito familiar 4 nossa arquitetura tradicional, em consonancia com a tradigao portuguesa. Embora 0 receitudrio da arquitetura moder- na tivesse, durante algum tempo, desaconselhado o uso de decora- ¢ao mural, a nossa moderna arquitetura ousou desrespeitar 0 prin- cipio, eo fez com mestria, ao utilizar grandes painéis de azulejo (de 66 e Ill - A FORMA NA ARQUITETURA, lutoria de Candido Portinari) no edificio do Ministério da Educagaio Satide, no Centro do Rio de Janeiro, e na Igreja de Sao Francisco fic. 5 de Assis, na Pamputha, em Belo Horizonte, MG. [OGRAFIA DE REFERENCIA ORBERG-SCHULZ, Christian. Intenciones en Arquitectura. Barcelona. Gus- tavo Gili, 1973. )UMMERSON, John. A Linguagem Classica da Arquitetura. Sa Paulo. 1982. ‘BVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. Sio Paulo. Martins Fontes. 67 Capitulo XI CATEGORIAS DA FORMA ___. ARQUITETONICA [ 8) {O7 FORMA ARQUITETONICA: UM OBJETO COMPLEXO Ao observarmos 0 vasto conjunto de edificios que constitui o do- minio da arquitetura, com vistas a entender o fendmeno complexo da forma arquiteténica — seja esta visdo histérica, vertical ou horizontal, abrangendo a produgao atual —, gbservaremos que estes edificios, além das diferengas acidentais que ostentam entre si, apresentam diferengas muito mais profundas, relacionadas com. as estruturas elementares de conceitos sob os quais esses edifi- cios foram concebidos. A estas estruturas chamamos de catego- rias da forma arquiteténica. Apresentamos a seguir uma siste- matizagao das principais categorias, baseada nos modos funda- mentais ou principios de relagao com fontes externas ou internas de onde o arquiteto extrai a idéia inicial para a configuragao do edificio ou conjunto. 68 Paste Ill - A FORMA NA ARQUITETURA. FORMA TIPOLOGICA A forma tipolégica é derivada dos tipos arquiteténicos. Ba mais freqiiente, tanto na arquitetura histérica quanto na contempo- ranea. Vejamos 0 que vem a ser. Qualquer pessoa jd teré observa- do o quanto os espagos das igrejas tradicionais se parecem: temos uma nave central, mais alta, e duas laterais, mais baixas; o altar situa-se no cruzamento destas naves com uma outra, o transepto. Trata-se de um tipo* arquiteténico, chamado de hasilica* crist@, Fic. 24 desenvolvido na Idade Média, na Europa, a partir da basilica pagd, edificio comercial e institucional dos romanos. Um outro exemplo de tipo arquitet6nico, bastante nosso co- nhecido, o edificio residencial multifamiliar, constitui-se no mais comum em nossas cidades. Seus elementos componentes, tanto coletivos (portaria, elevadores, circulagdes) quanto privativos (sa- Jas, quartos etc.) guardam sempre a mesma relagao posicional, 0 que caracteriza um tipo arquitet6nico. Através da Histéria, é grande a colegio de tipos a cujas for- mas 0 arquiteto recorre: o templo periptero (0 mais comum entre os gregos — ver peristilo*), a casa de patio porticado* (a casa romana), 0 palazzo* renascentista, 0 paldcio* pavilhonado aris- tocratico, o hotel burgués, entre outros. FORMA GEOMETRICA E a forma preferida da arquitetura moderna. A escolha dos arquitetos geralmente recai sobre formas simples: prismas, cilin- dros, paralelepipedos, usados isoladamente ou compondo conjun- tos. Eventualmente, recorre-se a formas geométricas menos usu- Fic. 10 ais: a Catedral de Brasilia tem a estrutura formal de um hiperboléide de revolugao. Fic. 12 IA INTRODUCAO A ARQUITETURA FORMA ABSTRATA E também muito usada na arquitetura moderna. A forma abs- trata, visto nao ter nenhum referente imediato, isto é, nao se pare- cer com formas usadas anteriormente ou com figuras geométri- cas familiares, atendeu & perfeigao aos requisitos modernistas de inovagao, originalidade e funcionalidade. Quanto a inovagdo, a busca de formas nao conhecidas era uma exigéncia para a cria- ¢4o de um novo cédigo desvinculado do passado; no que se refere a originalidade, 0 atendimento ao mito romantico da forma ori nal era visto como oposigio ao passado recente, de obediéncia classica, e portanto normativa; quanto a funcionalidade, se a forma deveria “seguir a fungao”, nao poderia ser um a priori, como € 0 caso da forma tipoldégica, mas uma conseqiiéncia final do estudo do problema. Fic. 11 | FORMA TOPOLOGICA A forma topoldgica é inspirada pelo sitio (“topos”, em grego, | quer dizer “sitio”, “local”), isto é, extrai uma ou mais das caracte- risticas do local onde o edificio ser implantado.Um exemplo co- nhecido de forma topoldgica é 0 Conjunto Habitacional do Pedre- gulho, no Rio de Janeiro, onde a linha tortuosa, diretriz do volume do edificio, € uma curva do préprio terreno. Outro exemplo esta nas cidades coloniais do Sul de Minas, como Ouro Preto, cujo movimento dos telhados, que nos encanta, € conseqiiéncia do re- I levo do local. Fic. 25 FORMA ANALOGICA Analogia é a relagao de semelhanga entre dois objetos; é um dos mais poderosos meios de criagdo de que dispomos. A for- 70 Parr Ill - A FORMA NA ARQUITETURA, ma arquiteténica analégica é inspirada por um objeto externo ao universo da arquitetura. Veja-se o exemplo das ordens (ver or- dem*) gregas: os capitéis dérico ¢ jénico sao de inspiracao geo- métrica; ja 0 capitel corintio é uma forma analégica (representa um cesto ornado de folhas de acanto). Outro exemplo nos é dado pelo Terminal de Passageiros da TWA, inspirado na forma de uma dguia, uma metéfora alusiva nfo somente ao véo de longo alcance, como também ao pafs, uma vez que a guia & simbolo dos Estados Unidos. FORMA TECTONICA A forma tect6nica' é determinada por necessidades técni- cas. Observemos, por exemplo, os telhados de “Aguas” inclina- das, uma solugao de cobertura que atravessa toda a Histéria da Arquitetura. A inclinacdo deve-se a necessidade de facilitar 0 es- coamento das aguas ou da neve. Um outro exemplo de forma tectonica nos é dado pelo arco, que tantos servigos prestou a ar- quitetura tradicional. FORMA ORGANICA E Temos uma forma orginica quando a configuragiio final do edificio é a posteriori, resultado do posicionamento das unida- des espaciais, que sao justapostas 4 maneira de células de um : tecido orgdnico. Os mais célebres exemplos desta categoria sao 4s prairie houses de Frank Lloyd Wright, residéncias suburba- _ has de alta classe média no Leste dos Estados Unidos, inicio do século. a Fic. 26 Fic. 27 Fic, 28 Fic. 2 Fic. 19k Fic. 29 Fic. 7 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA FORMA SISTEMICA E resultante da resolugao antecipada dos problemas propos- tos por um ou mais sistemas da arquitetura. Historicamente, 0 melhor exemplo da forma sistémica vem das catedrais géticas. Os sistemas espacial, estrutural e de iluminagao sao resolvidos em cada tramo do edificio e se reproduzem linearmente por justa- posicao. Atualmente os sistemas envolvidos sao de maior com- plexidade, incluindo a estrutura, as instalagGes técnicas (ar-con- dicionado, eletricidade, Agua e esgoto) e as instalagées fisicas (mo- bilidrio, equipamentos). A forma sistémica é 0 resultado de uma abordagem tecno-cientifica da arquitetura e responde pelas me- Ihores solugées da construgao industrializada. SUPERPOSIGAO DE CATEGORIAS Deve-se considerar que nem sempre sera possivel 0 enqua- dramento de um edificio em apenas uma categoria; é freqiiente acontecer uma superposigao: uma forma sera ao mesmo tempo abstrata e tecténica, geométrica e sistémica, e assim por diante; porém, a andlise de uma obra arquiteténica deve principiar por sua correta caracterizagaéo formal. NOTAS "A palavra tectdnica vem do grego “tektonikés”, (subentendendo “techne”) ¢ significa “a arte de construir edificios”, segundo o “Novo Dicionério na Lingua Portuguesa”, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Tem a mesma rafz etimo- l6gica da palavra arquitero (ver Capitulo 1, pagina 4, retro) Parte IV O CONTEUDO NA ARQUITETURA Capitulo XIE OS DIVERSOS CONTEUDOS DA ARQUITETURA ARQUITETURA COMO LINGUAGEM Ao falarmos de contetido estamos, em primeiro lugar, acu- sando certa capacidade que tem a arquitetura de representar para as pessoas algo mais que sua simples presenga; estamos orien- tando nossa atengdo nao para as evidéncias materiais, mas para um outro plano, do qual estas sao 0 suporte, e que comporta os enunciados que serdo veiculados por suas formas; estamos, en- fim, reconhecendo que experimentamos a arquitetura como uma linguagem, e que os elementos fisicos do objeto arquiteténico nos fornecem instrumentos de comunicacao através dos quais outras idéias, alheias ao universo estrito dos ajustes formais, podem ser transmitidas. Poderfamos, em vez de “contetido”, utilizar as palavras “sig- nificado” ou “mensagem”. Estas palavras, em sua acepgdo mais ampla, no seu uso vulgar, sao sindnimas; porém, um maior rigor semantico nos faz optar por “contetido”, aproveitando seu com- 75 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA prometimento tanto com 0 campo da estética tradicional, em opo- sigdo & “forma”, como da semiética, que aponta a existéncia do “plano do contetido” em confronto com o “plano da expresso”. Ja a palavra “mensagem”, no sentido estrito, reduz inexora- velmente seu uso a teoria da comunicagio, que, embora possa ser aplicada a arquitetura com valiosos resultados, é inconveniente para a abordagem panorémica que pretendemos. A palavra “sig- nificado”, estritamente falando, liga-se fortemente ao seu oposto, “significante”, que também limitaria seu entendimento ao campo da semidtica. OS CONTEUDOS DA ARQUITETURA Um edificio pode nos falar do est4gio de adiantamento do povo para o qual foi construido, de seus ideais estéticos, de seu modo de vida; pode evocar os feitos militares e as praticas reli- giosas de uma naciio; pode ser o testemunho da mestria de quem 0 concebeu e de suas preocupacées morais, e até falar de si mes- mo e da arquitetura. Sao os seus contetidos. Durante muito tempo, toda e qualquer tentativa de interpreta- ¢ao dividia-se entre os contetidos formal e hist6rico: 0 conheci- mento das ordens classicas, dos métodos matematicos de compo- sigdo e de informagées histéricas que pudessem complementar 0 conhecimento do edificio preenchiam as necessidades dos analis- tas e historiadores da arquitetura. O século XIX vai trazer novas aspiracées, novas teorias e, conseqiientemente, novos contetidos. As preocupagées formais vao juntar-se os predicativos de ordem social e psicolégica, como convinha a uma sociedade j4 ent&o orientada pela tecnociéncia e profundamente influenciada pelos trabalhos cientificos nestas duas areas. As constantes crises do século XX, os inumeraveis movimen- Parte IV - © CONTEUDO NA ARQUITETURA tos e tendéncias nas artes plasticas e na arquitetura, uma cres- cente perplexidade e desapontamento do ptiblico ante um herme- tismo e auto-referéncia da produgao artistica fizeram com que os te6ricos da arquitetura voltassem a atengao para problemas de linguagem e comunicagao, acrescentando Aquelas matérias, que ja faziam parte de seu corpo critico, a lingiifstica e a semidtica. Simultaneamente, inspirados mesmo por novas formas de pensar © ser humano, a sociedade e seu espago, comegam a aparecer trabalhos que se caracterizam pela aplicacdio do método feno- menol6gico a arquitetura. Assim se constituiu um novo corpo eri- tico que inclui histéria, sociologia, psicologia, fenomenologia, semi6tica ec, naturalmente, a estética arquitetOnica de obediéncia formalista. UNIDADE FORMA/CONTEUDO. Nao é de hoje a idéia de encarar a arquitetura como fendme- no complexo. Vitrivio jé dizia que o arquiteto, além de ter pratica com desenho e geometria — seus instrumentos imediatos de tra- balho—, deveria ser versado em histéria, filosofia, miisica, medi- cina, ciéncias juridicas, astronomia e astrologia. Cabem aqui duas consideragdes, uma referente 4 unidade forma/contetido do objeto arquitet6nico e outra quanto a necessi- dade de um isolamento dos diversos aspectos de seu contetido visando um maior entendimento. Na verdade, 0 contetido de uma obra arquiteténica é multiplo ¢ indivisivel, e tanto mais o sera quanto maior for a sua intengao poctica. Uma das caracteristicas do discurso poético € sua cons- tante capacidade de surpreender, de multiplicar os significados, dé infringir os cédigos de comunicagio, visando o acesso a inst’an- cias mais profundas no plano do contetido. Apesar disso, temos que recorrer a divisdes para facilitar a TL UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA sua abordagem, mesmo sabendo serem estas divisdes meramente instrumentais, ninguém pode pretender conhecer 0 contetido de uma obra sem nada saber dos meios que foram utilizados para veiculd-lo, ou mesmo sem conhecer algo acerca dos lagos que tém sido estabelecidos entre a arquitetura e estas matérias; so- mente pela pratica do estudo isolado pode-se chegar a identifica- ¢4o de determinada mensagem no conjunto de nossa percepgao do objeto, cujas primeiras manifestagdes sao geralmente confu- sas € enganosas. 78 Capitulo XII CONTEUDO FORMAL OBJETO COMUM E OBJETO ESTETICO! Pode parecer um paradoxo falarmos de “contetido formal”, uma vez que sempre temos colocado em oposicao “forma” e “con- tetido”. Explicamos: quando opomos os dois termos, estamos fa- _lando em objetos comuns, dos quais os objetos estéticos se dife- renciam justamente por uma preocupacdo maior com a forma. Uma sentenga formulada a respeito de algo € um objeto comum; mesma id¢ia, a respeito do mesmo referente, expressa com rima, “ritmo e figuras de linguagem, isto 6, expressa poeticamente, é um objeto estético. Da mesma maneira diferenciamos uma simples _ construcao, um objeto comum, de um exemplar de arquitetura, um objeto estético. Chamamos de contetido formal a este trabalho j suplementar com a forma que é caracteristico do objeto estético. AS QUATRO TENDENCIAS Considerando a vertente mais forte, e também a mais estuda- 719 Fic. 26 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA da de nossa cultura, a tradig&o greco-romana-crista, podemos es- tabelecer que o contetido formal na arquitetura, apesar de bastan- te varidvel, pode ser alinhado segundo quatro grandes tendéncias ou “familias”: 0 classicismo,* 0 paleo-cristao-bizantino, 0 gético e o modernismo; as outras tendéncias poderao ser consideradas pre- paracdio ou variante de uma destas. Descreveremos a seguir as suas caracteristicas, observando que nao se trata apenas de um exercicio de erudicao, pois estas tendéncias estao vivas na produ- cao atual. O CLASSICISMO NA ANTIGUIDADE Vamos encontrar, na Antiguidade, o contetido formal classico na arquitetura grega, no helenismo* e na arquitetura romana. A forma classica é centrada em uma interpretagao particular, elaborada através dos séculos, do sistema trilitico, segundo a qual os elementos principais, apoios e vigas, recebem um tratamento modelador, dando origem as formas tipicas das colunas,* capitéis, arquitraves,* frontées.* Estas formas tém variantes acidentais que se constituem nas ordens: a ordem dérica, a mais antiga, apa- recida na regiao da atual Grécia continental (Atica e 0 Peloponeso); a ordem jonica, natural da Asia Menor (Jonia, Trdcia, Lidia), atual- mente 0 litoral mediterraneo da Turquia; e a ordem corintia, mais recente, cuja criagao é atribuida ao escultor Calimaco. Apesar das variag6es acidentais, as ordens sao essencial- mente semelhantes e prestam 0 mesmo servigo 4 composi¢ao geral, no que respeita 4 ordenagiio da forma, modulagiio e organizagao elemental. Sua persisténcia no tempo deve-se a uma caracteristi- ca particular do pensamento estético classico, que prezava a imi- tacio; desta maneira, 0 artista cldssico pensava em repetir ¢ apri- morar, ao contrario do artista romantico, que pensava antes em diferenciar e inovar. 80 Panre IV - O CONTEUDO NA AFR@QUITETURA A atitude de aprim@xramento sera a marca do periodo grego. O helenismo,* difusio da___ cultura grega pelo Mediterraneo através das conquistas de Alexaixdre, vai procurar 0 congelamento das for- mas tipicas em modeloss de exceléncia, estabelecendo entao os cénones classicos, objet wando uma maior e mais facil divulgagao. Os romanos, admir-asdores dos gregos por suas conquistas for- mais, porém herdeiros taambém dos etruscos no gosto pela técni- ca, vdo adotar as orde@rns gregas, com pequenas modificagdes (acrescentario as orderass toscana e compésita), mas |hes reser- varao papel diferente: @rmquanto para os gregos as ordens signifi- cavam um trabalho de — embelezamento de um sistema técnico (trilitico), para os romaan.aos — usuarios do arco e seus derivados, e nao mais do sistema txrrilitico — as ordens serao um recurso de expressdo, organizagio@ —e decoragao. A maior contribui¢ Zio dos romanos sera nao na forma mural, mas na exploragao dass_ mais expressivas formas espaciais que sua tecnologia possibilitaava. PALEO-CRISTAO-B E=ZANTINO Com a queda do Innzpério Romano, 0 contetido formal classi- co se ausentaré da pro CHlugao arquiteténica, aparecendo em seu lugar um outro, livre d@»ss miasmas pagiios das ordens gregas e do fausto materialista das formas espaciais romanas. O contetido formal paleo-cristio ter~ZA, por certo, influéncia dos romanos, so- bretudo quanto aos sist e=mas técnicos, e a esta somara tracos da cultura oriental. Em lintasas gerais poderiamos caracterizd-lo como um afastamento dos idi@ais antigos, empobrecimento da forma mural, com o fim das ox-c=lens, do sistema modular, das esculturas, modinaturas* e relev@_s figurativos aplicados aos elementos arquitet6nicos. Em seu Llugar aparecera um trabalho de busca da integridade espacial do sambiente e uma tendéncia a desmateria- 81 Fic. 14 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA, lizagao dos elementos, sobretudo das paredes, pela aplicagao de decoracao superficial, geralmente mosaicos com motivos figurati- vos ou geométricos. 0 GOTICO A arquitetura gotica é uma expresso cultural de um novo sistema socioecondmico-politico, caracterizado pelo crescente poder da Igreja e sua associagao com os poderes seculares do feudalismo em decadéncia e do mercantilismo em ascensao. Diferentemente da solugio classica, em que cada elemento esta vinculado aos demais pelo proporcionamento ¢ posicionamento, a solugao gética resolve uma unidade clementar, um tramo do edificio, e esta unidade poder-se-4 repetir quantas vezes se qui- ser; o resultado final é uma conseqiiéncia da justaposi¢ao dos ele- mentos: é 0 principio da forma sistémica. Seu vocabuldrio de elementos arquitetonicos é, também, tini- co e diferenciado: arcos apontados, abébadas de arestas, arcos botantes, contrafortes. pilares nervurados. Os motivos decorati- vos em relevos e esculturas, agora somente sobre temas religio- sos, jd se faziam presentes desde a arquitetura romanica, que an- tecede 0 gético em 150 anos. Como novidade, os grandes vitrais, que acumulam fungées de iluminagao, embelezamento (pelo uso de cores intensas) e catequese (por representar temas religiosos e vidas de santos). O CLASSICISMO NO RENASCIMENTO E BARROCO O sistema formal classico, que permaneceu encantado por quase mil anos, reapareceré no século XV nas cidades-estado da Itdlia, sobretudo Florenga e Veneza, porém com diferengas que cumpre realgar. 82 Panve IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA A descoberta da perspectiva, artificio projetual que imita a visdéo espacial humana, e a crescente valorizagio da figura do autor so dois fatos marcantes na produgiio arquitet6nica renas- ‘centista. A primeira coloca énfase na concepeao a priori do edi- ficio, valorizando 0 “ponto de vista”, 0 centro da composigao;.a segunda marcard uma situagao de permanente conflito entre a estética clissica, que prezava a imitagio, e a nova estética da .expressao individual. Tal fato sera responsdvel primeiramente pelo maneirismo, a po¢tica do modo individual, da maniera, e por fim pelo barroco. Nestes sistemas estéticos, as ordens clssicas se- rao utilizadas com crescente audacia e inquietude, nao mais como “uma meta ideal mas como um sistema de referéncia em que a expressdo ser4 contada n&o mais pela afinidade com 0 modelo, mas pela tensio entre obediéncia e transgressio, mantendo em cena a tradi¢fo, mas valorizando a experimentacio. Tal atitude, com o passar do tempo, acarretaré a desarticulacio completa da linguagem classica. CONTEUDO FORMAL MODERNO ___ Novas possibilidades técnicas, uma demanda sempre cres- cente, uma crenga ilimitada nas possibilidades da ciéncia e da téc- ica, uma atitude de confianga no futuro ec um desprezo pelas entativas de natureza historicista levadas a efeito no século XIX fio alguns dos fatores responsdveis pelo aparecimento da nova titude na arquitetura que chamamos modernismo. Em tragos gerais, 0 novo contetido formal valorizara o volu- j@ preferencialmente ao espago, este concebido por critérios xclusivamente funcionais, ou a superficie, cuja decoragio serd ‘ompletamente eliminada, assim como qualquer referéncia a for- as tradicionais, mesmo a formas tecténicas consagradas, como telhado; serio valorizadas as modernas tecnologias e buscadas 83 Fic, 20 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA formas que expressem enfaticamente este liame tecnicista; 0 vi- dro sera utilizado em grandes panos, até mesmo como elemento unico de fachada; haveré uma tendéncia crescente ao uso de for- mas abstratas. E importante notar que, diferentemente do passado, quando a expressao estética era submetida a um tinico e inquestionavel siste- ma técnico, hoje a arquitetura nao tem, praticamente, limitagdes: tudo o que for pensado, dentro do limite do razoavel, podera ser executado. Tal fato trouxe, recentemente, para os dominios da ar- quitetura uma preocupagao maior com a linguagem: todas as for- mas sao possiveis; mas serao convenientes? Ou comunicativas? NOTAS ' Naacepgaio que adotamos, aqui e em todo este trabalho, a palavra objeto nio se refeere apenas a objetos sélidos, mas a tudo que pode ser pensado ou percebido por um sujeito: uma melodia, uma cadeira, uma frase, um julgamento a respeito de certa pessoa so objetos. BIBLIOGRAFIA DEREFERENCIA BENEVOLO, Leonardo. Introdugdo @ Arquitetura, Lisboa, Edigdes 70, 1960. SUMMERSON, John. A Linguagem Classica da Arquitetura. Sio Paulo. Mar- tins Fontes, 1982. Capitulo XIV CONTEUDO HISTORICO VALOR HISTORICO A arquitetura é uma manifestacao cultural das mais aptas a reter informagGes de contetido histérico; isto se deve sobretudo A capacidade dos marcos arquiteténicos de permanecer, de vencer © tempo eé os agentes de destruigdo. O valor histérico de um : edificio pode aparecer em trés niveis: primeiramente, sendo um produto de determinada sociedade e, como tal, um testemunho das praticas sociais e preferéncias estéticas desta; a seguir, na medida em que 0 edificio ou sitio pode assimilar um valor extra- arquiteténico, por ter sido cenario de acontecimentos histéricos marcantes; e, finalmente, quando o edificio é construido especi- -ficamente com a finalidade de marcar feitos hist6ricos e politi- Cos importantes, como no caso dos monumentos e memoriais. 85 UMA INTRODUQAO A ARQUITETURA ELEMENTOS ARQUITETONICOS DE CONOTAGAO HIS- TORICA Além dos casos em que 0 proprio edificio é um exemplar histérico, ha um outro tipo de contetido histérico relacionado nao com a totalidade do edificio, mas com elementos arquitet6nicos, formas, figuras, tipos espaciais, maneiras de conjugar os espacos, de iluminar caracteristicos de determinado periodo histérico e que sao posteriormente utilizados, intencionalmente ou nao, rememo- rando aquele periodo. A HISTORIA COMO CIENCIA Mesmo considerando a estreita relagdo que sempre manteve a arquitetura com a hist6ria, este vinculo se intensifica e sofre mudanc¢a qualitativa na modernidade, sobretudo a partir do século XVII, quando a historia ganha status de ciéncia e crescem em numero as teorias que procuram a légica interna do processo his- térico. A repercussao de tais teorias na arte acontece por meio de investigagGes acerca da relagao de mudanga e permanéncia dos estilos, das ligagGes entre a arte e as sociedades que a produzem, intensificando-se também os estudos criticos sobre a Antiguidade cldssica, o Renascimento e o barroco. O SECULO XIX Em parte devido a esta orientagao, em parte por nao ter ainda assimilado a forga da sociedade industrial, que seria responsavel por mudangas conceituais na arquitetura do século XIX, a produ- ¢4o arquitet6nica dos “oitocentos” permaneceu profundamente apegada ao rico e abrangente repertério de figuras histéricas. Pressionados a apresentar uma resposta em termos de ar- 86 Parte IV - 0 CONTEUDO NA ARQUITETURA, quitetura aos problemas colocados pelo inchamento das cida- des, pelo novos materiais e técnicas, pela demanda de edificios de carater industrial e comercial (fabricas, estagdes ferrovid- rias, grandes feiras de exposigdes) — para os quais apenas os engenheiros, saidos das escolas politécnicas, tinham respostas convincentes —, os arquitetos, principalmente aqueles vincula- dos as academias, vao buscar soluciao na utilizagéo de formas consagradas pela tradigao. Diversos sao os caminhos seguidos. REVIVALISMO, HISTORICISMO, ECLETISMO O primeiro desses é 0 que chamamos revivalismo*, a busca de wm e apenas um estilo do passado que fosse 0 paradigma de exceléncia, capaz de conter as solugGes para os novos programas; surgem entio os adeptos do “neogrego”, “neo-romano”, “neo- renascimento”, “neobarroco”, como os mais importantes.! O segundo caminho, 0 historicismo*, propunha a criag&o de um cédigo trans-histérico que conteria uma resposta para cada programa: os bancos, por exemplo, deveriam adotar 0 estilo dérico, simbolo da estabilidade, da confiabilidade e solidez; as igrejas de- veriam ser romanicas ou goticas, estilos representativos de um periodo de superioridade da Igreja Catélica sobre os poderes culares; desta maneira, a cada programa correspondia um estilo ideal. A terceira solugao, a mais controversa, foi o que chamamos ecletismo:* a mistura, em um mesmo edificio, de elementos de procedéncias diversas, seja de tradigdo classica, do Oriente Pré- ximo (arquitetura mourisca ou bizantina), ou do Extremo Oriente (India, China, Japao). Esta ultima solugao ja néio buscava, como as outras, um significado profundo, mas visava apenas as rela- UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA Os trés carminhos seguidos eram de signo conservador, e 0 espirito revolucionario, cientifico, racional e utilitério dos novos tempos acabarao por se impor, j4 nas primeiras décadas do século XX, fazendo surgir a arquitetura moderna, marcada por um pro- fundo desprezo_pelas atitudes anteriores. O CONTEUDO HISTORICO NO MODERNISMO O contetido histérico, entretanto, no desapareceu imediata- mente dos edificios, pois os principais arquitetos simpatizantes do modernismo — Peter Behrens, Adolf Loos, Walter Gropius, Le Corbusier, Mies van der Rohe entre outros — eram pessoas de grande cultura ©, quer o reconhecessem ou nao, impregnadas de consciéncia histGrica. Acontece apenas que os significados histd- ticos deixam de ser explicitos e visuais, refugiando-se em clemen- tos menos evidentes. As seguintes geragdes, responsdveis nao mais pela criag&@o, mas pela disseminagiio da arquitetura moder- na, que chamamios estilo internacional,* estas sim serao res- ponsdveis pelo esvaziamento de contetido histérico nos objetos arquitet6nicos.* HISTORICISMO RECENTE As figuras histGricas reaparecerdo na arquitetura em fins dos anos 60, em parte objetivando a recuperacao dos centros historicos eu- ropeus, abalados pela Segunda Guerra, divulgando novos concei- tos de conservagao e defesa do patriménio histérico, em parte como reagdo a severidade estética do racionalismo-funciona- lismo* do estilo internacional,* revendo solugdes utilizadas no século XIX, e precipitadamente condenadas. Por fim, como criti- ca explicita ao modernismo e A modernidade, introduzindo ele- mentos histéricos as solugdes modernas, fraturando a légica inter- 88 Paste IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA na do modernismo, cuidando para que a esses elementos introdu- zidos nao falte humor e ironia: € 0 chamado “pds-modernismo historicista”, uma tendéncia que, de certa maneira, chega até nos- sos dias.* NOTAS 'No Brasil, 0 quadro apresenta maior homogeneidade, Chamamos de “neo- ica’” & toda produgio quer de feitura direta quer influenciada pela Missdo Fran- cesa, a partir de 1816 até prximo ao final do século, quando a simplicidade e clareza de suas formas se deixard contaminar pelo gosto ao pitoresco e pelas influéncias exégenas. Deste estilo o Rio de Janeiro ainda mantém uma colecao generosa de exemplos, dentre os quais destacamos: a Santa casa de Misericérdia, de 1852, na Rua Santa Luzia, 206, Centro; o Museu da Republica, antigo Palécio do Catete, de 1860, na Rua do Catete, 179; a antiga Escola de Engenharia, de 1862, atual Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais, no Largo de So Francisco e © Instituto Benjamim Constant, de 1872, na Avenida Pasteur, 350. *O“ecletismo” aparecerd no Brasil no final do século e ter seu grande momento, no Rio de Janeiro, por ocasiao da abertura da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, Destacamos af 0 seu centro monumental com o Teatro Municipal, de 1909, 0 Museu de Belas Artes, de 1908, a Biblioteca Nacional, de 1910, e a Camara Municipal, de 1923, entre os mais nobres remanescentes de obediéncia clissica. Vale a pena conhecer 6 edificio da Fundagio Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, Avenida Brasil, 4365, datado de 1910, sem diivida o mais belo exemplar que nos ficou do chamado “estilo Mourisco”. ‘Olivro “Por uma Arquitetura”, de Le Corbusier (Sao Paulo: Perspectiva, 1989), publicado pela primeira vez em 1923, constitui-se no mais feroz ataque arqui- tetura praticada na época, sobretudo ao ecletismo. Contém, entretanto, extensos discursos enaltecendo a arquitetura classica e renascentista; e mais ainda, propoe como método projetual para o desenho de fachada os antigos tracados regulado- res, diretamente tomados da metodologia classica. O proprio autor fez uso destes até em seus tiltimos trabalhos, os monumentais edificios de Chandigarh. Ainda sobre © contetido histérico reprimido nos edificios modernos, veja-se as interessantes andlises de Colin Rowe, comparando a Villa em Garches, de Le Corbusier (1927) com a Villa Malcontenta, de Palladio (1560), e o Crown Hall, de Mies van der Rohe (1956) com o Altes Museum, de Schinkel (1830), na “Histé- ria Critica ...” de Frampton (ver bibliografia), capitulo 17 e 26. * Diferentes abordagens do historicismo na arquitetura “pés-moderna” podem 89 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA ser encontrados nos trabalhos de Robert Venturi, Charles Moore, Roe Sen Michael Greaves, nos Estados Unidos , e Aldo Rossi, Ricardo Boffil, Pac Portoghesi ¢ os irméo Leo ¢ Rob Krier, entre outros, na Europa. Ver, sobre 0 assunto, 0s livros de Venturi e Jencks na bibliografia de referéncia. BIBLIOGRAFIA DE REFERENCIA BENEVOLO, Leonardo. Introducdo a arquitetura. Lisboa, Edigoes My: 1960. FRAMPTON, Kenneth. Histéria critica da arquitetura moderna. Martins Fon- tes, 1997. ; 7 JENCKS, Charles. The Language of Port-Modern Architecture, London, Acade- my. 1977. , MIGNOT, Claude. Architecture of the 19” Century. KGhl, Taschen. 1994, SANTOS, Paulo. Quatro Séculos de Arquitetura. Rio de Janeiro. LAB., 1981. VENTURI, Robert. Complexidade e Contradigdo na Arquitetura. Sao Paulo. Martins Fontes. 1995. Capitulo XV. CONTEUDO SOCIAL O VALOR SOCIAL NA ARQUITETURA Falando de maneira ampla, 0 contetido social esta sempre presente em um objeto arquitetOnico, de vez que este atendera, obrigatoriamente, a uma fungdo e um uso sociais. Além disso, a melhor arquitetura de uma determinada sociedade, tanto em ex- _ celéncia técnica como estética, seré sempre a arquitetura de suas 90 classes sociais dominantes. Entretanto, nem sempre a forma arquitet6nica estard comprometida com as injungées sociais: isto dependerd da intencdo do arquiteto, de sua ideologia, e também de outros fatores ligados ao processo de produgao, De maneira mais restrita, falamos de contetido social para hos referirmos a inspiragdo progressista ou revolucionaria, pre- zando principalmente os gostos, necessidades e interesses das clas- Ses inferiores de uma estrutura social para estabelecer 0 critério de valor da arquitetura. 91 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA, A CIDADE INDUSTRIAL Sob este aspecto, é somente apds a revolucao burguesa* e a Revolugdo Industrial* que tomam corpo as preocupagdes so- ciais dos intelectuais ¢ arquitetos. Simples consideragGes numéri- cas bastam para mostrar a gravidade dos problemas: cidades como Londres, Paris, Nova York, Chicago, Manchester, entre outras, tiveram suas populagdes multiplicadas até dez vezes devido as migracées urbanas provocadas pela industrializacio. Os nticleos urbanos, nao esiando preparados para receber tal contingente, co- megaram a evidenciar suas deficiéncias. Auséncia de rede de esgotos, falta de um sistema de tratamento de despejos de lixo, ineficiéncia das autoridades no controle sobre a qualidade das cons- trugdes. As moradias dos operdrios eram verdadeiros asilos: sas geminadas, dispostas em longas fileiras, sem espaco para a criagdo de animais (hdbito comum na época), sem areas de lazer de criangas, células de habitagdo abafadas, sem jardins, parques ou amenidades de qualquer natureza nas imediagoes. ae AS PRIMEIRAS PROPOSTAS As criticas 4 cidade industrial vinham de todos os dominios da intelectualidade, dos filésofos politicos ¢ sociais aos artistas. Di- versas propostas foram formuladas; algumas apenas planos, ou- tras, experiéncias efetivas. Estas propostas podem ser alinhadas em quatro grupos. O primeiro destes era composto pelos utopistas,* tedricos comprometidos com o pensamento do uminismo,* cientificistas que acreditavam poder criar sociedades ideais, com espago, luz, ventilacao, areas verdes e aparéncia ordenada. Era assim 0 falans- tério de Fourier, 0 familistério de Guisa, concebido por Godin, a comunidade de New Harmony, em Indiana, EUA, promovida por 92 Paate IV - © CONTEUDO NA ARQUITETURA Robert Owen. Nenhuma destas propostas, quando efetivadas, durou mais que uma geracio. No segundo grupo alinham-se os ditos “culturalistas”, cujas criticas tinham cardter regressivo. Viam a industrializagao, a pro- dugao mecAnica de bens e a nascente sociedade industrial como um mal absoluto, e propunham no seu lugar o modelo de cidades medievais como Oxford, Ruen e Veneza, e organizagGes sociais medievais. Seus principais representantes eram John Ruskin (1819- 1900) e William Morris (1834-1896). A terceira alternativa era a propria negacio da cidade. Seus principais representantes eram escritores, pensadores e arquite- tos americanos como Thomas Jefferson (1734-1826), R. W. Emer- son (1803-1822), H. D. Thoreau (1817-1825) e Louis Sullivan (1856-1924), Sua proposta estava ligada a uma sociedade rural que compatibilizasse desenvolvimento econémico e vida voltada para a “natureza’’. Paradoxalmente, Sullivan tornar-se-ia impor- tante para a histéria subseqiiente da arquitetura por seus projetos de edificios verticais e como membro mais destacado da chama- da “Escola de Chicago”. O quarto grupo de propostas insere-se j4 na solugio moder- nista para a cidade; dele falaremos adiante. A GRANDE REFORMA DE PARIS Movidas nao por premissas te6ricas, mas por injungGes prati- cas, nas quais aos problemas de higiene e espago se somam as necessidades de controle técnico, formal e militar das cidades, surgem as idéias conservadoras de reorganizagao formal por meio de grandes intervengdes dos planos reguladores. E sob esta inspi- rago que, nos anos 50 e 60 do século XIX, aparecem as grandes artérias, os grandes boulevards retilineos, regulares e simétricos, da reforma de Paris, promovida pelo Barao Haussmann (1809- 93 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA 1891), que, por sua vez, vai inspirar o plano de Barcelona de Ilde- fonso Cerda. ZONEAMENTO E SEGREGACAO, Com a reforma de Paris sao resolvidos alguns problemas, sobretudo aqueles relacionados com a higiene e estética das cidades. S40 colocados, entretanto, outros, relacionados com a hierarquizagao dos espagos, seus usos, sua simbolizagéo e com o problema fundidrio, que ocupardo a mente dos arquitetos até nossos dias. Anteriormente, com as cidades menores, todas as classes sociais desfrutavam os mesmos espagos, os mesmos equipamen- tos (parques, teatros, pragas) e os mesmos servigos (transportes, Agua, iluminagao etc.). Com os planos reguladores, surge a idéia do zoneamento* e conseqiiente hierarquizagao dos espagos da cidade, isto é, diviso em Areas funcionais: 0 centro comercial, os bairros industriais, os bairros residenciais, os bairros proletarios e outros. Tal separagao implica uma abordagem caracteristica do pro- blema fundidrio: a quem pertencem os terrenos da cidade, em principio? Ao povo? Ao Estado? Quem tem poder de intervengaio sobre ele: Com as cidades maiores, as pessoas perdem 0 conhecimento integral de suas fisionomias, de suas paisagens, perdendo conse- qiientemente a capacidade de apropriar-se simbolicamente de seus espagos, de sentir que tal rua ou tal praga lhe pertence porque € la que est4 a sua casa, é acold que seus filhos brincam. Por fim, 0 zoneamento* geralmente promove a segregagao das classes mais baixas — que serfio afastadas dos centros, prin- cipal mercado de trabalho —, fazendo-as dispender varias horas diarias com a locomogao. 94 Pante IV - © CONTEUDO NA ARQUITETURA As diversas formas de enfrentamento desses problemas fa- rao a hist6ria do urbanismo moderno. UMA “PARIS” BRASILEIRA O Brasil viveu problemas semelhantes, embora devido a cau- sas diferentes. Nao foi propriamente a industrializacao, mas a fa- léncia da economia agraria que provocou as grandes migragdes lurbanas. O Rio de Janeiro, capital do pais, e sua maior metrépole ‘a €poca, apresentava, na segunda metade do século XIX, a mes- ‘ma insalubridade e falta absoluta de servigos satisfatérios, epide- ias de célera, febre amarela e gripe, habitagdes promiscuas, tal omo décadas antes as cidades européias haviam evidenciado. ___ As administragGes ptiblicas estiveram as voltas com 0 pro- Nema das habitagdes coletivas (cortigos, estalagens e casas de ‘6modos), tentando inibir o seu estabelecimento ¢ mesmo promo- yendo verdadeiras operagées de guerra para remover seus ocu- pantes, como no lendario caso do cortigo “Cabega de Porco”, em. lome da higienizagao e saneamento da cidade. Para compensar ‘estas medidas cerceadoras, as autoridades ofereciam incentivos | construgao de habitagGes para as classes pobres e também, as ezes, tomavam para si este encargo. Desta politica surgiram as ‘vilas operdrias”. Eram, porém, medidas timidas, se comparadas grandeza do problema. A reforma produzida por Pereira Passos, entre 1902 e 1906, com a demoligdo de grandes areas do Centro do Rio de Janeiro, raticamente extinguiu os cortigos, mas nao eliminou o problema la sub-habitagao, que tomaria daf por diante a forma das atuais UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA O MODERNO COMO UMA CAUSA SOCIAL A grande maioria dos arquitetos iniciantes do movimento moderno tinham uma profunda inspiragao social. Estes profissio- nais de vanguarda séo marcados pelas preocupagdes da época, de como resolver os problemas humanos, estéticos e funcionais propostos pela industrializagao € agravados pela Primeira Guerra, de 1914 a 1918. A nova arquitetura deveria ser simples, atenden- do aos requisitos de conforto ¢ higiene compatfveis com a dignida- de dos usuarios, quer operarios, quer funciondrios burocratas, quer intelectuais ou artistas. Os nomes mais caros da arquitetura desse periodo — Le Corbusier e André Lugart, na Franga; Walter Gropius, Bruno Taut, Hannes Meyer, Ernest May, na Alemanha; Mart Stam, na Holanda; Moisei Guinzburg, Aleksandr e Viktor Vesnin, El Lissitzky e Ivan Leonidoy, na Unido Soviética — estaraio empenhados em conceber e produzir edificios que representem uma nova maneira de viver em sociedade, que corresponda as nece lades e aspi- ragdes das categorias mais baixas da populagio, que reoriente a projetacao arquitet6nica da abordagem técnico-formal para a abor- dagem econdmico-funcional. Temas como habitag&o minima, es- trutura independente, papel das areas serventes, como a cozinha, na habitagio passam a ocupar 0 lugar antes dispensado a decora- cdo mural. A proposta de Le Corbusier para as casas Dom-ino teve esta inspiragao. Os temas ligados a estética ndo eram desprezados, mas rearticulados, juntamente com fungiio e estrutura, de maneira que aresultante fosse um todo integrado, onde nao se distinguisse onde e onde comegavam as pre fic. 8 terminavam as preocupagoes estétic: ocupacoes técnicas e funcionais. 96 Pane IV - 0 CONTEUDO NA ARQUITETURA O CONSTRUTIVISMO RUSSO Na que se refere 4s preocupagées sociais, a lideranga do movimento moderno coube naturalmente 4 Unido Soviética, cuja revolugao de 1917 imprimiu um direcionamento socialista ao go- verno. Este, tendo como proposta a apropriagao coletiva dos bens de produgao, era 0 grande patrocinador da arquitetura de feigo social, empenhado na elaboragdo de uma arte de esquerda, modi- _ ficando antigos conceitos e considerando a arquitetura como um meio de transformagiio social. Os edificios eram, segundo a definigao dos arquitetos cons- trutivistas, condensadores sociais, isto é, instrumentos de modi- ficagao de habitos arraigados e antigas ideologias em comportamen- _ tos socializados ¢ nao-individualistas. O conceito de condensador social guarda remota ligagao com as antigas soluges utdpicas, como o falanstério. ARQUITETURA DO ESTADO : Com as mudangas politicas ocorridas na década de 1930, a rise econdmica nos Estados Unidos, a ascensao de Stalin na Unido oviética e de Hitler na Alemanha, a face politica do mundo trans- igurou-se. As antigas consideragGes sociais e funcionais na ar- litetura vieram somar-se as necessidades de representagao, seja poder do capitalismo, nos Estados Unidos, seja do Estado forte, Alemanha e Italia, seja do comunismo, na Unido Soviética. As ocupagoes sociais perdem terreno para as preocupagdes com, apar€éncias e o vinculo entre “contetido social” e “arquitetura derna’”, dai por diante, sera enfraquecido. Fic. 31 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA A ARQUITETURA E O PROBLEMA DAS CIDADES Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, os CJAM* assumuram a orientagaio das posturas sociais relacionadas com a arquitetura moderna e com as intervengdes urbanas. A Carta de Atenas* estabeleceu definitivamente os princfpios que deveriam paular os grandes projetos relacionados com as cidades. Insistia no zoneamento,* na solugao em altura para os edificios, na produ- do de grandes conjuntos habitacionais. Foi finalmente conseguida a unanimidade entre os arquitetos com relagao ao papel da arquitetura na sociedade moderna € a orientacdo a seguir. Os grandes conjuntos, as grandes interven- Ges multiplicaram-se em todas as partes do mundo ocidental. A evolugao da indistria da construgio, sobretudo apés a Segunda Guerra Mundial, ¢ visando a reconstrugao das cidades, veio a for- necer uma nova tecnologia que vestia como luva 0s conceitos modernistas: a industrializagao total da construgao em sistemas de pré-fabricagao. Finalmente os edificios poderiam ser produzi dos como méquinas, uma antiga aspiracdo das vanguardas mo dernistas. A CRISE DOS ANOS 60 A excessiva orientacio racionalista e funcionalista das prati cas arquiteténicas orientadas pelos CLAM provocou reagGes con tundentes por parte de arquitetos, intelectuais e também usuarios, cujo resultado seria devastador para 0 proprio pensamento mo derno. Os conjuntos habitacionais de “Pruitt-Igoe”, em St. Louis, Missouri, e “Les Minguettes”, em Lion, Franga, tornaram-se emblemiticos da crise: tiveram de ser total ou parcialmente de molidos, apés precoce deterioragao devida inclusive a vandalizagav 98 Paate IV - 0 CONTEUDO NA ARQUITETURA promovida pelos prdprios moradores, protestando contra a sua completa inadequagao as comunidades as quais pretendia servir. As criticas provocariam uma reorientagao do pensamento mo- _ derno, diminuindo a énfase no funcionalismo* e incluindo nas preocupacées dos projetistas consideragdes sobre 0 aspecto sim- bédlico dos espacos criados, sobre as demandas psicoldgicas das comunidades atendidas e sobre aspectos culturais ligados & tradi- ¢ao regional. Movimentos como 0 Novo Brutalismo,* 0 Neo- _racionalismo* italiano e o Estruturalismo* holandés adotaram essa postura revisionista, embora apenas 0 primeiro assumisse claramente a problematica social. A ARQUITETURA DE CONTEUDO SOCIAL NO BRASIL Os conceitos modernistas do CIAM* tiveram eco no Brasil. ‘iversas politicas habitacionais foram aqui empreendidas, desde “Carteiras de Habitacio” dos IAPs (Institutos de Aposentado- fae Pensoes), criados na década de 1940 pela administragao de ettilio Vargas, até 0 todo-poderoso BNH (Banco Nacional da abitagdo), dos anos 60, ja no perfodo militar. Grandes nomes da arquitetura brasileira como Lticio Costa, {tilio Correia Lima, Francisco Bolonha, Vilanova Artigas, Rino vi, entre outros, deixaram suas assinaturas em obras de carater ial, as chamadas “habitacdes de baixa renda’”’. Nenhum deles, rém, teve tanta repercussdo mundial como os conjuntos residen- iais do Pedregulho e da Gavea, produzidos pelo Departamento Habitacdo Popular e projetados por Affonso Eduardo Reidy. es, ao mesmo tempo que atendiam as demandas técnicas e cionais preconizadas pelo CJAM,* apresentavam uma volu- tria exuberante e inovadora, com suas expressivas formas entinadas desenvolvendo-se ao longo das encostas dos mor- 99 Fic. 25 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA ros. Um belo exemplo de conjugagdio de forma e fungao, tio pro- curada pelos modernistas. A ARQUITETURA E 0 PROBLEMA DA HABITACAO Hoje, passados os momentos de crenga ingénua nos “super- poderes” transformadores da arquitetura, caracterfstica das van- guardas dos anos 20, passado também o periodo de disseminagao do estilo internacional, em que a arquitetura serviu a legitimagao do liberalismo econémico, que se estende até fins dos anos 50, podemos fazer uma avaliactio mais serena das reais possibilida- des da arquitetura no que se refere ao problema da habitagio, sobretudo aquela dita “de interesse social.” Sabemos que os grandes conjuntos sio projetados por ar- quitetos, mas nao produzidos por estes, tarefa que geralmente recai nos 6rgaos governamentais de fins sociais, uma vez que a@ iniciativa privada jamais se interessard em produzir algo que nao Ihe traga retorno de capital, como é 0 caso das habitages para classes sociais de baixa renda, Assim sendo, a arquitetura cum- pre, nesse processo de produciio, uma fungaio de apoio. Cabe-lhe apresentar solugdes técnicas, estéticas ¢ funcionais para a mora- dia, mas nao pode interferir, a ndo ser de maneira indireta, nos problemas politico-financeiros que lhe sao inerentes. O DESEMPENHO DA ARQUITETURA DE ORIENTACAO SOCIAL Mesmo sabendo de seu papel limitado, tem sido uma cons- tante preocuparao do arquiteto a avaliagdo de seu desempenho nos programas habitacionais, pois apesar de a histéria registrar um afastamento entre 0 cidadjo do povo e a grande arquitetura, deve-se acreditar no encontro possivel. 100 Pare IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA O desempenho técnico € 0 que apresenta melhores resulta- dos. Ai estéio as solugdes de completa industrializagao, caracte- programas habitacionais de baixo custo, principalmente nos pai- ges do Terceiro Mundo. Quanto ao aspecto estético, 0 maior problema parece ser a Vinculacao, sem o devido questionamento, da necessdria diminui- gio de custos com um principio da produgao industrial, o da eco- omia de escala. Segundo este principio, um bem torna-se mais arato na medida em que é produzido em grandes quantidades; {ransposto para a esfera da produgio de edificios de habitacao oletiva ou individual (edificios de apartamentos e casas), 0 prin- (pio tem gerado grandes conjuntos em que as formas sao repeti- das em arranjos monétonos e inimaginosos, aos quais geralmente alta expressdo, identidade e qualidade poética, fatores considera- dos supérfluos para muitos empreendedores, mas jamais para 0s sudrios. O uso criativo de sistemas industriais, embora restrito, io est4 ausente da produgao arquitet6nica para grandes conjun- s, como bem o demonstra o “Habitat” do arquiteto israelense Moshe Safdie. A concepcdo espacial é outro grave problema visto que, na Maioria das vezes, 0 arquiteto tende a projetar segundo as suas hecessidades, suas praticas espaciais, sua ideologia, que costu- jam ser muito diferentes das necessidades, praticas espaciais e \deologia dos usuarios, gerando, nos casos brandos, 0 desconfor- 10; nos casos mais graves, 0 abandono e a deteriorag4o; e, nos casos extremos, até a vandalizacao, atitude freqiientemente re- Fic. 31 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA gistrada na hist6ria recente da arquitetura. Conscientes destes problemas, tém os arquitetos desenvolvido métodos de trabalho que permitem uma participagao maior da comunidade durante a produgiio e apés a ocupagdo das moradias, criando assim uma estreita faixa de atividade comum. NOTA “Um tiltimo remascecente destas “vilas operdrias” é a Vila Pereira Passos, cons- trufda pela Prefeitura, a partir de 1906, na Avenida Salvador de Sa, no Rio de Janeiro, e recentemente tombada pelo Patriménio Histérico. BIBLIOGRAFIA DEREFERENCIA ABREU, Mauricio de Almeida. A Evolugdo Urbana no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [plan Rio/Zahar, 1987, BENEVOLO, Leonardo. Histéria da Arquitetura Moderna. Sao Paulo, Perspec- tiva, 1981. BRAUND, Yves. Arguitetura Contempordnea no Brasil. Sio Paulo, Perspecti- va, 1981. CHOAY, Francoise. O Urbanismo. Utopias ¢ Realidades. Uma Antologia. Si0 Paulo, Perspectiva, 1970. FRAMPTON, Kenneth. Histéria Critica da Arquitetura Moderna. Sao Paulo. Martins Fontes, 1997. JENCKS, Charles. The Language of Post-Modern Architecture, London, Acade- my, 1978. KOPP, Anatole. Quando 0 moderno néo era um esiilo e sim uma causa. Sio Paulo. Nobel/Edusp. 1990. ROCHA, Oswaldo Porto/CARVALHO. Lia de Aquino. A Era das Demoligdes/ Habitacdes Populares. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, Secretaria Mu- nicipal de Cultura, 1995, SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. Sao Paulo, Edusp. 1999. 102 Capitulo XVI CONTEUDO PSICOLOGICO ARQUITETURA, EMOCOES E SENTIMENTOS Como qualquer meio de comunicagao estética, também a ar- quitetura pode transmitir um amplo espectro de emogGes que faz. parte de nossa vida: a apreensiio diante de mudangas estruturais, a confianga no futuro, o desejo de poder, as fantasias e fixagdes mais diversas. Estas emog6es se constituem em um conjunto pos- ‘sivel de mensagens a que chamamos contetido psicolégico da arquitetura, de vez que a psicologia é a ciéncia que pretende o “entendimento das fungdes mentais e motivagdes comportamentais de individuos e grupos. - A palavra psicologia deriva da palavra grega psique, que podemos traduzir por alma, preferencialmente, em oposi¢ao acor- po (soma em grego). A investigagao psicolégica estava original- mente afeta aos filésofos, assim como de resto todo o conheci- mento cientifico. A criag&o de uma ciéncia especifica para 0 es- tudo da “alma humana” é recente, datando do século XIX. Ja no seu nascimento via-se a diversidade de orientagGes possiveis, desde 103 Fic. 26 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA o simples entendimento das fungdes da mente, passando pela re- lagdo entre estimulos ¢ respostas neurofisiolégicas, até chegar a uma investigacao das estdncias mais profundas do “eu”. PSICOLOGIA E ARQUITETURA As formas arquiteténicas, através da histéria, sempre servi- ram para representar os sentimentos, sobretudo no que se refere a orientagdes emocionais coletivas, seja do fausto hedonista dos romanos, materializado nos gigantescos espagos das termas,* seja da religiosidade catélica, expressa de diversas maneiras — na tiqueza mural dos templos bizantinos, na verticalidade ascética das catedrais, ou na luminosidade dos vitrais géticos. No que se refere 4 abordagem te6rica, 0 mais antigo registro que temos do reconhecimento de motivagGes afetivas para for- mas arquitet6nicas esté em duas passagens de Os dez livros de arquitetura, de Vitrivio: a primeira quando ele se refere is caridtides,* ¢ a segunda quando narra a origem do capitel corintio.' Trata-se, entretanto, de caso isolado, pois até muito recente- mente predominavam as preocupacées visualistas, mais voltadas para o estabelecimento de relagdes matematicas na composi¢ao de formas arquitet6nicas. Somente em fins do século XIX € que se inicia, de modo sistematico, a abordagem psicoldgica da arqui- tetura, inicialmente com Robert Vischer e sua aplicacao da teoria da einfiihlung.* A este seguem-se os trabalhos de Heimrich Wélfflin, que podem ser considerados um marco no assunto. N{VEIS DE RELACAO O encontro entre psicologia e arquitetura pode acontecer em és niveis diferentes. Primeiro, instrumentando o arquiteto quanto as necessidades subjetivas dos usuarios e quanto a natureza da 104 Pare IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA percepgao humana de espagos e formas; segundo, na medida em que diversas teorias psicolégicas ocupam-se do processo de cria- ¢ao, pode o trabalho do arquiteto fundamentar-se nas mais recen- ‘tes conquistas sobre esse assunto; e, por tiltimo, na atividade criti- ca, a aplicagao de conhecimentos psicolégicos muito pode ajudar 9 estudioso e teérico em suas especulagdes sobre as motivagdes profundas do arquiteto para tal ou qual solugao. TEORIAS PSICOLOGICAS E SUAS APLICAGOES No século XX sao diversos os caminhos trilhados pela psico- Jlogia, e seu rebatimento na arquitetura, como nao poderia deixar de ser, corresponde a estas diferentes orientagdes, cada uma com importantes contribuig6es para a atividade projetual do arquiteto e para a andlise critica das obras. As teorias mais objetivas, voltadas para a andlise do funcio- namento mental e do comportamento, sao a reflexologia e 0 behaviorismo.* Estas teorias, valendo-se da experimentagao neurofisiolégica, deram mais nova e¢ consistente fundamentagiio as antigas formulagGes visualistas; a psicodinamica das cores e dos padrées, utilizada inclusive pela Bauhaus,* tém sua origem nessas abordagens. Uma outra orientagdo datada, como as primeiras, do inicio do século XX € a psicologia da Gestalt,* que teve desdobra- mentos importantes na arquitetura e nas artes plasticas, devido sobretudo ao seu vinculo com o método filos6fico da feno- menologia.* Diversos autores, dentre os quais destacamos Rudolf Ambheim e S. E. Rasmussem,’ desenvolveram trabalhos relaci- onados com a percepgio e os atributos psicolégicos dos espa- cos urbanos e interiores arquiteténicos baseados na dindémica da forma, teoria resultante deste cruzamento. A psicologia genética, cujo principal expoente é Jean Piaget, 105 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA criada em meados do século XX e vinculada ao estruturalismo,* se constitui a partir de estudos pacientes e sistematicos da evolu- ¢ao mental da crianga, da formagao do juizo, do raciocicio e das nogées de causalidade, nimero, tempo, espago, movimento. Suas descobertas, integradas j4 ao corpo de doutrina da psicologia ge- ral, t€m orientado indiretamente trabalhos pertencentes ao domi- nio da arquitetura e das artes. AS PSICOLOGIAS DAS PROFUNDEZAS Essas teorias e doutrinas citadas pertencem ao territério das chamadas psicologias da mente consciente ou psicologias do ego. Temos ainda os trabalhos de investigagao da mente incons- ciente, que sdo, sem dtivida alguma, a maior contribuigao da psi- cologia para a cultura do século XX. Neste dominio destacam-se dois nomes: Freud e Jung. Jung centrava sua teoria em conceitos como “inconsciente coletivo” e “arquétipo”; estes nado eram estranhos as teorias arquitet6nicas. Termos como genius loci.* zeitgeist (espirito da época), kunstwollen (desejo da forma), dando conta de que fato- res externos, culturais ou ancentrais, advindos do pensamento coletivo tém papel determinante na materializag&o das idéias do arquiteto, vao encontrar nos trabalhos de Jung uma bem elabora- da fundamentagio teérica. Quanto a Freud, apesar de este nunca ter-se ocupado direta- mente de estabelecer uma “estética” baseada na psicandlise, € inegdvel que suas teorias foram decisivas para a critica de arte dos nossos dias. Ele préprio ocupou-se da andlise critica de obras classicas de Leonardo da Vinci e Miguelingelo. Além disso, mui- tos de seus discfpulos construiram teorias estéticas baseadas em reinterpretagdes de seus escritos Talvez a mais importante idéia que se pode extrair da relagao 106 Paate IV - © CONTEUDO NA ARQUITETURA, entre a psicandlise ¢ a obra de arte seja a de que, segundo Freud, 0 processo psiquico envolvido na criagao artistica € 0 mesmo que da origem aos sonhos, embora com intengGes diversas. Partindo daf, pode-se aplicar a critica de arte todo 0 cuidadoso e exaustivo trabalho dedicado pela psicandlise a interpretagéo dos sonhos. METODOS DE PROJETACAO SUBJETIVOS As teorias, atividades do pensar arquitet6nico, sempre se desdobram em metodologias, atividades do fazer arquitet6nico. Um método pode muito bem ser definido por atividades pura- mente matematicas (levantamentos de quantidades, de dreas, graficos, pré-dimensionamentos), uma prdtica comum em nos- sos dias devido & orientagéio pragmatica de nossa cultura; neste caso, sobra pouco para a manifestagdo de emogées e conteti- dos mais profundos. Mas pode acontecer diferentemente, sendo as seqiiéncias de atividades dispostas de maneira vaga, abrindo espago para a infil- tragdo de idéias e motivos que esto aquém do controle racional. Grandes mestres como Le Corbusier e Louis I. Kahn, quando em atividade projetual, paralelamente a coleta de dados objetivos, ensejavam 0 contato com cédigos formais e culturais externos ao universo da arquitetura, buscando obviamente penetrar em um plano de contetidos jamais acessivel por cdlculos matematicos e graficos. Quando Le Corbusier fala do “espago inefavel (...) que nao depende da extensio”, ou quando Louis I. Kahn descreve a “trajetoria do siléncio a luz”, estaio ambos na busca de algo distan- te das causas materiais, em uma instancia em que as emogées e os desejos representam um papel importante. 107 Fic, 32 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA O EDIFICIO E A MENTE HUMANA Ao trabalhar 0 edificio e seus elementos volumétricos, murais ‘ou espaciais em suas relagdes com as estancias da mente, quer com fins metodolégicos ou criticos, esta o arquiteto fazendo a sua parte em um jogo no qual foi ha muito precedido por filésofos, psicdlogos e poetas. Para estes, 0 edificio éuma fonte inesgotavel de associagdes com sentimentos e figuras que povoam a mente inconsciente. Em uma passagem significativa, Jung nos descreve a sua casa: “A ampla torre, com sua lareira, representava o ‘maternal’; a segunda torre, onde ninguém entrava sem permissdo, lu- gar de retiro e meditagdo, representava 0 ‘espiritual’. O pd- tio era a abertura para a natureza e, finalmente, 0 andar levantado por tiltimo sobre a parte central representava 0 ego, significando a extenséo da consciéncia atingida na velhice. Assim, a casa em pedra era ‘a representagdo dos meus mais intimos pensamentos ¢ do conhecimento que eu tinha adquirido’.” Da mesma forma, Bachelard, em seu A poética do espago & generoso em reflexdes prdprias ¢ citagdes de poetas a respeito da casa e seus elementos espaciais. Por outro lado, Jencks nos mos- tra o quanto a simbolizagao é um recurso utilizado pelo arquiteto, consciente ou inconscientemente, para relatar fatos da mente pro- funda usando analogias entre 0 corpo € 0 edificio, ou ainda simbo- los arquitet6nicos como a cruz, a langa, a dgua ¢ outros, perten- centes aos dois universos. A EXPRESSAO DAS EMOCOES PELA ARQUITETURA Apesar desses testemunhos incontestéveis, nem todos admi- 108 Parte IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA tem ser a arquitetura um veiculo possivel para a expressao das emog6es; isto é perfeitamente compreensivel, uma vez que nossa época € nutrida pela raz4o € nossas maiores conquistas nao foram obtidas pelo discernimento moral ou pela expressio dos sentimen- tos, mas sob a orientagao da ciéncia e da técnica. A verdade € que 0 arquiteto ocupa, no processo de produgiio da sua arte, um espago muito menor que os outros artistas, pinto- res, escultores, escritores, nas suas respectivas atividades; quanto maior for este espago, maiores as possibilidades de manifesta- | ges pessoais, e conseqiientemente de emogées. Algumas condigGes podem influir favoravelmente nessa dire- gao, e, entre elas, as principais so a propria subjetividade do arquiteto, sua autoridade e 0 préprio tema. Quando o préprio autor aprecia as manifestagdes subjetivas, estas aparecerfio de maneira mais freqiiente, coordenada e explicita; caso contrario, os contetidos profundos tendem a ser inibidos. A autoridade (0 reconhecimento pela sociedade da exceléncia da obra de um ar- lista, e, por extensdo, de sua infalibilidade poética) é um status que tem sido legado pelo ptiblico aos seus mais destacados cria- dores; ela favorece a presenga de contetidos psicolégicos na me- dida em que estao ligados 0 conceito de originalidade e 0 culto da personalidade, predicados que sao buscados nas camadas mais rec6nditas da mente. Por fim, o préprio tema pode ajudar: existem assuntos mais propicios que outros para a expressdo pessoal. GAUDI, FURNESS, GOFF Sabemos que a autovia principal da arquitetura moderna, centrada no racionalismo,* no funcionalismo,* no elemen- tarismo,* comprometida portanto com uma orientagao positivista, tendia a menosprezar as manifestacdes emotivas, embora, obvia- mente, nao tenha logrado elimind-las. O caminho seguido pelo 109 UMA INTRODUCAO A ARQUITETURA modernismo arquitet6nico em direcao 4 labstragaio geométrica € um claro indicio de que os arquitetos preferem uma arte nao intermediada por disposigdes mentais inconscientes. Neste aspecto, nao fazem mais do que refletir uma orientagao geral da prépria sociedade que representam. Tal fato nado impossibilita a critica psicolégica, podendo torné-la até desafiadora ¢ rica. Porém, se 0 modernismo cultiva uma atitude repressiva quanto & expressiio individual, o perfodo que o antecede, a longa € inqui- etante procura de um estilo, que marcou 0 século XIX, revelou certas linguagens abertas aos processos inconscientes. Tal é0 caso dos movimentos neogético* ¢ art-nouveau.* Para 0 pri- meiro, ressaltamos 0 subversivo trabalho anti-racionalista de Frank Furness, na Filadélfia. No cruzamento das duas tendéncias, des- taca-se a obra de Antonio Gaudi, em Barcelona. Ambos, a seu modo, em seu meio e em sua escala, sao afirmacées do persona- lismo, da excentricidade expressiva e da tensao irracional possi- veis em um objeto arquitetonico. Um outro destaque, j4 em plena vigéncia do estilo interna- cional,* porém na contramao, aparece na pessoa de Bruce Goff, o qual as influéncias do decano Frank Lloyd Wright soma um personalismo exaltado e um sentido de improvisagio espontanea presentes também em Gaudi, atitudes favorecedoras das mani- festacdes inconscientes. A POETICA EXPRESSIONISTA £ sobretudo com 0 expressionismo* — movimento de ten- déncias artisticas diversificadas, centrado geograficamente na Ale- manha e Holanda e acontecido principalmente nas segunda e ter- ceira décadas deste século — que se trilharé com mais determi- nagiio o caminho de resisténcia ao racionalismo impessoal do mo- dernismo; suas proporgées insuspeitadas, seus arranjos descon- 110 Pare IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA certantes de volumes e formas, sua variedade de texturas ense- javam a criagéo de uma estética antiiluminista, abertamente con- trdria 4 submisso a realidade da era moderna. Peter Behrens, Hans Poelzig, Michel de Klerk, Erich Mendelsohn séo nomes de destaque filiados em algum momento a essa poética de valoriza- ¢ao da expressao individual e dos contetidos emotivos, que deixa- ram registrados na sua arquitetura toda a apreensdo e 0 descon- forto dos intelectuais diante das promessas sedutoras da era da maquina. NOTA ‘Eis um resumo da narrativa de Viteivio: “No tiimulo de uma jovem de Corintio, falecida em idade de contrair miipeias, sua aia colocara seus pertences mais esti- mados em uma cesta, Aconteceu que esta foi deixada em cima de uma rafz de acanto, que floresceu na primavera, por entre os espagos livres dos objetos. O refinado escultor Calimaco se comoveu com aquelas formas e as reinterpretou, determinando-Ihes as proporgdes simétricas, e as utilizou como capitel de colu- nas de templos corintios a partir de entao.” ° Ver Anexo III / Bibuiocraria / Os DEZ PRIMEIROS LIVROS DE ARQUITETURA BIBLLIOGRAFIA DEREFERENCIA BACHELARD, Gaston. A Poética do Espago. Sao Paulo, Martins Fontes, 1988. BANHAM, Reyner. Teoria ¢ Projeto na Primeira Era da Maquina. Sio Paulo. Perspectiva. 1960. FUSCO, Renato de. A /déia de Arquitetura, Barcelona. Gustavo Gili, 1977. KOFMAN, Sarah. A Infancia da Arte: uma Interpretagao da Estética Freudiana Rio de Janeiro. Relume-Dumara, 1996. MUELLER, Fernand-Lucien. Histéria da Psicologia. Sao Paulo, Editora Nacio- nal/Edusp, 1968. SCRUTON, Roger. Estética da Arquitetura, Sio Paulo. Martins Fontes. 1979. SILVEIRA, Nise da. Jung. Vida e Obra. Rio de Janeiro. José Alvaro, s.d. VITRUVIO, Marco __ Pollio/ MORGAN, Morris Hicky. The Ten Books of Architecture. New York, Dover, 1960. Fic. 13 Fic. 33 | Capitulo XVII SEMIOTICA, COMUNICACAO E ARQUITETURA O saber antigo nao ignorava as quest6es da linguagem. Di- versas incurs6es no terreno dos signos sao encontradas nos did- logos de Platéo, nos escritos dos filésofos estdicos, sofistas e epicuristas. J4 mencionamos uma passagem de Dez livros... de Vitriivio, em que este assinala a divisiéo fundamental entre significante e significado no objeto arquiteténico, toque primordial dos problemas lingiifsticos. Modernamente, muitos arquitetos ¢ tedricos fizeram analogia entre a linguagem da arquitetura e a lingua falada; Frank Lloyd Wright mencionava uma “gramiatica” e uma “sintaxe” da arquitetura. Porém, essas referéncias, embora providenciais e adequadas, eram, de certa maneira, metaféricas, uma vez que nao levavam adiante um estudo sistemético tendo por base o modelo lingiiistico. Um dos primeiros trabalhos que marca 0 ingresso da arquite- tura no campo da lingiiistica é datado de 1966 e deve-se a Robert Venturi;! trata-se da aplicacao explicita de um método de critica 112 Pasre IV -O CONTEUDO NA ARQUITETURA _ literdria 4 arquitetura. Alguns anos antes, Erwin Panofsky havia feito 0 mesmo para as artes visuais. ARQUITETURA COMO LINGUAGEM Qualquer incursao no campo da lingiifstica comega com a constatagao de que a arquitetura é uma linguagem e, como tal, é capaz de transmitir mensagens; uma constatag&o que parece in- génua, de tao 6bvia, porém cujo desdobramento abre um campo infinito de consideragGes, de vez que permite a utilizagao de todo conhecimento adquirido sobre as linguas faladas e linguagens nao verbais no terreno especifico da arquitetura, visando seu enten- dimento, recolocando antigos problemas sob nova 6tica e depu- rando sua linguagem especifica. SEMIOTICA E SEMIOLOGIA? Falamos em lingiifstica até o momento por questao de simpli- ficagao, porém mais apropriado é usarmos 0 termo semiética (ou semiologia), pois este é 0 nome que se da a ciéncia que estuda as linguagens nao verbais, enquanto a lingiiistica tem por objeto as linguagens verbais. A ARQUITETURA CLASSICA VISTA PELA SEMIOTICA Vejamos como se aplica a andlise semiética 4 arquitetura, tomando como exemplo as ordens classicas. Sabemos que a esté- tica da arquitetura grega era baseada nas ordens, de que ja fala- mos no capitulo XII. As ordens gregas foram resultado do lento aperfeigoamento formal do seu sistema construtivo, o sistema trilitico; os romanos também utilizaram as ordens gregas, com al- gumas modificag6es; porém, estes possufam técnicas construti- 113 Fic. 14 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA. yas bem mais evoluidas que os gregos: conheciam o sistema de arco e dispunham da pozolana. Ao adotarem o sistema formal das ordens, o fizeram apenas para efeito decorativo, como preito de reconhecimento a exceléncia da arquitetura de seus antecessores ¢ antigos dominadores. Em termos semidticos, temos que 0 mes- mo significante (uma coluna, um capitel, uma arquitrave) toma significados diferentes: para os gregos, a forma natural do apri- moramento estético de elementos construtivos primarios; para os romanos, de valor decorativo e simbélico, de vez que a conjun¢ao com os sistemas construtivos estava perdida. A CRISE DE COMUNICACAO NA ARQUITETURA MODERNA A abordagem lingiifstica da arquitetura acontece oportuna- mente, pois 0 modernismo provocou, com sua proposta de reno- vagiio completa e absoluta dos cédigos, uma crise de comuni- cabilidade que chegou ao limite por volta dos recentes anos 60. Um exemplo caricatural do que aconteceu pode ser formulado da seguinte maneira: suponha-se que um pafs de lingua inglesa, de uma hora para outra, decida que seus cidadaos, dai por diante, deverao comunicar-se em outra Ifngua, 0 espanhol, por exemplo. Pode parecer um absurdo, ¢ até inimagindvel, porém aconteceu algo semelhante, em termos semidticos, com a arquitetura nas primeiras décadas do nosso século. O modernismo, de inspiracao funcionalista e racionalista, queria as formas arquiteténicas abstratas, desligadas dos contetidos tra- dicionais e histéricos: as portas nao seriam mais portas, verti- calizadas, de proporcao tradicional, seriam vdos de acesso, de forma livre; as janelas, nao mais “A francesa” , seriam vdos de iluminagéo e ventilagdo; os telhados, elementos de cobertura, no mais das vezes, uma simples laje plana impermeabilizada. 114 Parte IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA Nenhum prejuizo para os sistemas técnicos e funcionais: as pessoas continuariam a penetrar nas casas pelos “vdos de acesso”, os interiores continuariam a ser iluminados pelos “vdos de ilu- minacdo”, as lajes de cobertura continuariam a abrigar eficien- temente os usuarios. Isto porém nao basta. Um elemento arquite- tonico deve cumprir uma fungao, mas também representd-la. Quando os telhados foram retirados das residéncias, por ques- tes estéticas, nada foi colocado em seu lugar que representas- se protecio. O ptiblico nao aceitou esta situagao com facilida- de, por no ter assimilado prontamente, como os arquitetos de- sejavam, 0 novo e rigido cddigo de continéncia decorativa, ven- do-se apenas privado de seus simbolos seculares. Dai a crise de comunicabilidade. ARQUITETURA E COMUNICAGAO DE MASSAS A colaboragao entre semidtica e arquitetura vem levantar outra questo, tipica das sociedades industriais desenvolvidas e propria dos nossos tempos: a afinidade entre a linguagem da arquitetura com os meios de comunicagio de massa. Embora nem sempre estejam os arquitetos conscientes deste fato, a linguagem arquite- ténica assimila muitas caracteristicas do que a teoria da comuni- cagiio chama de mass media. As mensagens de comunicagao de massa, tais como as men- sagens da arquitetura, sdo dirigidas a um grande nimero de pes- soas que compdem um publico heterogéneo, impedindo-as de ser qualitativamente seletivas, orientando-se pelo gosto médio do ci- dadao. Os meios de comunicagao de massa acontecem em uma sociedade de mercado sujeita a leis préprias, como a da rapida obsolescéncia, e a questées de moda e gosto; suas mensagens sao frufdas na desatengio, diferentemente das obras da grande arte, exibida em saldes prdprios e requerendo absoluta atengdo; 115 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA tal fato exige maior redundancia na mensagem, empobrecendo o contetido poético. A comunicacao de massas é persuasiva, isto é, tenta convencer as pessoas; é coercitiva, procurando induzir a uma mudanga de comportamento; é autoritaria, obrigando as pes- soas a ter determinados gostos e comportamentos. E facil de se constatar que essas consideragdes abrem um vasto campo de estudo e pesquisa para o arquiteto sensibilizado pelos problemas da comunicagéo. Na verdade, a linguagem da arquitetura traz consigo mais esta contradigdo, mais este motivo de tensao: é uma arte de massas, pela abrangéncia e publicidade de sua mensagem, mas é também grande arte, pelo refinamento de suas manifestagdes e por suas qualidades de permanéncia. A arquitetura move-se nestes dois universos, o da comunicagao fa- cil e necesséria e o da comunicagiio poética e refletida. E impor- tante a consciéncia desta dupla polaridade. NOTAS 'Ver “Bibliografia de Referéncia” no final deste capitulo. 2 Abrimos um paréntese para o esclarecimente de uso dos dois termos (semidtica © semiologia) para designar © mesmo objeto de conhecimento. Semidtica foi o nome dado por Charles Sanders Peirce, filésofo e matematico americano 4 “cién- cia geral dos signos” . por cle fundada no inicio deste século. Semiologia foi o termo proposto por Ferdinand de Saussure, lingiiista suico, no seu livro “Curso de Lingiifstica geral” , pega chave da lingiiistica estrutural, para a ciéncia que estudaria “a vida dos signos no seio da sociedade”, ciéncia da qual a lingiifstica, seu objeto de interesse, seria apenas uma parte; sua sugestdo para o desenvolvi- mento de tal ciéncia foi aceita por diversos tedricos, dentre os quais se destacam Louis Hjelmslev e Roland Barthes, que ampliaram 0 modelo da lingiifstica estru- tural para as linguagens nao verbais. As duas ciéncias, de ascendéncias diferentes, a semidtica nascida na confluéncia da légica formal e da filosofia de extracao fenomenoldgica, ¢ a semiologia, aparen- tada a lingitistica, tm 0 mesmo objetivo: o estudo geral dos signos, das linguagens nao verbais, das estruturas de suas mensagens ¢ de seu efeito nas pessoas. O nome “semiologia” é usado pelos te6ricos cujo pensamento tem origem no mode- loling e“semidtica” por aqueles que seguem 0 modelo lgico-matematico Parie IV - O CONTEUDO NA ARQUITETURA de Peirce, Isto seria quase a mesma coisa que dizer, como Umberto Eco, que autores de lingua inglesa preferem semidtica, e aqueles de lingua latina preferem semiclogia, BIBLIOGRAFIA DEREFERENCIA. ECO, Umberto, A Estrutura Ausente, Sao Paulo, Perspectiva. 1968 FUSCO, Renato de. Segni, Sioria e Progetto dell’Architettura. Roma, Bari, Gius, Laterza e Figli. 1973. JENCKS, Charles. The Language of Post-Modern Architecture, London, Acade- my. 197 VENTURI, Robert. Complexidade e Contradiedo na Arquitetura. S80 Paulo. Martins Fontes. 1995. Capitulo XVII ARQUITETURA E CONTEXTO AS DIVERSAS ABORDAGENS Vimos até aqui diversas maneiras de se interpretar a arquite- tura; podemos entendé-la do ponto de vista formal, histérico, so- cial, psicoldgico, lingiiistico... Podemos até mesmo estender a lista com outras abordagens, porém estas so as mais importantes, res- tando apenas uma: a abordagem fenomenolégica. Até o momento, todas as maneiras que vimos constituem-se de sistemas externos a arquitetura, coerentes em si mesmos, com os quais devemos “vestir” 0 nosso objeto. Assim acontece com 0 sistema formal, onde estabelecemos alguns padres, regras e ins- trumentos de andlise relativos a forma arquitet6nica ¢ os utiliza- mos para captar o contetido do nosso edificio; da mesma maneira, com 0 significado social, verificamos se 0 nosso objeto de andlise atende As condigdes que lhe atribuiriio qualidades de interesse social. O mesmo se dé com todos os outros sistemas. 118 Ponte IV - 0 CONTEUDO NA ARQUITETURA CONVENIENCIA, DECORO, ADEQUACAO Todas essas abordagens falam do objeto em si, mas nao da- quilo que envolve, do contexto onde foi ou sera implantado. Ai nos defrontamos com mais um fator condicionante da arquitetura: sua capacidade de se harmonizar com 0 meio em que esta inserida. A estética clissica preconizava esta condigao, que Vitravio chama- va de “decor”, palavra que tem sido traduzida por conveniéncia, decoro ou adequacdao; 0 termo latino nos legou decoragdo, que originalmente significava “adequagao a um uso”; com © passar dos tempos, devido a transformagées seménticas, a palavra teve seu significado comprometido com 0 uso de ornamentos. CONTEXTO NATURAL E CONTEXTO CULTURAL Ao falarmos de harmonizacgéo com 0 contexto Cumpre, em primeiro lugar, a perfeita caracterizagado do que entendemos por esta palavra; diferenciemos portanto 0 contexto natural, 0 meio agreste, em pouco ou nada modificado pela intervengao do homem, e 0 contexto cultural, carregado de realizagdes humanas, intensa- mente modificado para atender as condig6es da vida coletiva. ARQUITETURA E MEIO NATURAL No que se refere & relagdo entre a arquitetura e 0 meio am- biente natural, duas sio as atitudes possiveis: a primeira, a con- trastagdo, pela qual 0 objeto se diferencia do contexto, afirmando suas qualidades préprias, sem qualquer concessao as formas na- turais, sem buscar uma integragdo visual, mas aparecendo como um produto do homem e, por isso mesmo, em oposigao ao legado da natureza. FE a atitude mais comum, nao sé historicamente fa- Jando, como também nos tempos atuais, na medida em que 119 Fic. 6 _UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA corresponde ao projeto iluminista de dominagao da natureza, as- sumido pelo modernismo. A segunda atitude, de harmonizagao, € um projeto mais recente, € surge com as poéticas subjetivistas; € mais trabalho- sa € menos auto-referente, aceitando para a arquitetura um pa- pel coadjuvante no cendrio natural, e constituindo-se 0 objeto arquitet6nico, ou qualquer de seus elementos, no resultado de uma leitura, interpretagdo e decodificagéio dos fendmenos natu- rais. Apesar de ser menos freqiiente, mesmo porque é também uma atitude contra-cultura, tem sido responsdvel por grandes momentos da arquitetura do século XX, nas maos de mestres como Alvar Aalto e Frank Lloyd Wright, este ultimo autor da obra mais conhecida e emblematica sobre o tema: a “Fallingwater” (Casa da Cascata). ARQUITETURA E O CONTEXTO CULTURAL Ao falarmos de meio ambiente culturalmente modificado, fa- lamos sobretudo da cidade, embora poucos lugares existam, se é que existe algum em nosso planeta, onde os raios da cultura nio tenham penetrado. E na cidade que se tornam mais evidentes os efeitos culturais; a cidade é um repositério da cultura, onde se sobrepdem, em camadas, os produtos das diversas estruturas e conjunturas sociais que adotaram 0 seu espago como palco de atuagao. Os problemas relativos 4 contextualizagao comegam a surgir quando constatamos que, em nossa €poca, multiplicaram-se em muito as maneiras de entender a arquitetura, como também as maneiras de fazé-la: nossas cidades, sobretudo as mais antigas, estao repletas de monumentos e sitios hist6ricos onde edificios de feitura recente convivem com outros de idade avangada até em séculos, e mesmo edificios contemporaneos entre si, mas conce- 120 ONTEUDO NA ARQUITETURA, bidos sob métodos ou ideologias diferentes, dividem nossas toma- das visuais, nem sempre com resultados satisfatérios. A ARQUITETURA MODERNA E O CONTEXTO URBANO Se uma das tarefas do arquiteto é organizar e ordenar o meio ambiente em que vivemos, temos de reconhecer que nossas cida- des nao evidenciam o melhor cumprimento dessas tarefas. Trata- se de um problema do nosso século, devido as posigdes adotadas pelo modernismo, pois no século passado, quando acontecia um grande inchamento das cidades, sobretudo das metrépoles, em que pese as grandes diferengas ostentadas na forma mural dos edificios, 0 método projetual (0 antigo e consagrado método renascentista) era apenas um: 0 que garantia a unidade formal dos ambientes urbanos, reforgada esta pelas limitagdes técnicas responsdveis pelo porte semelhante dos edificios. Jéa arquitetura moderna estruturou-se para atender as ques- tdes colocadas pelo desenvolvimento da sociedade, porém nao se preparou para a necessidade de convivéncia dos novos edificios com a arquitetura do passado. Seu ponto de ataque privilegia 0 edificio, o objeto isolado, muitas vezes em detrimento do conjunto; as grandes solugdes modernistas excluem as consideragdes sobre 0 passado ou outro contexto qualquer. A arquitetura moderna foi pensada para a renovagao: seus grandes momentos — quer se trate de edificios, de conjuntos, ou mesmo de cidades — sao dis- cursos autocentrados que exibem e realgam as préprias qualida- des, entre as quais nao se inclui o zelo pela integridade ou harmo- nia dos contextos preexistentes. A ABORDAGEM FENOMENOLOGICA O método fenomenolégico aplicado a arquitetura aparece em 121 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA parte motivado pelo desejo de preservar os centros histéricos eu- ropeus danificados pela Segunda Guerra Mundial e ameacados pela febre de construgao, na maioria das vezes inspirada apenas na voracidade imobilidria, e possibilitar a convivéncia de seus edi- ficios seculares com as novas realizagGes; € também, em parte, uma reagio ao objetivismo (visio centrada no objeto), principio ativo das realizagdes da modernidade. Baseia-se na constatacdo de que, apesar de qualquer realiza- cao arquiteténica subentender um método, uma estrutura racional orientadora, é também verdade que estas realizacSes se apresen- tam aos nossos sentidos por sua aparéncia, linhas, planos, cor, textura, organizagao de elementos em dominancias e contrastes, relagdes de cheios e vazios, ritmo... A tinica maneira de poder- mos organizar visualmente os contextos, principalmente nas gran- des cidades, é procurar entender, nao sob a vestimenta conceitual (este edificio é purista, este outro é eclético), mas no que ele apre- senta de mais imediato, atemporal e¢ transestilistico; é ser capaz de langar um olhar “ingénuo” sobre um edificio, ou seu contexto, como se nada dele conhecéssemos, ou de sua arquitetura, tentan- do entender a estrutura mais aparente, decompondo suas formas em linhas, planos, relagGes de escala. PERCEPCAO E SUBJETIVIDADE Comecamos entao a perceber qualidades tanto nos construtos arquitet6nicos como nos elementos urbanos que nao se relacio- nam a nenhum estilo particular; um edificio pode nao ter nenhuma qualidade consagrada, nenhuma beleza, e, no entanto, ser impor- tante em determinado contexto por razGes outras que nao aquelas fornecidas pelos métodos de entendimento usuais de critica arquitet6nica: pode ser marcante pelo material com que foi 122 Pate IV - 0 CONTEUDO NA ARQUITETURA construido, ou por seu posicionamento em relacio aos edificios vizinhos, tornando-se importante para definir um espaco. Sob esta visdo, ganham relevo certas consideragGes subjeti- vas provocadas pelas configuragdes formais; podemos nos sentir seguros ou inseguros, ter sentimentos de pertinéncia ou estranha- mento com relagao a um sitio, devido a suas formas; uma calgada estreita, cheia de obstdculos, junto a uma via de tréfego intenso nos fara sentir inseguranga e desconforto, incapacitando-nos a qualquer fruigao; elementos naturais como a Agua, a terra e a vegetacado podem nos provocar reagGes positivas, servindo para mediar nossa relagao com o edificio. Passamos ent&o a conside- rar que o fruir estético da arquitetura esta intimamente ligado as condig6es de apreensao e percepgao oferecidas. POS-MODERNISMO CONTEXTUALISTA Esse novo método — que realga a importancia do nosso en- tendimento das evidéncias acima do nosso entendimento raciona- lizado, acima do esforgo intelectual —, baseado sobretudo na in- tuigo, revaloriza nossa relagio com a cidade e com o objeto arquitetOnico; 0 método fenomenolégico nao exclui os outros, ape- nas Os reorienta, objetivando uma relag&o harménica do cidadio com seu espaco primordial, a cidade. Foi a visao fenomenoldégica responsdvel por diversos traba- lhos tedricos, como os de Kevin Lynch e Aldo Rossi, ponto de partida para um novo entendimento da cidade e sua arquitetura, tendo influenciado definitivamente uma das mais responsdveis ver- tentes do pensamento arquitet6nico atual, a qual poderfamos cha- mar de “pds-modernismo contextualista”. 123 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA BIBLIOGRAFIA DEREFERENCIA ARNHEIN, Rudolf. Dindémica da Forma Arquitetonica. Lisboa. Editorial Pre- senga. CULLEN, Gordon. Paisagem Urbana. Sao Paulo. Martins Fontes. LYNCH, Kevin. De que Tiempo es este Lugar. Barcelona. Gustavo Gili. 1975. A Imagem da Cidade. Sio Paulo. Martins Fontes. 1982. ROSSI, Aldo. Arquitetura da Cidade. Sao Paulo. Martins Fontes, 1986. 124 Parte V PANORAMA DA ARQUITETURA ATUAL Capitulo XIX A ARQUITETURA E O SECULO XX 1890-1914: UM FEIXE DE TENDENCIAS O século XX recebeu de seu precedente, como heranga, diversas atitudes relacionadas com a arquitetura, as quais amadu- receu e fez frutificar. A principal questo era que o mundo, impul- sionado pela Revolucdao Industrial,* pela revolugdo burguesa,* pelo iluminismo,* e, posteriormente, pelo cientificismo, se trans- formava técnica, social e politicamente, enquanto a arquitetura ainda permanecia apegada a formas e procedimentos do passado. O quadro do final do século XTX apresentava intimeras alternati- vas: 0 ecletismo,* a tendéncia mais conservadora, 0 neo-gdtico,* 0 art-nouveau,* a Secessio Vienense, 0 construtivismo* da Es- cola de Chicago, o trabalho ligado a tradigao popular, representa- do sobretudo na Inglaterra, e as tendéncias mais progressistas, 0 proto-racionalismo de Peter Behrens e Tony Garnier e 0 purismo de Adolf Loos. A alvorada do século ainda aumentaré a lista, apondo-lhe o futurismo de Sant’ Elia. Fic. 30, Fic. 9 Fic. 33 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA 1918-1930: AS VANGUARDAS MODERNAS Dois eventos de amplitude mundial vao favorecer 0 passo de qualidade que estabelece o aparecimento da arquitetura moderna: o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, responsdvel pelo arrefecimento das tensdes e pelo clima ‘de euforia, credores da reorientac&o iluminista-positivista da intelectualidade ligada a ar- quitetura, e a revolug&o soviética de 1917. A esse momento da produgao arquitetonica chamamos vanguarda, periodo cano- nico, ou ainda, com o toque de ironia dos revisionistas dos anos 60, periodo herédico. So quatro as tendéncias alimentadoras da produgio arquitet6nica: —a decomposigao elemental proposta pelo neoplastici: — 0 tratamento indiferenciado para o desenho de produtos industriais ¢ para a arquitetura, proposto pela Bauhaus;* — a ousadia tecnicista de forte colorido social do constru- tivismo soviético;* —a firme posigao de arauto assumida por Le Corbusier, que associou 0 discurso do futurismo ao seu purismo, origindrio da pintura, ao seu talento criador e a sua vocacgéo polémica e dogmatica. Assim se pinta o quadro primordial da arquitetura mo- derna. 1910-1930: O EXPRESSIONISMO Ainda que sem a amplitude dos movimentos racionalistas, va- mos encontrar, no mesmo perfodo, caminhando em paralelo, a vertente que chamamos expressionismo,* localizada principalmen- te na Alemanha e Holanda, fruto da experimentagdo ensejada pela completa auséncia de modelos para a nova arquitetura. O expressionismo acontece na segunda e terceira décadas, e finda com a crise dos anos 30, que levard o nazismo ao poder. Caracte- 128 Pante V - PANORAMA DA ARQUITETURA ATUAL riza-se por um gosto pelas formas organicas, pela efusao lirica, pela transmissao de idéias pessoais, opostos simétricos da orien- tagéo dos movimentos ja citados. Muitos futuros racionalistas, como Gropius e Mendelsohn, estiveram por algum tempo com- prometidos com a poética antiiluminista do expressionismo. A pr6- pria Bauhaus* dos primeiros momentos ia nessa diregao antes de ter seu rumo corrigido para o aferrado realismo pragmatico que ird por fim caracterizé-la. A CRISE DOS ANOS 30 A segunda associagao de fatos histéricos marcante para 0 desenvolvimento da arquitetura sera a grande crise econémica dos Estados Unidos e seu esforgo de soerguimento, na década de 1930, e a ascensao de Hitler, Mussolini e Stalin ao poder. A estes fatos esto relacionados o lamentavel fechamento da Bauhaus, 0 redirecionamento do movimento construtivista e a migragdo de Gropius e Mies para a América, acontecimento decisivo para a produgao de uma arquitetura que conjugava o racionalismo-funcionalismo europeus a presteza industrial e & demanda edilicia americana. 1930-1945: TARDO-CLASSICISMO E ART-DECO Duas importantes tendéncias iréo sombrear 0 desenvolvi- mento do modernismo arquitet6nico. A primeira delas seré aquela ligada a forte influéncia do classicismo. Os governos totalitérios (Unido Soviética, Alemanha e Italia) nao serio grandes simpa- tizantes das formas simples e diretas da arquitetura moderna, preferindo o discurso retérico, pomposo e monumental dos edi- ficios cldssicos. Assim € que, sob diversos nomes, voltam as formas greco-romano-renascentistas aos ambientes urbanos, 129 UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA simplificadas, adaptadas 4 nova escala e tecnologia, mas em espirito & tradigao. Mas nao somente os governos foram responsdveis por esse retorno. Alguns arquitetos de grande renome, como Auguste Perret, Adolf Loos, Henry van de Velde, Josef Hoffmann, entre outros, apesar de a Histéria registrar suas importantes contribuigdes as vanguardas, jamais teriam assimilado totalmente a proposta mo- dernista, e continuariam projetando e construindo edificios em que a linguagem classica continuaria presente. A segunda tendéncia contraria ao modernismo, 0 ari-déco,* surgiria como uma solugdo de compromisso entre as simplifica- ¢des geometrizantes das vanguardas, a sensualidade do art- nouveau* e 0 fausto do classicismo.* 1945-1960: ESTILO INTERNACIONAL: A MATURIDADE DA ARQUITETURA MODERNA A expressao estilo internacional* foi criada pelo critico ame- ticano Henry-Russell Hitchcock para designar a arquitetura euro- péia recente de Corbusier, Oud, Lurgat, Gropius, Rietveld e Mies van der Rohe, em 1929. O nome se consagraria em 1932, quando da exposic¢ao sobre o tema no Museum of Modern Art de Nova York. Hoje em dia, entretanto, chamamos esta produgio de van- guarda européia, ou expressao equivalente, reservando 0 epiteto estilo internacional para 0 pensamento modificado das vanguar- das, aps as profundas alteragées politicas, sociais e culturais que afetaram o mundo na década de 1930. Este pensamento reflete a maturidade do movimento moderno. Sem discordar de nenhum dos cénones vanguardistas, ele os redirecionou para uma aplica- gdo mais rigida dos métodos racionalistas, para um enxugamento das formas, para uma simplificagéo da construgao e para a utiliza- cao maciga do vidro em grandes painéis, substituindo as antigas € 130 \ORAMA DA ARQUITETURA ATUAL opacas paredes de alvenaria. Estava implicito que este tipo de arquitetura seria a marca do mundo moderno, que desconhece fronteiras, caracteristicas regionais ou particulares formais da vi- zinhanga imediata. 1950-1960: CONTEXTO POLITICO-CULTURAL Assim como a Primeira Guerra faria tbula rasa para as van- guardas modernas, relegando ao esquecimento a maioria das ten- déncias anteriores, a Segunda Guerra eliminaria todos os opositores externos ao estilo internacional, restando apenas, para a vitéria final, superar as suas préprias contradigoes internas, tarefa me- nos promissora do que se poderia esperar. O ambiente dos anos 50 e 60 era complexo. No plano politico havia a Guerra Fria,* repetindo o bordao continuo da ame: nuclear. No plano social, havia a revolugdo dos costumes, emblematizada pelo movimento hippie. No plano econémico, es- tabelecia-se definitivamente a sociedade pés-industrial, caracteri- zada pela producao e consumo predominante de servigos, pelo controle tecnolégico da informacio, e pela hiperconcentragao do capital. Acrescente-se que 0 progresso tecnoldgico experimenta- do pela aviacao, pela metalurgia, pelos sistemas de informagao, e tantos outros produtos e servigos durante a guerra, e a servigo desta, eram agora disponibilizados para a sociedade civil. Nada expressa melhor, em figuras arquiteténicas, esse calei- doscépio sociocultural que os trabalhos do grupo Archigram,* que, por nao terem a pretensdo de ser edificdveis, mas, como 0 préprio nome diz, apenas mensagens para a comunidade arquiteténica (architectural telegram), libertaram-se dos embaracosos cons- trangimentos técnicos e deixaram a mente viajar livre. Este grupo teve grande influéncia em alguns movimentos que se apresenta- ram a seguir, como 0 metabolismo, 0 high-tech e algumas ver- tentes do pds-modernismo. UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA 1950-1970: OS TRES CAMINHOS DA ARQUITETURA MODERNA Na década de 1950, ao atingir sua completa maturidade, 4 arquitetura moderna se apresentam trés caminhos distintos. O pri- meiro deles sera o simples continuismo, a posigao ortodoxa, a in- sist@ncia no racionalismo funcionalista, equilibrado, econdmico, contido. Neste grupo inclui-se o trabalho tardio dos grandes mes- tres, como Mies, Gropius e Neutra, a produgaio dos grandes escri- térios, como Skimore, Owings & Merrill, de arquitetos de uma segunda geraciio, como Paul Rudolph, a totalidade da produgao brasileira e latino-americana. : A segunda opgio sera a do hipertecnicismo, baseada na cren- ¢a em uma evolucao constante € ininterrupta da tecnociéncia e de aplicacio na arquitetura. Filiados a esta tendéncia estao os traba- jhos de Buckminster-Fuller, alguns projetos da primeira fase de Louis Kahn, sobretudo a torre espacial tetraédrica para 0 Centro da Filadélfia, os trabalhos do grupo japonés auto-intitulado Mera- bolismo,* as estruturas leves de Frei Otto etc. A terceira opgao sera a atitude critica, baseada na constatagao de que os principios modernistas haviam chegado a um impasse: a abordagem excessivamente objetiva da realidade, 0 anti-histori- cismo, o anti-regionalismo nao mais poderiam continuar. O revisio- nismo comeca dentro mesmo da mais emblemiatica instituigao do modernismo arquitet6nico, o CIAM,* que nao sobreviverd ao seu décimo encontro, em 1956. O Team X,* equipe encarregada de preparar esse Ultimo encontro, continha o embriao de dois outros movimentos revisionistas, 0 novo brutalismo* inglés e 0 estrutu- ralismo* holandés. Uma outra tendéncia critica seria 0 neo- racionalismo* italiano (a tendenza), no qual estariam as bases para uma profunda revisao do pensamento moderno relacionado com a cidade. 132 Paste V - PANORAMA DA ARQUITETURA ATUAL 1970-1990: POS-MODERNISMO O pés-modernismo* constitui-se em uma evolugao das ten- déncias criticas das décadas anteriores: nao se trata, porém, de uma mudanga simplesmente quantitativa, mas de uma efetiva mu- danga de qualidade. Enquanto os movimentos antecedentes nao questionavam a modernidade em sua esséncia, 0 pds-modernismo descré do “grande projeto iluminista-positivista” inspirador da ar- quitetura moderna. Além disso, sua revisao atinge n&éo somente as idéias, mas também os processos projetuais ¢ a forma do edificio. Como ja dissemos, a raiz européia do pds-modernismo esta vinculada aos movimentos revisionistas dos anos 60, no desejo de reconstruir a Europa destrufda pela guerra, no renovado aprego pelos movimentos e sitios hist6ricos e no reinvocado sentimento nacionalista-regionalista, somados ao sentimento de frustragao ante as promessas da modernidade, que acabara de mostrar sua face mais predadora. Nos Estados Unidos, a origem do movimento esté na chama- da “Escola da Filadélfia”, que vincula a figura carismatica de Louis Kahn, formado na Universidade da Pennsylvania, de orientagao tradicionalista, ao trabalho tedrico e pratico de Robert Venturi, cujas idéias muito devem ao seu periodo de estudos em Roma. A cultura arquiteténica pés-modernista resulta de um cruza- mento de conceitos da critica histérica tradicional, da cultura da pop-arte aplicacao de metodologia de andlise lingiiistica-estrutu- ral. O movimento teve seu apogeu quando Philip Johnson, uma legenda do modernismo, adere a suas fileiras assinando 0 projeto da AT & T, em Nova York (1978-1983). A partir dai, assimiladas intimeras de suas premissas pela “cultura oficial”, perde muito de sua forga critica. Fic. Fic. 34 35,

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