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4 6luger-comum atirmar que, nos dltimos trinta ‘anos, 0 mercado de arte passou por tansformagdes muito importantes. Assim como responsabilizar a indistria cultural pela banalizacdo da experiéncia estética. Mas analisar ‘omercado de arte contempordnea é uma tareia que exige um foco dupio: ao mesmo tempo em que & preciso observar as caracteristicas atueis, da arte, é indispensavel também abandonar a visdo idealista de um artista & margem dos processos econémicos da sociedade. O presente artigo protende abordar a cria¢do como exercicio efetiva de.uma produgao social e o artista como um protissional inalienavel da estera da trabalho. Sendo assim, 0 mercado nao poderia deixar de ser parte dessa trama. Afiemar que a “verdadeica arte” s6 pode urdir uma negacdo do mercado (as galerias, e feires de arte) e das instituicdes que orbitam em tomo dele (os museus, centros culturais, cologdes publicas, bolses de pesquise artistica, premiacdes, bienais de arte etc.) é um grito de alerta necessdrio, mas quando extremado, ignara a dimensdo cultural da arte e eventuais éxitos nesse campo. O fato de uma obra ter conseguido o interosse da colecao da Tate Modern de Londres, (caso recente de Adriana Varejio) nao pode ser recabido por uma negatividade a priori. Afinal, no basta a reivindicagso dos erkticos das “manobras contemporaneas”, & espera de uma legitimacao intemacional de alguns artistas histéricos como Volpi, Iberé Camargo ou Amilcar de Castro? ‘Tal econhecimento no ecorreu ne periodo em que artistas de mao-cheia estavam em plena atividade por raz6es vineuladas & esirutura incipiente do mercado brasileiro. Muito se tem conquistado a partir do final dos anos 1990, notadamenté em Vietude do trabalho do colecionador e galerista Marcantonio Vilaga, falecido em 2000, que levou ® arte contemporanea para feiras e instituicdes de prestigio no exterior. As obras de Beatriz Milhazes, Ernesto Neto ¢ Rosangela René, entre ‘outros, alcangaram uma paridade com seus ‘contemporaneos internacionais até entao inédita em nossa sociedade. Antes de prossequit, ¢ preciso deixar claro que ‘esse partido nao significa endossar os desmanches Mercado de arte contemporanea Lisette Lagnado operados pelas leis de oferta e procura, mas compreender a remuneragao da atividade artistica, dentro de uma necasséiria emancipagso moral (da “culpa*) frente 8s engrenagens da maquina do cepital, Pera varios autores, notadamente europeus, as metamorfoses do capitalismo aceleraram 3 disseminagao do "trabalho imateriel”" na economia contemporanea. E 0 que pode ser aterido, direta ou. indiretamente, cotajando 0 "trabalho imaterial” com certas praticas artisticas: ¢ um trabalho comunicativa, ligado a redes de informagao interdependentes; um trabalho de parcerias, miltiplas nos planos de andlise simbdlica e de resolucdo de problemas; um trabalho de producso. e manipulacao de afetos Icom gratificagdes que nao sdo quantificdveis axclusivamente om termos monetérios)." Essas e outras reconfiguracdes do sistema, impossiveis de serem abordadas aqui, geraram condigdes de afastar o artiste da aura Foméntica de génio e marginal, e de acrediter nas inovacées propostas pelo artista como alternativa a0 trabalho massificado.? Partimos da premissa de que o debate artistico, além de reflotir as diferontes correntes estéticas, & também 9 grande interpelador de seu contexte histérico. € assim, por exemplo, que se deve ‘compreender 0 abandono da pintura por Rodchenko @ sua “aposta” na fotografia como um meio de reprodugso técnica que, além de todas as, implicagoes formais, representou pare o artista um potencial de pratica social, dada a sua ampla possibilidade de circulagdo.? A maloria dos artistas com valor de vanguarda na década de 50 em Nova York, para citar outro exemplo, nutria uma ideologia de esquerda, tendo tido seus anos de formacao em pleno periodo de calamidades politicas e econémicas (a crise de 1929, a Guerra Civil Espanhola, os julgamentos de Moscou, 3 Segunda Guerra Mundial © © periodo de reconstrucdo). A medida que suas idéias, materializadas na pintuca do Expressionismo abstrato, foram conquistando espaco de exposi¢go @ de andlise (em museus, centros culturai conferdncias, revistas especializadas @ mass media), foram também "damesticanda” © gosta do mercado. Seria ingénuo cobrar das geracdes subsequentes trabalhar na mesma chave & pressupor a mesma forca critica da primeira 29 geracdo que surgiu em virtude uma necessidade histérica: marcar uma ruptura com a pintura regionalista e saudosa de uma América de inspirago agraria No Brasil dos anos 1950, isto 6, das primeiras Bienais intomacionais, é possivel deiectar um fendmeno assaz semelhante: *O surgimento dos primeiros ocleos de artistas abstratos no Rio e em Sio Paulo entre 1948 e 1949 provoca reagées contrarias de varios setores da produgdo artistica brasileira Dentre os mais extremados opositores destacavam- Se os artistas remanescentes do Madernismo de 1922, como Di Cavalcante Portinari”.* Transpostas para o presente, também presenciamos *reagées contrarias” a artistas om maior evidéncia nas grandes mostras interacionais, em geral sob a alegacao da falta de um “ideal tedrico”. ‘Agora tomos a cisdo exposta, Percebe-se a formago de dois mercados, com pensamentos paralalos. lronicamente, 0 circuito que apregoa a necessidade de uma “imanéncia” da arte, do “resgate do estdtico”, © que tradicionaimente fornecera as leituras marxistas da arte, tornou-se, num Contragolpe, defensora cle objetos de arte (sobretudo dda pinture e da escultura) que as galerias melhor conseguem escoar no mercado de decoradores de interiores. As condicdes de producso cle mercadoria «emais-valianao sao mais aquolas deseritas por Peter Biirger em O deciinio da era moderna, ou por Yve- Alain Bois quando denuncia que © “modernisme foi reduzido ao pior dos formalismos”, em Historizacdo ou imengio: 0 retorna de um velho debate. O que ode portante ser observado 6 que o discurso'da imanéncia e da resisténcia & massificagdo da cultura tornou-se solipsista e que seus artistas tém praduzido pecas cujo virtuosismo tecnico demonstra uma alienagao des problemas do mundo no qual seus autores estéo inseridos. 0 outro circuito ~ que nos interessa - & aquele que ‘continua acreditande que trabalhar com arte tem uma identidade como laboratério de pesquisa e, portato, ‘mantém conexéo com uma realidad social e police. Era assim que pensavam e irabalhavam Alusio Carvao, ali Oitiica, Lygia Clark, Mira Schendel ou Willys de Castro. € assim que pensam ¢ trabalham hoje Cildo Meicles e Regina Siveira, Marepe, Laura Lima e Rivane Neuenschwander, mesmo sem serem unidos por um principio formal unificado. O artista, sobravivente da ‘averna de Platao, tem todas as condigdes de dar uma resposta estética a algumas angistias conternporaneas: 30 © trabstho informal, as moradiss improvisadas, a violéncia urbana, 0 estatuto da inféncia, a hipocrisia das religibes, 0 desentendimento nas diversas linguas, a falta de representatividade politica, a bioética, a revolucao digital. (Os compraciores dos artistas dessa segunda lista s80 instituigdes publica, nacionais ou internacionais, @ ccolacionadores particulares com um perfil votado para as chamadas “artes complexas” - eutemismo usado para designar obras mais dificeis de serem vendidas por seu carater muitas vezes efémero ou por sere instalagdes que no podem ser guardadas como ‘esculturas", Cada nava exibieso exige, além de uma reconsideragao do local, restauros @ manutenczo, constantes, enquanto a remontagem praticamente significa refazer a obra {€ 0 caso da obra 177, de Nuno Ramos, om homenagem aos detentos mortos pela policia no Carandirul. Os compradores das Chemadas “obras de maior complexidade” nutrem uma ‘compreenso dos fendmenos da cultura no seu sentido mais global e conceitual 0 conflito do artists com sua inscriedo no mercado, ou seja, de uma passividade em relagio 8 sua absorcao pura e simples, segue um movimento Pendular. Basta comparar 0 comportamento de um artista dos anos 1970 frente a0 mercado com o ‘comportamento que se tem noticia atualmente. Em 1971, as criticas de Hervé Fischer em relagao 4s fungdes sociolégica, politica e mercadolégica da ‘obra foram a base de seu projeto “A higiene da arte”. Cerca de 360 artistas de diversos paises responderam a uma convocagia de Fischer para enviar-Ihe pecas que poderiam ser destruidas © integrar “exposicdes higiénicas", mostradas dent de sacos plasticos lacrados. A’guisa de exemplo diametralmente oposto, Maurizio Cattelan acaba de vender sua obra Ballade de Trotski, um cavalo em taxidermia apresentado suspense no ar, pelo valor de dois milhdes de délares. A casa de leldes Sotheby's, que efetuou a transacto, permitiu-se interpreter a obra como “monumento & paralisia de uma utopia universal” ~ leia-se 0 "comunismo".* Esses dois casos, escolhidas por representerem com clareza uma série de mudancas efetuadas, ilustram o valor @ o poder que o artista é capaz de ‘construir na sociadade contemporanea, No contexto brasileiro, @ questio é ainda mais cheia do melindres. Os anos 1960 e 1970 foram de resistencia dideologia mercanti da arte. Um episddio ppontual lustra a confusao de sentidos entre mercado | ' consumo, oriundo da experiéneia da Rex Gallery & Sons imaio de 1967). Ao longo de cerca de um ano, essa cooperativa de artistas paulistas (Wesley Duke Lee, Nelson Leiiner, Geraldo de Barros) resolveu declarar “guerra” as linguagens convencionais, & passividadle do publico e & mistificagso da arte. Nenhum happening concentra tao bem essa jungle de objetivos do que a Exoosiaiio-Nlio-Exposicdo que marcou 0 encerramento da Rex com um convite insdlito: quem fosse até o local poderia levar 0 que. quisesse sem ter de pagar pela obra adquitida. Esse gesto, misto de rendncia e desencanto, nao é melancélico mas ertico, uma vez que os propositores nao facilitaram a empreitada, obrigande os “assaltantes” a arrancar & forca as obras presas por correntes, pasando por cima de barras de ferro ¢ blocos de'cimento para conseguirem arrombar os ‘cadeados. Evidentemente, houve tumulto, pane de eletricidade, e reza a lenda que a agao durou oito ‘minutos até a policia aparecer. Conseqiientemente, a discussio do mercado se desenvolveu dentro de uma critica & economia de consumo. E o que sobressai da leitura do artigo de Paulo Venéncio Filho, “Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil”,® cuja viséa foi bastante partilhada entre artistas @ intelectuais. Sua tese poderia ser resumida com a seguinte sentenca: uma vez que o Brasil nfo possui uma Histéria da arte que confira * Eng ouos tutor, podem char Pe » Ch: Bouglos imp, “The ant extiion { [Fenn Goenon fo Ba Ges ae Abn lastro cultural a uma pintura, 0 que iré legitimé-ta ‘seré o capital ("luger nenhum’” é 2 expressio usada para quelificar esse capital). 0 consumo de uma pintura é analisado sob um prisma desfavoravel aos interesses do artista, pois obedece a uma ideologia conservadora, traduzida ora pele simples qualidade decorativa da obra, ora por uma vontade de distingao social da parte do comprador, Curioso observar que o texto foi escrito em 1980 @ que a mesma revista epublica 0 “panfleto” historico de Hélio Oiticica, “Brasil diarréia”. O que uma leitura feita hoje desse caderno da Funarte evidencia é que a contundéncia das linhas do artista, redigidas dez ‘anos antes, permianeceu sem uma ressonancia critica no eircuito: “Por acaso fugir ao consumo 6 ter uma Posicao objetive? Claro que nfo. € aliener-se, ou melhor, procurar uma solucéo ideal, extra - mais, Corto é sem duvida consumir 0 consumo como parte dessa linguiagem”. Oiticica se diriga, como ele mesmo afirma no inicio do texto, a0 "academismo conservador”, que, naquele momento, estava procurando formular a realidade brasileira, O artista clama contra a “febre reacionéria de saudosismos”. Os discursas renitentes 20 “novo” acabam solapando ‘do somente o presente, que de fato merece toda a Rossa mobilizago, como sua potdncia experimental Suas palavras merecem, mais da que nunca, uma ‘atenedo especial: “chega de luto no Brasil LUsette Lagnado ¢ curadora independente, doutora em Filosofia pola Universidade de Sio Paulo e, atualmente, curadora de 27° Bienal de S80 Paulo, i anger Ares ore {0m On the tscon's Pans, with photopaahs by Lavse Cowl, Cambie Londen, MT ibe Oates" 5 1987. 9. 1 io nesta de 2008, pW Gr. “Aut basta contenporanens Cosma ents ie Jono, Fane: 1988, 9 29:5 3t

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