Você está na página 1de 10
Sopre A Natureza £ IFICIDADE DA Epucacio* ico € um fendmeno préprio dos seres humanos. Assim ensao da natureza da educagao passa pela compreensio a. Ora, 0 que diferencia os homens dos demais fendmenos, dos demais seres vivos, 0 que o diferencia dos outros ani- €ssas questdes também ja é conhecida. Com efeito, sabe-se dos outros animais, que se adaptam a realidade natural encia garantida naturalmente, o homem necessita produzir propria existéncia. Para tanto, em lugar de se adaptar A 1¢ adaptar a natureza a si, isto é, transformé-la. E isto é Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é balho instaura-se a partir do momento em que seu agente ente a finalidade da ac4o. Consequentemente, o trabalho de atividade, mas uma ado adequada a finalidades. £, tencional. T, 0 homem necessita extrair da natureza, ativa e inten- cios de sua subsisténcia. Ao fazer isso, ele inicia 0 processo da natureza, criando um mundo humano (0 mundo da que a educacao é um fendmeno préprio dos seres humanos “que ela ¢, a0 mesmo tempo, uma exigéncia do e para o pro- bem como ¢, ela propria, um processo de trabalho. rocesso de produgao da existéncia humana implica, primei- -da sua subsisténcia material com a consequente producao, itada na mesa-redonda sobre a “Natureza e Especificidade da Educa- Inze, em Brasilia, no dia 5 de julho de 1984. Publicado anteriormente 7 N. 22, 1984. 12 PEDAGOGIA HISTORICO-CRITICA em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; nés podemos traduzir na rubrica “trabalho material”. Entretanto duzir materialmente, o homem necessita antecipar em ideias acao, o que significa que ele representa mentalmente os obj representacao inclui 0 aspecto de conhecimento das proprieda real (ciéncia), de valorizacao (ética) e de simbolizagao (arte). Tz medida em que sao objetos de preocupacao explicita e direta, a tiva de uma outra categoria de produgao que pode ser traduzida “trabalho nao material”, Trata-se aqui da producao de ideias, cons simbolos, habitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a a conjunto da produgao humana. Obviamente, a educagao situa- goria do trabalho nao material. Importa, porém, distinguir, nap material, duas modalidades'. A primeira refere-se aquelas atiN o produto se separa do produtor, como no caso dos livros ¢ obj Ha, pois, nesse caso, um intervalo entre a producao e 6 consumo, pela autonomia entre o produto e o ato de producao. A segunda as atividades em que o produto nao se separa do ato de prod nao ocorre o intervalo antes observado; 0 ato de produgao eo mo imbricam-se. E nessa segunda modalidade do trabalho nao se situa a educagéo. Podemos, pois, afirmar que a natureza da e esclarece a partir dai. Exemplificando: se a educacao nao se é certo, entretanto, que ensino é educagao e, como tal, participa: propria do fendmeno educativo. Assim, a atividade de ensino, exemplo, é alguma coisa que supée, ao mesmo tempo, a presenga ea presenga do aluno. Ou seja, 0 ato de dar aula é inseparavel da desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida a tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos). Compreendida a natureza da educagao, nés podemos ava go 4 compreensao de sua especificidade. Com efeito, se a educa cendo ao ambito do trabalho nao material, tem a ver com ideias, valores, simbolos, habitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entre Ihe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem. Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como alg ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupagao das das ciéncias humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina “cier 1, Essa consideracao sobre a produgao nao material e sua disting4o em duas m apoia-se em Marx, 1978, pp. 70-80. DERMEVAL SAVIAN| 13 ito” por oposicao as “ciéncias da natureza”. Diferentemente, do ponto a da educagao, ou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como da educa¢ao, esses elementos interessam enquanto é necessario que omens os assimilem, tendo em vista a constituicao de algo como uma unda natureza. Portanto, o que nao é garantido pela natureza tem que ser fuzido historicamente pelos homens, ¢ ai se incluem os proprios homens. mos, pois, dizer que a natureza humana nao é dada ao homem, mas é yr ele produzida sobre a base da natureza biofisica. Consequentemente, © ho educativo é 0 ato de produzir, direta ¢ intencionalmente, em cada duo singular, a humanidade que é produzida histérica e coletivamente conjunto dos homens. Assim, o objeto da educagao diz respeito, de um a identificagao dos elementos culturais que precisam ser assimilados individuos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de iro lado e concomitantemente, a descoberta das formas mais adequadas ra atingir esse objetivo. Quanto ao primeiro aspecto (a identificagaio dos elementos culturais que cisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial ¢ 0 aciden- ,0 principal e o secundério, o fundamental ¢ 0 acessério. Aqui me parece nde importancia, em pedagogia, a nogao de “classico”. O classico nao confunde com o tradicional e também nao se opée, necessariamente, ao eco dos contetidos do trabalho pedagégico. Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de wolvimento do trabalho pedagégico), trata-se da organizagao dos meios tetidos, espago, tempo e procedimentos) através dos quais, progressi- inte, cada individuo singular realize, na forma de segunda natureza, a idade produzida historicamente. Considerando, como ja foi dito, que, se a educagao nao se reduz ao 10 — este, sendo um aspecto da educacao, participa da natureza propria fenémeno educativo -, creio ser possivel ilustrar as consideracoes gerais a apresentadas com o caso da educacao escolar. Este exemplo parece-me no porque a propria institucionalizacao do pedagégico através da escola m indicio da especificidade da educagao, uma vez que, se a educacdo nao dotada de identidade prépria, seria impossivel a sua institucionalizagao. sentido, a escola configura uma situagao privilegiada, a partir da qual 14 PEDAGOGIA HISTORICO-CRITICA Peco, pois, licenga para reapresentar aqui as considerages que fiz em Olinda, por ocasiao do III Encontro Nacional do Programa Alfa (ENpa). Ali, ao tratar do papel da escola basica, parti do seguinte principio: a escola é uma instituicao cujo papel consiste na socializagao do saber sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; nao se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e nao. ao conhecimento espontaneo; ao saber sistematizado e nao ao saber fragmen- tado; a cultura erudita e nao a cultura popular. Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciéncia. Com efeito, ciéncia é exatamente o saber metédico, sistematizado. A esse respeito, é ilus- trativo o modo como os gregos consideravam essa questao. Em grego, temos trés palavras referentes ao fendmeno do conhecimento: doxa (S0&a), sofia (Go@ptct) e episteme (emLoTHN). Doxa significa opiniao, isto é, o saber proprio do senso comum, o conhecimento espontaneo ligado diretamente a experién- cia cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numa longa experiéncia da vida. E nesse sentido que se diz que os velhos sao sdbios e que os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente, episteme significa ciéncia, isto é, o conhecimento metédico e sistematizado. Consequentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sd- bio do que um jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sabio do que um velho. Ora, a opiniao, o conhecimento que produz palpites, nao justifica a existéncia da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experiéncia de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiéncia escolar, o que, inclusi- ve, chegou a cristalizar-se em ditos populares como: “mais vale a pratica do que a gramitica” e “as criangas aprendem apesar da escola” fa exigéncia de apropriacao do conhecimento sistematizado por parte das novas geragoes que torna necessaria a existéncia da escola. ‘ ‘A escola existe, pois, para propiciar a aquisigo dos instrumentos que possibilitam 0 acesso ao saber elaborado (ciéncia), bem como 0 préprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola basica devem organizar- se a partir dessa questao. Se chamarmos isso de curriculo, poderemos entao afirmar que é a partir do saber sistematizado que se estrutura o curriculo da escola clementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, é uma cultura letrada. Dai que a primeira exigéncia para 0 acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever. Além disso, é preciso conhecer também a linguagem dos mimeros, a linguagem da natureza ¢ a linguagem da sociedade. Esta ai 0 contetido fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das ciéncias naturais e das ciéncias sociais (histéria e geografia). DERMEVAL SAVIAN| «15 ‘A essa altura vocés podem estar afirmando: mas isso é 0 dbvio. Exata- , € 0 Sbvio. E como é frequente acontecer com tudo o que é dbvio, ele 1a sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas escapam a nossa atengao. Esse esquecimento e essa ocultacao acabam por izar os efeitos da escola no processo de democratizagao. Yejamos o problema jé a partir da propria nogao de currfculo. De uns para cé, disseminou-se a ideia de que curriculo é 0 conjunto das ativi- es desenvolvidas pela escola. Portanto, curriculo diferencia-se de programa elenco de disciplinas; segundo essa acepcao, curriculo é tudo o que a a faz; assim, nao faria sentido falar em atividades extracurriculares. Re- emente, fui levado a corrigir essa definigao acrescentando-lhe o adjetivo res”. Com essa retificacao, a defini¢ao, provisoriamente, passaria a ser nte: curriculo é 0 conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela la. E por que isto? Porque se tudo 0 que acontece na escola € curriculo, se aa diferenca entre curricular e extracurricular, entao tudo acaba ad- indo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversagdes, ersdes e confusdes que terminam por descaracterizar 0 trabalho escolar. isso, facilmente, 0 secundario pode tomar o lugar daquilo que é prin- deslocando-se, em consequéncia, para o ambito do acessério aquelas ades que constituem a razao de ser da escola, Nao é demais lembrar que e fendmeno pode ser facilmente observado no dia a dia das escolas. Dou um exemplo: 0 ano letivo comeca na segunda quinzena de fevereiro {em marco temos a Semana da Revolugaio% em seguida, a Semana Santa; a Semana do Indio, Semana das Maes, as Festas Juninas, a Semana do lado, Semana do Folclore, Semana da Patria, Jogos da Primavera, Semana ianga, Semana da Asa etc., e nesse momento jé estamos em novembro. letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatagao: fez-se de 0 na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoragao, mas ‘ito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissao-assimilagao conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a lade nuclear da escola, isto ¢, a transmissao dos instrumentos de acesso elaborado. E preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas an- nente enumeradas sao secundarias e nao essenciais a escola. Enquanto extracurriculares e sé tém sentido se puderem enriquecer as atividades réncia ¢4 Revolucdo de 1964, pois esse texto foi escrito em 1983, quando ainda estava ‘vigor o regime militar. Hoje (2003), ndo hé mais essa comemora¢do, mas as outras ainda stem (nota da 8* edicao). 16 PEDAGOGIA HISTORICO-CRITICA curriculares préprias da escola, nao devendo em hipétese alguma prejudica-las ou substitui-las. Das considerag6es feitas, resulta importante manter a dife- renciagao entre atividades curriculares e extracurriculares, j4 que esta é uma maneira de nao perdermos de vista a distingao entre o que é principal e o que €secundario. Essa questao tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por exemplo, em nome desse conceito ampliado de curriculo, a escola tornou- se um mercado de trabalho disputadissimo pelos mais diferentes tipos de profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudidlogos, psicdlogos, artistas, assistentes sociais etc.), e uma nova inversdo opera-se. De agéncia destinada a atender 0 interesse da populagao pelo acesso ao saber sistematizado, a escola passa a ser uma agéncia a servico de interesses corporativistas ou clientelistas. E neutraliza-se, mais uma vez, agora por outro caminho, o seu papel no pro- cesso de democratizacao. Aesta altura é neces: rio comentar ainda uma possivel objecao: até que Ponto essa concep¢ao que estou expondo nao configura uma proposta pedagé- gica tradicional? Quer-se com isso voltar a velha escola, ja tao exaustivamente criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alunos, 0 ensino ativo? Tal objegao é inevitavel aqueles educadores que foram de algum modo influen- ciados pelo movimento da Escola Nova. E nés sabemos que esse movimento, no nivel do ideario, teve grande penetragao em nosso pais. Para encaminhar a resposta & objecao acima formulada, parece-me ttil recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita na mesma época em que no Brasil se langava 0 Manifesto dos Pioneiros da Educagao Nova (1932). Escreveu ele: Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada pelo método Dalton. ‘Toda escola unitaria é escola ativa, se bem que seja necessario limitar as ideologias libertarias neste campo [...]. Ainda se esté na fase romantica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola mecanica e jesuitica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polémica: é necessario entrar na fase “classi- ca’ racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as formas [GRamscl, 1968, p. 124]. As vezes me da a impressao de que, passados mais de cinquenta anos, continuamos ainda na fase romantica. Nao entramos na fase classica. E 0 que é a fase classica? E a fase em que ocorreu uma depuracao, superando-se DERMEVAL SAVIAN 17 entos préprios da conjuntura polémica e recuperando-se aquilo que ater permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Classico, dade, é o que resistiu ao tempo. £ nesse sentido que se fala na cultura omana como classica, que Kant e Hegel sao classicos da filosofia, Victor um classico da literatura universal, Guimaraes Rosa um classico da brasileira etc. Ora, classico na escola é a transmissao-assimilagao do saber sistematiza- €€0 fim a atingir. £ ai que cabe encontrar a fonte natural para claborar todos e as formas de organizacao do conjunto das atividades da escola, do curriculo. E aqui nés podemos recuperar 0 conceito abrangente de lo: organizacao do conjunto das atividades nucleares distribuidas no ge tempo escolares. Um curriculo é, pois, uma escola funcionando, quer uma escola desempenhando a fungio que lhe é propria. | Vé-se, assim, que para existir a escola nao basta a existéncia do saber tizado. E necessario viabilizar as condigdes de sua transmissao e as- 40. Isso implica dosd-lo e sequencié-lo de modo que a crianga passe lativamente do seu nado dominio ao seu dominio. Ora, 0 saber dosado e iado para efeitos de sua transmissao-assimilacao no espaco escolar, go de um tempo determinado, é 0 que nés convencionamos chamar ‘Tendo claro que ¢ 0 fim a atingir que determina os métodos e Processos 10-aprendizagem, compreende-se o equivoco da Escola Nova em rela- ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a critica ao ensino jonal era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, ndo mecanicos e vazios de sentido os contetidos que transmitia. A partir Escola Nova tendeu a classificar toda transmissao de contetido como a. todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo o negacao da liberdade. Entretanto, ¢ preciso entender que o automatismo é condigao da liber- e que nao € posstvel ser criativo sem dominar determinados mecanismos. Ocorre com o aprendizado nos mais diferentes niveis e com o exercicio de des também as mais diversas, Assim, por exemplo, para se aprender a automével é preciso repetir constantemente os mesmos atos até se fa- com eles. Depois jd nao sera necessdria a repeticao constante. Mesmo yradicamente, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. anto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, um razoavel concentracao e esforco até que fossem fixados e passassem a exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar 18 — PEDAGOGIA HISTORICO-CRITICA a marcha com o carro em movimento, é necessdrio acionar a alavanca com a mao direita sem se descuidar do volante, que sera controlado com a mao esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente, retira-se o pé direito do acelerador. A concentra¢ao da atengao exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as. energias. Por isso 0 aprendiz nao ¢ livre ao dirigir, No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele nao os domina, mas, ao contrario, é dominado por eles. A liberdade s6 sera atingida quando os atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que parega, é exatamente quando se atinge 0 nivel em que os atos sao praticados automaticamente que se ganha condig6es de se exercer, com liberdade, a atividade que compreende 0s referidos atos. Entao, a atengao liberta-se, nao sendo mais necessario tematizar cada ato. Nesse momento, é possivel nao apenas dirigir livremente, mas também ser criativo sa atividade. E s6 se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, completou-se. Por isso, é possivel afirmar que 0 aprendiz, no exercicio daquela atividade que é 0 objeto de aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de exercé-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. As consideragoes supra podem ser aplicadas em outros dominios, como, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc. Ora, esse fendmeno est presente também no proceso de aprendizagem através do qual se dé a assimilagao do saber sistematizado, como o ilustra, de modo eloquente, o exemplo da alfabetizacao. ‘Iambém aqui é necessario dominar os mecanismos préprios da linguagem escrita. Também aqui é pre- ciso fixar certos automatismos, incorporé-los, isto é, torna-los parte de nosso corpo, de nosso organismo, integré-los em nosso préprio ser. Dominadas as formas basicas, a leitura ea escrita podem fluir com seguranga e desenvoltura. A medida que se vai libertando dos aspectos mecanicos, 0 alfabetizando pode, progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua atengao no contetido, isto é, no significado daquilo que é lido ou escrito. Note-se que se libertar, aqui, nao tem o sentido de se livrar, quer dizer, abandonar, deixar de lado 0s ditos aspectos mecanicos. A libertacao s6 se dé porque tais aspectos fo- ram apropriados, dominados e internalizados, passando, em consequéncia, a operar no interior de nossa prépria estrutura organica. Poder-se-ia dizer que © que ocorre, nesse caso, é uma superacao no sentido dialético da palavra. Os aspectos mecanicos foram negados por incorporagao e nao por exclusao. Foram superados porque negados enquanto elementos externos ¢ afirmados como elementos internos. no exercicio d DERMEVAL SAVIAN) «19 O processo descrito indica que s6 se aprende, de fato, quando se adquire bitus, isto é, uma disposigao permanente, ou, dito de outra forma, quan- ‘objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. exige tempo ¢ esfor¢os por vezes ingentes. A expressao segunda natureza me sugestiva justamente porque nés, que sabemos ler e escrever, ten- a considerar esses atos como naturais. Nés os praticamos com tama- aturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovidos dessas cteristicas. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do periodo em que s analfabetos. As coisas acontecem como se se tratasse de uma habilidade al e espontanea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, €-se, nao de modo espontaneo. A essa habilidade s6 se pode chegar por um cesso deliberado e sistemético. Por ai se pode perceber por que o melhor or nao seré, apenas por esse fato, o melhor alfabetizador. Um grande for atingiu tal dominio da lingua que teré dificuldade em compreender calcos de um alfabetizando diante de obstaculos que, para ele, inexis- ou, quando muito, no passam de brincadeira de crianga. Para que ele se erta num bom alfabetizador, sera necessério aliar ao dominio da lingua minio do processo pedagégico indispensavel para se passar da condicao ibeto a condicao de alfabetizado. Com efeito, sendo um processo de- lo e sistematico, ele deverd ser organizado. O curriculo deverd traduzir 1 Organizacdo dispondo o tempo, os agentes ¢ os instrumentos necessdrios a que os esforcos do alfabetizando sejam coroados de éxito. Adquirir um habitus significa criar uma situagao irreversivel. Para isso, € preciso ter insisténcia e persisténcia; faz-se mister repetir muitas vezes ninados atos até que eles se fixem. Nao é, pois, por acaso que a duragao la primaria é fixada em todos os paises em pelo menos quatro anos. Isso que esse tempo é 0 minimo indispensavel. Pode-se chegar a conseguir a escrita, a reconhecer os cddigos em um ano, assim como com algu- es praticas seré possivel dirigir um automével. Mas do mesmo modo interrup¢ao, o abandono do volante antes que se complete a aprendi- n determinard uma reversao, também isso ocorre com o aprendizado da Inversamente, completado 0 processo, adquirido o habitus, atingida a natureza, a interrup¢ao da atividade, ainda que por longo tempo, nao Teta a reversdo. Consequentemente, se é possivel supor, na escola basica, tidentifica¢ao e o reconhecimento dos mecanismos elementares possam. erno primeiro ano, a fixacdo desses mecanismos sup6e uma continuidade estende por pelo menos mais trés anos. E importante assinalar que essa idade se dara através do conjunto do curriculo da escola elementar. 20. PEDAGOGIA HISTORICO-CRITICA A crianga passard a estudar ciéncias naturais, historia, geografia, aritmética através da linguagem escrita, isto é, lendo e escrevendo de modo sistematico. Dé-se, assim, o scu ingresso no universo letrado. Em suma, pela mediacao da escola, acontece a passagem do saber espontaneo ao saber sistematizado, da cultura popular a cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, que se trata de um movimento dialético, isto é, a acao escolar permite que se acrescentem novas determinag6es que enriquecem as anteriores ¢ estas, portanto, de forma alguma sao excluidas. Assim, 0 acesso a cultura erudita possibilita a apropriacao de novas formas por meio das quais se podem expressar os proprios contetidos do saber popular. Cabe, pois, nao perder de vista o cardter derivado da cultura erudita em relacao a cultura popular, cuja primazia nao é destronada. Sendo uma determinagao que se acrescenta, a restricao do acesso 4 cultura erudita conferiré aqueles que dela se apropriam uma situagao de privilégio, uma vez que © aspecto popular nao lhes é estranho. A reciproca, porém, nao é verda- deira: os membros da populagao marginalizados da cultura letrada tendero a encard-la como uma poténcia estranha que os desarma e domina. O que jé foi dito aqui a respeito da escola, em que sobressai o aspecto re- lativo ao conhecimento elaborado (ciéncia), parece-me ser valido também para outras modalidades da pratica pedagégica, voltadas precipuamente para outros aspectos, tais como o desenvolvimento da valorizagao e simbolizacao. Em conclusao: a compreensao da natureza da educagao enquanto um trabalho nao material, cujo produto nao se separa do ato de producao, permite- nos situar a especificidade de educacdo como referida aos conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, habitos, simbolos sob o aspecto de elementos necessarios 4 formagao da humanidade em cada individuo singular, na for- ma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relagdes pedagégicas historicamente determinadas que se travam entre os homens. A partir dai se abre também a perspectiva da especificidade dos estu- dos pedagégicos (ciéncia da educagao) que, diferentemente das ciéncias da natureza (preocupadas com a identificagdo dos fenémenos naturais) e das ciéncias humanas (preocupadas com a identificacao dos fenémenos culturais), preocupa-se coma identificacao dos elementos naturais e culturais necessérios a constituigao da humanidade em cada ser humano e a descoberta das formas adequadas para se atingir esse objetivo.

Você também pode gostar