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LUGARES DE ERRANCIA. O ESPACO SENSIVEL DO LIMITE Eugénia Vilela Universidade do Porto «A veidade & que passei a vide a fugir; de cidade em cidade, com ui sussurro cortante nas libios. E atravesseicidades e ras sem nome, esiradas, ponies que ligam wna treva a outra teva Camino como seu pre cantinkei, dentro de mim ~ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.» Al Berto O medo A histéria ocidental configura-se, na contemporaneidade, sob um territério de perda. Num espago de desarticulagdo da palavra, das imagens e do desejo, o mundo € suspenso no limite, constituindo-se substancialmente entre uma significagdo em excesso e uma auséncia dura de sentido. Sob um fundo de crescimento econdmico insuficiente, sob a emergéncia de édios an- cestrais, os continentes so convulsionados por miiltiplos conflitos - agitagdes sociais, guer- ras, tensdes religiosas, étnicas, tribais - que langam no éxodo as populagées civis. Em todos 0s espagds geogréficos, a fuga, a deslocaco, a concentracdo em campos de prisioneiros ou de refiigio, tormam-se movimentos sociais que desenratzam os sentidos politicos das préticas discursivas reconhecfveis na contemporaneidade.' Esta experiéncia contempor‘inea confronta-nos, desde dentro de um espaco sedentério de racionalidade, com um saber impreciso que exige pensar a deslocagdo como um movirhento onde se expde uma raziio némada pela qual se reconverte o territ6rio sedentério da narrativa histérica? Uma questo que se nos coloca é saber como interrogar, desde o momento presente, uma natrativa de poder onde a ética deserta os lugares da historia. Assim, sob uma geomettia per- versa dos lugares antropoldgicos contemporaneos torna-se essencial pensar um sentido outro da alteridade, da memédria e da errancia. Pensar afinal, desde o interior de um equivoco regime de visibilidade da meméria plural, a surdez quotidiana de um sentido enrafzado no medo. 458, gates de errs. © espucy sensivel da tine 1. 0 espaco sedentario da significagio No contexto de uma forma de pensamento que Deleuze designa como pensamento do mundo cldssico - identificado com a filosofia da representagdo - a recuperagio de um facto, de uma sensagio, de um objecto ou de um saber realiza-se através de um movimento de r¢ apresentagiio que se instaura por referéncia a um principio de ordem relativamente ao qual se distribuem, segundo determinados atributos, as coisas, os acontecimentos ¢ os sujeitos. Sob esta configuragao do pensamento, 0 mesmo define-se segundo uma distribuigo estratégica - de proximidade ou de distancia - face a uma ordem que encarna a unidade a partir da qual emergem as figuras miltiplas do saber e do poder, Neste contexto, 0 pensamento concebe-se através de um modelo estratégico de colo- cago no espago, onde, sob um modo de distribuigdo sedentéria, a identidade se configura pela posigdo relativa que ocupa face a um espago significative definido, por seu lado, por referéncia a um prinefpio de ordem fundamental. Daf a necessidade de um prinefpio de re- presentac&o através do qual a significago de um facto ou de um objecto presente é fundada no re-encontro do mesmo que a re-presentagdo sustenta. E precisamente sob este modo de organizagao sedentéria do olhar que o pensamento oci- dental vai constituir territ6rios de legitimagio - gnoseolégicos, politicos, sociais, hermenéu- ticos - onde se exige a exclusio de todos os sujeitos, objectos ou acontecimentos resistentes esses regimes de verdade. O pensamento desenvolve-se, entio, numa circularidade referen- cial que desenha o re-encontro - na experiéncia - das formas que existem antecipadamente como condigio de possibilidade de uma experiéncia. Com efeito, antes mesmo que o fend- meno ou 0 objecto se apresente na sua existéncia singular, essas formas permitem prevé-lo, antecipé-fo ou julgd-lo. No Ocidente, o espago significante 6, assim, perspectivado como um espaco sedentitio que corresponde & manifestagdo obsessiva de uma vontade de verdade configurada sob os tragos de uma ovdem fundamental a instaurar violentamente sobre os sujeitos e as coisas Face a esta inteligibitidade surda do mundo, desenha-se uma geografia do medo onde se inscrevem novas figuras antropoldgicas - o refugiado, 0 exilado, o errante - que se deslocam, indefinidamente, mum territério onde a meméria ttaga a cartografia fisica de uma outra lin- guagem, préxima daquilo que Deleuze, ao referir-se a Foucault, chamaria 0 avesso da experién- cia da linguagem: um livro que s6 se escreve no corpo da alma, com sangue com siléncio. Eessencial, ent&o, pensar como nos espagos/campos de deslocacao as memérias tomam corpo ¢ constréem mundos. 2. Os lugares inabitaveis Bosnia, 1992. Como descrevia Christian Lecomte, jornalista presente no cendrio da ugénia Villa 459 guerra, «hd duas guerras na Bésnia, Aquela que numa maré de sangue faz tombar criangas € adultos nas ruas de Sarajevo. Uma guerra que estala sob o impacto dos obuses as fachadas dos edificios. E depois hd essa guerra insidiosa que apenas deixa tragos na meméria dos homens. Meméria do éxodo, ou éxodo da meméria, chamon-se a isso a “‘purificago étnica”. Milhates de homens mulheres langados nos caminhos do exilio, Velhos sentados & beira das estradas sobre um colehiio deixado ali mesmo no chao, esquecidos».’ Existem espagos e corpos inabitdveis. E com eles, territérios onde os mapas da meméria se convulsionam no tempo imperfeito da violencia, Esses espagos no se explicam, apenas se descrevem. Injustificdveis na sua natureza, os territérios purificados pelo sangue - os campos de ex- tetrninio, os campos de refugiados, os enclaves étnicos, os espagos de deslocagio ¢ erréncia - so resistentes & andlise, 4 decomposigao € & reconstituigio. Definidos por movimentos politicos e sociais instaveis, esses lugares antropolégicos desenham-se sob um processo de degeneragao de meméria onde o lugar se afigura como ruina.* Bles expdem uma politica de destruigao programada do outro onde o sofrimento ndo é um signo, mas a ferida exposta. Neles, o medo € 0 espaco da cartografia imprecisa dos sobreviventes. Nos espacos de deslocago € nos campos de reftigio, o lugar é um espago simbélico que, se faz sobre a errancia, o abandono, o dio e o medo envoiventes. Contra o entendimento légico de lugar como uma construcao onde se anuncia um principio de estrutura ¢ coesdo que torna possivel 0 sentido como meméria - os espacos, os acontecimentos e os objectos que se inscrevem hoje na cena antropolégica so, na sua quase totalidade, textos absurdos. Insignificantes para além da voracidade da passagem, ou para além da dureza metafisica de um presente que reconduz o sentido a insignific’ncia. Na invocagdo de uma realidade que fere, esses espacos outros expdem a impossibilidade de evocagao de um espaco sedentario de sentido. & fundamental, entio, pensar a partir da deslocagao, procurar uma nomadologia do pensamento onde, tal como o defendia Deleuze, se procura descrever a forma como as coisas se dispersam, da mesma forma como uma tribo némada sé reparte num territério sem o dividir entre os individuos.S Assim, sob uma configuragdo sedentaria do pensamento, ao considerar que a histdria se constitui como nar- ragdo criadora de territérios legitimados da meméria, torna-se compreensivel a necessidade de violentar a légica da meméria que estrutura quase toda a histéria no Ocidente.* 3. Sobreviventes. A meméria como lugar de errancia Nome: Omarska, campo de prisioneiros de guerra. Sob a percepgfo do acontecimento existem lugares intolerdveis. E necessétio retirar sinais dos sedimentos do acontecimento. Relato do acontecimento pelo repérter fotografico Lecomte: «De repente, dois espectros 460 lugares de ental. © espa sensivel do te descarnados emergiram em perda de equflibrio, os seus bragos eram imensos ¢ as suas coste- las salientes: “Tinhamos duas fatias de pio por dia ¢ algumas colheres de sopa. Bramos trés mil, houve centenas de execugées, Aqueles que eram levados & noite, nunca regressavam. Mithab e Ejub foram prisioneiros em Omarska. Bles assemelhavam-se estranhamente a um documentério da segunda guerra mundial visto na televiséo: um homem assustadoramente ma- ‘aro que, através do arame farpado, pousa sobre a camara um olhar de uma infinita tristezan. Uma das expressdes que os narradores da histéria concreta dos campos de exterminio e de refiigio utilizaram para designar a condigdo psicolégica dos sobreviventes foi a de uma in- {finita tristeza. Esta expresso tem as suas rafzes numa ambivaléncia essencial: aquilo que thes restou - a tristeza. Infinita. E, apesar do medo, apesar da imensa tristeza, sobreviventes - ainda, aqui® Sobreviventes porque, pela memoria, continuaram a viver num espago ¢ num tempo con- t{euo ao dos que aio sobreviveram. Mas também, num espago contiguo ao dos usurpadores - um espago onde a morte, a violencia e o erro percortem os lugares daqueles que invadem & sedentarizam os lugares dos outros.” Outros, porque a memséria nao se possui. Porque vivem de outra maneira, no avesso das leis. Sobreviventes, porque se refugiaram na meméria e ela nao é a marca de um Inger passado, mas a construgio de um sentido do presente no tempo existido desde dentro do medo, A memiria faz-se de dor. Ela é infinita, Ou talvez antes, a meméria é a propria tristeza, infinitamente, na errancia dos lugares e dos sentidos. E, apesar de no teatro do mundo os sujeitos procurarem fechar-se numa personagem imével desde onde se tenta desesperamente sobreviver, a meméria é essa viagem dentro de si que temete para a auséncia de fixidez, O tertitério levamo-lo conosco. Aqui; 0 mundo nfo tem mais placenta. O titero deslocou-se como fuga. E a memoria é, simultaneamente, a uma sé vez, 0 titero ¢ a sepultura de mundos posstveis. Uma estratégia de sobrevivéncia instala- -se, assim, desde dentro da meméria. Sobreviver € necessdtio. Sobreviver é escapar ao des- tino, Mas se escapamos ao destino, de quem é a vida em que entrantos?” A meméria € a palavra interior, transgressiva e resistente. Ela é uma linguagem onde nfo se vocalizam os afectos: «Nao gritarei, aprendi na infancia que os gritos nfo acordam ninguém»." Os gritos serio sempre diferentes. Outros. Incomensurdveis. Imprecisos para um pensamento impossivel de respirat. Para os sobreviventes a meméria € o nico exilio e a tnica salvagao. A escolha depende da respiragdo e dos gestos pelos quais se cria uma estética da existéncia® onde os lugares deixam de ser um cemitério de memérias, Assim, no movimento de deslocagéo, a identidade desenha-se no interior do espago instével criado pela errancia, Enquanto tal, ele é o territério deslocéivel de gestagio de um sentido outro, pois um lugar é sempre o espago sensfvel da pas- sagem - sob uma metafisica da presenga - onde a identidade se faz. por deslocagio. Ble nao Eugenia Vilela 461 apenas 0 espaco de insignificagdo que a passagem expde como desenraizamento de ser, jé que, paradoxalmente, 0 lugar pode desenhar-se como passagem, Af, o lugar é um texto antro- polégico feito de saber e de sangue. Os lugares da deslocagéio sto, por isso mesmo, lugares de sentido residente na carne dos apdtridas. 4. Acontecimento. A compreensiio como ferida Face a dor sélida das testemunhas, a possibilidade de compreensdo desses acontecimen- tos - ilocalizdveis no territério sedentario das categorias do entendimento histérico - exige a procura de uma forma outra de pensamento onde a exigéncia do dizer, do ver, ¢ do teste- munhar supdem o entendimento de um comego sem fim, um continuo presente, como 0 de- fende Hannah Arendt em Compréhension et Politique. Perante a sucesso de factos histéricos que rompem as estruturas possiveis de entendi- mento do acontecer, torna-se entéo fundamental pensar o acontecimento. Essa exigéncia nao significaré a submissio ao acidente, ao incidente ov & contingéncia plana mas, tal como o de- fendeu Hannah Arendt, a reavaliagdo essencial do acontecimento como objecto de pensamento. Nesta perspectiva, o acontecimento afigura-se como a criagao significativa - a partir de um nédulo concreto de factos - de um espaco de significacao essencial que se constituf pelo movimento em aberto do pensamento tragado pela compreenséo. Isto porque, como o afirma Arendt, a compreensio € criadora de sentido, «d’un sens que nous produisons dans le processus méme de la vie, dans la mesure ot nous nous efforgons de nous réconcilier avec nos actions et avec nos passions»", numa profunda inquietagdo que marca, singularmente, o espago entre o nascimento e a morte de cada sujeito. Enquanto processo ininterrupto, a compreensio ndo produz construgées arquitect6nicas definitivas, ela é «un processus complexe qui n’aboutit jamais & des résultats univoques. est uine activité sans fin, qui nous permet, grace & des modifications et & des ajustements continuels, de composer avec la réalité, de nous réconcilier avec elle, et de nous efforcer de nous sentir chez nous dans le monde». Numa palavra, ela é um processo de construgo do sujeito que se realiza infinitamente, através da acgio de sentido - significagdo existida - que 0 vivido constitui para o proprio sujeito, o qual se reconhece a si mesmo/continuamente outro através, precisamente, desse proceso de subjectivacdo. A compreensio é, enquanto tal, um processo vivido de criago do sujeito - do sujeito singular e do sujeito plural. Na distincia das certezas absolutas, a aquisigio do mundo pelo toque tangivel da compreensio desloca-se, assim, da ideia de uma meméria desejfvel enquanto marca do tempo passado. Com efeito, na sua ligagao & historia, a meméria constitui-se intinsecamente como meméria plural, e aquilo que caracteriza essa meméria plural e publica é, afinal, «le statut ibilité de confronter différents témoignages les uns aux 462 it espago sensivel do line autres, dont dépend la erédibilité du récit historique. C’est ansi moins la problématique dune ressemblance entre récit et événements racontés - problématique de la trace, héritée d’une ten- dance a identifier la mémoire avec l’empreinte - que la confrontation de témoignages clans leuts différents degrés de fiabilité qui nous fait assister & l’événement raconté»."* Deste ponto de vista, a meméria de vdrios de que depende 0 conhecimento histérico situa-se, tal como o subli- nha Paul Ricoeur, menos do lado da legitimagao identitéria e mais do lado da manifestagdio das inconsisténcias, das falhas que tocam no centro da nossa existéncia plural contemporfnea. Plural ou individual, a meméria é sempre uma ferida. Ela expe a singularidade de uma imagem que se entranha no possivel da experiéncia humana." Com efeito, sob uma crono- grafia da errdncia, desenham-se espagas onde 0 lugar deixa de ser suporte-cenério para pas- sat a ser um sentido intimamente dependente da meméria. Neste sentido, no pode existir uma cronologia dos acontecimentos uma vez que a meméria nao reconhece o tempo linear, pois «ninguém nasce uma s6 vez. Se temos sorte, emergimos de novo nos bracos de alguém; com azar, acordamos quando a longa cauda do horror nos varre o interior do crnio».” Enquanto tal, a compreensiio define a forma especifica como cada homem vive - no acontecimento - a reconciliagdo com um mundo que Ihe é continuamente estranho. E 0 acon- tecimento, esse, expde a fractura que a compreensio desencadeia sobre um espaco existido no medo ou no desejo, Préximo, tangente, todavia nunca absoluto. 5. A percepgio do intoleravel: educacio e limite Para compreender 0 acontecimento € necessitio ser-se tocado, Mas como tocar 0 deslocavel? Como viver sob o peso do olhar dos sobreviventes? O que fazer quando o silén- cio se herda como a tnica possibilidade de palavra? No livro Sarajevo, Lecomte regista as imagens significativas desse lugar impossivel. Retidos nas imagens fotogrificas, estes homens que olham fixamente a cAmara fotografica sao concretos e abstractos a uma s6 vez. Concretos porque vivos, abstractos porque eles sao figuras de toda a dor humana, Coneretos porque os ossos que se partem so a forma dos misculos e da carne que se rasga. Singular, propria, tangivel. Abstractos porque a sua dor é demasiado concreta na ne- cessidade de um sentido que se reinstala face ao insuportdvel da dor que os transformam em cone - como um exercicio de exaltagio das formas universais pela exaustdo da concretude, Como olhar os olhos do rosto de uma testemunha sem deslocar a incidéncia do olhar? Aqui, como uma revolta involuntéria, a relago carnal prende-se com a imagem, com o sen- tido de um espago e de um tempo concretos, possuidos pela tangibilidade dessa presenga. Para além de uma percepgio que decorre de um modo de inscri¢ao conceptual do pensa- mento, o olhar transcende 0 acto fisico da visio e confronta-nos com o sentido intimo que existe sob a mais clara visibilidade. Fugenia Vilela 463 Neste sentido, a impossibilidade de um principio estético do vistvel funda-se na insus- tentabilidade de olhar os olhos que nos olham desde a figura que a fotografia narra visual- mente, Perante a imagem de um sobrevivente que pousa sohre a cémara um olhar de wna in- finita tristeza - quando 0 Angulo que equilibra o olhar & insuportével - no ha verdade exterior, atinica verdade & aguela que se cria no toque. Sob o olhar das vitimas as formas escorrem-nos pelos olhos. Concluimos entio que a cor do sangue é demasiado Ifquida para no ser abstracta. Na meméria dos corpos que caem, 2 comemoragio rasga-se na came. Neste sentido, a possibilidade de uma educagiio ética nfo depende, linearmente, de uma arquitecténica do conhecimento, Ela no € a posse de um objecto pela representagio das coordenadas signicas ou simbélicas de um conjunto de factos. Mas a presenga carnal do sentido. Face ao intole- rdvel, a educagio do pode procurar a posse do acontecer sob as coordenadas de uma tacionalidade discursiva - ni € possivel a reconstrugo da dor do outro pelo conhecimento. Face a0 intolerdvel o siléncio é violento. ‘Toma-se, assim, compreenstvel a existéncia de um espaco outro de significagao - de uma figura limite da linguagem - em que a linguagem é, simultaneamente, interior e exterior & or- dem sedentaria da racionalidade: 0 corpo meméria. Enraizada na compreenséo como ferida, esta linguagem constitui-se de forma qualitati- vamente diferente da dimens2o signica determinante da ordem juridica e da ordem gnoseo- Logica da razdo se manifestar. Constituindo-se sob um movimento néo intencional, esta lin- ‘guagem ndo se funda sobre uma exigéncia plana de conhecimento mas sob a necessidade da apresentagdo de uma outra lingua, pelo toque. Rasgando os enunciados conceptuais, 0 foque - que os testermunhos nas suas diferentes formas desencadeiam - realiza uma subversao da linguagem: dizer o indizivel a partir da tex- tura da dor. Reconhecendo-se, no entanto, que a dor no é uma categoria partilhavel. O toque 6, assim, a expresso consistente nao apenas de um movimento signico mas de um movimento que fere. Nao de um signo gnoseoldgico mas de uma ferida ética. Ele é uma ndo-figura préximna da verdade de uma linguagem que se constitui no movimento de com- preensio, De uma linguagem ndo intencional que é, enquanto tal, 0 lastro ¢ o fimago de uma educag&o que se constitui a partir de um principio nao intencional. Como uma poética objectual que se situa no exterior do espago do conceito, cria-se, no interior da relagdo fntima entre a memédria ea compreensiio, uma linguagem onde a deslo- cagiio/ a palavra/ 0 corpo/ as cicatrizes ou 0 medo, definindo um espago e um tempo simulté- neos & prépria criago dessa linguagem, se transformam em equivalentes instancias de construgo de sentido, E necessétio, entdo, sob uma ontologia do limite,” fazer do ainda aqui um lugar de sen- lido e esse & 0 mais dificil dos esforgos: «olhar com atengao, registar 0 que se vé; descobrir 464 Lays de erica. © espace sensivel mite tuna maneira de tornar necesséria a beleza, de tornar bela a necessidade»®. A possibilidade de verldizer/pensar essa necessidade e essa beleza é, no fundo, a possibilidade de um comego outro. Némada, Do existir desde dentro 0 sentido, Porque a meméria ¢, afinal, 0 lugar do mundo € a compreensto, uma ferida ética, Notas 1+ Decorrentes de uma violéncia em laténcia, 0s movimentos de deslocagdo e de erréncia sao impossiveis de enquadrar sob um dispositivo que permita 0 seu entendimento pois o sistema de referéncias conceptuais que possuimos para interpretar a realidade j4 no sustenta a materialidade dos acontecimentos contemporaineos. A na- (ureza sedentéria dos dispasitivos inscreve-se na materialidade dos factos que esses dispositivos definem como inscrigdes de ordem que invertem o préprio acontecer. Em iilima andlise, nfo existem dispositives que nos per- mmitam entender esses acontecimentos. nem mesmo a maneira como esses acontecimentos se constituem como ‘acontecimento para aquele que o pensa. 2 Em confronto com uma vontade sedentitin de verdade, vivemtos um periodo histérico de profunda anomia: 08 conceitos que possvimos no permitem pensar aquilo que esté latente a uma série de manifestagoes conflituais ¢ contraditérias que caractesizam espagos de tempo onde a raiz € a deslocagio, Os aptiridas, 08 excluidos, os cefugiados, 0s deslocados - ¢ tantas outras figuras que fracturam os regimes do poder ¢ da verdade - sao excéntricos relativamente a0 centro de um sentido politico-social-econsmico conver- gente 3. Christian Lecomte (1994): Sarajevo, Paris, p54. 4- No peso interior do medo, o espago sedentirio da racionalidade organiza, entdo, uma forma de entendi- mento onde se assume a figura de um lcgar no qual sc inscrevem as estratgias narrativas do saber e do poder no Ocidente. Assim, para delinear uma reffexdo sobre a figura sedentécia do pensamento ocidental e sobre sentido antropoldgico da erréiucia na contemporaneidade, afiguca-se-nos essencial perspectivar a nogao de lugan: Sighificativamente mais consistente que a nogdo de espago, a nogao de lugar antrupoldgico - delineada por Mare Augé na sua obra Non-Liewx - designa uma construgdo conereta ¢ simbdlica do espago que, apesar da sua diversidade expressiva, possui(rés caracterfsticas comuns: correspondendo «a um eonjunto de possibilidades, de reserigdes ¢ de imterditos cujo contetido ¢ simultaneamente espacial e social», o higar antropalégico é identtério, telacional e histérico. Ele define-se, entio, como um territério que confere identidade a uma comunidade através dda delimitagio das suas raizes-retacionais ¢ histéricas num espago simbolizado, ‘Tal como afirma Mare Augé, 0 lugar delimita «espagos significantes, sociedades idemtficadas a culturas concebidas elas mesmas como totalidades plenas: universos de sentido no interior dos quais os individuos ¢ os ‘grupos, sendo apenas uma expressio desses universos, se definem em relagio aos mesmos citérios, aos mesmios valores ¢ a0s mesmos procedimentos de interpretagdo». Enquanto tal, a ogo de lugar vai macear um espago iden- titério por remissdo ao qual se produzem efeitos de reconhecimento, sendo, simultancamente, principio de sentido para aqueles gue o habitam e principio de inteligibilidade para aqueles que o observam. 5- Cf. Gilles Deleuze (1968): Différance et Repétition, Paris, PU. 6- Diferente das conotagbes metafisicas da reminiscéncia platinica © da identidade pessoal de Locke, a ‘meméria no € mais um trago onde se idemtificam literalmente as marcas factuais da histria individual e social ‘A meméria &, diferentemente, expresso de um acontecimento imposstvel de ser reconhecido na conjugagio cu- Bugénla Vilefa 465 mulativa dos factos. Ela afigura-se como o lugar de territérios reconstrufdos ao abrigo da metéfora de memoria ‘como espago de impressio ou svarca empirica dos acontecimentos, numa palavra, ao abrigo da acumulagdo do acontecido sem outra verdade sendo 0 proprio facto. 7- Christian Lecomte (1994): Sarajevo, Paris p.52. 8 «Sobreviver: continuar a viver, a ser, a existir depois de outra coisa ou de outra pessoa. Subsistir depois da perda oui da rufna de alguém ou de alguma coisa. Resistir vitoriosamente; persistt, durar, continuar a existe («Sobreviver» in Dicciondrio de Lingua Portugnesa de José Pedro Machado.) Sobrevivente, aquele que apesar da vida e da morte ainda vive. Esta em vida. Ainda, Aqui a identidade niio mais se poderd conjugar sob a catego- ria do mesma, 9- Cf. Michel Serres (1980): Le Parasite, Paris, Grasset. 10- Anne Michaels (1997): Pegas em Fuga, Lisboa, Presenea, 7.55 Al- Michel de Castillo (1998): De Pare Praugais, Paris, Fayard, p.157. 12- Cf. Michel Foucault (1984): Histoire dela Sexualité (vol.}.11), Paris, Gallimard. 13- Hannah Arendt (1990): «Compréhension et Politique» in La Nature de Totalitarisme, Paris, Bd. Payot, pal. 14> thid., p39. 15- Paul Ricoeur (1998): aLa marque du passé» in Mémoire, Histoire, Revue de Méuaphisique et de ta Morale 16- Tanto a nfvel da memdria singular como a nivel da memdria plural, a meméria conste6i-se como ferida pois, tal como afirma Hannah Arendt. «la compréhension des problémes politiques et historiques, puisqu”l s"agit affaires si profondément et fondamentalement humaines, n’est pas sans analogie avec la compréhension des per- sonnes: ce qu'une personne est fondamentalement, nous ne le savons quapres sa mort. (..) Pour les mortels, ce aqui est définitif et étemnel ne s‘annonce qu’ apres la mort». (Hannah Arendt (1990): «Compréhension et Politique» in La Nature du Totalitarisme, Paris, Ed. Payot, p.4t.) Assim, a deslocago continua de sentido que funda a exis- téncia humana, subentende uma perspectivagio particular da educagio que se aproxima da nogio de edlcayiio- -significativa delineada por Octavi Fullat: «.a “educacion-significativa” resulta necesariamente riesgosa porque obliga a vivir desde la propria libertad y desde el fracaso posible en el que uno puede fracasar del todo. (..) s6lo hay un modo de que tos hechos educadores disfruten de significado: que no acaben en ellos, sino que apunten a algo anterior o a algo posterior a los mismos(...) Piensamento y voluntad proporcionan la significacidn y la exi= spencia a la tarea educativa». (Octavi Fullat: £1 Pasmo de ser Hombre, Barcelona, p.156) 17- Anne Michaels (1997): Pegas em Fuga, p.l17. 18- 0 fimite rio & um conceito pois se ele o for, entfo, entre 0 conceito e a intuiglo existe uma passagem puramente I6gica do inteligivel ao sensfvel, ou do universal ao singular. O limite é para além do conceito, pois. como o afirma Deleuze em Mille Plateaux, nfo existe nenhuma instneia central, fundamento ou prineipio supremo que governe esta distribution dl essence et de délire. 19- Anne Michaels (1997): Pegas em Fuga, p.51.

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