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1m PERRY ANDERSON cera perceptivel na confusio politica da época. A cunhagem de moedas de ouro desapareceu depois de 650, conseqdéncia das deficiéncias de omércio endémicas com o Leste bizantino ¢ também das conquistas Grabes. A monarquia merovingia mostrou-se incapaz de manter 0 con trole sobre a curhagem da moeda, que se tornou degradada e dispersa. ‘A taxagdo piiblica na Galia caiu no esquecimento; a diplomacia endu- receu e limitou-se; a administragdo ficou embotada e estreita. Os Esta- dos lombardos na Italia estilhagaram-se ¢ enfraqueceram pelos encla- yes bizantinos, permanecendo primitivos e defensivos. Assim, talvez. a realizagdo mais positiva dos birbaros tera sido a conquista da propria Germania, completada pelas campanhas merovingias até Weser no sé- ‘eulo VI. eujas aquisigSes vinham integrar as terras de origem das mi ‘gragSes 20 universo politico das provincias imperiais, unificando as duas ‘zonas cujo conflto desencadeara na Idade Média uma Gnica ordem ter- riloriale cultural. O rebaixamento dos niveisinstitucionais decivilizagio urbana na Glia franca acompanhou e permitiu sua relativa elevagdo na Germania bavarae alamana. Entretanto, mesmo nesta esfera, a admi- nistragdo merovingia foi singularmente rade e pobre: nem a literatura, nem a moeda corrente nem a cristandade foram introduzidas pelos con- des enviados a governar além do Reno. Em suas estruturas econémicas, sociaise politicas, a Europa Ocidental havia deixado para ras o precério dualismo das primeiras décadas depois da Antiguidade; um processo tosco de fustio ocorrera, mas os resultados eram ainda informes ¢ heter6- clitos, Nem asimplesjustaposigio nem a mescla rudimentar poderiam li- bertar um novo modo de produgio geral, capaz de ultrapassar 0 impasse da escravidio e do colonato, e, com isto, uma nova ¢ internamente coerente ordem social. Em outras palavras, s6 uma genuina sintese poderia realizar isso. Uns poucos sinais premonitarios isolados pressa- giavam 0 advento de um tal resultado definitive. O mais notavel foi o surgimento, ja evidente no século VI, de sistemas antroponimicos € toponimicos completamente novos — combinando elementos lingaisti- cos germanicos e romanos em unidades estranhas a ambos — nas ter- ras fronteirigas entre a Glia ea Germania? A lingua falada, longe de estar sempre seguindo as mudangas materiais, péde antecipé-las em outras ocasides. sechos comerciais mais flexveis © mais freqlentes — 0 conritio do ponto de vista co- ‘mum sobreosregisios monelirios merovingios. (25) Musset, Let Invasions. Les Vagues Germaniques, pp. 130,132 (26) Musset, Ler Invasions, Les Vagues Germeniques. 197. Em busca de uma sintese A sintese histérica que naturalmente ocorreu foi o feudalismo. O termo preciso — sintese — & de Marx, junto com os de outros histo- rindores de seu tempo.’ A catastréfica colisto dos dois modas anterio- res de producto em dissolucio — 0 primitive ¢ o antigo — produziu ‘ordem feudal que se disseminou por toda a Europa medieval. Jé est evidente para os pensadores do Renascimento, quando esta génese foi debatida pela primeira vez? que o feudalismo ocidental era resultado espectfico de uma fusiio dos legados romano ¢ germanico. A controvér- sia moderna sobre a questio data essencialmente de Montesquieu, que declarou serem germanicas as origens do feudalismo no Tuminismo, Desde entio, 0 problema das “proporgSes” exatas da mistura de ele- mentos romanos ¢ germénicos que geraram o feudalismo levantou pai- xées de sucessivos historiadores nacionalistas. Na verdade os tons do final da Antiguidade eram freqdentemente alterados, dependendo do patriotismo do cronista, Para Dopsch, que escreveu na Austria depois da Primeira Guerra Mundial, o colapso do Império Romano foi apenas a culminagio de séculos de pacifica absorgio pelos poros germanicos: foi vivido como uma calma libertacio pelos habitantes do Ocidente. ‘O mundo romano foi gradualmente conquistado do interior pelos ger- (1) Em sua afiemagto principal sobre o método hstérico, Marx falou dos results- des dasconguistas germinicas comoum proceso de "interaglo" (Weckselvirkung) eu- "lo" (Verschmelsung) que gerava um novo" modo de producto" (Profuation:weise), que ra uma “sntese” (Synthese) de seus dois predecessotes: Grdrisse der Kritk der Poi- ‘sehen Okonamie(Einteltung), Beli, 193, p. 18. 4 PERRY ANDERSON ;nos, que o haviam penetrado pacificamente por muitos séculos ¢ assi .do sua cultura, e realmente assumido a responsabilidade de istragio, de maneira que a remogdo de seu dominio politico foi admi somente a conseqiéncia final de um demorado proceso de mudanga, comoa retificagdo da nomenclatura de uma empresa cujonome ha muito deixou de corresponder aos verdadeiros diretores do negécio... Os ger- ‘manos no eram para destruir ou varrer a cultura romana, a0 contririo: eles a preservaram e desenvolveram."” Para Lot, escrevendo zna Franga a mesma época, o final da Antiguidade foi um desastre ini- maginével, o holocausto da propria civilizagao: a lei germfnica era res- ponsével pela “violéncia perpétua, sem rédeas, ¢ frenética” e pela “in- seguranga da propriedade”” da época seguinte, cuja “terrivel corrup- Glo" fez dele “um periodo realmente maldito da hist6ria".* Na Ingla- {erra, onde nfo houve um confronto, mas somente uma pausa entre as ordens romana e germanica, a controvérsia foi desviada para a invasio inversa da conquista normanda, ¢ Freeman ¢ Round sucessivamente polemizaram sobre os relativos méritos das contribuigdes anglo-sax6- nicas ¢ latinas ao feudalismo local.’ As cinzas desta disputa ainda bri- tham hoje; os historiadores soviéticos trocaram farpas sobre elas em ‘uma conferéneia recente na Rissia.* Naturalmente, na verdade, a pre (2) Para um debate sobre o Renascimento, ver D. R. Kelley, “De Origine Fou drum: The Beginningr of a Historical Problem, Speculum, XXXIX, abil de 1964, 2, pp. 207-228; a diacust20 de Montesquieu esti em De Esprit des Loss, livros XXX (@) Alfons Dopsch, Wirtzhafiiche und Sociale Grundlagen der europiischen Kytreihlng oder Zeit von Gases anf Ke den Gren, Vis, 10192, vol 1p. 413. (G) Ferdinand Lot, La Fin du Monde Antique 1952 reedgho}, pp. 462, 463 «469. Lot erminou sea () Para Freeman, "3 conquista normanda foi a derrota(emporiria de noso ser ‘nacional, Mas foi apenas uma derrota temporaria. Para um observader supertical, ‘opovo inglés pode ter parecido por um momento estar fora do toque de reunir dus nagdes, ‘ov apenas exist como escravos de governantes estrangeros em sus prOpria terra. Mas, ‘em poveat geragier,fizemos de cativos nossos conquistadores, a Inglaterra era a Ingla- terrm mats tia ver", Edvard A. Freeman, The History ofthe Norman Conquest of En- sland, fis Causes and Results, Oxford, 1867, vol. I, p. 2. Ao pancgiico de Freeman fabres heranga anplo-ta26nica opte-se Round com wna exallaglo um pouco menor vee- ‘mente sobre a chegeda dos normandos. Ems 1066," longo eanero da pa faera a sua obra, O pas estava maduro para 9 invasor, ia aparece o salvador da sociedade™; a con ‘Qisia normanda pelo menos troure & Toglaterra "algo melhor do que as entradas em ‘orsa frogal erdnica nativa”™ J.-H. Round, Feudal Enpland, Londres, 1964 (eed.), ‘pp. 247, 308.305. (6) Ver alongs discusstocm Srednie Veka, Fase, 31,1968, do relatério de A. D. Liubtinskaya,"Fipologiya Rannevo Feodaliam v Zapadnoi Evrope i Problema Romano- Germanskovo Sintera", pp. 17-44, Os partcipantes foram 0. L. Vainshiein, M. Ya. Siusiumoy, Ya. L, Bessneriny, A. P. Kazhdan, -D. Lordkipanidze, E. V. Gutnova, S. PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 8) cisa mistura de elementos romanos ou germanicos no puro modo feudal de produgiio em si é de importincia muito menor do que sua respectiva, distribuigdo nas formagies sociais variantes que emergiam na Europa medieval. Em outras palavras, como veremos, uma tipologia do feuda- lismo europeu é necesséria — em vez de um simples pedigree. {A derivagdo original de instituigdes feudais especfficas muitas ve- zes parece emaranhada em qualquer caso, dada a ambiglidade das fontes ¢ o paralelismo de desenvolvimentos dentro dos dois sistemas sociais antecedentes. A vassalagem assim pode ter tido suas principais raizes tanto no comitatus germénico quanto na clientela galo-roman: ‘as duas formas de corle aristocraifca que existiram em cada lado do Reno bem antes do “fim do Tmpéro, amas tendo con surgimento definitivo do sistema de vassalagem.’ O domi

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