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ROLAND BARTHES INEDITOS Vol. 3 - Imagem e moda ‘SBD-FFLCH-USP MH) NY 62775 Martins Fontes Sdo Paulo 2005 | ido | consciéncia. E. por isso que me pergunto se, ao fim de uma longa cadeia de erros, 0 Sald de Pasolini nao € afi- nal de contas um objeto propriamente sadiano: absolu- tamente irrecuperdvel, pois, ao que parece, ninguém de fato consegue recuperé-lo. LE MONDE 16 de junho de 1976 ‘Sobre Sald ou Cento ¢vinte dias de Sodo de Pier Pealo Pao 48 ALL EXCEPT YOU Saul Steinberg Signo As personagens de Steinberg se parecem todas com alguém que conheco (tenho certeza), mas a cujo nome nao chego. Quem é este? Onde vi esta cara, este jeitao? Brigo com minha meméria, como num sonho cuja pre- cisdo (e nao a vagueza, ao contrério do que se cré) € um enigma para mim, Steinberg néo me entrega um es- quema; é a cada vex. uma figura sutil ¢ penetrante, que parece surgir de minha vida. No mundo de Steinberg, em suma, nada hé além de identidades, cujos nomes préprios procuro encontrat. “Parece com...” Bis o universo de Steinberg. No en- tanto, como nunca posso ir até o termo dessa parecen- 49 | adios | cae dizer em que aquilo me faz pensar, aquilo se pare- ce nao para ser parecido, mas para me interpelar. Essas figuras so em tiltima anilise tipos, na medida em que © tipo participa da minha vida, de minha lembrana. Ser reconhecido é préprio do signo; mas as figuras-sig- nos de Steinberg atravessam com rapidez (e seguranga) a lingua geral da humanidade para chegar & minha lin- gua pessoal: 6 idioleto de Steinberg (como diriam os lingitistas) € também 0 meu. Por isso, nessa arte, afinal das contas geral, por ser tao clara, esté 0 motivo de uma intimidade, de uma cumplicidade pessoal. Humorista? Nao, pois o humor faz rir & custa de um tipo; o humor é geral, castrador (reduz), ao paso que, aqui, Steinberg eeu nos divertimos com alguém que é nosso conhecido comum, Representacéo Nao se pode dizer que os desenhos de Steinberg sempre representam alguma coisa. Mas hé sempre re- presentagio num canto do papel. Como aquelas ilu- sdes de dptica que mudam de sentido de acordo com 0 ponto de vista em que decidimos nos pér para olhar, as imagens de Steinberg prestam-se a ser lidas de dois mo- dos: segundo a representacao ou segundo a abstracao. Ora acharemos que a representago estd de algum modo 150 | fmagem | trincada por um ligeiro delitio dos tragos, ora, a0 con- trério, que é a abstragao das linhas que est corroida pela representacio. Aalegoria do tempo Steinberg joga com todas as formas de representa- do, ¢ cada forma é variada por uma invengao incessan- te. Veja-se, por exemplo, Alegoria, figura antiga que atra- vessa muitos séculos; ¢ veja-se a matéria privilegiada da Alegoria, 0 Tempo passando, Como todo signo (¢ esse é suntuoso), a Alegoria comporta um significante ¢ um significado. Steinberg varia simultaneamente um e ou- tr0: 0 tempo se enuncia (se escreve) na forma sucessiva dos anos, das estagdes, dos meses, das horas ou desses advérbios vagos e terriveis, que dizem o drama do tem- po subjetivo (antes/depois), e a imagem renova a cada vez. 0 movimento que faz.0 tempo andar ou hesitar: rio por atravessar, linha pontilhada que de repente explo- de, piramides inacabadas, coluna de momentos em equi- Itbrio instavel. Contudo, através dessas alegorias diver- sas, um pensamento obseda: 0 do sujeito humano (do “eu”) em relacéo ao qual o tempo passa. Steinberg tem uma concep¢’o patética do tempo (ainda que, como sempre, com humor), ¢ aqui é preciso lembrar a andli- se de certos lingiiistas, como Jékobson: palavras como 11 | snedior | ontem, agora, amanhi sio “shifters”, a cavalo sobre 0 cédigo (sao encontrados no dicionério) e sobre a men- sagem (sé tém sentido se os pronuncio); dizem o tem- po muito vagamente do ponto de vista lexical, mas muito fortemente do ponto de vista do sujeito que re- gula a sua enunciagéo. Mesmo quando Steinberg em- prega formas gerais para dizer as unidades do tempo (‘anos”, “meses”), 0 sujeito volta irtesistivelmente para a imagem, na forma de uma personagenzinha que con- templa, sente, experimenta, vé-se joguete sacudido ao sabor dessa marcha inflexivel: ¢ essa personagenzinha que sempre, de uma maneira ou de outra, promuncia 0 tempo, telaciona-o (como fazemos otdinariamente através dos shiffers da lingua) a essa bolha de ilusdes ¢ fatalidades que compdem nosso “eu”. As Alegorias de Steinberg nao séo grandes méquinas retéricas: sdo as imagens faceciosas do destino cruel do qual é prisionei- 10.0 homenzinho que sou eu. Similes Steinberg representa um cartéo-postal. Ora, um car- tio jé € uma representagio. O desenho de Steinberg é portant, o representante de um representante pulsional (férmula ilustre da doutrina psicanalitica). 152 | imagen | Esse encadeamento (gerador de imagens no segun- do grau) nao se reduz & copia dos cartées-postais, No universo de Steinberg, todos os objetos representados sio representagées. O que é copiado, em suma, é 0 que copia. Uma longa cadeia conduz os esteredtipos da vida social de réplica em réplica. A essa cadeia Steinberg im- poe um circuito final: a cadeia péra ow retorna — nfo sem vertigem — rumo a uma perspectiva infinita do si- mile, Pois no extremo, afinal de contas, nada: 0 mundo inteiro, de ponta a ponta, nao passa de desfile de cé- pias. Essa filosofia €a mesma que Flaubert pés em cena em Bouvard e Pécuchet* Charlie Chaplin Um artista popular e refinado (popular pelos “car- toons”, que dio acesso ao grande ptiblico, e refinado pela mise-en-scéne sutil de toda uma cultura) 0 que se faz necessério hoje. Pois essa equacio dificil liberta tam- bém o artista moderno de dois infernos opostos: a vul- garidade e 0 esoterismo, assumir sem constrangimento a liberdade e a particularidade de meu prdprio olhar, ¢ ‘no entanto comunicar-me com todo 0 mundo; falar minha prépria linguagem (a que fiz para mim) e ao mes- * Trad, bras. Bowser ¢Pecuchet, Rio de Jeneto, Nova Froncice, 2 ed, 1981. (N, do E) 153 Indo | mo tempo falar a linguagem dos outros; aprazer sem comprazer. Poderiamos chamar esse artista de “demo- crético”, e dar a entender, com essa palavra hoje dificil, como tal posigao esta ameacada: pelo gregarismo que constrange, constringe ¢ sufoca, ou pela solidao das gran- des inovagGes. Quantos artistas, hoje, escapam a esses dois perigos? O modelo passado desse éxito foi sem dui- vida Charlie Chaplin. O gato Steinberg conta que, em casa, desenhou seu gato numa parede. Depois disso, o gato de verdade sempre ficava perto de sua imagem. Inversio: no universo de Steinberg, é a imagem que domestica a coisa. (As imagens de Steinberg séo animais familiares.) Transgressio , ‘Transgredir ¢ ulttapassar um limite proibido. A mol- dura da imagem é esse limite, ¢ Steinberg a transgride As imagens produzidas pelos homens nem sempre foram emolduradas; as pinturas rupestres do paleoliti- co eram tragadas na parede; os animais pintados circu- 154 | dmager | lavam ao longo de toda a grura. A moldura (& qual es- tamos tao habituados, que nos parece natural, dataria do segundo milénio a.C. No entanto, alguns artistas, aqui ¢ acold, pintaram transgredindo a moldura (os orientais, por exemplo). Em certas histérias em quadri- nnhos, a moldura esté I, circundando a cena, mas ¢ trans- gredida para fins narrativos: uma personagem interpe- Ia ow agride o parceiro de um quadro ao outro. Stein- berg extrai dessa transgressfio, 4 sua maneira, efeitos enigméticos (ao mesmo tempo engragados e profun- do para 0 quadro pendurado & parede de uma exposicio, mas tanto que sua cabeca se transforma na pintura abs- indescritiveis): um aficionado de arte se inclina trata que é assunto do quadro; 0 homem passa para 0 outro lado do espelho ¢, apesar disso, no 0 quebra, fica achatado, como que passado a ferro sobre a tela, Os “reinos” da Natureza (o vivo/o inanimado) sao transgre~ didos (isso lembra toda uma veia barroca, cujo artista exemplar seria Arcimboldo). (Interessante: a moldura nao é destruida, é trans- gtedida. A subversio de uma forma nao se faz com sua forma contratia, mas de um modo mais tortuoso: fin- ge-se manter a forma, mas associa-se a cla um desbor- damento que a anula. Ligéo de nova vanguarda, de al- gum modo.) 155 | tees | Idéias Como uma imagem pode dar idéias? No entanto Steinberg as d4. Ou melhor ~ coisa mais valiosa— dé von- tades de idéias. A colegio Assim como um ramo mergulhado na égua de Salz- burgo fica coberto por mil cristaizinhos que o endure- cem e fazem brilhar, as vezes 0 amor “se solidifica”; 0 amor “se cristaliza”, Stendhal langou a palavra para de- signar essa espécie de investimento brusco ¢ tenaz que liga o sujeito a algum objeto eleito por capricho. As ve- zes Steinberg também cristaliza; nao se sabe por qué, cle de repente escolhe um objeto (uma régua, por exemplo) e comesa a fazer variagées infindéveis: nao 0 larga antes de té-lo reproduzido mil vezes de mil for- mas, em mil situacdes, sob mil facetas: inebria-se na re- peticao. Essa pulséo é, de certa maneira, a mesma do cole- cionador. A diferenca é que Steinberg é um coleciona- dor no segundo grau. © que ele mostra nao so obje- tos, €a propria mostra desses objetos: 2 maneira meti- culosa ¢ (puerilmente) simétrica com que um colecio- 136 | mgem | nador auténtico os disporia sobre uma mesa. Desse modo, gosto pela “colecéo” (como procedimento como paixio) é a0 mesmo tempo satisfeito ¢ desmisti- ficado (ardil terno e hicido esse de que Steinberg lanca mao para ler 0 mundo). Essas disposigdes de objetos chapados, essas escrivaninhas completissimas lembram vitrines de museu; das paredes da sala pendem qua- dros; mas muitas vezes, no meio do aposento, objetos mitidos esto expostos horizontalmente, sob o vidros em nossos museus, o vertical é a dimensao nobre, o ho- rizontal € a dimensao prosaica; € nela que Steinberg se instala: copia objetos que, se fossem reais, ndéo merece- riam ser copiados, mas ao mesmo tempo os pée sob uma vitrine: a vitrine, horizontal, funciona como derriséo complicada da grandeza. Para ler Um desenho de Steinberg é: 12 para ler; 2° para adi- vinhar; 39 para... para qué? Sentimos a necessidade de uma terceira operagao, que ultrapassa as outras duas, mas no sabemos que nome lhe dar. Steinberg é para ler, nao sé porque hé um sentido (€legivel), mas também porque esse sentido ¢ miltiplo, extravasa a letra: hd uma superabundancia de sentido, 17 | tna | a imagem (conquanto grécil) estd abarrotada de cono- tages. Ademais, Steinberg é para adivinhar, porque sem- pre tem um jeito de charada, e no podemos deixar de dizer: claro que existe um sentido, ¢ eu preciso aché-lo. Leio porque hé muito sentido, mas procuro porque hé um que esté faltando (0 cheio nao contradiz a falta: € até mesmo um que designa o outro.) E depois — tendo lido e procurado — nosso olhar ainda é ativado: nao pode desligar-se do desenho; pro- cura ¢ acha outra coisa além de um sentido. O qué? — ou melhor: quem? O préprio Steinberg, o grafismo de Steinberg, seu “idioleto”. Para essa terceira operacao fal- tacnos uma palavra, pois isso nao é nem ler nem deci- frar; essa palavra nenhuma lingua tems designaria a agao por meio da qual pomos a arte (simplesmente) na pon- ta do lépis, do pincel, da pena ~ ou do olhar. Sombra Aqui, réguas representadas de chapa; essa figurago é artificial, uma vez que esses objetos, minuciosamen- te imitados, segundo uma espécie de comédia verista, so desenhados sem sombra. Miticamente, a auséncia de sombra faz seres inumanos, fora da natureza (o homem que perdeu a sombra é marcado pelo Diabo, e a Mu- 158 | imagem | Iher sem sombra ¢ estéril). Essas réguas sem sombra, ape- sar de sua fungao fiitil, tém alguma coisa de bago, de desolado — de inquietante. Mas eis que mais adiante, num outro desenho, outra régua ¢ um mata-bortéo es- tao sombreados, ¢ a composicéo se chama “Shadows” O titulo dé a entender que, de uma representacio 4 ou- tra, €a sombra o que Steinberg quer marcar (como di- zem 0 lingiiistas, quando estabelecessem os paradig- mas do sentido). Assim se estabelece uma dialética pa- radoxal. A opinio corrente (0s hébitos da representa- Gio pictérica) diz que todo objeto é sombreado. Vem Steinberg ¢ tira a sombra de suas réguas; depois vem de novo ¢ a devolve; mas nao ¢ a mesma sombra: ela se tornou 0 paradoxo de um paradoxo. Hlegivel Como muitos outros objetos, Steinberg submete a escrita (manual) ao principio do simile: produz simi- Ies-escritas. No entanto, a escrita ndo é um objeto como 05 outros ~ sua substiincia, se nao € transparente, pura- mente instrumental, é pelo menos sempre significante; a escrita ndo pode deixar de portar um sentido: ou re- mete diretamente a uma mensagem, ou remete indire- tamente a uma disposigio psicoldgica; ela é um objeto impetiosamente significante, mais ainda que a fala, que 159 | Inne | as vezes, por meio de gritos, ritmos e vocalizes, apenas exprime, Imitando escrupulosamente esse objeto, mas sem Ihe deixar a sombra de um uso, Steinberg faz. do sentido uma maquina “viciosa” (0 que, no fundo, 0 sentido talvez sempre seja): 0 sentido torna-se ao mes- mo tempo uma vontade furiosa (queremos a todo cus- to decifrar) ¢ uma decepgao sem trégua (nada existe para decifrar, sabemos, mas nos obstinamos); “Sei que | Imagem | isto ndo quer dizer nada, mas assim mesmo, e se qui- sesse dizer alguma coisa?”. Essa parece set a propria fr- mula da perversio: “Eu sei muito bem ~ diz o perverso, segundo Freud ~ que a Mae nao tem pénis, mas assim mesmo... ¢ se tivesse?...” Oferecida ¢ inapreensivel, a escrita ilegivel provoca uma leitura que se parece muito com 0 coitus reservatus, (O tormento da escritailegivel atinge 0 épice quan- do Steinberg desenha uma cena aparentemente muito complexa ¢ finge dar sua explicasio numa legenda es- crita em caracteres indecifrveis, Ficamos frustrados duas veves,) Mascaras Algumas méscaras: parecem totens. Mas o deus re- presentado aqui é 0 Estereétipo (do Cao, da Espanho- la etc.), como se o Esteredtipo fosse o Grande Manitu de nossa sociedade, ¢ Steinberg fosse seu. fe talmente herético, A burrice Assim como a suprema beleza, a burtice é indiztvel (indescrittvel). Mas pode ser figurada, E 0 que Stein- 161 | rds | berg faz com bastante freqiiéncia. Vejam esse homem de éculos, cabelos ralos ¢ repuxados, nariz reto que sai da testa; esté olhando com superioridade e sem enten- der um quadro abstrato. Seu perfil obtuso diz a burri- ce? Diz, sem diivida; mas o que hd de mais burro nele (de mais deliciosamente burro) € 0 paletozinho, séo as méozinhas: achado. O rébus De rebus quae geruntur: h4 coisas que ocorrem, que vocts nfo sabem e eu vou fazé-los adivinhé-las. Por exemplo, que 0 5 ¢ 0 2 fazem amor numa cama, ou que as letras do alfabeto atravessam uma casa, entran- do por uma porta e saindo pela outra. Os rébus que an- tigamente viamos nos dlbuns para a juventude — com- postos num estilo gréfico que lembra o de Steinberg ~ no séo apenas adivinhagdes que excitam o espirito; so composig6es que realizam o grande casamento da letra com a imagem e que sempre foi a obsessio dos ar- tistas barrocos. A letra ¢ 0 desenho talver tenham a mesma otigem: nas paredes das cavernas, antes das fi- gurag6es analdgicas de animais, houve simples incis6es ritmadas, cuja abstracéo depois derivou para a imagem ow para a letra; um desenhista s6 pode ficar fascinado com a letra, e um grafista é sempre um desenhista. Cria- 162 | Imagem | dor do rébus sem solucio, Steinberg situa-se no cruza- mento de trés préticas: a do enigmista (a Esfinge), a do gedmetra (criador de traos) ¢ a do escriba. Antes/depois No sentido préprio, 0 que é um cartoon? E “cada tum dos desenhos destinados a compor um filme de de- senhos animados”. Em outras palavras, cartoon reme- tea. um gesto extraido de uma seqiiéncia: hé um antes um depois, hd uma histéria que comesou e vai conti- nuar, Os desenhos de Steinberg implica sempre uma reserva de historia: dao vontade de ouvir contar alguma coisa que precedeu e alguma coisa que vai suceder-se. Cada desenho é prenhe de uma narrativa, mas essa nar- rativa, num desenvolto circuito fechado, para. Nao dei- xa de ter relacdo com a arte breve (sumamente elegan- te) do haicai. Quaestio Questo: palavra tem{vel, 20 mesmo tempo inter- rogacio ¢ tortura”. Na antiga retérica, um terceiro sen- 37. Segundo 0 dciondio. Caldas Aulete: “Inverroguéso sob tortura fico a alguém pats Ihe exorquie uma eoafsso."(N. da T) 163 | tido retine os dois primeiros: guaestio € 0 ponto de de- bate, 0 “assunto” (sépica) que se deve “tratar” (como um mineral) ou “sovar” (como uma crianga recalci- uante). Steinberg submete assim certo ntimero de “as- suntos” a “questo”; trata-os de todas as maneiras, re- toma-os, faz variagGes, sova-os (como uma dona de casa sova a roupa para tirar a sujeira) e nao os larga antes de esgoté-los. O bar, os gatos, as fotografias, as assinatu- ras, as banheiras, os desfiles, os documentos ¢ tantos outros assuntos de nossa vida comum sao assim sub- metidos a um verdadeiro trabalho de invencéo (a in- vengio consiste em trabalhar), se quisermos dar a essa palavra “trabalho” o sentido rude que tem segundo sua etimologia latina: “trabalho”, € 0 sripalium, feixe de trés estacas a0 qual se suspendia o animal de corte para esquartejé-lo, A sua maneira, Steinberg, numa seqiién- cia de imagens (de cenas) variadas, esquarteja os huma- nos, os objetos, os lugares, para deles extrair a esséncia comestivel. Impressées digitais De repente, brusco fervor, loucura de repeti¢ao: Steinberg sé pensa em impressio digital, ele a vé em todo lugar, ou seja, metamorfoseada em mil formas 20 164 | mage | mesmo tempo inesperadas e plausiveis: a rotunda im- pressdo estriada dos passaportes e das fichas de policia torna-se quadro de cavalete, rosto, paisagem, nuvem, colina etc, De objeto funcional (originado pelo gesto de por meu dedo sobre uma folha de papel para mar- car as estrias originais de minha pele), a impressio tor- na-se forma universal: o significado passa & categoria de significante — passagem que é 0 caminho por exce- lencia da invengao poética. Método Todo artista tem seu “procedimento”: nao algum ar- tificio trivial que ele use — depois de ctid-lo — para im- por a originalidade de sua arte, mas um jeito de cami- har, de avangar a mao e o traco, para transformar a ma- téria que adota: um metodo gestual, de algum modo, Os “procedimentos” de Steinberg sio 20 mesmo tem- po muito ricos e muito ordenados. Sua profusio tem a ver com aquela grande classificacao das formas do dis- curso que a retérica chamava “figuras”. No trabalho de Steinberg encontram-se figuras do significante (meté- foras, metonimias, repetigdes, acumulagées, antitese: enumeragdes) e figuras do sentido (lapsos voluntérios, autonimias, anamorfoses); a isso acresce o que nenhu- ma retdrica péde prever, ou pelo menos dominar: as fi- 165 | aio | guras préprias do préprio Steinberg, suas performan- ces, suas proezas; sao figuras de reconhecimento, formas repetidas, pelas quais reconhecemos Steinberg num simples trago (um modo de apoiar, de elevar, de guiar a mao); em suma, aquilo em que Steinberg insiste. (Que finalidade tém esses procedimentos, esse mé- todo? Se eu soubesse, ou melhor — pois em suma eu sei -, se pudesse dizé-lo, nao precisaria avangar pacien- temente — um pouco ao modo de Steinberg — 20 lon- go destes fragmentos. Mas, sem diivida, a finalidade desse método ¢ indiztvel: “Nao se deve distinguir entre © meio ¢ o objetivo, diz um autor que tenta definir o Tao; assim que enveredamos pelo caminho, jé 0 per- corremos por inteito”; assim que me coloco diante de um desenho de Steinberg, capto toda a sua arte — mes- mo que nao saiba dizer o que entendo.) Metdfora e metonimia As vias principais da linguagem humana (Jakobson mostrou) sio: a metéfora ¢ a metonimia. Steinberg pode utilizar 0 mesmo suporte, o mesmo trampolim, 0 mesmo pretexto, a mesma ocasido (pois a arte de Steinberg consiste em utilizar tudo o que lhe cai nas mios) para criar, segundo seu humor, metéforas ou metonimias. Tomemos uma folha pautada de misica: 66 I tmager | aqui os pentagramas sio tratados como a grade de uma veneziana atris da qual um casal se entedia — o sentido vem por substituigao, hé metéfora; ali, as linhas do pa- pel servem de fundo a silhueta de algum mitsico - 0 sentido vem por contigiiidade, hé metonimia. Combinagio das duas figuras: 0 Japao é associado ao sol levante, o délar 4 América — metonimias. O délar americano e 0 sol japonés so substitufdos por um tim- bre redondo, uma estampilha de passaporte ~ metéforas. Metamorfoses A metamorfose (rema que alimenta todas as cultu- ras) € uma espécie de metéfora intensa, na qual se ins- creve a forca ~ sempre sobrenatural — que conduz a subs- tancia de um termo original a seu termo substitutivo. A metamorfose é uma metéfora na qual se imprime cer- ta idéia do tempo. A metéfora é calma, pacificada como uma equacéo; a metamorfose ¢ ardente, tende a impli- car uma representagio dramatica do devir humano: hé nela uma indagacdo feita 4 matéria, & instabilidade das classificagdes, & troca dos reinos da Natureza. Steinberg freqtientemente estende a metéfora & me- tamorfose: uma mulher & transformada (como num conto de fadas) em sofé, seu corpo se achata, como que 167 | Indie | reduzido & forragao do assento; uma cabeca humana sransformada em assinatura; acolé, vemos um mesmo in- dividuo mansmudar pouco a pouco, de silhueta em si- Ihueta, da infincia & velhice: sao idades da vida. Pois tempo em Steinberg é uma poténcia animada, que avan- §@ aos solavancos, de modo mecinico e perturbador. Steinberg disso extrai os efeitos de uma espécie de fan- tastico moderno, Antiteses No cendrio bem Aitsch de seu atelié, um pintor com um jeito antiquado pinta no cavalete um quadro de quadrados abstratos, 8 Mondrian. Ou ainda: sobre uma ponte metilica de pilares griceis, um largo edifi- cio barroco com trés ciipulas complicadas. A antitese rorna o discurso vivo, mas nao faz tit; & preciso o contraste, motor cOmico bem conhecido, Steinberg atravessa freqiientemente a antitese ¢ 0 con. traste, mas vai mais longe: produz uma mistura de lin- guagens heterogéneas, produz uma heterologia fina, tum esfregago um tanto dcido de cédigos muito diferen- tes; tira dois objetos de seu contexto habitual ¢ os atuae liza simuleaneamente, numa cena ao mesmo tempo in- congruente e plausivel, 168 | tmagem | Armadura Uma armadura vazia sobre um soclo: que signo mais banal do museu enfadonho (para onde arrastamos as ctiangas)? Esse estereétipo ¢ apresentado por Steinberg em seu acidente improvavel, seu escaéndalo: uma arma. dura obesa. E como uma alianga de palavras (diz-se em ret6rica): 0 encontro impossivel de um sujeito sempre magro (0 usudrio de armadura) e um predicado aber- rante (um soldado nunca € obeso). Etc, Na Natureza, dizia Valéry, nao hé et cetera: a Natu reza diz tudo, s6 0 homem se dé o poder desenvolto ¢ exorbitante de munir a seqiiéncia das coisas com esse apéndice preguigoso que nao quer dizer nada, mas o escusa ~ acha ele ~ de ser incompleto; ¢ ele ainda leva © cinismo a ponto de reduzir esse resumo a trés letras expeditivas: er. O mundo de Steinberg nao é a Natureza (falta itol)s estd, portanto, cheio de “etc.”. Vejam com que procedimento gréfico Steinberg diz “etc.”: ele instaura uma repeti¢ao em duas dimensGes: por um lado, fron- talmente, representa um cortejo intermindvel de tipos 169 | at sociais (nfo tentaremos defini-los um a um: cada um é ao mesmo tempo — 0 que é a visio propria de Stein- berg — perfeitamente estereotipado € absolutamente original), desfilando sob a prépria bandeira do “etc.”, ¢ por outro lado cada fila, vista em perspectiva, vai lon- ge, como uma vibraggo se extinguindo, néo porque para, mas porque deixo de percebé-la. O desfile ea fila sao infinitos, os dois infinitos se cruzam e teforgam. E como se, num segundo grau, 0 préprio “etc.” fosse re- petido, reverberado por dois espacos diferentes. Tapecaria Pequenos grafites figurativos, repetindo-se, formam, uma superficie abserata: uma tapegaria-farsa, em suma. (Na Natureza, as coisas se repe“em, mas essa repeti- 40 nunca é abstrata: nada de “etc.”. O homem, por sua ver, est sempre preso no mesmo movimento: figura- cio, repeti¢ao, abstracdo, gregarismo, aversao, rejeicao.) Originalidades O que Steinberg pde freqiientemente em causa é 0 gregarismo humano: 0s homens se repetem ad nau- seam. Esse efeito & mais forte principalmente porquea 170 | Iago | repeticao inexordvel posta em cena por Steinberg cap- ta singularidades: guitarristas barbudos, namorados sob palmeiras, um pintor diante do cavalete, todas as pos- turas que achamos, num primeiro impulso, serem fe- rozmente individuais. Com essa simples invers4o (cuida- dosamente “montada’), Steinberg atinge a peculiaridade de nossa civilizagao, pois, na verdade, nossa civilizagao é cheia de originais, nela a marginalidade floresce de to- dos os lados. O chato € que essas originalidades nunca sto singulares; as margens se repetem ao infinito. Para onde quer que nos voltemos, s6 encontramos conformismos: o da Lei, mas também o do inconformismo, mais tirani- co ainda que 0 outro. E 0 que diz mais ou menos & sua maneira 0 regimento dos barbudos vanguardistas que desfilam sob o lapis de Steinberg. O mundano Uma festa a Steinberg: reunidas num grande salao, personagens diversas furnam e falam; fala e fumaca so a mesma coisa: tudo se confunde num mesmo filacté- rio que sai da boca ¢ do dedo de cada um. E como ne- nhum dos parceiros esté isento desse apéndice expira- tério, dé-se um efeito agudo de repeticao; e entdo en- tendo que o ser da repeticao é a mundanidade. | ni | A excego O que é uma colecao, um desfile? E algo que olho. Eo que olho € aquilo de que estou excluido, O espera- culo atrai-me ¢ rejeita-me ao mesmo tempo. Por um lado, sinto um movimento de solid’ em relagao ao que desfila, ¢, por outro, percebo, ao longe, a grande paz de tudo o que se repete e se tranqiiiliza por nao estar sozinho, Uma voz incessante percorre a obra de Stein- berg; s6 ela € ouvida, e ela diz: All except you. E dessa ex- cegao extraio ao mesmo tempo proveito e dor. Légica I Toda arte baseada na inteleccdo supée sem dtivida uma operagdo, como que uma espécie de segredo técni- co do artista. Os antigos mestres artesdos dispunham de segredos de fabricacao. A técnica de Steinberg tem como finalidade a produgao do sentido (de certo senti- do, que nao se parece com o sentido esperado). Por conseguinte, a operagao geral que define essa técnica, ¢ cujo segredo Steinberg tem, sé pode ser uma operacio légica (da algada da ciéncia chamada légica). E, pois, preciso ~ no para compreender Steinberg, pois ele é compreendido de imediato, mas para decifrar seu se- 12 | mager | gredo de fabricacao, 0 que, claro, nao esgotard 0 encan- to de sua arte ~ & pois, preciso artiscar um cursinho de légica. Quando refletem sobre 0 que ¢ uma “palavra’, os ldgicos distinguem cuidadosamente (¢ esse cuidado de- fine sua ciéncia) entre o uso dessa palavra e sua mengéo. Exemplo cléssico: quando digo “A ra come a mosca’, da palavra “ta” s6 fico com seu referente, o animal con- creto ao qual ela remete; é como se a palavra fosse in teiramente transparente, ¢ através dessa vidraca invist- vel eu visse algo que ocorre na realidade; a palavra af & vivenciada apenas em seu uso (seu emprego): emprego a palavra para combiné-la com outras palavras, utilizo-a para dizer alguma coisa que esta na minha cabega ou diante de meus olhos. Mas quando digo: “Ra é palavra de uma sflaba’, a coisa é bem diferente; pois, af, a pa- lavra “Ra” nao remete a nada que nao seja ela mesma: 0 sentido com que a carrego volta, como num circuito fechado, para o seu ser formal, ¢ a palavra se designa como palavra, é um aut6nimo, a mengao que fago dela esgota seu uso. Dessa distingao entre uso e mengio de- pendem duas préticas opostas de linguagem, Uma é am- plamente majoritéria: quando falamos, no sentido cor- rente do termo, sé lidamos com o uso das palavras. A outra é minoricéria, marginal, excéntrica, aberrante: eu jogo com a simples mengao das palavras e abro assim o campo hidico de todos os jogos de palavras, Mas a in- 173 Indios | ven¢4o mais estranha é combinar sem prevenir, numa frase ou numa imagem, uso ¢ mengao. Eu poderia cons- truir assim um silogismo barroco: “a ri come a mosca’s ora, “Ra” é uma sflaba; logo, “a silaba come a mosca”. O que foi que eu fiz nessa brincadeira? Nada mais que achatar os dois niveis do sentido um sobre 0 outro, como se nada os separasse. A Idgica, porém, prescreve o respei- to a uma relagao rigorosa de exterioridade entre esses dois nfveis: que o uso nunca interfira na mengao do sig- no, caso contrério toda a Iégica cai por terra, ¢ os légicos nfo servem para mais nada. Adivinha-se que Steinberg, para nosso prazer ~ € dos mais sutis ~, passa 0 tempo a embaralhar os nfveis, a transgredir a barreira do uso da mencfo, a viajar, tal como um genio desrespeitoso das injungées de exterio- ridade, da coisa ao signo, e vice-versa, pois trata-se de um circuito sem termo, vertiginoso portanto: uma mio, por exemplo, desenha a manga de uma mao que dese- nha sua propria manga. Onde estou? Dor e delicia da autonimia. \ Autonimia I Para escrever, para ler as produces de sua arte, o miisico usa papel pautado — assim como 0 orador € 0 esctitor utilizam palavras: é a relagdo de uso. O mtisico 174 | Imagem | de Steinberg, porém, traca uma nota sobre um penta- gtama que é ao mesmo tempo parte do fundo estriado sobre o qual Steinberg o desenhou: ao escrever, ele se es- creve, e, indiferente a qualquer razdo légica (cuja fun- io é separar, distinguir, opor), faz do pentagrama um uso e uma mengio. Autonimia IT Na pritica burocritica, certos enunciados sto de uso tio freqiiente ~ “Frégil”, “Aprovado”, “Duplicata” etc. que com eles sao feitos carimbos sé para impri- mir na papelada. Steinberg apodera-se desses enuncia- dos insfpidos que sé valem por seu significado e com cles faz méveis que uma personagem transporta com 0s bragos estendidos: a palavra perde 0 uso, torna-se um objeto que pode ser tocado, manejado. O signifi- cado é a parte imaterial do sentido, ‘Tocar um significa- do é, portanto, uma operagéo mégica: um milagre, de algum modo, cuja solenidade € escarnecida gracas & imbecilidade do objeto transportado (como numa ban- deja) e 20 servilismo cheio de compungao da persona genzinha que procede dignamente a esse “transport (6 ridiculo — sempre discreto ¢ como que simplesmente divertido ~ é ainda mais penetrante quando nossa pet- 175 | Indies | sonagem transporta acima da cabega, como enormes ¢ delicadas pesas montadas de confeiteitos, assinaturas complicadas, letras, impressdes digitais, todas as insig- nias da identidade). Autonimia IIT Steinberg, claro, est muito consciente do processo autonimico ¢ o exprime muito bem: “O que desenho é desenho”; e também: “O desenho deriva do desenho.” Im-pertinéncia Personagens na rua séo vistas (desenhadas) de cima, absolutamente na vertical, Steinberg descreve (escreve) 0 excesso da deformaco produzida por essa mudanga de ponto de vista. Na ciéncia lingiistica, chama-se pertinéncia 0 pon- to de vista em que o observador opta por se situar para observar a linguagem — pois ela pode ser observada de muitos pontos de vista: o fonologista, por exemplo, es- tuda os sons sob a pertinéncia do sentido, e isso torna a fonologia diferente da fonética, que os estuda sob a pertinéncia da fisiologia dos érgéos fonadores, Um 176 | regen | corpo humano pode ser captado sob muitas pertinén- cias, mas a que geralmente prevalece (toda a pintura fi- gurativa e a fotografia dao testemunho disso) é a perti- néncia frontal: o artista desenha os corpos do modo como eu, ser humano comum, os vejo, ou seja, erigi- dos diante de meu préprio corpo, Toda infracao a essa pertinéncia universal € entéo uma im-pertinéncia. E é isso que s4o as silhuetas de Steinberg: impertinentes, de- formadas pelo olhar do alto, esticadas, esmagadas ex- cessivamente, aqui devoradas por sua prépria cabeca, esfera enorme, monstruosa, ali reduzidas & barra dos ombros, dos bragos, dos pés, Com essa simples mu- danga de pertinéncia, 0 artista cria uma humanidade improvével, mais impertinente ainda porque esses seres parecem olhar pensativamente, de baixo, 0 criador es- irdio que, de muito alto, os desenha e olha. (Sabe-se agora, gracas a certos trabalhos psicanalt- ticos, a importancia da anamorfose ~ procedimento bem conhecido por alguns pintores ~ na economia incons- ciente do sujeito humano.) Mudangas de proporgies ‘A anamorfose consiste em modificar as propor- Ges. Steinberg faz isso 0 tempo todo, pois sabe muito beiii que toda a inteligéncia de uma imagem vem de sua 17 | adios deformacio (0 que ¢ exaro nio ¢ inteligivel). Mas as ve- 2es faz dessa mudanga uma espécie de exercicio exem- plar, como que demonstrativo: uma fotografia repre- senta grossos tubos saindo de um terrago; ao desenhar abaixo desses tubos, muito reais (a fotografia é a “pro- va" do real), automéveis, rotatdrias, postes de ilumina- fo piiblica, Steinberg transforma o terraco em solo de uma esplanada; a chaminé torna-se quiosque, os tubos formam um paldcio barroco. Pelo mesmo procedimen- to, uma vasilha de prata cinzelada é sagrada monu- mento central de uma praca: ao redor, carros e pedes- tres; 20 longe, toda uma paisagem urbana; alhures, uma cdmoda se transforma em edificio, fortaleza ban- céria; acolé, uma pequena escavasao feita por operdtios numa valera, desde que a0 redor se desenhem casas ¢ um parque, transforma-se em enorme cratera com di- mensées de cidade, Todas essas mudangas de sentido s6 sao possiveis porque Steinberg esmaga duas linguagens uma contra a outra, sem aviso prévio: a linguagem pron- ta da forografia ¢ a do desenho; o desenho aparece en- to como um operador mégico que transforma o mun- do A mercé de um demiurgo, que € 0 artista. Af esté, visivelmente, um dos pensamentos constantes de Stein- berg: mostrar 0 poder do artista; o artista € 0 tempo todo representado a modificar o sentido das coisas que acteditamos naturais; ¢ o inscrumento dessa operagao decisiva nada mais € que a mudanga de proporcdes 178 | tmager | (assim, dizem que Nicolas de Staél inteiro sai de al- guns centimetros quadrados de Cézanne, desde que estes sejam ampliados: 0 sentido depende do nivel de percepcao). Intertexto A ccrftica tradicional tinha por hdbito interrogar-se sobre as “fontes” de uma obra, as “influéncias” recebidas pelo artista: essa mania fez a gléria dos trabalhos uni- versitérios. Tais fontes eram consideradas clandestinas (donde a necessidade de trazé-las & tona), e as influén- cias eram dadas como sofridas. A teoria moderna do ‘Texto mudou essa perspectiva. O que interessa e é le- vado em considerasao hoje nao é 0 que o artista softe, & 0 que ele toma, seja inconscientemente, seja, no ou- tro extremo, parodicamente, Todas essas linguagens de origens diferentes, que permeiam uma obra ¢, em cet to sentido, a fazem, constituem o que se chama inrer- texto: 0 intervexto de um autor nunca é fechado, em sua maior parte € indetectavel, por ser mével, sutil (a0 modo de um chamalote furta-cor). Steinberg, artista reflexivo, em certos momentos de sua obra, assume abertamente o pensamento de sua técnica: faz de um “procedimento” (em geral nfo ex- presso) um “exercicio”, exibe seu intertexto, Nao é tan- 179 | Indio | to parodiar, é mais assinalar algum canto da imagem com uma ligeira marca tomada de empréstimo & cultu- ra; alguns tiscos de chuva sobre uma ponte moderna, por onde passam algumas silhuetas, remetem clara- mente a célebre ponte de Hiroshige da pintura japone- sa; uma figurinha negra e esguia ao pé de uma pirdmi- de desértica faz pensar em alguma composigo deso- lada de Friedrich. Uma multidao de estilos passa assim, a titulo de citagdes, pela obra de Steinberg (Léger, a histéria em quadrinhos, 0 estilo 1900 etc.). Ocorre en- tGo, entre duas linguagens (a de Steinberg e a do Outro cultural), um ligeito atrito, cujo efeito é 0 sorriso: um sorriso que liberta da cultura sem a destruir. (Alids, quem pode destruir a cultura? No dia em que escrevo estas linhas, acabam de descobrir, nas fundagées de um banco parisiense, as cabecas dos doze reis-de Israel, es- cullpidas na Idade Médias acreditava-se que elas tivessem sido decapitadas ¢ lancadas ao Sena, na época da Revo- lugdo, por ordem da Convengio, que no queria saber de nenhuma cabesa de rei, nem que fosse mitica). Desterro O estado extremo do intertexto é unir bruscamen- te, num mesmo enunciado (numa mesma imagem), dois textos (duas linguagens, duas referencias culturais) 180 | agen | normalmente separados por uma distancia enorme. I. desse modo que Steinberg coloca os dois camponeses do Angélus, de J.-F. Millet, no cendrio de um tunel para automéveis; ou entéo, mais sutilmente, repete o famo- so casal diante de uma fileira de pintores que o copiam na frente do cavalete. Esse jogo de intertexto serve para produzir uma categoria critica muito forte: o desterto. Steinberg nao para de nos desterrar, de arrancar as raf. zes, a patria, aos signos culturais, tornando-os ao mes- mo tempo reconheciveis e estrangeiros; ele nao destrdi a cultura, subverte-a, Um sistema de linguagem Trabalhando neste texto sobre Steinberg, surpreen- do-me ao constatar que minhas notas, meus rascunhos, pelo jeito, pela disposicao dos tragos, dos grafismos, das rasuras, tém vagamente o ar que as vezes o desenhis- ta dé aos objetos que toma por alvo: sou de algum modo (jogando com a palavra) o pré-texto de Steinberg, Isso nada tem de espantoso: primeiro, porque a obra de Steinberg tem uma relagao constante com esse objeto esquisito, meio pensamento, meio grafismo, que se cha- ma manuscrito; depois, porque o estilo de Steinberg tem um poder insidioso de impregnagio, ¢ um estilo 1st | tri que toma conta de tudo: objetos ¢ tragos; nada Ihe es- capa: é um olho, uma mao que substicuem imperiosa- mente os nossos. Steinberg funda um grande sistema de linguagem pelo qual sou tragado e que eu habito como um espaco que depressa se torna natural para mim. Sou levado a, implicitamente, fazer-me Steinberg. (No forro azul de um envelope, que 0 acaso sepa- ra de seu suporte ¢ perfila contra a lateral de uma de minhas caixas de fichas, vejo de repente a silhueta do Fuji-Yama; por brincadeira, encimo a cratera com uma nuvenzinha em cujo interior escrevo — pois essa éa fun- cao de minha caixa — “para classificar”. Assim, Stein- berg permite que eu me divirta.) Verdade A “verdade” de uma obra ~ talvez mesmo de toda imagem ~ nfo esté no que ela representa, mas na manei- ra como a representagio ¢ feita ¢ afirmada. E possivel dar arcabougo Idgico a essa proposicao. “A verdade — nota Hubert Damisch precisamente a res- peito de Steinberg — nao é da ordem da representagao, mas da ordem do‘nome préprio, tal como Frege o de- fine.” Invertendo a proposicao habitual, segundo a qual a denotagio é 0 estado fundamental comum do signo, enquanto a conotacao apenas desvenda sentidos acres- 182 | imagem | cidos, acessdrios, pode-se dizer que o nome préprio éa denotacéo, 0 que permite a Frege exclamar: “Mas por que, por que queremos que todo nome préprio tenha uma denotacdo além do sentido? Por que o pensamen- to nao nos basta?” A obra de Steinberg é, se assim po- demos dizer, abarrotada de pensamento, no entanto isso nao basta — hd um suplemento, o Nome Préprio, © proprio Steinberg — que é a “verdade” daquilo que a obra representa, pensa e diz, Uno tenore Um dos nomes préprios de Steinberg é 0 proprio modo de sua técnica: a maneira como ele traga 0 trago. Seja como for realmente, o espitito dessa técnica é con- duzir 0 tragado uno tenore, sem levantar a ponta. Isso, evidentemente, implica seguranga; seguranca implica maestria; ¢ maestria, por sua vez, implica premedita- cio. O traco € pensado previamente, durante muito tempo, e depois liberado de chofre, rapidamente (pa- rece). Todo esse proceso (que talvez seja imagindrio) & bem conhecido da pintura alla prima dos orientais (gra- fistas e pintores, como Steinberg). Como ocorre com freqiiéncia — ja observamos ~, Steinberg nao pode abster-se de zombar de sua técnica: 183 | trios | como 0 continuo do gesto ¢ seu principio, de repente 0 gesto sera interrompido sem continuar em outro lugar: © desenho ficard inacabado, de uma maneira cuja maior estranheza esta no fato de que a figura, até onde termi- na, se dé como definitiva pela propria perfeigao. Didatica Estudos para um jogador de bilhar: sem 0 costumei- ro tremor do esbogo, a posi¢éo complexa dos dedos imediatamente manifestada: a mao direita, motriz (sua fungao é impelir), arrasta-se como a pluma ramosa de um pdssaro que toma impulso; a esquerda, condutora, envolve a ligacao do taco, com o polegar ¢ o médio im- plantados como dois pilares, enquanto o indicador agarra, cavalgando, imobilizando, a haste. A verdade do movimento nao € realista, é diddtica: € um estudo que, em outras cenas mais amplas, mais vagas, permi- te abandonar o detalhe da mao, mas acrescentar um excesso de verdade a toda a silhueta do jogador, encur- vado, debrugado, atravessado de lado a lado pelo lon- go traco com o qual ele visa a bola. 134 | tage | Fino/grosso O trago costuma ser fino. Esse habito, por contras- te, permite o gozo gordo da pena nas falsas assinaturas: parecem até escritas com o polegar, enquanto o trago de- senhado parece vir do indicador, dedo inteligente que mostra, ditige, esclarece. Légica II Sociedades gregirias, individualidades frégeis: essa fragilidade ¢ combatida com grande quantidade de tim- bres, forografias, assinaturas ¢ rubricas, encarregados de certificar que o individuo € ele mesmo, ¢ nao outro. Todo esse material ¢ abundance na iconografia de Stein- berg. Todos os que falaram de sua obra ressaltaram que Steinberg pés no centro dessa obra 0 problema da iden- tidade: os outros me aparecem indiferentes entre si ¢ diferentes de mim: Quem sou? Onde estou? A identidade (A = A ow A = B) é a questo por ex- celéncia da légica. 185 | aio | Escritas O grafismo das escritas (ilegiveis) € pesadamente carregado, Remete a um momento bem preciso da his- téria gréfica — pois h4 uma histéria das escritas, para- doxalmente bem conhecida no que toca aos tempos antigos (paleografia) ¢ pouquissimo conhecida no que toca aos tempos modernos, uma vez que s6 a escrita im- pressa chamou a atengao dos historiadores. Esse mo- mento é justamente o da burocracia ascendente. A do- minagao do Estado burocratico (segunda metade do século XIX) corresponde a importincia crescente de seus escribas, ¢ essa importancia inscreve-se nas volutas enormes e sofisticadas da assinatura: quando o escriba diz “eu”, quem fala é a Lei. Além disso, essas escritas passadas dizem simplesmen- te: passado. Com o grafismo, representa-se uma comédia em que se pée em cena a origem. Pois nao existe identida- preciso de um pai, de uma de sem origem: para ser “ei ordem que preexista a minha vinda e a autentique. Timbres Em A linha geral, para denunciar a devastagao cau- sada pela burocracia no novo Estado soviético, Eisens- 186 | Imagem | tein mostra uma mesa coberta de papéis ¢ uma mio que assina, rubrica, carimba sem descanso. O timbre ¢ 0 simbolo absoluto da burocracia, Steinberg joga muito com essa forma redonda e gravada, que funciona como um lembrete das vaidades sociais: legislagio, medalhas, dinheiro etc (Timbre sobre assinatura é, de algum modo, o fer- rolho do individuo.) Temas? Coisas que estimulam Steinberg e para as quais ele retorna com freqiiéncia: pracas ptiblicas, gatos, idades, garotas de calendério, praias, mett6, papel de carta, ba- res, passaros, crocodilos, correio aéreo, pintura abstra- ta, indios, mau gosto, discos, apartamentos, festas, pin- rores ¢ seus cavaletes, assinacuras, impresses digitais, forografias de identidade, pontes, etiquetas. Essa enumeragdo — na qual nao se deve buscar ne- nhuma ordem, nenhuma estrutura — designa o qué? De- signa o “mundo” ~ 0 mundo humano, urbano, que me “bombardeia” com suas imagens, suas repetigées, seus artificios, Steinberg acolhe esse mundo com uma viva- cidade extrema, faz-se contemporiineo absoluto dele; ¢ a critica que faz a esse mundo baseia-se num alerta in- 187 | Indios | cessante, numa cumplicidade vigilante. © artista, em quem sempre se exprime certa solidao do individuo — seu estado de excesio -, € também aquele para quem o mundo esté sempre presente, Steinberg enumera o mun- do ~ os objetos do mundo, mais ou menos como o fa- ria um Enciclopedista: h4 nessa leve tomada de posse algo de Luminoso (pois se fala de um Século das “Luzes” Labirinto A enumeragio das coisas do mundo estende-se ao longo da obra; & primeira vista, é uma enumeracéo pla- na: varia por deslizamento de uma imagem & outra (uma enciclopédia nao é objeto metafisico). No entan- to, essa enumeracéo, em Steinberg, produz um efeito colateral: o de um lugar abarrotado de objetos heters- clitos no meio dos quais do nos encontramos. Essa é a propria definigao de labirinto. Ocorre, justamente, que Steinberg desenhou a Galleria de Milo como um la- birinto, como o amontoamento ¢ a extensao de fun- goes multiplas, um pequeno universo autarquico. E esse o mal-estar incansavelmente expresso por Steinberg: 0 mundo basta-sea si mesmo, o mundo néo precisa de mim: “Al except you,” 188 Iinagem | Leituras * Acabo de trabalhar em Steinberg, de consultar com a mdxima atengao possivel os detalhes de sua obra, Le- vanto a cabega, reflito, deixo agir em mim esse olhar interior, que é o olhar da lembranga, Do que me lem- bro? Qual é a idéia geral que tenho dessa obra? ~ A pri- meira vista é uma idéia adjeriva: cubro Steinberg de ad- jetivos, que sao como vibracées miiltiplas, répidas, que essa obra viva suscita em mim. Digo: ¢ inteligente, pre- ciso, engracado, divertido, variado, insistente, irénico, terno, elegante, critico, belo, atento, aberto, agudo, in- ventivo, refihado, encantador etc. A imagem vibra e in- siste; provoca em mim uma espécie de formigamento de linguagem, e essa ligeira embriaguer de prazer absor- ve finalmente, sem esgotar, todos os adjetivos que atri- buo a Steinberg. Pois justamente: nao consigo dizer tudo, e por isso tenho a sensagao de nao ter dito nada. Ha um resto de impressdo, de que minha linguagem nao ‘consegue as- senhorear-se. A idéia geral que tenho de Steinberg ¢ en- to a seguinte: é, literalmente, inesgotdvel. Nao adianta desfiar andlises, enumerar atributos, correr atrds do ser dessa arte, ndo consigo alcancé-lo. Steinberg est4 sem- pre @ frente, Muito & frente? De jeito nenhum, e af est encanto: sua obra ¢ muito clara, portanto muito pré- 189 | Peso | xima, no entanto sinto que minha leitura nunca esté completa, terminada. Num ultimo paradoxo, Steinberg me propde uma relago ao mesmo tempo ildgica e ir- refutavel: aproximo-me dele 0 tempo todo (e dat mui- tos prazeres) ¢ nfo 0 atinjo nunca (é, no sentido pleno do termo, um artista): sou Aquiles, que nunca conse- gue alcangar a tartaruga, sou a flecha de Zeno de Elia, “que voa € nfo voa”, aproximando-se do objetivo nu- ma distancia irredutivel, porque infinitamente fracio- navel. Uma miragem, em suma, rumo a qual avango de leitura em leitura, ¢ cuja decepgao & sempre adiada. Nao serd essa a propria definigao de leitura, enquanto 05 fildlogos nao se intrometem? Sei agora 0 que a obra de Steinberg € para mim: um texto. Arvore De tepente, uma belissima drvore feita em crayon, fantdstica e cldssica ao mesmo tempo: a assinatura exem- plar de um pintor Erte texto, datado por Roland Barthes de 23 de decemtbro de 1976, st foi publcado em 1983, nas Edvions dart Repies, Galerie Maeght (Sobre o pinto Saul Steinberg.) 190 ASSIM [SOBRE FOTOGRAFIAS DE R. AVEDON] Olhem uma fotografia de Avedon: vero em ago © paradoxo de toda grande arte, de toda arte de rag extremo finito da imagem abre para o extremo infini- to da contemplacio, da sideragio. Sobre quantas fotos dizemos, estupidamente, que sio “vivas”, “animadas” etc., valores estes miticos, mobilizados pela publicidade dos materiais foogréficos! Mas a arte de Avedon & a de fazer fotos iméveis, por isso inesgotdveis como objeto de fascinagao: o que fascina é ao mesmo tempo morto e vivo, por isso é fascinante. Os corpos que Avedon fo- tografa so em certo sentido cadéveres, mas esses cad4- veres tém olhos vivos, que nos olham e pensam: esta _arte realista é também uma arte fantéstica. 191

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