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A TEORIA DO CONHECIMENTO UMA INTRODUGAO TEMATICA Paul K. Moser Dwayne H. Mulder J. D. Trout “Tadugio Maaceto Beano Croats Martins Fontes Sao Paulo 2004 W 57464 Pes-Cead 07. 1.659.49, 29/08/2007 RS30.24 l2] mer ). ta ‘she ind eae sn 7 ne Ad eee opm oneannen en Te cxorame igen Bape ete vont ni pctv en Or toda uncon eta at 08 ‘tcerte acevo sano CIPOLLA (ape nS Rewer rai Prarie Gera as su omits alone de Crap na Peo) (Canara een 58 al Tens Pak ‘Mote Drayae Nl! ro eer Ml Bas ‘Sis Stoo: Mati ac 00" (ctn Ue ‘Tae Teheran: aan bust. iors "Consol, Denys Lt et, Tacs para eo diana ‘tease ttn sen le 2 Todos on dives dest dito par Brat reiervodor& rare Martie Fonte tora Lit ‘na Conseltir Ramat. 330 0132-000 Seo Paulo SP Beast Tel 11) 32413677 Fax (U1 3105 6867 mat nfocgmartnsonas.cambr tp lien mariafontes.comtbr Prefiio carrito cartruto cxtruo INDICE 1| Aepistemologia: um primeiro exame .... Por que esnidae 0 conhecimento? Algumas diividas sobre o conhecimento . ‘A definigéo tradicional de conhecimento Conhecimento e experiencia As intuigdes ¢ a teoria 2| Uma explicagao do conhecimento (© campo da epistermologia © conceito de conhecimento . 7 Epistemologia, naturalismo e pragmatistio O valor na epistemologia .. sp Acrenga oo. c ce As crengas ¢ os estados de representagio . ... As crencas e a atribuiglo de crengas ‘Acaso as crengas s4o transparentes? As ctengas € os ideais tedrice (O climinativismo e suas previsies...... (© jutzo feito em estado de incercera ¢ as exigen- cartruto «| Averdade se 67 fara te iss Bee eed fom bec eer i Consideragées integradoras sobre aracionalidade . 161 Ayerdade ca cocréncia 7 carfruto +f O ceticismo ....... 163 A verdade e o valor pragmético 80 ‘Algumas espécies de ceticismo 163 Espécies ¢ nogées de verdade sees 81 Alguns argumentos do ceticismo ....... . 166 ‘Uma resposta do senso comum .. peee WAL eal ai eatealaal dale ie O xix, 0 aru « 0 expeacionise 7 A justificagao, averdade ea anulabilidade . 85 i . A justificagéo pela inferéncia ¢ problema da re- cartruto # | A epistemologia e a explicagao ..... 5.0.2... 181 gress v6... 87 As origens da epistemologia contemporinea 181 O problema da sepiesio 88 A autoridade suprema em matéria de epistemologia 186 O iinfinitismo epistémico 89 Acxplicaglo 0 confrecimento......c.ececee 189 O coerentismo epistemico . 91 O conhecimento explicative seve 190 © fundacionalismo eo confiabiismo epistémicos 95 Ainferéncia da melhor explicagio .... 194 O contextualismo epistémico 103 Os explicadores, a compreensio e a autoridade Complemento & jusificagio: © problema de Gettier 105 epistemologica 200 cartruio 6] As fontes do conhecimento....0..0000c000. ME eae . 208 racionalismo, o empitismo co inatismo 11 Biblopape. : oe FH O empirismo, 0 positivismo e a subdeterminacio. 116 ferebe as Tei lator em p primeira pesso2 ......... 121 Vfedihe tees Ee pos Ameméria Fielder tas Aunifcagio tedtica 2... cece » 125 © testemunho e a dependéncia soc 128 cartrino 7] Aracionalidade ....0..6cecceeeeeeceereeee 135 Distingées preliminares bevcecvee 1S A inferencia racional:nommativae descritva.. 139 ‘Accoeténcia eas crencas extraviadas...... 145 A racionalidade eas decisbes romadas em estado de incerteza . EEE ag. A filcia da taxa-hase lal 151 desvio por disponibilidade 152 O desvio por confitmacio 2.0... ccecees 154 PREFACIO Este livro ¢ uma introdusdo temética& teoria do conhecimento, ou cpistemologia, Muito embora refirase com fieqiiéncia aos grandes vul- tos da histéria da epistemologia, no representa de modo algum uma in- trodugao hist6rica ao tema. Trata principalmente dos desenvolvimentos substanciais ocorridos durante 0 século XX ¢ apresenta os temas repre- sentativos qiue mais se destacam na moderna teoria do conhecimento. E muito natural que os filésofos se deixem arrebatar pelas disputas detalhadas ¢ pelos argumentos sutis de seus campos de atividade. Pelo ‘menos sob este aspecro, os epistemslogos sGo semelhantes a eles. Por isso, muitos livros introdutsrios escritos com a melhor das intengbes acabam por revelar-se incompreensiveis para os estudantes que come- sam a aventurar-se nesse campo. Com uma abnegagio as vezes espar- tana, tentamos resistir&tentagio filoséfica de nos perdermos nos deta- thes ¢ sutilezas menos essenciais. Se esta abordagem introdurdria no agradar a alguns especialistas mais arrebarados, esperamos que tal de- sagrado seja compensado pela reagio de seus alunos. Este livto é 0 fruto uniforme de um crabatho conjunto, muito em- bora tena sido escrito por trés filésofos que esposam diferentes teorias epistemolégicas ¢ ttm idéias dferemes sobre o ensino da episemologia. “Todas as paginas, sem excecio, foram revistas pelos trés autores. Na ver- dade, essa diversidade floséfica representou para nés uma nftida vante- X[ATEORIA Do CONHECIAAENTO ‘gem. A limicada gama de temas a respeito dos quais cncordévamos 6 petmitiu que o livro apresentasse questies e posighes gersis, fazendo descortinar-se assim um panorama da epistemologia que a maioria dos professores ¢ estudantes hé de considerar acessivel ¢ imparcial. Posto que incgavelmente introdutdrio, este livro ado tem a pre tenso de ser perfeitamente neutro em todos os assuntos. (Néo temos sequer a certeza de que a epistemologia posiaset neutra em todos 0s as- ‘suntos)) Q tratamente temitico do campo aqui apresentado reflete nos- ‘0s jufzos comuns acerea de quais io as quest&es mais importantes, mas contém também duas posigSes unificantes modestas mas positivas. A primeira é a afirmagio de que a verdade € uma espécie de corsespon déncia independentemente de qual seja.ateoria da justificagio adotada, ‘A segunda posigio unificante & 0 papel central que atribufmos & expli- cago ~ posigio as vezes chamada de explicacionismo ~ para a avaliagéo da justificagio, tanto filoséfica quanto cientifica. Nosso explicacionis- mmo é motivado pelo antigo problema da relayfo entic as intuigSes ¢ 2 teoria na epistemologia, ‘Uma das igdes gerais que se tisam do livro &a idéia de que a epis- emologia vai ruito bem, obrigado, e que foi fortalecida pela recente interagio com as ciéncias cognitivas, com a teotia das decisbes & com os cstudos transculturais. Nao temos a menor divida de que a epistemo- logia vai continuar a florescer. Agradecemos ao departamento editorial da Oxford University Press pela excelente assisténcia que nos presiou. Maio de 1997 KM. Chicago, Mlinois DHM. jDT. A TEORIA DO CONHECIMENTO capituto 1 A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME Exe liveo ¢ uma introdugao ao estudo filoséfico do conhecimen- «0, Trata, entre outros, dos seguintes cépicos: em que consiste o conhe- cimento, como adquisimos o conhecimento, como se distingue 0 co- nhecimento da “simples opiniao”, como dependemos das outras pes- soas para obter © conhecimento e como 0 ceticismo pie em xeque os pressupostos mais comuns acerca do conhecimento. Mas por que é ne- cessirio que haja um estudo Filoséfico do conhecimento? Talvez fosse melhor levar a cabo investigagbes que fizessem aumentat 0 nosso co- nnhecimento clos mundos subjetivo e objetivo, em vez de nos preocu- arms com o que ¢0 conhecimento em si mesmo. De qualquer modo, qual é a finalidade do estado filos6fico do conhecimento? Que motivo teria alguém para se interessar pela definigéo das condigBcs, das fontes ou dos limites do conhecimento? A vida ¢ breve © ninguém quer desperdicat o seu precioso tempo em debates intermindveis sobre assuntos insignificanses. Como esta- ‘mos dedicando nosso tempo ¢ nossa cnergia 8 teoria do conhecimento, temos o dever de explicar 0 valot deste ramo tradicional da flosofla. E esse 0 objetivo deste capitulo e do préximo. A [A TeORIA DO CONHECIEENTO POR QUE ESTUDAR 0 CONHECIMENTO? F comum que as pessoas sublinhem a importancia de ter conhec- mento, ou pelo menos do poder que dele resulta. asim que, no de- verter de roda a nossa vida, 6s nos propomes o objetivo de adquirir conbecimento, As vezes buscamos o conhecimento pela simples razo de que gosamos de aprendet. As vezes somos exeriormente pressions: dlosaalgusieconhecimento; ocorre até mesmo; de vez em quando, de vies sentitmos como simples receptéculos dentro dos quals os outros des- psjam eontinuamente montes de informagio. Temos 0 dever de confe- ayo veorema de Pitdgoras, de saber 0 que é um modificador pendente, te conbecervitios fatos da histéria do mundo, ateoria cinética do calor, a teoria atémica da matéria e assim por diante. ‘Muitos conhecimentos nos sio transmitidos na e-em casa, HA muitas coisas em que acreditamos, ¢ que até conhece- os, com base na autoridade de outros. No obstante; adquirimos ak- wae conhecimentos por n6s mesmos, independentemente do teste- senmnko alhelo. A experiéncia pode ter nos ensinado, por exerplo, qual melhor caminho para chegar do trabalho até em casa, ¢ muita gente sone por expeiéneia pessoal qual é a sensasfo de umn dor de cabe- fa: Quer 0 conhecimento seja transmitido por outa esson, ques seis dguitido ditetament, atrbuimos um valor sua pase ese valos ine ‘a, por exerplo, 0 valor que tem para nos fazer passar nos exams, © valor que tem para nos ajudar achegar em casa, o valor que decors do jnteresac que tem para nds eaté mesmo o sett valor intrnsoco, ‘Como o conhecimento tem valor para nés, podemos ¢ muitas ver ‘ges temos até 0 dever de adotar uma posta extica perante a sua aqul= Tigao, Sem deixar de lado a seasater,devemos asurit 2 maim pontbilidade pela ncssscrengase, por consegunte avaliarcidado- pment os textermunhos das outras pessoas sempre que pessvel. Exce- to quando se rata de informagbes incompreensives, temos o costume {te Tomar as crengas que aceitamos iniciaimente «6 por owvie dizer ¢ orroboré-ls através de crenas acetas com base em nossa propria pet~ ‘cepsio € racioesnio. ‘Quando secebemos uma informagio de owtra pessoa freqente- mente perguncamos: “Acaso esta pestoa realmente tem cones de ‘escola, no trabalho AEDISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 5 saber 0 que sth falando?” B evid evidente que a maioria das i prt erage cme ons cht Nees poral sida couvimes, mesmo de professores, a falsaalegacio de que, antes de lombo, todos pensavam que a Terra era plana. Podemos afirmar com cet segranga que hero eb par ds informagies que ou- vvimos das fontes de autoridade. Os erros que ocasionalmente percebe- sos, porém, nos movem naturalmente 2 perguntar como saber se 28 informagées obtidas pelo testemunko de outras pessoas sfo corretss. Esses eros nos levam também a querer saber por nés metros qual ts- seimunho acca equal eta, Era sltima pergunta nfo tem uma ses posta simples. Esse questionamento das fontes de informaca ; 10 revela uma neces- sidade de elucidacéo das condigbes que definem o conhecimento. Para hos perguntarmos se certas pessoas realmente «ahem o que dizetm, te- tnoe de aber o que € necessro em geal para saber alguma cost € no para meramente cret que se sabe. Tipicamente, os filésofos inves- Sgam anatarera do coecimeat en gerale se perguntam 0 que é ne- csirio para que unta pesoa realmente saiba que algo € verdadeizo © no falso. A teoria do conhecimento busca langar luz sobre essas ques- tes gerais acerca do conbecimento, O valor do estudo filossfico do conhecimento dei mento deriva, em parte, do valor que tem a propria posse do conhecimento. De diversas mane! oa pose de vitias espécies de conhecimento € preciosa, e€ sum estar coganado ae de assuntos importantes, Conseqientemente, tenta- 7 adquitir ae vverdadeitos ¢ evitar erer em relatos falsos, ‘menos no que diz respeito a assuntos significativos, como a satide ea felicidade. £ assim que cada qual se vé diante da tarefa de separar a imensa quantidade de informag6es com que se defronta todos os dias a fn de accitar 0 verdadcio ¢rejeitaro falo. Sob este anpecto, a vida inleciale3 vida prétcasfo excepcionalmente completas. ada a importincia da aquisicio de informagoes corretas ede evi- tar as creneas falsas, prcisamos de algumas diresies que nos permi- tam distinguir a verdade do ert0, Os filésofos estudiosos do conheci- mento procuram identificar essas divetrizes © formulé-las de mancira {geral. Uma das diretrizes mais elementares poderia afirmar que nossa confianca numa dada fonte de informagio deve variar imensamente 6 [A THORKA D0 CONHECIAENTO de acordo com 0 niimero de vexes em que constatamos que cla estava cerrada, Quanto mais ertos encontratmos num determinado jornal, por exemplo, tanto menos devemos confiar nas novas reportagens pu blicadas nese onal. Nosso objetivo primeiro & encontra a verdade (as vverdades importantes) sem cait em erro. Para buscar judiciosamente a verdade, porém, precisames de ptincipios que nos indiquem quando devemos aceitar algo como verdadeiro, (s filésofos chamam a teoria do conhecimento de “epistemolo- gia’ — dos antigos termos gregos “episteme” (conhecimento) e “logos” {(reoria ou explicagéo). Em sua caracterizac2o mais ampla, a cpistemo~ logia & 0 estudo filosbfico da nanurera, das fontes ¢ dos limites do co- hecimento. © adjetivo “epistemoligicc” se aplica a tudo quanto en- vvoiva tal estudio do conhecimento; significa “relativo & teoria do co- inheciments”. © adjetivo “epistémico” & préximo dele e significa “rela- tivo a0 conhecimento”. E claro que o conhecimento nio ¢ idéntico @ uma teoria do conhecimente, assim como a mente ngo é idéntica ‘uma teoria da mente, ou seja, 2 uma psicologia "A reflex filos6fica sobre as condigGes ¢ as fontes do conhecimen- 10 remonta pelo menos aos antigos fldsofos gregos Platzo (c, 427-c. 347 a.C.) ¢ Aristbteles (384-322 aC). O Teeteto de Plato © 08 Segun- dos anallticos de Asistreles, mais do que quaisquer outros esritos, pre- pararam o caminho para ¢ epistemologia, na medida em que delimita- ram 0 conceito ¢ a estrutura do conhecimento humano. No Téeset, por exemplo, vemos Séctates, «figura central dos escritos de Platio, a discutir com alguns amigos sobre como certos mestres reputados co- inbeciam as coisas nas quais se distinguiam como especialistas. Os ami- gos lhe perguntam qual é a caraccerstica geral que distingue aqueles ‘que realmente sabem, como os mestres, daqueles que ainda no sabem nas estZo em vias de adquirir 0 conhecimento. Fssas obras antigas ain- da influenciam, direta e indiretamente, boa parte das indagasbes filo- séficas acerca do conhecimento human. ‘Acepistemologia nao cxiste somente na tradigio floséfica ociden- tal. A Gilosofia indiana (hindu), por exemplo, trata extensivamente de questées de légica ¢ epistemologia semelhantes a muitos dos tépicos tratados pela flosofia européia e americana cléssica c contemporines. (s filsofos indians dedicaram uma atengio considerivel a0 proble- Arisrsmon CIA: UM PRIMEIRO BXAME | 7 ma de como reunir ¢ avaliar dados indicativos aos problemas do co- nnhecimento perceptivo ¢ 20 papel do raciocinio no conhecimento, en- tre muitas outras coisas. Perguntas fundamentais a respeito da natureza do conhecimenco tendem a surgir em praticamente todas as culeuras. Afinal de contas, todas as pessoas tém algo a ganhar com distinguir a verdade do erto, a sabedoria da nescidade e 0 caminho do conheci mento do caminbo da ignorincia. ‘As diversas culturas podem lidar de maneira diversa com as questies filosdficas acerca do conhecimento. Algumas culturas, por exemplo, sa- lientam a natureza social do conhecimento e sublinham a importancia das autoridades cientificas ou religioss, dos eruditos, dos comandantes politicos ¢ militares ou de outras pessoas como fontes de conhecimen- to. Outras culturas encaram o individuo como uma figura solitiia que passa por uma peneira rods os dados a que tem acesso (quer pelo tes- temunho de outros, quer pela experiéncia direta) e decide quais deve aceitar quais deve rejeitar. Alguns crfkicos das tradigdesfilosficas oc\- dentais acusaram-nas de atribuir demasiads imporcincia ao individuo como um conhecedor solitiio. Essa acusagio fez com que, em épocas recentes, se desse uma atengio cada ver maior aos aspectos sociais do co- rnhecimento, tema a ser discutido no Capitulo 6. Se houve nesse ponto uum desequilorio na histéria da epistemologia ocidental, ele provavel- ence serd corrigido em certa medida pela epistemologia contempor’- nea, que retine contribuigbes vindas de meios intelectuais ¢ culturas di- versos. A epistemologia recente recebeu também. importantes contri- Duigdes de flésofas feministas. Nas segGes seguintes, voltaremos a falar desses desenvolvimentos recentes da epistemologia. ALGUMAS DOVIDAS SOBRE © CONHECIMENTO. ‘Além de definiras condigdes eas Fontes de conhecimento, os epis- temblogos discutem a medida do conhecimento humano. Perguntam- se até onde esse conhecimento pode chegar. As duas posigées extremas seriam as seguintes: 1, Os seres humanios podem conheces, pelo menos em prinefpio, todas as verdades sobre a realidade. 3 [a TeOAIA DO CONHECIMENTO 2. Os seres humanos nfo podem conhecer nada (ou pelo menos io conhecer na pritica). Muitos Glésofos chegaim 2 uma posicio intesmedidria entre esses dois exttemos: Ei especfico, muitos rejetam a posigio J pelo fato de 1s seres humanos serem conhecedores nis, Nosso conhecimento pa- rece ter limites, Assim como existem muitas coisas que um eo, por texemplo, no pode conhecer nem compreender, asim também exis- sem provavelmente muitas coisas que esti além da apreensio cogniti- va dos seves humanos. A teotia da evolugio e algumas das grandes ri- sides concordam em apoiar a tese ds imitagoes cognitivas do ser hu- mano, justificando-se pelo fato de estes sevem criaturas Finitas ~ muito ‘embora discordem quanto 2 explicagio dessa finimude. ‘A maioria dos flésofos, mas nfo todos, rejeita a opiniao 2, que é 4 dos céticos. Muitos filésofos consideram Sbvio que ns sabemos pelo menos certar coisas, mesmo que esse conhecimento se refira tio~ Somente a experiéncias pessoais ou 20s objetos fsicos com que temos lum contato cotidiano, Ousos, porém, afirmaram que na realidade ‘nfo conhecemos absolucamente nada. Esses filésofos admitem que 2s ‘pessoas em geral confiam em que tém algum conhecimento, mas eles ‘mesmos insistem em que nossos casos aparentes de conhecimento néo passam de ilusbes. A posi¢do cétce mais eatrita, de que os seres humma- nos ndo podem ter (c nio que simplesmente no #2m) conhecimento, advém tipicamente de uma erenca de que as condigdes do conhecimen- tw sio tio rigorosas que nfo podemas arendé-Ias, CCertas pessoas sio naturalmente inclinadas a pensar que as condi- ¢6es de conhecimento so muito Figorosss. sso ocorze especialmente ‘quando essas pessoas querem dar énfase & distingio entre o conheci- snento ‘propriamente dito” (um conhecimento cientfico sobre a reali dade do mundo, digamos, 0 qual pode parecer muito raro) € a mera copinio (a mera opinio, digamos, sobre a eficicia das novas diets ali- ‘mentares, opinido esia que parece cris comumence na mente das pessoas); ou quando refletem muito sobre a.vulnerbilidade da maior parte das nossas mais confianes slegagées de conhecimento, De qual- quer modo, £ perturbador perceber que as crengas mais firmes de uma pessoa podem de repente revelar-se completamente ettOnexs. A EEISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO EXAME | 9 Pense numa pessoa que viveu ha dois séculos e que estivesse consi- derando a possibilidade de comunicar-se quase instantaneamente com um amigo situado a dois mil quilémetros de distancia. Um cavalheir do séaulo XVIII provavelmente ditia que sabe, com a mesma pata ‘92.60 que conhece as coisas que o rodeiam, que tal comunicagio a . A recusa de admitie a possibilidade de se estar tes defo epos eoersecn rot chads dating ation Apes que se rcus a ami a posiblidade de estar ead numa cera eng eng que ramen en posbiidade de ear ermda -tem uma aticude dogmaica em relagfo a ess crenga ou uma accita- Go dogma dscns Muon co tnt liar o dog amo e considera fide butans, xe objetivo em peal é lowe vel. Con seo, a mai dos episteogos se mmontéma meio camino ene kcesiva minimizago da nos capaci de ces, pot win lado, ¢, por outto, a excessiva minimizagao das nos- 14] a TEORIA DO CONHECIMENTO sus falhas de conhecimento. Os céticos colaboram para nos mantermos fastados desse tltimo escolho, muito embora nos levem as vezes para perto demais do primeiro. ‘Certas pessoas parecem alimentar preocupagbes cfticas com base im sua aceitagio do relativism no que di. respeito & verdade. A liga- (ao entre ocxticismo e 0 relativismo merece ser elucidada, O rlaivis- se arma que a verdade de uma afirmagio s6 pode ser considerada em telagdo a um conhecedor determinado (ou sj, a alguém que ou acei- ca ou rejeita essa afirmagao), ou talver a um grupo de conhecedores. fle nega a exstincia de uma verdade absolute (ou sejay urna verdad que ndo varie de pessoa para pessoa ou de grupo part grupo), pelo me- nnos no que diz respeito a determinados essuatos. Os temas teolégicos ‘60 os exeraplos mais conhecidos, pois alguns afirmam que o enuncia- do “Deus existe” € verdadeiro para os crentes efalso para os descrentes. kEnsa afiemagio, quer seja verdadeira, quer falsa, ¢ relatvista, Certas pessoas si0 favoriveis a essa posicio por ‘consideré-la um meio de evi- ve conflitns sensiveis entre os crentes ¢ 0s descrentes, mas nfo precisa smos explicar aqui por que certas pestoxs se tonnam relativistas “Talver ndo esteja ainda perfeliamenté claf6 0 conceito de relativi- dade da verdade. Um exemplo tirado de um contexto nio epissemico pode serve para cucida as ois. Eis um bom exemple de uma obs sgacho relativa: a obrigacio (vigente em certos lugares) de ditigir do lado direito da rua. Em relagiio, eis norte-americanas, por exemplo, 1p cidadio tem a obtigacao de dirigir do lado direito, Em rela is lis ingles, porém, tem 2 obrigacto de dirgir do lado esquerdo. Nese cemplo, a obrigasso de dirgie dum ou dousro lado s6 existe em celae Gao a um determinado cidigo jure, sendo que os ebigosjudicos podem variar de acordo com 0 lugar. A obrigacio ¢ apenas relativa, pois, fora desss sistemas juridicos, nfo existe nenhuma, ‘obrigacio ob- jetiva ou absoluta de dirgir deste on daquele lado. Tim contraposigio a isso, muita gente dria que a obrigagio de nfo ssubmeter bebés& tortura, por exemplo, nio € relative. Pode até ser que cas obrigacdo exista em clagio a um determinado cédigo juridico {que proiba os maus-tratos a bebés, mas éde se pensar que cla tem tam- vem uma exsténcia objetiva que vai além de todo ¢ qualquer eédigo jutidieo, De qualquer modo, muitos consideratn-na wen dever objed- a errsrenocoata: UM Farisino E¥AME [15 vo, que obriga moralmenteo see humano independentemente das im- poses jurdicas. Tal alegacto de abjetivdade€ fia pelos chamados realists morais". Algumas de nossas les pazecem codificar cetas obri- gng6es preexistentes € objetivas como essa, tais como as obrigigoes de ‘fo matar¢ no vorturar. Outas leis, porém, sio evidentemente rela tase tém a intengho de cir uma detrminada obrigao. As obiga- Bes etadas pela instiugbes judas #6 extem em Felt 4 eas inscituigses. As obrigagSes precxistentes que entamos codificar ara- v5 das leis sio possivelmente no relativas, ow objetivas. Embora nfo hj comtonésiaalguma em corn do fo de que cerasobrigaies fo relativas 20s c6digos jurfdicos, ainda é muito controversa a questo cde saber se 2 verdade é sempre relativa as crencas de um individuo ou de uma cultura. ( relativista pode se sentir rentado a encatar com ceticismo a pos- stildade do conhecinent humane disque oconhecineno €- [posslvel porque-a verdade é relativa. Afirmaria, por exemplo, que nfo se pode saber que matar bebés & erado, pois um ato que s6 éertado em relago & sua cultara ¢ pode ser aceitével em outras culuuras, Uma alegagio mais plaustrel sera a de que nio se pode saber com certera {que 0 aborto ¢ etrado (nem certo) porque as pessoas tm, em relagéo a le, atitudes to fiandamentalmente diversas. Essa linha de argumenta- fo a favor do telativismo é chamada de “argumento da discordancia’ © relativismo, porém, no condue naturalmente ao cetcismo. A ver" dade é que conduz na dieecio oposta, ; Se.averdade ¢ relative ds suas prépriascrengss, por exemplo, sua possibilidade de adquirir conhecimento é muito maior do que se a ver- dade fosse objetiva e, portanto, dificil de conhecer. O relativismo tor- na.a verdade muito fil de conhece €, portanto, orna ici prpeio conbecimeno, Uma das conseqiéncias do tlativismo & que aquilo que cu ei ser verdadeiro, vost pode eber ser falso, porque talver ja ver- dadeiro para mim ¢ falso pata voct. Dado o relativismo, 0 conheci- mento pode variar drasticamente de pessoa para pessoa (ou de culcura para cultura); mas mesmo assim ainda havers conhecimento, prova- velmente em abundéncia. £ claro que o relativsta poderia Fxar num nivel muito elevado outros critérios de conhecimento (os que dizem respeito A justificagio, por exemplo), mas iso seria atipico, 16 |ATHORIA Do CoNMECINENTO © ceticismo floresce quando a verdade € encarada como algo to- talmente objesivo, Certos filésofos tragaram com tanta orga e dstin« lo enure a aparéncia que as coisas assumem para n6s (a aparénci, por _Geemplo, de gue 0 Mpis parcialmente submerso na dgua ext flexions- ddo) a realidade objetiva das coisas (0 apis ina verdade é reto) que de- sesperaram da nossa capacidade de conhever como as coisas so abjeti- yamente, Outtos desesperam tio-somiente da nossa capacidade de se ‘er se sabemos como as coisas so objetivamente, mas admitem que po ‘demos adquirir gum conhecimento da verdade objetiva ‘Certs filésofos apéiem o ceticismo somente na medida em que postulam 2 existncia de uma separasio significaiva entre 2 verdade {ou o mundo objetivo) ¢ nossa capacidade cognitive, Para saiencar ‘essa separagio, pode-se postular a verdade como inatinglvel por ser in- dlependente da mente (ou objetiva) ou em Fungo de wr limisagéo fevera da nossa capacidade cognitiva (ou, ainda, por ambos os m wos), O eética diria que, em nossa busca de abjesividade, tudo/em que podemos nos epoiae €@ nossa limitada experinciay e que a verdade, 2 tealidade objetiva,esté sempre além dessa experiencia, Além disso, cle pode sublinhar& incSmoxia ccculatidade de todas as provas da confia- bilidade de nossas fontes de conhecimento (a percepsioy a teméria & 2 introspecgio, por exemplo), afimando que no podemos recortet douira coisa senfo a esses mesmas fontes para provar a confiabilidade ddlas (ou sea, a qualidade que elas tém de conduzir & verdade) de ma ineita nfo circular (Este problema sera clucidado no Capitulo 8.) ‘No geral, os ilésfos distinguem dois ripos de ceticism: 0 etics- smo quanto 20 conhecimento eo ceticismo quanto & jusifcardo. O oeti- ‘Gsmo irrestrito quanto ao conhecimento afirma que ninguém sabe wnada, © ccticismo inrestrito quanto A justificagdo assevera que ninguém pode justficar (ois ej, tera garancia de) suas crengas. Segundo o ced- Eso quanto ao conhecimento, nés &s vezes temos justificativa para ‘rerem algo, mas nossas crengas, mesmo as justificadas, nunca se equi param 2 um conhecimento vetdadeito ~talvez porque 0 conhecimen- fo. ao contrério da justificagio, € imune & ameaca tepresentada pela tbtengdo de novas informacies por parte do conhecedor. Por exem= plo, antes da genética moderna, muitos se sensiam justificados em cren com base nos indicios que se thes apresentavam, que a8 girafas A EPISTEMOLOGIA: UM PRIMEIRO BKAME | 17 ‘tm 0 pescogo comprido por nt yorque seus antepassados esticavam 0 pesco- goa in de abocanhar as Gnicasfolhasentio disponives, as das érvo- res, Bssa crenga justificada foi destruida pela obtencfo de novas infor- magées acerca do mecanismo genético interno da transmissibilidade das caracteristicas das girafis. O conhecimento, por outro lado, é imu- ne a essa destruicio — ow invalidacao ~ provocada por novas informa- es. O ceticismo quanto a justificagao afltma que nés no temos, € mesmo que no podemos ter, motivos legitimos para adotar esta ou aquela crenga, No Capfuilo 8, trataremos mais detalhadamente do ce- ticismo, Por enquanto, 0 que precisamos elucidar é a dist conhecimento e crenca jusifieada. Et ‘A DEFINIGAO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO. Na tradigdo Alossfica ocidental, a epistemologia ofercceu até hi bem pouco tempo ama definiséo principal de conhecimento na qual este ¢analisado em és componentes essenciais justificacéo, verde renga. Segundo essa anilise, o conhecimento opens pot ‘ae nigfo, a crenga verdadeira cjustificada, Esa definigdo é chamada ané- ‘ie tripartite do conhecimenco¢ andlse wadicional Muivos fbsofos en- contram a inspiracdo dessa anilise no Teeteto de Platso. Os episteré- logos, em geral, tratam do combecimento propositive: © conhecimento & que algo & de tal jeito, em contraposigéo a0 conhecimento de como azet algo. Considere, por exemplo, a diferenca que existe entre saber que uma bicicleca se move de acordo com cerias leis do movimento ¢ saber andar de biciceta,E evidente que esta segunda expécie de conhe-

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